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Dois conceitos de liberdade Se os homens nuncadliscordassem sobre os objetivos da vida, senossosances- trais tivessem permanecico imperturbados no Jardim do Eden, osestudosaquese dedica a Cadeira Chichele de Teoria Politica e Social ndo poderiam ter sido conce- bidos.' Poisesses estudos nascem e prosperam na discérdia, Alguém pode questio- naressa afirmacio aleganclo que até numa sociedade de anarquistasreligiosos, em que nao ha possibilidade de ocorrerem conflitos sobre os propésitos supremos, alguns problemas politicos, por exemplo, questoesconstitucionas ou legislative, ainda poderiam acontecer. Quando ha consenso sobre os fins, as tnicas questes aque estam se eferem aosmelos, essasnio siopolitias, mas téenicas sto, pas siveis de serem resolvidas por especialistas ou mquinas, como discusses entre engenheiros ox médicos.E por isso que aqueles imbutdos de uma fé em algum jmenso fendmeno transformador do mundo, como o triunfo os da razdo oua revolugio proletiria, devem acreditar que todos os problemas politicos e morais palemn om nn taoantesentecaipos Ear sealdatano. sa frase de Engels (parafraseando Saint-Simon) sobre “substituiro governo de pes- soas pela administracio de coisas” e das profecias marnistas sobre o desapareci- mento do Estado e 0 comeco da verdadeira historia da humanidade. ssa petspectivachamada de utdpieaporaqueles que considerama especulagdosobre ‘uma condi de perfeita harmonia social a representagio de uma va fantasia. Anda assimn, um marciano que visitasse hoje qualquer universidade britinica—ou americana —talvez.fosse perdoado se sustentasse a impresso de que seus mem: bros vivem em algum estado muito semelhante a essa condicio inocente eiilica, spesarde toda aatenao séria que os filésofos profssionais dispensam aos proble. ‘mas fundamentais da politica, No entanto, isso é surpreendente como perigoso. Surpreendente porque talvez nao haja nenhuma época na historia moderna em que um mimero tao Brande de pessoas, tanto no Oriente comono Ocidente, ena tido suas nogdese, de fato, suas vidas tio profundamente alteradas, e em alguns casos violentamente convulsionadas, por doutrinas sociais e poiticas defendidas com tanto fanatismo, Perigoso porque, quando asidéias sio negligenciadas por aqueles que deviam exa. ‘ini-las — isto é, que foram treinados para pensar criticamente sobre a idéias—, las s vezes adquirem um momentum desenfreado e um poder irresistivel sobre multidées de homens que podem se tornar demasiado violentos para serem influenciados pela a racional. Hé mais de cem anos, 0 poeta alemao Heine alertou os franceses para nao subestimarem o poder das déias: os conceitosflos6- fe ficos mutridos na quietude do escritério de um professor podesiam destruir uma | Civlizagdo, Ele falava da Critica da razdo pura de Kant como a espada com que 0, deismo alemio fora decapitado e descrevia as obras de Rousseau como a arma ‘manchada ce sangue que, nas mios de Robespietre, havia destruido o antigo reg me; ¢ profetizou que um dia a fé romantica de Fichte e Schelling seria voltada, pelos fandticos seguidores alemées deles, contra a cultura liberal do Ocidente, erando efeitos terzives. Os fatos no desmentiram inteiramente essa predicio, ‘mas, se os professores podem realmente brandir esse poder fatal, ndo sevo so. ‘mente outros professores ou pelo menos outros pensadores (e no governos ou ‘comités do Congreso) que poderio desarmé-los? Nossos filésofos parecem estranhamente inconscientes desses efeitos devas- tadores de suas atividades, Talvez porque, embriagados por suas magnifica reali 2840es em reinos mais abstratos, os melhores dentre les olhem com desdém para ‘um campo em que hé menos probabilidade de serem feitas descobertas radicais ¢ de ser recompensado o talento para a andlise minuciosa, No entanto, apesar de ‘odo 0 esforgo para separé-as, conduzido por um pedantismo escolisticocego, a Politica continua indissoluvelmente entrelacada com todas as outras formas de investigacdofilos6fica. Negligenciar o campo do pensamento politico porque seu ‘ema nstével, de limites enevoados, nao pode ser apreendlidopelosconceitos ixos, ‘modelos abstratos finos instramentos adequados légica ou a analise linguistica —exigir uma unidade de método na filosofia ¢ rejeitar tudo 0 que o método néo possa tratar com sucesso —é apenas permitir se ficar mercé de crencas politicas primitivas e nao criticadas. $6 um materialismo muito vulgar nega 0 poder das {déias afirma que os ideais so meros interesses materiais disfarcados. Talvez, sem a pressio de forcas sociais, as idéias politicas sejam natimortas: 0 certo é que cessas forcas, ano ser que se cubram de idéias, continuam cegas e sem direcio. ‘A teotia politica é um ramo da filosofia moral que parte da descoberta, ou aplicagio, de nocdes morais na esfera dasrelacdes politicas. Nao quero dizer, como acho que alguns filésofos idealistas talvez tenham acreditado, que todos os movi- ‘mentos hist6ricos ou conflitos entre os seres humanos so redutiveis a movimen- 1s (ou tos ou conflitos de idéias ow forsas espirituais, nem mesmo que sio efé aspectos) delas. Mas quero dizer que compreender esses movimentos ou conflitos 6,acima de tudo, compreender asidéias ou atitudes para coma vida neles envolvi- das, as inicas que tornam esses movimentos uma parte da historia humana, endo ‘metos acontecimentos naturais. Palavras, nogGes € atos politicos nio sio inteligy- vveis exceto no contexto das questées que dividem os homens que os empregam. Conseqitentemente, é provvel que nossas proprias atitudes e atividades conti- ‘nuem obscuras para nés se nfo compreendemos as questdes dominantes de nosso mundo. A maior dessas questdes €a guerra aberta que esté sendo travada entre dois sistemas de idéias que dio respostas diferentes e conflitantes ao que tem sido ha muito tempo a questo central da politica —a questo da obedigncia eda coes- cio. Porquedevo (oualguém deve) obedecera outro alguém?” "Porqueniodevo viiverconforme minha vontade?” “Devo obedecer?” “Se desobedeco, possosercoa- ‘gido?" “Por quem, em que medida, em nome do qué e por causa do qué?” ‘Com base nas respostas 4 pergunta dos limites permissiveis de coacdo, visoes ‘opostas sao defendidas no mundo amal, cada uma alegando tera adesio de multi- Ges. Parece-me, portanto, que qualquer aspecto dessa questao € digno de exame. Coagir um homem é privé-lo da liberdade —liberdade de qué? Quase todo ‘moralista na historia humana tem elogiado aliberdade. Como a elicidade eabon- dade, como a natureza ea realidade, aliberdade € um termo cujo significado é vio poroso quenfo parece capazde resistira muitas dasinterpretacées. Naoproponho discutir a hist6ria dessa palavra protéica ou seus mais de duzentos sentidos regis: tradospeloshistoriadores de idéias. Proponho examinarnio mais que duasde suas acepgBes — mas elas so centrais, com muita histéria humana atris de sie, ouso dizer, ainda por acontecer. O primeiro desses sentidos politicos de liberdade (free- dom ou liberty — vou usar essas duas palavras para significar a mesma coisa), que tos precedentes) vou chamarde sentido “negativo”, esta implicado nna resposta a pergunta; “Qual éa area em que o sujeito—uma pessoa ou grupo de essoas —é ou deve ter permissio de fazer ou sero que é capaz de fazer ou ser, sem a interferéncia de outras pessoas?”. O segundo, que vou chamar de sentido "posi- tivo", estd implicado na resposta a pergunta: “O que ou quem é a fonte de contro- Je ou interferéncia capaz de determinar que alguém faga ou seja uma coisa em vez, de outra?”. As duas perguntas sio claramente diferentes, mesmo que as respostas, ppossam coincidir parcialmente. Anogdo de iberdade negativa Normalmente sou considerado livre na medida em que nenhum homem ou. ‘grupo de homens interfere eomva minha atividade. A liberdade politica nesse sen-_ | tido é simplesmente a érea na qual um homem pode agit sem ser obstrufdo por outros. Se outros me impedem de fazer 0 que do contririo eu poderia fazer, nfo sou nessa medida livre; e, se essa area é restringida por outros homens além de certo valor minimo, posso ser descrito como coagido ou, talvez, escravizado. A coercao nio €, entretanto, um termo que abranja qualquer forma de incapacida de. Se digo que sou incapaz de pular para cima mais de trés metros ou que nfo pposso ler porque sou cego, ou que nfo consigo entender as piginas mais enigmé- ticas de Hegel, seria absurco afirmar que sou nessa medida escravizado ou coa, do. Acoerco implica a inerferéncadeliberada de outrosseres humanosna minha} _ rea de atuacio, Sé nao temos liberdade politica quando outros individuos nos impedem de alcancar uma meta." A mera incapacidade de alcancar uma meta néo falta de liberdade politica.‘ Isso é manifestado pelo uso de express6es modernas como “liberdade econdmica” e sua contrapartida, “escraviddo econdmica”. Afir- ‘ma-se, muito plausivelmente, que, se um homem € demasiado pobre para obter algo isento de proibigao legal — um pio, uma viagem ao redot do mundo, um recurso aos ribunais —, ele étéo pouco livre para conseguir esse intento quantoo seria se alei proibisse sua acZo. Sea minha pobreza fosse um tipo de doenca que me impedisse de comprar po ou de pagar a viagem ao redor do mundo ou de conse- _guirque meu caso fosse julgado, assim como o fato de ser manco meimpede de cor- rer, essa incapacidade ndo seria naturalmente descrita como uma falta de liberda- de, muito menos falta de liberdade politica. £ apenas porque acredito que minha incapacidade de obter determinado objetivo se deve ao fato de que outros seres shumanos fizeram arranjos pelos quais sou impedido, enquanto outros nao 0 sao, de ter bastante dinheiro para pagar o que desejo possuir, que me considero uma vvitima de coercSo ou escravidao. Em outras palavras, esse uso do termo depende de uma teoria social e econdmica particular sobre as causas de minha pobreza ou feaglidade Se mina Fale de meios materaisse deve a algumatlta minha decapa- cidade mental ou fisica, s6 posso pensar em falar que sou privado de liberdade (e io simplesmente sobre pobreza) se accito a teoria’ Se, além disso, acredito que minha caréncia esta endo mantida por um arranjo especifico que considero injus- 10 ou iniquo, falo de escravidio ou opresséo econémica. A nanureza das coisas nio nos enlouguece, s6 nos enlouquece 2 mé vontade, disse Rousseau.*O cxtério da copressio é o papel que acredito estar sendo desempenhado por outros eres huma- nos, direta ou indiretamente, com ou sem intencio, para frustrar meus desejos, Ser livre, nesse sentido, para mim significa ndo softer ainterferéncia de outros. Quanto maior a rea de nfo interferéncia, mais ampla a minha liberdade 1ss0 0 que osfilésofos politicos ingleses cléssicos queriam dizer quando usa {| vam essa palavra.” Discordavam sobre o grau de amplitude que tal érea poderia ou deveria ter. Supunham que, diamte das circanstincias, ela nfo poderia ser ilimita- da, porque, se 0 fosse, geraria uma situagio em que todos os homens poderiam iterferrilimitadamentena vida de todos os outroshomens, eesse tipo de hberda de “natural” levaria a0 caos social em que as necessidades minimas das pessoas nfo seriam satisfeitas; ou entio as iberdades dos fracos seriam suprimias pelos fortes. Percebendo que os propésitos eas atividades humanos no se harmonizam auto- ‘maticamente eatribuindo (quaisquer que fossem suas doutrinas oficiais) alto valor ‘ outras metas, como justica, felicidade, culeara, seguranca ou graus varidveis de igualdade, eles estavam prontos aresttingira liberdade em proveito de outros valo- res e até da propria liberdade. Pois, sem isso, era impossivel criaro tipo de associa do que achavam desejével. Consegtientemente, esses pensadores propéem que a rea de livre aco do homem deve ser limitada pela lei. Mas da mesma forma supSem, especialmente libertarios como Locke e Mill na Inglaterra, e Constante ‘Tocqueville na Franca, que exista certa rea minima de liberdade pessoal que nio deve ser violada de modo algum, pois, do contrario, oindividuo se vers numa érea demasiado estreita até para aquele desenvolvimento minimo de suas faculdades naturais que € 0 nico a possibilitar a busca, e até a concepeao, dos varios fins que ‘0s homens consideram bons, corretos ou sagrados. Segue-se que é preciso se tra- sat.uma fronteira entre a érea da vida privada e a da autoridade publica. Em que ponto ela deve ser tracada é uma questio a ser discutida —na verdade, a ser rega- teada. Os homens sio em grande parte interdependentes, e nenhum homem é capaz de agir de forma tio completamente privada a ponto de nunca interferir, de ‘maneira alguma, na vida de outros. “Liberdade para o peixe gratido significa ‘morte para o peixe mitido";*a liberdade de alguns deve depender da repressio de outros. A liberdade para um professor de Oxford (sabe-se que outros acrescenta- ram) € algo muito diferente da liberdade para um camponés egipcio. Essa proposicdo tira sua forca de algo que ¢ tanto verdadeiro como importan- te, mas a propria expressio continua uma parlapatice politica. De fato, oferecer direitos politicos ou salvaguardas contra a intervenco do Estado a homens semi- ‘nus, analfabetos, subnutridos ¢ doentes 6 zombar de sua condicdo: eles precisam. de ajuda médica ow educacio antes de poderem compreender ou aproveitar um ‘aumento em sua liberdade, © que é a liberdade para aqueles que néo a podem empregar? Sem ascondicSesadequadas para ouso daliberdade, qual ovalor dela? As coisas mais essenciais vém em primeiro lugar: hé situagdes em que — para usar um ditado que Dostoiévski satiricamente atribuit aos niilistas —asbotas sio supe- ores a Ptichkin;aliberdade individual ndo € anecessidade primétia de todos, Pois aliberdade nao ¢a mera auséncia de frustragdo — isso inflaria 0 sentido da palavra até ela significar de mais ow de menos. O camponés egipcio precisa de roupas € i remédios antes da liberdade pessoal ¢ mais das roupas ¢ dos remédios do que de Jiberdade pessoal, masa liberdade minima de que ele necessita hoje, eo maiorgrau. de liberdade de que pode vir a necessitar amanhi, nfo é uma espécie de liberdade que lhe é peculiar, mas ¢idéntica 4 de professores, artistas e milionarios, (O que perturba a consciéncia dos liberais ocidentais no é, a meu ver, a con- vicedo de que a liberdade buscada pelos homens difere segundo suas condicées socials ou econdmicas, mas ade que aminoria queapossui conquistou-a exploran- do ou, pelo menos, evitando contemplar a imensa maioria que nao a tem. Eles acreditam, com boas razdes, que, sea libercade individual €um fim maximo para os seres humanos, nenhum homem deveria ser privado, por outros, da liberdade, ‘muito menos que alguns a deveriam desfrutar as custas de outros. Igualdade de Iiberdade: nfo trtar 0s outros como eu néo gostaria que me tratassem:; 0 paga- ‘mento de minha divida para com aqueles que me proporcionaram liberdade, pros- peridade ou esclarecimento; justiga,na sua forma mais simplese mais universal — «esses si0 0s fundamentos da moralidade liberal. A liberdade nio €o tinico objet- ‘vodos homens. Posso dizer, como o critico russo Belinsky, que, se outros devem, ser privados da liberdade —se meus irmaos devem permanecer na pobreza, misé- Hae prisio—, ent3o nao a desejo para mim mesmo, rejeito-a com ambas as maos e prefiroinfinitamente compartilhar o destino deles. Mas nada se ganha comuma confusio de termos, Para evitar a desigualdade gritante oua desgraca generaliza- da, estou pronto a sacrificar parte da minha liberdade ou toda cla: posso agir desse ‘modo voluntériae livremente; mas é i liberdade que estou renunciando em prol de justica, igualdade ou amor pelos homens companheiros meus. Eu seria ator: ‘mentado pela culpa, ¢ com razio, se nfo estivesse disposto, em algumas circuns- tincias,a fazer esse sacrficio. Mas sacrificio nfo €umaumentodo queestésendo sacrificado, a saber a iberdade, por maior que seja a necessidade moral ou a com- pensacio pelo sactificio. Tudo é o que é: liberdade é lberdade, nfo é igualdade, eqilidade, justica ou cultura, felicidade humana ou uma consciéncia trangia. Se minha lberdade ow a de minha classe ou naco depende da desgraca de outros seres humanos, o sistema que promove tal coisa é injusto e imoral. Mas se restrin- jo ou perco minha liberdade para diminuir a vergonha dessa desigualdade, e com isso nfio aumento materialmente a liberdade individual de outros, ocorre uma perda absoluta de liberdade. Isso pode ser compensado por um ganho em justica, felicidade ou paz, mas.aperda permanece, e¢ uma confusdo de valores dizer que, embora minha liberdade “liberal”, individual seja jogada fora, algum outro tipo de liberdade — “social” ou “econdmica” — é aumentada. Ainda assim continua verdadero que a liberdace de alguns deve ser as vezes restringida para assegurar aliberdade de outros. Com base em que principio isso’deveria ser feito? Se aliber- dade é um valor sagrado, intocével, nao pode haver tal principio. Um ou outro de ‘ais prineipios ou regras conflitantes deve ceder, pelo menosna pratica: nem sem- pre por razées que podem ser claramente expressas, quanto mais generalizadas ‘em regras ou maximas universais. Ainda assim, um compromisso pritico tem de ser encontrado. Alguns filésofos com uma visio otimista da natureza humana € uma crenca ‘na possibilidade de harmonizar os interesses humanos — filésofos como Locke, Adam Smith ou, em alguns estados de espirit. ll —acreditavam que a harmo- nia € © progresso sociais eram compativeis com a possibilidade de reservar uma ‘grande rea para a vida privada, que nem ao Estado nem a qualquer outra autori- dade seria permitido invadir, Hobbes ¢ aqueles que concordavam com suas idéias, especialmente pensadores conservadores ou reaciondrios, argumentavam que, se os homens deviam ser impedicios de se destruir uns aos outros ¢ de tomar vida social uma selva ou um deserto, maiores salvaguardas precisavam ser instituidas para manté-los em seus devidos lugares; conseqiientemente, ele queria aumentar adrea de controle centralizado e diminuir a do individuo. Mas ambos oslados con- cordavam que alguma parte da existéncia humana deveria permanecer indepen- dente da esfera de controle social. Invadir essa rea reservada, embora pequena, seria despotismo. O mais elogttente de todos os defensores da liberdace e privaci- dade, Renjamin Constant, que ndo se esquecera da ditadura jacobina, declarou que, no minimo, aliberdade de religido, opiniao, expressio e propriedade tinha de ser garantida contra uma invasio arbitréria, Jefferson, Burke, Paine, Mill compila- ram diferentes classificacoes de liberdades individuais, mas 0 argumento para manter a autoridade em xeque é sempre substancialmente o mesmo. Devemos reservar um minimo de liberdade pessoal, se nfo quisermos “degradar ou negar nossa natureza”.’ Nao podemos permanecer totalmente livres e devemos abrir mio de alguma liberdade propria para preservaro resto. Mas arendicZo total doeu éaderrota do eu. Qual entdo deve seresse minimo? Aquele de que um homem nao ode abrir mao sem ofendera esséncia de sua natureza humana. Qual 6 essa essén: ia? Quais os padrées nela implicados? Isso tem sido eserd talvez sempre uma ques: ‘ao de infinitos debates. Mas, qualquer que seja 0 principio que norteie a érea de nio-interferénciaa ser tracada—seja oda lei natural, o dos direitosnaturais, dauti- lidade, das manifestacées de um imperativo categérico, da santidade do contrato social ou 0 de qualquer outro conceito com que os homens tém procurado escla- recer ejustificar as suas convicgSes—, allibendade nesse sentido significa livrar-se de;auséncia de interferéncia além da fronteira mutivel, mas sempre reconhecivel “Altwnica liberdade que merece esse nome é ade buscar o nosso bem Anossa manei 12", disse 0 mais célebre de seus defensores." Nesse caso, a coacdo pode se justif- ca? Mill nio tinha dlividas de que sim. Como a justica exige que todos os indivi- duos tenham direito a um minimo de liberdade, todos os outros individuos devem ser necessariamente coibidos, se preciso for pela forca, de privar alguém da liber- dade, Na verdade, toda a funcio da ei era a prevenco exatamente dessascolisbes: 0 Estado era reduzido ao que Lassalle descreveu desdenhosamente como as fan- .6es de um vigia ou de um guarda de tnsito © que tomava a proteciio da liverdade individual tio sagrada para Mil? Em seu famoso ensaio, ele declara que, a menos que o individuo tenha permisséo de viver como deseja na “parte (da sua conduta] que interessa unicamente a si izacio nao pode progredir; por falta de um livre mercado de ideas, a verdade no vid az; ndo haverd oportunidades para a espontaneidade, 2 originalidade, o génio, a energia mental, a coragem moral. A sociedade ser& esmagada pelo peso da “mediocridade coletiva"." Tudo o que é rico e dversifica- do ser esmagado pelo peso do costume, pela constante tendéncia humana 4 con- formidade, que gera apenas faculdaces ‘mirradas”, seres humanos “mesquinhose tacanhos", “acanhados e tolhidos". A “auto-afirmacio pagi’ € vo digna quantoa “negacio crista de si mesmo”.® "Todos os erros que [tm homemi é propenso a cometer apesar de todos os conselhos e avisos so sobrepujados pelo mal de per- ‘mitirque outros o sujeitem ao que consideram ser o seu bem.” A defesa da liber dade consiste na meta “negativa” de evtara interferéncia, Ameagarumhomem de perseguigao caso ele nfo se submeta a uma vida em que nfo escolhe seus 0bj +s; bloquear sua frente toda porta exceto uma, nfo importando a nobreza da perspectiva paraa qual abre ou a benevoléncia dos motivos dos que arranjaram tal coisa, €pecar contra averdade de que ele €um homem, um ser com uma vida pr ptia a ser vivida, Essa € a liberdade como foi concebida pelos liberais no mundo }' moderno desde os dias de Erasmo (alguns diriam de Occam) aos nossos. Toda rei: | vindicacio de iberdades civise direitos individuais, todo protesto contra a explo- | racioeahumilhacio, contra oabusoda autoridade péblica, ouahipnose de massa do costume ou da propaganda organizada, nasce dessa concepcZo individualistae ‘muito controvertida acerca do homem. * — Epossivel nocar rés fatos sobre essa posi¢ao. Em primeiro lugar, Mill confun- de duas nogées distintas, Uma é que toda coerco,na medida em que frustra dese- |jos humanos, é ruim em si mesma, embora possa ter de ser aplicada para prevenir ‘outros males maiores; ao passo que a nfo-interferéncia, que €0 opostoda coercio, boa em si mesma, embora néo seja o nico bem. Essa é a concepgio “negativa” da iberdade em sua forma clissica. A outra nocio é que os homens devem procu: rardescobrir a verdade ou desenvolver certo tipo de carster aprovado por Mill — critico, original, imaginativo, independente, nao conformista ao ponto da excen- tricidade, e assim por diante —e que a verdade pode ser encontrada, eesse caréter pode sercultivado, apenasem condigdes de liberdade. Essas duasnocbessio visbes liberais, mas no sioidéntias, ea conexio entre elas é, quando muito, empirca..| Ninguém afirmaria que a verdade ou a liberdade de expresso podem florescer «quando 0 dogma esmaga todo e qualquer pensamento, Mas as evidéncias histori- cas tendem a mostrar (como, na verdade, foi afirmado por James Stephen em seu formidavel ataque a Mill no seu livro Liberty, equality fraternity) que aintegridade, amor verdade e o individualism inflamado crescem pelo menos tio freqtien- temente em comunidades de disciplina severa —como, por exemplo, entre 0s cal- vinistas puritanos da Esc6cia ou da Nova Inglaterra — ou sob a disciplina militar, quanto em sociedades tolerantes ou indiferentes; e, sendo assim, cai por terra 0 argumento de Mill sobre a iberdade como uma condicdo necessatia para o cresc mento do génio humano. Se suas duas metas se revelassem incompativeis, Mill seria confrontado com um dilema cruel, sem falar nas outras dificuldades criadas, pela incocréncia de suas doutrinas com o utilitarismo estrito, até na sua propria versio humanitéria dessa doutrina.” Em segundo lugar, tal doutrina é relativamente moderna, Nao parece haver quase nenhuma discussio acerca da liberdade individual como um ideal politico cconsciente (em oposigo a sua existéncia real) no mundo antigo. Condorcet ja observara que nao havia a no¢ao de direitos individuais nas concepcdes legais dos romanos e gregos; iso parece valerigualmente para 0s judeus, 0s chineses e todas as outras civilizagdes antigas que desde ento vieram luz.’*O dominio desse ideal tem sido a excegao em vez-da regra, mesmo na recente historia do Ocidente, Nem. aliberdade nesse sentido gerou com freqtléncia um grito de unio paraas grandes, ‘massas da humanidade. O desejo de nfo ser coagido, de ser deixado em paz, tem sido uma marca de alta civilizacdo tanto da parte dos individuos como das comu- nidades. O proprio senso de privacidade, da area de relacbes pessoais como algo sagrado por seus préprios méritos, provém de uma concepeio de liberdade que, apesar de todasas suas raizesreligiosas, ¢ pouco mais antiga, no seu estado desen- volvido, do que a Renascenca ou a Reforma.” Mas seu declinio marcaria a morte de uma civilizacdo, de toda uma perspect A terocira caracteritca dessa nogio de liberdade € ce maior importincia. E moral. oupelo menos coma auséncia de autogoverno. A liberdade nesse sentido preocu- a-se principalmente com a érea de controle, no com sua fonte. Assim como a democracia é capaz realmente de privar 0 cidadio individual de muitas liberdades de que ele poderia desfrutar em alguma outra forma de sociedade, assim é perfei- tamente concebivel que um déspota de mente liberal concedesse a seus siiditos ‘uma grande liberdade pessoal. O déspota que permite a seus stiditos uma ampla liberdade pode serinjusto,encorajaras desigualdadesmaisloucas,poucoseimpor- tarcomaondem, a virtude ou o conhecimento; mas, desde que nio reprimaaliber- dace dos siditos, ou pelo me satisfaz a especificacao de Mi ‘prima menos que muitos outros regimes, ele liberdade nesse sentido nao esta ligada, a0 menos do ponto de vista légico, coma democracia ou o autogoverno. Em geral, 0 autogoverno pode fornecer uma melhor garantia da preservacio das liberdades

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