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Dedico este trabalho aos meus alunos

Salvador Massano Cardoso

Este manual é fruto de longos anos de exercício


no ensino da epidemiologia e medicina
preventiva. O objectivo é proporcionar aos
interessados, os meios e técnicas além de
algumas reflexões epidemiológicas.

Pretendemos que os diferentes capítulos – cuja


ordenação não obedece a uma linha pré-
determinada – fossem curtos, simples,
ilustrativos e sobretudo práticos.

Face ao excesso de informação que invade o


nosso dia a dia, torna-se imperioso facilitar a
aquisição de novas técnicas e conhecimentos
sobre a epidemiologia, cuja importância
crescente é notória em todas as áreas, da clínica
à saúde pública, passando pela decisão política.

A obra foi feita a pensar nos nossos alunos.


Esperamos que o conteúdo, fruto de muitas
horas de trabalho, possa contribuir para uma
melhor formação.
Investigação

Evolução da ciência

A ciência, tal como hoje é conhecida, sofreu muitas modificações


ao longo dos tempos. Podemos inclusive afirmar que as suas
raízes assentam no período pré-civilizacional. As principais fontes
da ciência são basicamente duas: a tradição técnica e a tradição
espiritual. A tradição técnica resume-se a um conjunto de
aspectos e experiências práticas, as quais são transmitidas de
geração em geração. Por sua vez, a tradição espiritual identifica-
se com as aspirações humanas e as ideias transmitidas através da
cultura.

Se considerarmos a civilização como sinónimo de organização e


condutas estabelecidas, a ciência ou as suas duas principais
fontes (tradição prática e tradição espiritual) tinham já efectuado
a sua entrada nos hábitos humanos. Basta verificar os utensílios,
pinturas e esculturas que traduzem manifestações de carácter
técnico e cultural, ou seja: “a ciência precedeu a civilização”. No
entanto, as tradições técnicas e espirituais começaram a
desenvolverem-se após o aparecimento daquilo a que chamamos
civilização.

A ciência, tal como já afirmámos, precede a civilização e assenta


numa dicotomia (tradição prática e tradição espiritual) a qual se
manteve durante muito tempo, até ao fim da Idade Média e
princípio da Era Moderna. Neste momento histórico, assistimos a
Notas e Técnicas Epidemiológicas

uma convergência das duas tradições da qual resultaria a ciência


dita moderna.

A história aponta a Suméria como berço da civilização. Para que


tal facto tenha ocorrido, muito contribuíram as condições geo-
hidro-climáticas daquela parte do globo, funcionando como um
verdadeiro caldo de cultura civilizacional.

Outros caldos geo-hidro-climáticos deverão ter ocorrido noutras


partes. Mas, o sucesso de uma civilização depende de muitos
outros aspectos, nomeadamente a fertilidade das terras. A
natureza providenciava os meios para que a fertilização ocorresse
naturalmente.

O crescimento populacional e o desenvolvimento civilizacional


originaram o aparecimento de novas tecnologias, as quais
exigiram o seu registo. Consequentemente, estavam criadas as
condições para a transmissão da tradição técnica de uma forma
mais eficaz.

Tal como já foi afirmado, muitos outros caldos geo-hidro-


climáticos deverão ter ocorrido, originando o aparecimento de
múltiplas civilizações. A civilização egípcia é paradigmática deste
fenómeno. Só que neste caso, o Nilo, muito mais dócil e regular
do que o Tigres e o Eufrates, moldou de outro modo a
personalidade dos povos. Mais estabilidade e menos violência no
Egipto do que na Mesopotâmia.

O desenvolvimento das ciências adquiriu aspectos e evoluções


diferentes, consoante os povos. Os egípcios dedicaram-se mais à

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Investigação

medicina, enquanto os mesopotâmicos se interessavam mais pela


astronomia e consequentemente com a astrologia.

O escolasticismo da Idade Média dificultou o desenvolvimento da


ciência. Mas este fenómeno tão criticado, não era novo. Podemos
afirmar que no final do período do Bronze, o registo escrito dos
conhecimentos humanos, tornou as gerações dependentes da
escrita. Fenómeno curioso, porque limitou o aparecimento de
novas descobertas!

É interessante verificar que os grandes avanços e descobertas se


deram em povos bárbaros, desconhecedores da escrita e ainda
não catalogados como povos civilizados. Muitos povos fizeram a
sua entrada directamente na idade do Ferro. Esta entrada
fulminante, aliada ao uso de novos alfabetos, foi revolucionária.

A filosofia natural foi desenvolvida num canto particular do


mundo, a Grécia. A interpretação dos fenómenos e as suas causas
originaram a reflexão e análise de vários filósofos, começando
com o primeiro: Tales de Mileto, passando por Anaximandro e
Anaximenes.

Apareceram várias escolas, entre as quais se destaca a dos


pitagóricos, para a qual o homem e o universo foram construídos
sob o mesmo plano. O homem como cópia microscópica do
macrocosmo constituiu a base do ensino pitagórico. A cosmologia
modificava-se constantemente, sempre com o objectivo de
explicar os fenómenos. Para algumas escolas, todas as coisas
eram pré-determinadas, constituindo a base do pensamento

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Notas e Técnicas Epidemiológicas

atomista. Para outras, dominavam o princípio religioso, o


filosófico e o prático.

A preocupação com a saúde e a interpretação das causas da


doença, foram desde sempre uma obsessão. Podemos ilustrar
com a velha teoria dos quatro humores, que dominou
praticamente o pensamento médico durante muitos séculos.

O que é que levou à elaboração desta teoria?

Provavelmente, alguém da escola pitagórica observou o que


ocorria ao sangue. Espírito atento terá concluído pela existência
de quatro substâncias. Assim, o coágulo negro correspondia ao
homem melancólico, o fluído vermelho ao sanguíneo, o soro ao
colérico e a fibrina ao fleumático. Deste modo, a saúde resultava
do equilíbrio perfeito destes quatro humores.

Sócrates não se preocupou muito com a compreensão do controlo


da natureza, mas sim com a filosofia natural. A base da sua
actividade era o ordenamento do homem e da sociedade humana.

Platão, continuador de Sócrates foi mais sofisticado. Para este


autor, qualquer filosofia com o objectivo de generalidade deverá
incluir uma teoria sobre a natureza do universo. Tal teoria deverá
subordinar-se à ética, à política e à filosofia. O ordenamento do
universo a partir do caos resulta da formulação de um desejo
racional para o mundo por parte do Criador.

No tocante à causalidade, Platão considerava que os fenómenos


ocorrem primariamente, porque os desejos racionais e objectivos
são formulados por seres inteligentes. O universo era uma esfera
(sólido perfeito) e estava vivo, possuindo uma alma. Como ser

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Investigação

vivo movia-se numa rotação, porque o movimento circular era o


mais perfeito.

O primeiro animal a aparecer teria sido o homem. De todas as


partes humanas, a cabeça foi a primeira, porque era a sede da
alma e era quase perfeita. As outras partes continham uma alma
inferior que governava os desejos animais do homem. Os outros
animais eram produtos de degeneração do homem, cuja alma se
transmigrava para formas corporais inferiores. As mulheres
estavam incluídas neste último grupo!

De todos os filósofos, aquele que mais marcou a humanidade foi,


sem dúvida, Aristóteles.

No seu sistema complexo de esferas, a mais externa (a das


estrelas) era movida pelo Primum Movens, a qual governava
todas as outras e o universo como um todo. Os corpos celestes
eram puros, incorruptíveis e eternos, pelo que os seus
movimentos eram circulares e uniformes. Na Terra, os
movimentos eram lineares, possuindo um início e um fim, tal
como todos os fenómenos terrestres.

Para Aristóteles, as causas podem ser classificados em quatro


grupos: causas materiais das coisas; causas formais; causas
eficientes e causas finas. As mais importantes correspondiam às
duas últimas.

Estabeleceu igualmente uma escala de perfeição dos diferentes


animais, numa verdadeira hierarquia de criaturas.

Admitia a existência de três almas; a vegetativa (responsável


pelo crescimento e reprodução) a sensitiva (a que governa as

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Notas e Técnicas Epidemiológicas

faculdades do auto movimento e sensação) e por fim a alma


racional com localização no coração e não no cérebro como
pensavam os anteriores filósofos. As plantas tinham só a alma
vegetativa, os animais esta e a sensitiva e o homem as três.

Apesar de vários autores terem afirmado a importância do


cérebro, tal como Herófilo de Calcedónia, que tendo sido o
primeiro autor a efectuar uma dissecção em público, estabeleceu
que o cérebro era a base da inteligência, ao contrário do que
afirmou Aristóteles que a tinha localizado no coração.

O que é certo é que os princípios aristotélicos dominaram o


mundo em todas as áreas, durante muitos e muitos séculos.

A ideia de ordem subjacente à filosofia de Platão e sobretudo de


Aristóteles influenciou o pensamento e comportamento humano
até à Idade Média. A guerra entre os elementos animava o
Universo e impedia-o de alcançar o estado de repouso.

A Idade Média encarava a Natureza como um esforço em direcção


à sua própria ordem interna.

Revolução científica

A Revolução Científica derrubou esta ordem e substitui-a pelos


mecanismos das causas. A partir deste momento o Mundo passou
a ser visto como um mecanismo, uma máquina de
acontecimentos.

São necessários dois elementos para agirmos de um modo


científico e o mesmo se pode dizer para agirmos de um modo

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Investigação

humano: o facto e o pensamento. A base da ciência resulta pre-


cisamente da união do facto empírico e do pensamento racional.

Naturalmente que é muito difícil datar precisamente o momento


da Revolução Científica, já que decorreu durante um vasto
período. Historicamente não goza das propriedades de outros
tipos de revoluções sociais e políticas. Mesmo assim, Whitehead
data a Revolução Científica no momento em que Galileu e os seus
contemporâneos entenderam que os dois métodos, o empírico e o
lógico, são per si insignificantes e têm de ser conjugados.

O ano de 1590 é considerado como o ano em que ocorreu a


famosa, mas pouco provável, experiência da Torre de Pisa em
que Galileu lançou dois corpos com massas diferentes, os quais
atingiram simultaneamente o solo. Foi o fim dos princípios aris-
totélicos e aquinianos então reinantes.

Tudo leva a crer que a experiência nunca tenha sido realizada.


Mas, pela sua simplicidade, constitui um mito a preservar para
marcar a nova transição. Desde há muito tempo que a Escola de
Paris vinha pondo em causa as asserções de Aristóteles e a lógica
escolástica.

Durante anos, muitos filósofos e matemáticos dedicaram o seu


tempo e esforço ao desenvolvimento da nova ciência. Descartes
com o seu método lógico e Bacon com o seu método experimental
mantinham a tradicional luta entre franceses e ingleses.

Um preferia o conforto da cama para parir novas ideias, o francês


Descartes, enquanto Bacon expunha-se a todas as condições
ambientais para demonstrar as vantagens do seu método

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Notas e Técnicas Epidemiológicas

empírico. Foi-lhe fatal, porque acabou por morrer com uma pneu-
monia no decurso dos seus estudos naturais.

O empirismo e a lógica avançaram em passos alternados, até que


surgiu Newton que acabou por simbolizar a aliança das duas
correntes: o racionalismo e o empirismo.

A noção de causa tal como hoje a entendemos é relativamente


recente e não tem nada a ver com as concepções escolásticas da
Idade Média. A ideia de causa e efeito apoderou-se fortemente do
nosso espírito. Temos a maior dificuldade em libertar-nos do seu
domínio, mesmo quando aprofundamos problemas científicos com
escrupuloso cuidado. Converteu-se no modo natural de considerar
todos os problemas.

Apesar das falhas detectadas por Einstein na teoria newtoniana,


esta continua a marcar a sua presença no nosso pensamento e
modo de actuar.

O princípio da incerteza descrito por Heisenberg não impede de


considerar a ciência como um modo de descrever a realidade e a
investigação como uma forma de obter os elementos que per-
mitem explicar os fenómenos que presidem às nossas acções.

O método científico depende da capacidade de criar novas ideias,


combinado com uma sabedoria capaz de testar a realidade de
cada ideia, seguido da capacidade de incorporar a informação
derivada dos testes. Se os testes (experimentais ou de
observação) permitem rejeitar ou aceitar a hipótese nula, o
processo de testar providencia dados muito úteis que podem ser

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Investigação

utilizados para rever a possibilidade de desenvolver novas


hipóteses.

Sir Karl Popper cunhou a expressão “falsificação” para exprimir o


conceito de que as teorias científicas não são provadas pela
repetição dos resultados. Conseguem sobreviver apenas enquanto
consigam aguentar qualquer refutação.

Utilizemos o exemplo do próprio autor: todos os cisnes são


brancos. Vários cientistas observam 10.000 cisnes e só vêem
brancos. Um outro colega chega à mesma conclusão, e assim
sucessivamente até que há um cientista que descobre um cisne
negro em 10.000. Assim que um cisne negro é encontrado, este
facto falsifica a teoria. Deste modo a repetição sistemática de
várias experiências com os mesmos resultados não provam a
teoria. Basta que haja uma divergência para anular a teoria.

Desta forma, de acordo com este filósofo, as afirmações


científicas tem de ser formuladas de forma a poder ser
submetidas à possibilidade de falsificação. O critério que demarca
a fronteira entre ciência e não ciência é a formulação de
afirmações de modo a permitir a falsificação.

Metodologia

Ninguém põe em causa que a metodologia e a tecnologia desem-


penham um papel importante na ciência moderna. No entanto e
de acordo com Beveridge, às vezes quase que nos esquecemos
que o instrumento mais importante na investigação é a mente
humana.

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Notas e Técnicas Epidemiológicas

Durante muito tempo, muitos cientistas pensavam que não era


possível ministrar instrução formal na área da pesquisa. Hoje,
apesar de formalmente não haver cursos para ensinar investi-
gação, existem possibilidades de ministrar conhecimentos sobre
metodologias e tecnologias mais adequadas à investigação cien-
tífica.

De facto, alguns cientistas partilham da opinião que a melhor


maneira de pesquisar é através da auto-aprendizagem sob a
supervisão de um investigador treinado. “Aprender com a
experiência dos outros é sinal de sapiência, aprender só com a
sua é próprio do tolo”.

Na preparação de um investigador necessitamos de ter em mente


certas regras. Em primeiro lugar, o candidato a investigador per-
manece no seu eterno lugar de estudante e deverá pedir auxílio a
um investigador com experiência, o qual aconselhará o que
deverá fazer. Aqui começam logo as divergências respeitantes à
preparação do candidato. Uns aconselham uma revisão exaustiva
da literatura sobre o assunto a estudar, enquanto outros
advertem para não “lerem” em demasia. As razões apontadas por
estes últimos, apontam o facto dos jovens candidatos começarem
a ver os problemas da mesma maneira que a grande maioria,
dificultando-lhes a possibilidade de estarem “abertos” a novas e
diferentes abordagens. A este propósito, não podemos deixar de
citar alguns exemplos de investigadores que, não tendo uma
formação específica numa determinada área, acabaram por dar
notáveis contributos. A história da ciência está repleta destes
“outsiders”, como Pasteur, Metchnikoff, Galvani, etc.

10
Investigação

Um dos erros mais frequentes do jovem cientista é acreditar em


tudo o que lê e não conseguir distinguir entre os resultados da
experiência descrita e a interpretação do autor.

Hipóteses

Ser-se crítico e correlacionar o que se lê com a própria experiên-


cia é uma das principais fontes para o aparecimento de hipóteses.

Originalidade

A originalidade, por vezes tão difícil de provar, não é mais do que


o relacionamento de ideias, cujas conexões não tinham sido
previamente suspeitas.

Byron afirmava que para se ser original deveríamos pensar muito


e ler pouco, o que é impossível, dado que temos de começar a ler
antes de aprendermos a pensar.

Criar é um importante acto humano. O pensamento criativo re-


sulta de vários factores e o jovem investigador deve ter em
mente que é mais importante ver a floresta do que as árvores. Da
noção do conjunto realça o particular. O inverso não é verdadeiro.

Preparação prévia

Na formação de um cientista, os conhecimentos adquiridos na


juventude são muito importantes, porque a ciência necessita
dessa base.

Ler, processar bibliografia e fazer resumos é muito importante.


Do mesmo modo, alguns autores afirmam que o domínio de
línguas é útil. Nas primeiras décadas do século XX a língua da
ciência era o alemão. Depois o inglês tornou-se na língua oficial.

11
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Ninguém discute a importância de uma segunda língua. No


entanto, não deixa de ser interessante a posição de alguns
autores.

Wilhelm Ostwald afirmou que o estudante devia refrear a sua


aprendizagem linguística! A aprendizagem de línguas
convencionais, tais como o latim (particularmente) destrói a
iniciativa científica.

Herbert Spencer afirmava que a aprendizagem das línguas


originava uma tendência para aumentar o respeito pela
autoridade e, desta forma, desencorajava o desenvolvimento da
faculdade do juízo independente (tão importante para o cientista).

Darwin e Einstein tinham profunda aversão ao latim. Sinal de não


respeito pela autoridade?

Naturalmente que há vozes discordantes no tocante a este


aspecto. O domínio de línguas é um imperativo.

Uma das grandes falhas do ensino superior prende-se com a


história da ciência. O aprendiz de investigação deverá ter
conhecimentos básicos sobre este importante capitulo.

Comunicação

Não podemos deixar de focar a forma de comunicar os dados. Um


exercício que devemos aconselhar aos jovens é ensiná-los a
analisar os conferencistas.

Por vezes, pode acontecer, tal como ocorreu com Sir McFarlane
Burnet, prémio Nobel da Medicina, que contava, que quando era
jovem (em 1920) assistiu a uma conferência do professor Orme

12
Investigação

Masson, um homem com queda notável para a ciência e que tinha


feito uma conferência sobre o progresso e a física atómica. O que
é certo é que Burnet já não se recordava do conteúdo da
conferência, mas a forma como foi apresentada marcou-o
definitivamente, nomeadamente como um estímulo para a
ciência.

Identificação de um problema

Para fazer investigação temos de definir em primeiro lugar o pro-


blema. Após a elaboração do tópico, o investigador deve
transformá-lo, de forma a se tornar operacional. A partir do
momento, em que o tópico passa a ser operacional, adquire o
estatuto de objectivo.

Na escolha do problema, o jovem investigador deverá seleccionar


um tema que seja susceptível de ser realizado e que não
ultrapasse as suas capacidades técnicas.

Fraude1

Todos sabemos que o sucesso é um poderoso estímulo e que


pode levar alguns cientistas ou candidatos a terem atitudes muito
pouco ortodoxas. A história da ciência descreve-nos muitos casos
de fraude e de manipulação de dados, com gravíssimas
consequências para o progresso da ciência. É importante
determo-nos um pouco nesta área, antes de avançarmos para a
preparação de uma investigação.

1
Ver capítulo 10 – Fraude científica

13
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O caso mais recente e controverso prende-se sobre a paternidade


da descoberta do vírus da SIDA. Em Novembro de 1993 Robert
Gallo admitiu não ter descoberto o HIV a favor de Jean-Luc
Montagnier do Instituto de Pasteur de Paris, depois de longos
anos de disputa. Apesar do mau comportamento profissional de
Robert Gallo e do seu assistente Mikulas Popovic, o órgão norte-
americano competente para estes casos, desistiu das acusações.

Estudos sociológicos conduzidos por vários autores, permitem-nos


concluir que, num universo de investigadores, ocorreram com
certa frequência episódios de má conduta, os quais iam desde
falsas informações à discriminação racial e negligência no cuidado
com animais e seres humanos2, ou manipulação intencional dos
dados, entre outros.

Podemos utilizar o neologismo “burtismo”, como paradigma da


fraude científica organizada. Ciryl Burt foi responsável pelo
conceito da hereditariedade da inteligência, que levou a
repercussões sociais e políticas muito graves. Mesmo hoje e
apesar de estar provada a fraude, este conceito persiste
nalgumas camadas, com todas as consequências daí decorrentes.

“Papermania”

Actualmente, a “papermania” leva alguns cientistas a distorcerem


os seus dados, de modo a poderem editá-los em revistas que,
pelas suas características, são sinónimo de prestígio e de
proventos económicos. Tal fenómeno pode originar um novo tipo

2
Ver capítulo 9 – Ética da investigação – Código de Nuremberga

14
Investigação

de viés: o viés de publicação3. Trata-se de uma tendência para


serem publicados preferencialmente os trabalhos com resultados
positivos, em detrimento dos outros...

No início do século XX, o número de publicações científicas


rondava os 7 000. Hoje, calcula-se que existam para cima de
400 000 publicações regulares, publicando anualmente mais de
um milhão de artigos. É fácil de compreender as consequências.

Se aliarmos à intencionalidade na distorção dos factos e/ou sua


interpretação, os erros naturais decorrentes da investigação é
fácil de compreender que muitas conclusões não deverão
corresponder à realidade.

Obsessão científica

Por vezes ocorrem certos fenómenos os quais traduzem di-


ficuldades na percepção da realidade, não obstante o elevado
grau intelectual e científico do indivíduo. A este propósito do risco
de “obsessão científica”, podemos ilustrá-la com a história de
Noguchi e a febre-amarela.

Max Theiler ganhou em 1951 o prémio Nobel da Medicina pela


descoberta da vacina contra a febre-amarela. Hideyo Noguchi,
japonês de nascença, trabalhava no Instituto Rockefeller de Nova
Iorque. Enquanto Theiler desenvolvia a sua investigação ao redor
da hipótese de um vírus, aplicando técnicas adequadas na altura,
a qual terminou com a descoberta da vacina, Noguchi que tinha
desenvolvido trabalhos prévios de enorme importância (estudos
sobre a espiroqueta responsável pela sífilis, estudos sobre o

3
Ver capítulo 25 – Vieses e variáveis de confundimento

15
Notas e Técnicas Epidemiológicas

tracoma e o tifo), acreditou sempre que o agente responsável da


febre-amarela era uma espiroqueta. Conseguiu isolá-la de vários
doentes com icterícia. No entanto os doentes não sofriam de
febre-amarela, mas sim da doença de Weil. Obcecado pela ideia,
fez todos os possíveis para demonstrar a sua hipótese,
deslocando-se às zonas endémicas, para colher amostras de
sangue.

Quando saiu de Nova Iorque para Acra disse: “ganharei ou então


morrerei”!

Ao fim de alguns meses, Noguchi morreu de febre-amarela. As


suas últimas palavras foram: “Não compreendo”! Discutiu-se
muito na altura, se Noguchi teria ou não cometido suicídio
científico.

Na preparação da investigação, a mente do investigador deverá


estar preparada para “descobrir buracos” ou deficiências nos con-
hecimentos. Deverá analisar se existem ou não diferenças entre
os diversos artigos, quais as analogias e qual o grau de incon-
sistência. Todos estes aspectos levam naturalmente à formulação
de hipóteses e, consequentemente, à realização de experiências.

Sucesso de uma experiência

O sucesso de uma experiência depende das fases preliminares da


investigação. É aqui que reside o segredo de uma boa
investigação: reduzir o problema aos seus elementos mais
simples e depois tentar encontrar uma resposta pelos meios mais
directos. Não obstante este espírito pragmático sobre a forma
como se deve planear e preparar uma investigação, os quais são

16
Investigação

acessíveis em qualquer livro da especialidade, devemos recordar


que o acaso desempenha um papel muito importante, assim
como a intuição.

Uma análise exaustiva permite-nos concluir que foram, e são,


inúmeros, os casos de descoberta onde o acaso e a intuição
estiveram presentes. Claro que o acaso pode ser entendido como
um eufemismo. Para o podermos utilizar é preciso que a mente
esteja preparada para detectar os fenómenos e aproveitá-los.
Nada melhor do que uma ou duas histórias para descrever este
capítulo da investigação.

As pesquisas de Pasteur4 sobre a cólera aviária foram interrompi-


das pelas férias. Quando regressou, quase todas as culturas tin-
ham desaparecido. Conseguiu recuperar algumas e procedeu a in-
oculações em novos meios e infectou as aves. Muitas das culturas
não se desenvolveram e as aves não foram afectadas. Deste
modo, reiniciou de novo as experiências com material fresco.
Quando teve a inspiração de inocular novamente as aves (que
tinham sido previamente inoculadas) com culturas frescas, ficou
surpreendido, porque aquelas não morreram após o período
normal de incubação. Estava descoberto o princípio de imunização
com agentes patogénicos atenuados.

Em 1889 os professores von Mering e Minkowski de Estrasburgo,


estudavam as funções do pâncreas. Removeram-no de um cão.
Posteriormente um assistente do laboratório verificou que as
moscas eram atraídas pela urina do cão operado. Chama a
atenção de Minkowski que analisou a urina, tendo encontrado

17
Notas e Técnicas Epidemiológicas

açúcar. Foi o princípio para a compreensão da diabetes e


subsequente controlo pela insulina.

O acaso, a observação e uma mente bem preparada são ingre-


dientes muito importantes na investigação. No entanto, a
hipótese é a mais importante técnica mental de um investigador e
a sua principal função é sugerir novas experiências ou novas
observações. De facto, muitas experiências e observações são
executadas com o objectivo deliberado de testar uma hipótese.
Outra função é ajudar a conhecer o significado de um objecto
e/ou utilidade que, de outra forma, não significariam nada. As
hipóteses deverão ser estudadas mais como instrumentos para
descobrir novos factos, do que um fim nelas próprio.

Naturalmente que há outras fontes produtoras de problemas para


serem estudadas: imaginação, observação e intuição, são
algumas. No nosso dia a dia, seja profissional, familiar ou social,
utilizamos frequentemente os métodos inerentes à pesquisa
embora de uma forma empírica. Afinal, o que pretendemos é
obter elementos que presidam às nossas acções. No entanto,
devemos ter cuidado com as conclusões das experiências. Darwin
disse uma vez meio a rir meio a sério: “Nature will tell you direct
lies if she can”.

4
Ver capítulo 2 – Análise histórica de alguns estudos

18
Análise histórica de alguns estudos

Resumo

Os exemplos que a seguir se descrevem ilustram as capacidades


criativas e analíticas de notáveis espíritos que contribuíram para o
desenvolvimento da ciência.
Através da sua leitura, podemos verificar que muitos deles
utilizaram o “método epidemiológico” com notáveis
consequências.

Espírito Científico

Louis Pasteur – O francês que revolucionou a saúde

Luís Pasteur nasceu a 27 de Dezembro de 1822. Aluno vulgar,


com queda para a pintura, conseguiu com muito esforço e
dedicação terminar os seus estudos.
“Condenado” a professor de liceu, foi convidado por Balard
(descobridor do bromo) para preparador e só com muita
persistência conseguiu evitar que Pasteur terminasse os seus dias
ensinando jovens liceais. Foi o princípio de uma carreira de
cientista das mais notáveis de todos os tempos.
O método, a observação meticulosa de todos os factos e um
espírito aberto, foram determinantes.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Iniciou os seus trabalhos em cristalografia. Quem imaginaria que


muitos dos fenómenos biológicos tivessem a ver com cristais de
ácido tartárico e paratartaratos?

Ácido tartárico e paratartaratos

Vários cientistas não percebiam como é que dois corpos com a


mesma composição química e com a mesma estrutura
cristalográfica, quando expostos à luz polarizada, apresentavam
comportamentos diferentes: o tartarato desviava-a, enquanto o
comportamento com os paratartaratos era neutro. Este fenómeno
ia contra todas as leis da química conhecidas.
Efectuou várias experiências, sempre com o mesmo objectivo: a
uma diferença de efeitos deveria corresponder uma diferença de
caracteres.
Todos os cristais de tartarato tinham hemiedria direita. A análise
dos cristais de paratartarato revelava que alguns apresentavam
hemiedrias direitas e outros hemiedrias esquerdas.
A solução de cristais de paratartarato com hemiedria esquerda
desviava a luz num sentido, enquanto uma solução dos de
hemiedria direita a desviava em sentido oposto.
Afinal o que acontecia era que a solução de paratartaratos era
mista (cristais com hemiedrias direita e esquerda). Por este
motivo, a solução não desviava a luz, ao contrário do que
acontecia com as soluções de ácido tartárico, cujos cristais eram
todos iguais.
Esta história foi marcante para a compreensão de muitos
fenómenos biológicos e respectivas consequências na melhoria do
estado de saúde das populações.

20
Análise histórica de alguns estudos

Penicillium glaucum

Pasteur verificou que uma porção de ácido paratartárico,


composta de soluções em partes iguais de levógiro e de
dextrógiro (que não devia desviar a luz polarizada), desviava a
luz para o lado esquerdo.
Observou a solução e verificou estar na presença de um fungo o
Penicillium glaucum, o qual se desenvolvera apenas nos cristais
com hemiedria direita.
Este fungo alimentava-se apenas dos cristais com hemiedria
direita.
Um ser vivo conseguia distinguir moléculas! A passagem a ácido
esquerdo tinha as características de uma fermentação. Deste
modo, as fermentações deixaram de ser consideradas como
sinónimo de morte. Passaram a ser considerados como
fenómenos de vida.

Fermentação

Os estudos sobre fermentação surgiram na sequência de


problemas no fabrico de álcool de beterraba.
Uma observação e interrogatório minucioso sobre todo o processo
de fabrico, permitiu-lhe concluir estar na presença de um
fenómeno idêntico ao do Penicillium.
Passo a passo, ia eliminando todas as hipóteses que não se
revelavam compatíveis com as experiências.
A transformação do açúcar em álcool era um fenómeno de
fermentação. Logo, procurou o responsável pelo fenómeno.

21
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Encontrou uns glóbulos, os quais podiam ser responsáveis por


substâncias estranhas. Estes glóbulos eram diferentes de
fermentação para fermentação. Partiu do seguinte princípio: se as
substâncias eram diferentes, os glóbulos deveriam ser também
diferentes.
Durante a fermentação produziam-se pequenas quantidades de
álcool amílico. Este álcool quando exposto à luz polarizada,
desviava a luz para a esquerda. Segundo Pasteur este fenómeno
de fermentação láctica era uma manifestação de vida e não de
morte.

Geração espontânea

Os microrganismos começavam a ser descobertos e a serem


responsabilizados por vários fenómenos. Mas, levantava-se uma
grande polémica: qual a origem destes microrganismos?
Vingavam duas explicações: uns defendiam que os seres vivos
tinham sido criados por Deus, outros defendiam a geração
espontânea.
Pasteur debruçou-se sobre a questão. Após intensas polémicas, o
sábio francês utilizando métodos experimentais provou que tinha
razão.
Apesar do aproveitamento que os eclesiásticos faziam a propósito
desta polémica, Pasteur deixava a sua religiosidade à porta do
seu laboratório.
“Nenhum ser vivo pode surgir a não ser dum ser vivo”.
Os seus estudos com os diferentes balões de vidro,
transportadores de culturas as quais eram sujeitas a vários
tratamentos, foram notáveis. A oposição, apesar dos seus

22
Análise histórica de alguns estudos

resultados, não lhe dava tréguas, facto que muito o exasperou.


Levou tempo mas acabou por vencer, apesar da oposição dos
seus detractores.

Anaerobiose e aerobiose

A sua capacidade de observação permitiu verificar que alguns


germens perdiam a mobilidade quando expostos ao ar (oxigénio).

Mycoderma aceti

Os seus estudos sobre o vinagre, permitiram resolver um grave


problema que atingia os viticultores. Ao fim de algum tempo,
conseguiu, através do calor, destruir os germens responsáveis
pela doença do vinho.

A doença dos bichos-da-seda

Apesar de não saber nada de nada sobre bichos-da-seda foi


convidado pelo governo para tentar elucidar as causas de uma
doença dos bichos-da-seda.
A observação, os inquéritos, a tomada meticulosa de todas as
notas, aliados a um espírito aberto e atento, deu resultados
positivos, levando-o a conseguir travar uma das principais crises
económicas que assolava a França, originando pobreza e graves
problemas sociais.

O princípio da vacinação

Os estudos sobre a cólera aviária, permitiram a Pasteur descobrir


o princípio de vacinação.
As galinhas após inoculação com culturas de microrganismos
responsáveis por esta afecção morriam. No entanto, após um

23
Notas e Técnicas Epidemiológicas

período de férias, quando regressou ao seu laboratório, parte das


culturas tinham desaparecido, Conseguiu recuperar algumas e
inoculou-as nos animais. Não morreram. Acabou por ter de obter
material fresco para prosseguir as suas investigações.
Ficou desde logo convicto, de que os microrganismos tinham
perdido a virulência (devido ao contacto com o ar). A inoculação
com material fresco às galinhas previamente inoculadas, não
originou a morte dos animais. Estava deste modo descoberta a
atenuação dos microrganismos virulentos.

Carbúnculo

O carbúnculo, que dizimava o gado, constituía uma fonte de


problemas económicos, assim como um problema grave para os
seres humanos já que, sendo-lhes transmissível, provocava
frequentemente a sua morte.
Nos seus estudos sobre a cólera aviária, verificou que o
carbúnculo não atacava as galinhas, devido à temperatura
elevada destes animais (impedindo o desenvolvimento da
afecção). Esta só ocorria quando as patas da galinha eram
mergulhadas em água fria (baixava a temperatura e
consequentemente permitia o desenvolvimento da afecção).
A aplicação do mesmo princípio ao bacilo do carbúnculo
(exposição das culturas ao ar), e a sua inoculação aos animais
não produzia quaisquer alterações. Quando injectou estirpes
virulentas aos animais previamente imunizados, nenhum deles
morreu.

24
Análise histórica de alguns estudos

Assim, procedeu à vacinação do gado e resolveu mais um


problema económico, abrindo as portas para a resolução de
problemas de saúde.

Vacinação anti-rábica

Talvez a face mais conhecida de Pasteur seja a descoberta da


vacina anti-rábica e a sua aplicação ao jovem Joseph Meister. O
dramatismo envolvente de toda esta história constitui um marco
que qualquer um que preze a investigação científica deverá
conhecer.
A raiva era uma doença praticamente mortal e, na época,
relativamente frequente. A situação era agravada pelo desespero
e sofrimento que acarretava aos infectados pelo vírus.
A inoculação directa da “raiva” no sistema nervoso de um cão
originou a morte deste. Extraiu o bolbo do animal infectado, o
qual foi desfeito em água. Operaram novo animal (a quem
inocularam o extracto), o qual morreu passados uns dias. A partir
daqui descobriu a forma de perpetuar a doença, através da
inoculação no sistema nervoso.
Nos coelhos, a passagem do agente por injecções de bolbo ou de
medula, aumentava de virulência. O limite temporal mínimo para
a morte ocorrer foi de 7 dias.
Os cães inoculados com o extracto do sistema nervoso morriam
todos. Pasteur tinha a certeza que a atenuação desse agente que
não conseguia observar, era uma questão de tempo.
Aplicou os princípios de atenuação pelo contacto com o oxigénio
do ar que tinha empregue na cólera aviária e no carbúnculo.
Assim, a sucessiva exposição ao ar e consequente inoculação nos

25
Notas e Técnicas Epidemiológicas

animais originava uma perda progressiva da capacidade letal, até


que chegou ao ponto dos animais não morrerem.
Agora precisava saber se os animais imunizados conseguiam ou
não resistir à inoculação de material fresco e virulento.
Resistiram. Estava descoberta a vacinação anti-rábica. Restava
saber, como é que os seres humanos se comportavam face a esta
nova realidade.
Pasteur iria ser a cobaia da experiência humana, inoculando-se
com o material da raiva e aplicando a si próprio os seus extractos
atenuados. Tinha consciência de que a experiência iria de
encontro às suas expectativas.
Quis o acaso que os familiares do jovem alsaciano Joseph Meister
o procurassem, dada a publicidade levantada ao redor das suas
experiências. Era a sua última esperança. A 6 de Julho de 1885,
dois dias depois de ter sido mordido por um cão raivoso, um
jovem permitia iniciar uma nova página na história da medicina.

Febre puerperal

Ignaz Semmelweis – Obstetra de Viena de Áustria

No início do século XIX a maternidade de Viena de Áustria estava


dividida em duas clínicas: “primeira” e “segunda”.
Até 1840, os estudantes de ambos os sexos trabalhavam em
ambas as clínicas. A partir desta data, os estudantes do sexo
masculino começaram a frequentar a “primeira clínica” e os do
sexo feminino a “segunda clínica”.

26
Análise histórica de alguns estudos

De Outubro de 1840 a Junho de 1847, a taxa de mortalidade na


“primeira clínica” foi sistematicamente superior à da “segunda”.
O quadro seguinte ilustra os resultados.

Quadro I. Taxa de mortalidade anual nas duas clínicas da Maternidade de


Viena de Áustria (1841-1846).

Ano Primeira Segunda


clínica % clínica %
1841 7,7 3,5
1842 15,8 7,5
1843 8,9 5,9
1844 8,2 2,3
1845 6,8 2,03
1846 11,4 2,7
Média 9,92 3,38

Os dados do quadro I não correspondem à realidade, em virtude


do seguinte facto: a mortalidade na “primeira clínica” era na
realidade bastante superior aos dados apresentados, porque não
eram contabilizadas as mulheres transferidas para o Hospital
Central, onde acabavam por morrer. A transferência só ocorria
nos casos da “primeira clínica”.
A análise sumária destes dados não deixa lugar a dúvidas sobre a
diferença de mortalidade verificada neste período, entre as duas
clínicas.

27
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Explicações para as diferenças


As autoridades invocaram um conjunto de causas para explicar as
diferenças:
Hiperinose (excesso de fibrina no sangue);
Hidremia (excesso de água no sangue);
Pletora (quantidade excessiva de sangue);
Transtornos causados pelo útero devido à gravidez;
Dificuldade de circulação do sangue;
Inopexia (coagulação espontânea do sangue);
Próprio parto;
Diminuição do peso devido à evacuação uterina;
Parto prolongado;
Feridas na superfície interior do útero durante o parto;
Contracções imperfeitas;
Escassas secreções e excreções dos lóquios;
Peso do leite segregado;
Morte do feto;
Própria natureza da mulher.

Atendendo às características de metodólogo, Semmelweis diria


que estas causas teriam pouca influência, porque eram comuns
às duas clínicas e como tal não poderiam explicar as diferenças.

Observação de Semmelweis

Semmelweis começou por analisar as mulheres cujo período de


dilatação era mais prolongado. Verificou que na “primeira clínica”
a mortalidade das mulheres com período de dilatação superior a
24 horas era maior. Mas, quando efectuou o mesmo estudo na

28
Análise histórica de alguns estudos

“segunda clínica”, não verificou diferenças de mortalidade ligadas


à duração do período de dilatação.
Outro facto detectado por este autor: as mortes por febre
puerperal ocorriam igualmente nos recém-nascidos (quadro II).
Os dados das autópsias eram semelhantes entre as mulheres e os
recém-nascidos.
Conclusão de Semmelweis: a etiologia que explica a morte das
mães tem de explicar também a morte dos recém-nascidos.

Quadro II. Taxa de mortalidade anual entre os recém-nascidos nas duas


clínicas da Maternidade de Viena de Áustria (1841-1846).

Ano Primeira Segunda


clínica % clínica %
1841 6,2 4,04
1842 9,1 4,06
1843 6,8 5,05
1844 8,6 3,06
1845 8,1 3,02
1846 6,5 2,05

Este notável cientista colocou algumas questões. Como explicar a


febre puerperal entre os recém-nascidos?
A febre puerperal pode ser causada por factores que actuam na
mãe durante a vida intra-uterina do feto, os quais podem ser
transmitidos ao filho.

29
Notas e Técnicas Epidemiológicas

As causas afectam os filhos depois do nascimento e neste caso a


mãe pode estar ou não afectada.
De acordo com as teorias propostas na altura, não podiam
explicar as diferenças entre as duas clínicas, porque:
Não explicavam de forma adequada a origem da doença da mãe.
Se a causa da febre puerperal actuasse directamente nas
crianças, era impossível que as etiologias propostas explicassem
as diferenças de mortalidade infantil (o que seria de esperar era
que as taxas de mortalidade fossem idênticas nas duas clínicas).

“Partos de rua”

As mulheres em trabalho de parto pariam frequentemente na rua,


antes de chegarem à maternidade. As principais razões eram
duas: dimensão de Viena e a falta de transportes adequados.
Estes partos eram designados “partos de rua”.
A admissão na maternidade e “hospício” eram gratuitos, desde
que as mulheres estivessem dispostas a colaborarem na formação
pública. Por outro lado, as crianças que não nascessem na
maternidade, não eram admitidas gratuitamente no asilo (porque
as mães não estavam dispostas a colaborarem). A fim de não
perderem os direitos, assim que pariam corriam directamente
para a maternidade, afirmando que era sua intenção ter o parto
na clínica. Desta forma, os partos de rua eram considerados como
partos hospitalares. Naturalmente que esta situação originou
abusos. As mulheres não estavam dispostas a serem examinadas
pelas hordas de estudantes... Se tinham alguns meios,
contratavam uma parteira ou mesmo um médico e resolviam o

30
Análise histórica de alguns estudos

problema em casa. Depois iam para a maternidade e conseguiam


manter os seus privilégios.
Conclusão sobre esta atitude das mulheres com “partos de rua”: a
taxa de febre puerperal era muito baixa.
Semmelweis estudou estes casos e verificou que apesar das
condições bastante desfavoráveis em que decorriam estes partos
(em casa, ou mesmo na rua), seria de esperar que tais mulheres
adoecessem pelo menos tanto como na maternidade1.
As que davam à luz prematuramente adoeciam com menos
frequência que as pacientes normais, tal como as mulheres com
“partos de rua”.
Outro facto: era natural que uma paciente estivesse doente e
rodeada por mulheres saudáveis. Quando adoecia uma mulher
por febre puerperal, filas inteiras de mulheres acabavam por
adoecer.
Muitas medidas foram instituídas pelas autoridades com o
objectivo de diminuir os casos. Todas foram infrutíferas.
Em 1846, foi aceite que a doença tinha origem nas lesões
provocadas no canal do parto durante os exames. Mas neste
caso, como se explicava a baixa taxa de mortalidade na “segunda
clínica”?
Foi aceite a tese de que na “primeira clínica” trabalhavam
médicos, muitos deles estrangeiros, os quais na opinião dos
”doutos” responsáveis, eram demasiados bruscos!!! Reduziu-se o
número de médicos, excluíram-se os estrangeiros e as

1
Tal como hoje, os responsáveis negam certas atitudes e factos. Muitas
comissões foram nomeadas para esclarecer a situação denunciada por
Semmelweis, facto que lhe valeu ser perseguido.

31
Notas e Técnicas Epidemiológicas

observações foram reduzidas ao mínimo. De facto, estas medidas


foram acompanhadas por uma diminuição da taxa de mortalidade
durante algum tempo (4 meses), mas foi seguida de vários casos.
Voltou tudo ao mesmo!

Causa endémica, mas desconhecida

Semmelweis estava convencido de que a maior taxa de


mortalidade da primeira clínica era devida a uma causa endémica,
mas desconhecida.
Os recém nascidos também contraíam a febre.
Partos com dilatação mais prolongada corriam mais riscos.
A prematuridade e os “partos de rua” eram caracterizados por
risco mais baixo.
Aparecimento de uma forma sequencial da doença na primeira
clínica.
As pacientes da segunda clínica eram mais saudáveis (embora as
qualificações técnicas e científicas do pessoal fosse em todo
idênticas à da primeira clínica)
O trabalho desenvolvido por este autor começou a levantar alguns
problemas, que foram determinantes para que adoecesse.
Foi para Veneza a 2 de Março de 1847, a fim de recuperar
mentalmente das suas experiências no hospital (depressão?).
No dia 20 de Março regressou a Viena e teve conhecimento de
que o professor Kolletschka, professor de Medicina Legal, tinha
falecido, após um dos seus estudantes o ter picado com um
bisturi no decurso de uma autópsia. Quando adoeceu, os
sintomas eram semelhantes às situações de febre puerperal.

32
Análise histórica de alguns estudos

O resultado da autópsia foi idêntico ao observado nas mulheres e


crianças que morriam de febre puerperal. A ferida causada ao
professor Kolletschka devia estar contaminada por partículas de
cadáveres.
A causa da morte, para Semmelweis, eram as partículas
cadavéricas. Deste modo, foi obrigado a admitir que a doença era
idêntica à que tinha morto tantas mulheres. Por este motivo, a
causa deveria ser a mesma, ou seja partículas cadavéricas que se
teriam introduzido nos seus sistemas vasculares.

Extrapolação dos factos

O passo seguinte foi inteirar-se se estas partículas teriam ou não


sido introduzidas nas mulheres. Concluiu afirmativamente.
Naquela época predominava a orientação anatómica das escolas
médicas, a qual permitia aos professores e estudantes efectuarem
autópsias.
Semmelweis concluiu que a lavagem com sabão não era
suficiente para eliminar todas as partículas cadavéricas. As mãos
contaminadas entravam em contacto com os órgãos genitais da
mulher, originando a doença. Deste modo, colocou a seguinte
hipótese: se as mãos contaminadas por partículas cadavéricas
fossem responsáveis pela doença, a sua eliminação química
deveria ser acompanhada da redução da doença. Para esse efeito
utilizou cloro líquido. Todos os estudantes e professores
começaram a lavar as mãos com aquele produto.
Com a introdução das lavagens cloradas a taxa de mortalidade
começou a diminuir, até atingir as taxas da “segunda clínica”.

33
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Conclusão: as substâncias cadavéricas "aderidas" às mãos dos


médicos eram de facto a causa da maior taxa de mortalidade da
primeira clínica.
Os técnicos da “segunda clínica” não tinham contacto com os
cadáveres.
Na continuação dos seus estudos verificou que não eram só as
partículas cadavéricas, as responsáveis pela doença. Uma mulher
com carcinoma uterino e com secreções foi responsável pela
propagação da doença a outras mulheres na maternidade.

Estudos retrospectivos

Semmelweis tentou analisar o que se passou nos anos anteriores.


Deste modo, fez um estudo sobre a taxa de mortalidade na
maternidade de Viena desde 1784. Verificou que, durante muitos
decénios, a taxa de mortalidade era manifestamente baixa, na
ordem dos 0,2 a 1%, correspondente aos fins do séc. XVIII e
princípio do séc. XIX, período caracterizado pela especulação
teórica. A partir do momento em que se adoptou uma orientação
anatómica, até então descurada, é que se começou a observar
este fenómeno.
A adopção de uma orientação anatómica acompanhou-se de um
agravamento da situação.

Conclusão

Na sua obra, Semmelweis exprime repetidamente um sentimento


de culpa ao afirmar: “quantas mulheres morreram
prematuramente por minha causa? “Como resultado da minha

34
Análise histórica de alguns estudos

convicção, devo afirmar que só Deus sabe o número de pacientes


que foram para a sepultura por minha culpa”.
Conseguiu retirar a culpa aos estrangeiros que iam a Viena fazer
a sua pós-graduação. “Os estrangeiros podem permanecer em
Viena durante os meses de graduação exercitando-se
simultaneamente em mais do que um aspecto da medicina (para
aproveitar o tempo). Deste modo não se pode culpabilizar mais os
estrangeiros do que eu ou todos aqueles que efectuaram
observações com as mãos contaminadas. Nenhum de nós sabia
que estava a causar inúmeras mortes”.

Sarampo

Peter Ludwig Panum – Jovem médico dinamarquês

Não ocorria qualquer caso de sarampo nas ilhas Feroe desde


1781.
Em 4 ou 5 de Abril de 1846, ocorreu o primeiro caso em
Thorshavn.
De acordo com Panum, dos 7.782 habitantes destas ilhas, 6.000
sofreram sarampo, tendo morrido nos primeiros 9 meses daquele
ano, 255 pessoas das quais 102 com sarampo.
Uma das preocupações deste jovem médico prendia-se com o
registo dos casos.
O seu estudo centrou-se em todas as freguesias das ilhas à
excepção de Sudero, por falta de colaboração. Assim, o estudo
centrou-se sobre seis paróquias, com 6.626 habitantes dos quais
adoeceram aproximadamente 5.000.

35
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Dos 215 óbitos, 164 morreram durante a epidemia das quais 78


foram vítimas de sarampo ou suas sequelas.
Para Panum, o número real de óbitos por sarampo poderia oscilar
entre um mínimo de 78 e um máximo de 164. Tal facto deve-se a
que alguns casos tenham sido devidos a uma epidemia
concomitante de influenza, coincidente com a chegada do barco
com o marinheiro contaminado.
Se o número mínimo de óbitos por sarampo fosse 78, isso
significaria um óbito por cada 64 doentes com sarampo. No caso
de admitirmos os 164 casos como sarampo, então por cada 30,5
casos de sarampo falecia uma pessoa.
Panum comparou as taxas de mortalidade na Dinamarca e nas
ilhas Feroe, tendo verificado que no continente a taxa era de 1
óbito por cada 41,2 habitantes (média de 1801 a 1834), enquanto
nas ilhas a taxa era de 1 óbito para cada 64,7 (período de 1835 a
1845).
Durante os primeiros meses de 1846 a taxa de mortalidade era
nas ilhas Feroe de 1 para 31,0 habitantes.

36
Análise histórica de alguns estudos

Análise comparativa da mortalidade nas ilhas Feroe


Quadro III. Mortalidade específica por idade, durante a epidemia de
sarampo em 1846 e comparação com as taxas habituais nas ilhas Feroe
(original de Panum)

Idade Mortalidade Óbitos nos Pessoas Pessoas Número de


anual, dois segundo a segundo a vezes em
1835-1845 primeiros idade que idade em que a
terços de morreram que mortalidade
1846 anualmente, morreram dos dois
para 1835- nos dois primeiros
1845, primeiros terços de
calculado do terços de 1846 foi
censo de 1846, de superior do
1845 (%) acordo com que era
o censo de normal num
1845 e das ano vulgar
minhas completo
notas
pessoais
(%)
<1 Ano 18-1/11 50 10-9/11 30 2-9/11
1-10 Anos 7-3/11 6 6-6/11 6/11 0
10 - 20 Anos 5-/11 5 5-5/11 4/11
20 - 30 Anos 6-6/11 8 11/12 15/22 1-4/11
30 - 40 Anos 6-2/11 13 17/22 2-1/11 2-1/2
40 - 50 Anos 7-7/11 18 1-1/11 2-8/11 5
50 - 60 Anos 5-5/11 28 10/11 4-4/9 3-3/4
60 - 70 Anos 8-2/11 31 2 7-8/11 2
70 - 80 Anos 14-10/11 30 6-5/10 13-11/11 1-1/2
80 - 100 16-9/11 26 16-9/11 26
Anos
Total 215

37
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Panum elaborou este quadro, que apesar de algumas


peculiaridades na forma de apresentar os dados, descreve a sua
perspicácia e capacidade de investigação notável.
Concluiu que a idade média dos óbitos não sofreu quaisquer
alterações.
Para este investigador o sarampo talvez associado com a
influenza durante a Primavera foi particularmente nefasto para as
crianças com menos de um ano de idade. No intervalo entre os 1
e os 20 anos, a mortalidade não aumentou significativamente, ou
seja, a doença era menos perigosa neste grupo.
A partir dos 30 anos a mortalidade começou a aumentar até
atingir o máximo entre os 50 e os 60 anos, altura em que foi
cinco vezes superior ao habitual, tendo diminuído a partir dos 60
anos.
Panum, ao analisar o comportamento do sarampo na Dinamarca e
nas ilhas Feroe, concluiu que a influência exercida pela epidemia
do sarampo de 1846 pode servir de exemplo para ilustrar a
tendência das epidemias em dizimar a população de um país.
“Em condições normais, o sarampo ameaça apenas as crianças,
mas nas ilhas Feroe atacou toda a população, sem distinguir as
idades...”
“Penso que estabeleci que a causa mais importante para as taxas
mais favoráveis nas ilhas Feroe para doenças, em relação a
outros lugares, tal como a Dinamarca, pode ser consequência da
liberdade destas ilhas, da sua situação e da sua condição de
isolamento comercial”.

38
Análise histórica de alguns estudos

Período de incubação
Panum descreve as observações contraditórias e díspares no
tocante ao período de incubação, então reinantes (8 dias, 10 a 14
dias e outros chegaram a afirmar que não havia um stadium
contagii latentis definido).
Não demonstra grande admiração pelas discrepâncias,
justificando-as com o facto de ser muito difícil estudar os casos
em zonas em que a interacção entre as pessoas é muito grande e
variada.
Chega a afirmar o seguinte: ”Em Copenhaga, por exemplo, rara
vez se pode dizer que um doente com sarampo esteve exposto à
infecção uma vez, neste ou naquele dia, porque quase nunca se
pode provar que não se tenha estado exposto de alguma forma,
mais cedo ou mais tarde, e sem saber a contágio de sarampo.”
Em 4 de Junho de 1846 um navio baleeiro com 10 homens iniciou
a sua actividade de caça à baleia; 14 dias depois, a 18 de Junho,
o exantema do sarampo aparecia em todos os homens.
Cerca de 12 a 16 dias após esta tripulação ter contraído o
sarampo (a contar da data do aparecimento do exantema), o
mesmo apareceu em quase todos os habitantes da aldeia de
Tjoruevig.
Com base nestes elementos iniciou um inquérito com o objectivo
de determinar a origem, o modo de introdução e de disseminação
da doença.
Efectuou um inquérito epidemiológico rigoroso com todas as
datas, em 52 povoações.
A sua capacidade de “profetizar” foi de tal ordem que acaba por
contar uma história interessante:

39
Notas e Técnicas Epidemiológicas

“Em Fuglefjord, de Ostero, devido às minhas observações, adquiri


a reputação de ser capaz de profetizar. Ao chegar aí, a filha de
um fazendeiro havia adoecido recentemente com o sarampo, mas
além da tosse estava quase completamente curada. As outras
nove pessoas da casa sentiam-se bem em todos os aspectos e
expressaram a esperança de não contraírem a doença. Perguntei
em que dia apareceu o exantema da menina. Pedi um calendário
e indiquei o dia 14 depois daquele dia em que se tinha observado
o aparecimento do exantema, com o comentário de que deveriam
traçar uma linha negra debaixo daquela data, porque temia que
nessa data se manifestasse noutras pessoas da casa; se não
aparecesse naquele dia, então podiam ter alguma esperança de
ficarem isentos. Sucedeu que me chamaram 10 dias mais tarde,
recebendo-me com a exclamação: o que disse estava correcto!
De facto no dia previsto apareceu o exantema em todas as
pessoas da casa.”
Para Panum era um mistério, porque é que a doença aparecia
sempre após 14 dias de contágio, dizendo que não conhecia
nenhuma outra doença em que esta característica se
manifestasse desta maneira.
Concluiu que a regra do contágio do sarampo não produz nenhum
sintoma de doença durante um tempo considerável depois de ter
entrado no organismo, e então, segundo as suas observações,
depois de um período indefinido, aparecia o exantema bem
conhecido, sempre no 13º ou no 14º dia.
A imunidade conferida pelo sarampo foi igualmente estudada por
Panum ao interrogar os habitantes que tinham sofrido sarampo
em 1781. Nenhum deles (98) sofreu nova doença, facto mais

40
Análise histórica de alguns estudos

interessante porque apesar da idade avançada, não aumentou a


susceptibilidade à doença.
Quanto aos casos de “duplo” sarampo, Panum interpretou-os
como erro de diagnóstico ou a casos extremamente raros.

Cólica de Devonshire

George Baker – Cidra e chumbo

Introdução
George Baker apercebeu-se que as causas das cólicas de
Devonshire estariam eventualmente relacionadas com o consumo
de cidra.
A razão de ser desta hipótese era devida ao facto dos casos de
cólicas serem mais frequentes nas zonas onde se produzia mais
cidra.
Verificou igualmente que atingia todos os níveis sociais, ao longo
do ano.

Inquérito

Verificou a entrada no hospital de Bath de 80 casos no decurso de


um ano. Destes, 40 foram considerados como curados e 36 como
melhorados.
A proporção de doentes de Devonshire era superior a oito vezes
mais do que os oriundos de outros condados próximos.
Um colega de Worcester escreveu-lhe a comunicar entre outras
coisas que um agricultor tinha tido uma boa produção de maçãs.
Tinha uma cisterna de chumbo com cidra. Todas as pessoas que

41
Notas e Técnicas Epidemiológicas

beberam daquela cidra ficaram doentes tal como acontecia com


os trabalhadores de chumbo.
Outros casos de cólicas tinham ocorrido em pessoas que beberam
cidra, obtida com prensas de chumbo.
O método de produção de cidra em Devon levou à realização de
um inquérito. Assim, verificou que nas juntas de ferro das pedras
utilizadas para esmagarem as maçãs, se utilizava chumbo
fundido. Como as pedras não eram regulares, formavam-se
pequenos espaços que eram preenchidos com chumbo, o qual por
sua vez entrava em contacto com as maçãs. Noutros lugares
usavam-se mesmo prensas de chumbo.
Alguns agricultores chegavam a utilizar uma “pesa” de chumbo na
cidra para evitar que o licor se “agrie” (prática fraudulenta e
condenável).
Nas reparações de determinados objectos utilizados na
preparação, o chumbo era frequentemente usado por motivos
óbvios de facilidade no seu emprego.

Estudo experimental

Baker utilizou cidra e detectou a presença de chumbo, mediante


um processo denominado atramentum sympatheticum, ou liquor
vini probatorius. Graças a este método, Baker ficou convencido da
presença de chumbo.
Com o recurso a um professor de química, foram efectuadas
várias experiências, utilizando vários métodos, todos com o
objectivo de provar a existência de chumbo.

42
Análise histórica de alguns estudos

Estas experiências decorreram em Outubro de 1766 e


confirmaram que a causa da cólica de Devonshire era da
responsabilidade do chumbo.

A epidemia de gota dos séculos XVIII e XIX (Grã-Bretanha)

Nos séculos XVIII e XIX ocorreram epidemias de gota na Grã-


Bretanha.
As razões têm um pouco a ver com Portugal e a influência nefasta
desencadeada pela Inglaterra, responsável pelo nosso atraso
socioeconómico.
De acordo com o Dr. Milton Terris, Portugal antes daquela época
caracterizava-se por possuir uma indústria têxtil florescente, a
qual competia com a indústria britânica. Envolvida na guerra de
sucessão espanhola, a Inglaterra atraiu Portugal à aliança austro-
húngara, e em 1703 ambos os países assinaram o tratado de
Methuen.
Segundo este tratado, os produtos têxteis britânicos entravam em
Portugal, livres de taxas; em contrapartida os vinhos portugueses
entravam na Inglaterra pagando menos direitos do que os vinhos
franceses. Resultado desta iniciativa: a destruição da indústria
têxtil portuguesa.
A “nossa vingança” a esta atitude dos ingleses foram os casos de
saturnismo e de crises de gota verificados naqueles séculos.
A Inglaterra estava em guerra com a França e os vinhos franceses
não entravam naquele país. O vinho português passou a substituir
o vinho francês e para poder conservar-se durante a viagem foi

43
Notas e Técnicas Epidemiológicas

enriquecido com álcool que era frequentemente destilado ou


armazenado em vasilhas de chumbo2.
Parece que o mecanismo envolvido não seria uma intoxicação
saturnina, mas sim um fenómeno de lesão renal, o qual
condicionaria um aumento do ácido úrico no sangue.
As análises de chumbo em vinho do Porto3 do princípio do século
XIX e fins do século XVIII, revelaram teores de chumbo elevados.
Naturalmente só as classes mais altas é que sofriam praticamente
desta afecção.

2
Relativamente ao consumo de álcool, não deixa de ser interessante que os
portugueses eram considerados como o povo mais sóbrio da Europa,
consumindo praticamente água. Mesmo a nível da realeza, não se consumia
praticamente bebidas alcoólicas. O povo tinha tendência a copiar os seus
hábitos. Os reis D. João I, D. Pedro II, D. João V e o D. José eram abstémios
(este último até ao terramoto de 1755, a partir do qual passou a beber, por
indicação do seu médico, para combater a melancolia decorrente do desastre de
Lisboa. Parece que se entregava em demasia ao vinho). As considerações sobre
a frugalidade dos portugueses foram descritas pelos inúmeros viajantes
estrangeiros, nomeadamente franceses e ingleses (A Alimentação em Portugal
no século XVIII nos relatos dos viajantes estrangeiros Carlos Veloso. Minerva
História. Coimbra, 1992).
3
Alguns viajantes consideram como responsáveis pelo alcoolismo, a presença
dos ingleses nas nossas cidades. Chegam a considerar o vinho do Porto, como
um verdadeiro veneno, resultante do desejo de agradar dos portugueses, ao
adicionarem aguardente ao vinho de forma a torná-lo mais agradável ao paladar
britânico. O que é certo foi a mudança radical dos hábitos de vida de um povo,
ao entrar em contacto com uma cultura diferente, dominada pelo álcool. O efeito
das mudanças sociais, económicas e políticas ocorridas nos séculos XVIII e XIX,
promoveu as raízes de um flagelo bastante grave, o alcoolismo (A Alimentação
em Portugal no século XVIII nos relatos dos viajantes estrangeiros. Carlos
Veloso. Minerva História. Coimbra, 1992)

44
Análise histórica de alguns estudos

O mal róseo

Gaspar Casal – Médico das Astúrias

Introdução
Casal tinha ao longo de sua actividade de clínico, dedicado
particular atenção a uma doença endémica, denominada mal
róseo.
“Ainda que os sintomas desta doença sejam muitos e cruéis,
somente a um deles é que se aplica aquele nome vulgar; e este
sintoma é uma crosta terrível que, ainda que inicialmente a parte
atingida apresente uma cor vermelha, cobrindo-se de certa
aspereza, degenera finalmente numa crosta extremamente seca,
escabrosa, enegrecida, cortada muitas vezes por profundas
feridas, que penetram até à carne viva com dor, ardor e mal-
estar”.
À descrição pormenorizada das alterações cutâneas, Casal
verificou que as lesões apareciam quase sempre no equinócio da
Primavera e muito raramente nos restantes períodos do ano.
As cicatrizes que ocorriam no decurso do Verão eram
semelhantes às de uma queimadura.
Casal verificou tratar-se de uma doença “aniversária”, pois ocorria
todos os anos na Primavera, somando-se os estigmas.
As lesões nunca se produziam nas palmas das mãos e plantas dos
pés. Outros locais de lesões descritas por Casal: cotovelos,
pescoço e região peitoral.

45
Notas e Técnicas Epidemiológicas

História da doença

Foi no ano de 1735 que este médico começou a compilar os dados


e as características desta afecção, interrogando os doentes com
perguntas “oportunas e importunas”.

Sintomas

Além das manifestações cutâneas, Casal descreveu os seguintes:


Constante vacilação da cabeça;
Dores intensas na boca, vesículas nos lábios e “imundice”
na língua;
Debilidade digestiva;
Falta de forças no corpo;
Negligência, aliada a uma estranha preguiça;
Crostas dos metacarpos e metatarsos e espécie de colar na
parte superior do pescoço;
Pele fina e sensível.

Evolução

“Então, muitos dos que sofrem do mal róseo, caem numa


melancolia, e com tal mudança os miseráveis doentes, impelidos
não tanto pelo furor, como pela angústia, tornam-se desonestos,
cometem burlas e, abandonando o seu domicílio, vagueiam pelos
montes e lugares solitários, e até podem cair no desespero”.
Casal teoriza que o calor deverá ser o responsável, já que estes
sintomas ocorrem especialmente durante o Verão.

46
Análise histórica de alguns estudos

Quando um doente passava para o estado melancólico, era


sinónimo de morte em breve. Estes melancólicos do mal róseo
eram diferentes dos outros melancólicos ou maníacos, porque
morriam mais cedo.

Causa

As causas radicavam na temperatura ou constituição da


atmosfera e nos alimentos.
Para Casal o principal alimento dos asturianos era o milho.
Utilizavam-no para fazer papas, misturadas com leite ou
manteiga.
“Também comiam ovos, castanhas, favas, nabos, leite, manteiga,
queijo, maçãs, peras, nozes, avelãs e outras frutas. Raramente
comiam carne fresca e muito poucas vezes saladas”.
Quase todos os que sofriam desta doença, eram pobres
agricultores.
Nem carne de porco salgada ou de outro animal tinham para
comer no seu dia a dia, nem de “dez em dez dias”.
O pão de milho nem fermento tinha. A sua bebida era a água.

Tratamento da endemia

Casal observou que a mudança de alimentação, usando alimentos


mais substanciais era muito útil para combater a endemia.
Pão seco, não fermentado, aliado a leite desnatado (os pobres
retiravam a nata para o fabrico da manteiga) era insuficiente.
Para Casal o leite podia ajudar, só que era um leite muito magro.
Conta a história de uma mulher que atacada de mal róseo e de
demência, comprou toda a manteiga que podia num impulso, que

47
Notas e Técnicas Epidemiológicas

não se sabia se determinado pela doença ou pela natureza da


mania. O que é certo é que se alimentava diariamente de
manteiga, tendo ao fim de algum tempo, ficado curada da doença
e da demência.

48
Epidemiologia

O que é a epidemiologia?

O que é a epidemiologia? Basicamente todos reconhecem de


imediato que a epidemiologia estuda as doenças em relação com
as populações. Este conceito é muito elementar e como iremos
ver, não é fácil concentrar numa definição os objectivos e
métodos de uma ciência.

O saber médico distribui-se por três grandes áreas: ciências


básicas, ciências clínicas e medicina das populações. Cada uma
destas áreas caracteriza-se por objecto, locus e métodos próprios.

Assim, as ciências básicas relacionadas com a saúde centram as


suas actividades nos fenómenos elementares, utilizando os
métodos ditos exactos (química e física) no seu locus apropriado
(laboratório e institutos de investigação). As ciências clínicas
preocupam-se com o homem doente e utilizam métodos clínicos e
empíricos de observação. Enfermarias, serviços de urgência e
ambulatório constituem os principais locais de acção. Por fim, a
medicina das populações preocupa-se com grupos de indivíduos
doentes e não doentes. A sua esfera de acção centra-se na
comunidade e os principais métodos e técnicas são a
epidemiologia clássica e as estatísticas de saúde entre outros.

Podemos inferir que a principal área de intervenção da


epidemiologia diz respeito à comunidade. No entanto, este
Notas e Técnicas Epidemiológicas

conceito generalizou-se nos dias actuais às áreas clínicas


(epidemiologia clínica) e mesmo às ciências básicas
(epidemiologia molecular).

Origem do conceito de epidemiologia

A utilização da designação epidemiologia é muito recente (séc.


XIX). Apesar dos conceitos e intuição da importância dos métodos
epidemiológicos remontarem à Escola de Cós (2.400 anos) foi
Angelerio, médico espanhol do séc. XVI que designou
Epidemiologia o seu trabalho sobre peste. Villalba procedeu à
compilação de todas as epidemias ocorridas em Espanha desde o
séc. V a.C., intitulando este trabalho de Epidemiologia Espanhola
(1802).

Foram os trabalhos de Snow, Farr, Panum, Budd, Casal, Finlay,


Takaki, Villermé, Lind, Baker, Semmelweis, entre muitos outros
que deram um notável impulso ao desenvolvimento da
epidemiologia. A aplicação dos métodos epidemiológicos
contribuiu para a delimitação das entidades mórbidas e o estudo
de nexos de causalidade.

Com o tempo, a epidemiologia transformou-se numa disciplina


“fornecedora” de metodologias e quadros conceptuais, os quais
permitiram aglutinar o saber médico, revolucionando a prática
comunitária e clínica.

50
Epidemiologia

História da epidemiologia

Hipócrates

Tal como seria de esperar, a história de qualquer assunto


relacionado com a saúde tem de obrigatoriamente de se reportar
a este marco.

A escola de Cós (500 anos a.C.) utilizou pela primeira vez as


designações endémicas e epidémicas, como sinónimos de doença
existente na comunidade e de doença “visitante” da mesma.

Os escritos de Hipócrates revelam a utilização empírica do método


epidemiológico, hoje considerado como absolutamente necessário
à prática de qualquer actividade de saúde, nomeadamente a
clínica.

Evolução da epidemiologia

Apesar da designação ser relativamente moderna, os conceitos


epidemiológicos estiveram sempre presentes, umas vezes
utilizados de uma forma mais correcta, outras não, traduzindo a
evolução do próprio espírito humano e consequentemente a
própria ciência.

Mesmo durante a epidemia da peste negra, ocorrida no século


XIV, podemos afirmar que alguns pensadores tinham a
consciência da forma de propagação, preconizando mesmo
medidas preventivas que poderiam ter sido eficazes, mas que
infelizmente não tiveram receptividade devido à forma inerente
de pensar e interpretar os fenómenos naquela época.

51
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Ainda neste século a associação entre a malária e a cultura do


arroz, ilustra uma capacidade de correlação notável. Assim
quando se cultivava numa zona previamente malárica, não
ocorria a doença, quando ocorria o contrário, ou seja cultura de
arroz numa zona previamente não endémica, a doença aparecia.
Tais modificações teriam a ver com a humidade e
consequentemente com a vida do mosquito.

Durante o século XIX discutiu-se muito sobre a forma de


transmissão das doenças. Predominavam duas teorias: a
miasmática e a do contágio.

A partir do momento em que foram observados os primeiros


microrganismos e a sua relação com a patologia, deveria ter sido
adoptada a teoria do contágio (1874). No entanto tal não ocorreu
de forma pacífica. A discussão ao redor das duas teorias politizou-
se, a ponto dos conservadores defenderem a teoria do contágio, e
os progressistas a miasmática.

A razão desta politização da etiologia das doenças resulta do facto


de cientistas como Virchow e Louis Villermé, entre outros,
considerarem as doenças como resultantes da pobreza e más
condições de trabalho. De facto, tal associação foi determinante
para a explicação de grande parte da patologia humana.

No entanto, todo o empenho da pesquisa médica vinha sendo


canalizada para as doenças infecciosas, cuja prevalência era
excessivamente elevada, devido às más condições de higiene e de
vida.

52
Epidemiologia

Os estudos conduzidos por John Snow, Semmelweis e muitos


outros, apontavam para as doenças infecciosas, cujos agentes,
apesar de serem desconhecidos, conseguiram serem controlados
com medidas adequadas para a época.

A descoberta dos microrganismos veio legitimar os conhecimentos


já adquiridos, até chegar ao ponto de tudo se querer explicar
através da teoria dos germens.

Doenças que não eram de origem infecciosa, foram tratadas como


tal (exemplo do beribéri)

Quando Casimiro Funk enunciou a teoria de doença por


deficiência, abriu-se um novo capítulo para o estudo das doenças
não infecciosas.

Epidemiologia social

Antes da epidemiologia adquirir o seu estatuto, a epidemiologia


social constituiu um marco histórico, com uma actualidade
premente.

Quando Villermé em França estabeleceu a correlação entre a


mortalidade e a situação económica, estavam lançadas a base
desta disciplina. Esta análise foi efectuada em 1826.

Na Inglaterra, Farr estabeleceu uma relação entre a mortalidade e


as classes sociais. No entanto, é discutível o verdadeiro papel de
William Farr.

Farr estabelecia que as pessoas que viviam em altitudes


superiores sofriam menos de cólera, do que aquelas que viviam
perto do Tamisa.

53
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Defensor da teoria miasmática, pretendia deste modo explicar as


diferenças. A cólera era uma doença dos pobres, já que comiam e
dormiam na mesma habitação, ao contrário dos mais ricos, pelo
que Terris afirma que o verdadeiro pai da epidemiologia social foi
Snow e não Farr.

Para Terris o facto de Snow ter estudado a cólera, prende-se com


o excesso de industrialização, más condições de saneamento e,
consequentemente, o despertar e o perpetuar da cólera urbana.

Revolução francesa

O epidemiologista Nagera, afirma que a Revolução Francesa


incorporou os interesses da comunidade. A saúde pública já
existia. Basta analisar as medidas de quarentena que foram
instituídas desde o século XIV. Só que estas medidas de
prevenção destinavam-se apenas a proteger parte da
comunidade, ou seja, o rei, a nobreza e os comerciantes.

A Revolução Francesa alargou este conceito a toda a população.

Revolução industrial

As péssimas condições de trabalho e a elevada mortalidade e


morbilidade inerentes foram determinantes para o
desenvolvimento da saúde pública, à custa dos problemas de
saúde ocupacional.

A industrialização entrou numa fase de aceleração notável,


atraindo muitas pessoas do campo para as cidades, onde as
condições de vida e de trabalho eram verdadeiramente
miseráveis.

54
Epidemiologia

Na Inglaterra a abolição da antiga Lei dos Pobres, permitiu que


estes se vissem forçados a migrarem para as cidades e fim de
trabalharem nas fábricas. A nova lei determinava que a gente
pobre recebesse cuidados médicos nas fábricas e não nas
paróquias.

Chadwick

Chadwick foi o autor do Report on the Sanitary Conditions of the


Labouring Population of Great Britain.

Homem hábil, modificou certo tipo de assistência aos pobres, de


modo a forçá-los a deslocarem-se para as grandes urbes, a fim de
ficarem ao alcance dos industriais da época que necessitavam de
mão-de-obra.

Apesar de ser considerado como um dos responsáveis pela saúde


pública moderna, Chadwick era fortemente odiado, precisamente
por colocar-se ao serviço da classe dominante.

O predomínio das doenças infecciosas

As doenças infecciosas tornaram-se no principal motivo de


interesse por parte dos investigadores, relegando para um plano
secundaríssimo as doenças devidas à má-nutrição, às péssimas
condições de trabalho e a outros factores económicos e sociais.

As razões de ser desta atitude prendem-se com as descobertas de


Pasteur e de Koch, os quais começaram a lidar com aspectos
concretos.

55
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O desenvolvimento comercial

Não foi só a revolução industrial a responsável pelo aparecimento


e agravamento das doenças. A história conta-nos que, sempre
que ocorreram trocas comerciais, as doenças tinham tendência a
propagarem-se. Foi o que aconteceu com a peste, a sífilis e
muitas outras.

A nova epidemiologia

Alguns autores afirmam que o aparecimento da nova


epidemiologia ocorreu fundamentalmente no decurso dos anos
quarenta e cinquenta.

No entanto, temos de salientar alguns trabalhos do início do


século XX e que são marcos históricos.

Assim, o trabalho de Goldberger sobre a pelagra é paradigmático


do aparecimento da nova epidemiologia. Do mesmo modo, os
estudos do Major Greenwood sobre o cancro, ilustram a aplicação
dos métodos epidemiológicos a doenças não infecciosas.

56
Saúde comunitária

Introdução

A medicina procura o conforto e o bem-estar das pessoas,


utilizando para o efeito os meios ao seu alcance, e que permitam
o retorno à normalidade das funções ou minimizar as
consequências de muitas e funestas doenças.

Assim, a medicina tem ao seu alcance quatro métodos básicos:


cortar, substituir, modificar e prevenir. Os dois primeiros são
métodos um pouco “grosseiros”, mas mesmo assim
indispensáveis. Os tumores, os quistos e diversas anomalias,
exigem uma actuação cirúrgica, a fim de expurgar o mal. A
cirurgia nasce assim como um dos métodos mais importantes,
radicais e eficazes.

Substituir é geralmente sinónimo de transplantação, que constitui


motivo de admiração e respeito. No entanto, apesar da sua
recente aparição, não deixa de constituir uma forma “grosseira”
de restituir saúde, ao ter que utilizar órgãos ou tecidos de
pessoas saudáveis.

Os outros dois métodos são considerados mais elegantes e subtis.


Assim, modificar o comportamento de algo normal, restituindo-a
à normalidade, constitui uma manifestação superior de
inteligência. Paralelamente a este, destacamos por último a
prevenção.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

É na prevenção que se concentra o objectivo máximo da saúde.


Para alcançarmos estes objectivos, necessitamos de estar na
posse de muitos conhecimentos que expliquem a “história natural
da doença”, a fim de podermos intervir nos diferentes momentos.

Vimos assim resumidamente os quatro métodos básicos utilizados


em medicina.

Saúde comunitária

A filosofia, a religião, as condições económicas, a forma de


governo, o sistema educacional, a ciência, as aspirações e o
folclore de um povo constituem importantes factores, cujos
reflexos são muito nítidos na saúde das comunidades.

A história da saúde comunitária descreve as conquistas e os


declínios das sociedades e das condições humanas.

No momento presente e num passado não muito remoto,


podemos observar até que ponto a revolução demográfica e as
variações do desenvolvimento industrial (com as inevitáveis
repercussões económicas), tiveram na saúde das comunidades.

Os problemas sociais são tão vastos e tão importantes que


constituem o foco de atenção e de privilégio dos diferentes órgãos
de comunicação social. Todos os dias, somos confrontados com
assuntos tais como: abortos, gravidez das adolescentes, leis
contra a condução alcoolizada, homicídios, suicídios,
toxicomanias, desastres ecológicos, poluição do ar e das águas,
registos informáticos, etc.

58
Saúde Comunitária

Todos estes aspectos, muitos deles bastante controversos,


reflectem as respostas comunitárias às tendências históricas no
campo da saúde e esforçam-se por modificar a história da saúde
e do desenvolvimento comunitário.

O nível civilizacional está intimamente relacionado com a


qualidade de saúde das populações. Por um lado desenvolve esta
última, e por outro reflecte o nível sanitário atingido.

A história da saúde está cheia de exemplos que permitem


testemunhar tais relações.

Verdadeiro barómetro das condições de vida, a saúde das


comunidades representa igualmente uma empresa harmoniosa e
dinâmica, capaz de modificar a história.

Promoção de saúde comunitária

As definições são sempre imprecisas e não reflectem a totalidade


dos factos que queremos estudar.

A noção de saúde pública é uma noção vasta e incompleta e que


a nosso ver, traduz mais uma filosofia do que propriamente uma
ciência

No entanto há quem pretenda reduzir tudo a meia dúzia de linhas


e neste caso Winslow até conseguiu alcançar o objectivo ao
definir a prática de saúde pública como a ciência e a arte de
prevenir a doença, prolongar a vida e promover a saúde e bem-
estar através do esforço combinado e organizado para a melhoria
das condições sanitárias do ambiente, o controlo das doenças
infecciosas, a organização dos serviços médicos e de enfermagem

59
Notas e Técnicas Epidemiológicas

para o diagnóstico precoce e prevenção de doença, a educação


individual em higiene pessoal e o desenvolvimento da máquina
social que permita assegurar a cada um, um estilo de vida
adequado para a manutenção e melhoria da saúde.

Com base nesta definição, a prática de saúde pública justapõe


alguns aspectos de medicina, de enfermagem, saúde escolar e
saúde individual e sobrepõe-se a muitos aspectos de saúde
ambiental, prevenção da doença e promoção da saúde.

As esferas de acção da saúde comunitária incluem aspectos da


prática de saúde pública; prática de saúde escolar; práticas
profissionais de pessoal médico, de enfermagem e dentistas;
práticas de saúde individual e familiar. Além destas esferas,
sobrepõem-se outras de acção adicional que habitualmente são
subprodutos de objectivos primários, nomeadamente as
relacionadas com o local do trabalho, o lazer e o próprio sistema
legal.

A coordenação e a integração destas esferas de acção fazem a


prática da promoção da saúde comunitária.

Campos de Saúde

Green define quatro campos de saúde. Cada um deles tem


características próprias e um grande impacto na saúde.

De facto podemos distribuir os milhares de factores de risco por


quatro grandes áreas: biologia humana ambiente,
comportamento e organização dos cuidados de saúde.

60
Saúde Comunitária

Não é difícil imaginar que o último campo (organização dos


cuidados de saúde) é o que tem recebido mais atenção e
dinheiro, quase como sinónimo de resolução dos problemas de
saúde.

Não é bem assim. A falta de mais atenção e cuidado


relativamente ao ambiente e ao comportamento, explica o
incremento de novas-velhas doenças que atormentam a
humanidade.

Felizmente começa-se a observar mais atenção para estas duas


importantes áreas onde radicam mais de 80% da patologia
humana. Doenças transmissíveis, cancro, doenças
cardiovasculares e acidentes ilustram alguns dos grandes grupos
nosológicos eminentemente relacionados com o ambiente e o
comportamento humano.

A promoção da saúde comunitária é qualquer combinação de


acções educacionais, sociais e ambientais que conduzam à saúde
duma população numa determinada área geográfica.

Podemos admitir três grandes tipos de intervenção: educacional,


social e ambiental. A primeira é dirigida a indivíduos de alto risco,
famílias, grupos, dirigentes e a toda a comunidade. A segunda
caracteriza-se por um conjunto de modificações de natureza
económica, política, legal e organizacional. A terceira inclui a
estrutura e a distribuição de recursos físicos, químicos e
biológicos.

O esforço duma comunidade organizada define a saúde


comunitária. Algumas coisas podem ser feitas pelo indivíduo

61
Notas e Técnicas Epidemiológicas

sozinho, mas muitos benefícios na saúde só podem ser obtidos


através duma acção colectiva ou de um esforço comunitário
conjunto.

A biologia humana é um dos capítulos mais interessantes das


ciências da saúde. Genética, crescimento, envelhecimento. É o
substrato das restantes três categorias. Apesar das promessas
inerentes às áreas biológicas (e que decerto irão revolucionar o
futuro), o presente não pode contar com grandes intervenções
(problemas técnicos e éticos constituem algumas limitações, em
vias de serem ultrapassadas num espaço de tempo curto (?)).

O ambiente inclui todos os factores relacionados com a saúde e


externos ao corpo humano, sobre o qual o indivíduo tem um
controlo limitado, mesmo que a comunidade possa ter um forte
controlo.

A poluição do ar, da água, dos alimentos, a eliminação dos


resíduos, a prevenção das doenças transmissíveis e das doenças
laborais, constitui alguns exemplos da importância do ambiente.

A urbanização, o super povoamento, as rápidas alterações sociais


com desintegração de valores definidos e a sua substituição por
novos, podem ser fonte de patologia, de stress e até de
alienação.

O estilo de vida adoptado pelos indivíduos constitui a terceira


categoria relacionada com o binómio saúde-doença. As decisões
individuais impõem riscos auto-impostos: fumar, comer em
demasia, uso de drogas, condução descuidada, consumo de

62
Saúde Comunitária

álcool... são alguns exemplos bem definidos de riscos com grande


impacto na saúde dos indivíduos e impacto social.

A organização dos cuidados de saúde é sem sombra de dúvida


aquela que recebe mais atenção e dinheiro, como se fosse capaz
de resolver os graves problemas de saúde das comunidades.

Não pondo de parte a sua importância (é necessário uma boa


prática médica e de enfermagem, bons hospitais, serviços de
saúde, cuidados pediátricos, de saúde mental...), podemos
afirmar que a comunidade está dependente desta quarta
categoria, enquanto menospreza os benefícios resultantes de
boas práticas ambientais e comportamentais.

Não dispomos de elementos susceptíveis de medir o peso e os


custos destas quatro grandes áreas. No entanto, nos países mais
desenvolvidos do mundo, 80% do orçamento da saúde é aplicado
na organização dos cuidados de saúde, e os restantes 20% nas
outras áreas. Mas também é do conhecimento dos responsáveis
que a organização não contribui com mais de 20% da saúde das
comunidades, enquanto os restantes campos de saúde
contribuem com 80% da saúde!!!

História da Saúde Comunitária

Todas as doenças são devidas aos demónios (Santo Agostinho)

Se nos reportarmos à Antiguidade podemos verificar que a


preocupação com a saúde comunitária já existia e até em certa
medida contribuiu para o aparecimento de civilizações e nalguns
casos (ausência de cuidados de saúde) para a sua queda.

63
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Na civilização egípcia havia um conjunto de preocupações com a


recolha das águas das chuvas e eliminação dos excreta, através
de sistemas elaborados.

Herodoto no século V a.C. descreveu os hábitos dos egípcios em


termos de cuidados pessoais, banhos frequentes e uso de roupas
simples.

Tal como qualquer comunidade de então a preocupação com as


causas das doenças já existiam e eram na sua maioria sujeitas a
interpretações espirituais e astrológicas. A intoxicação alcoólica
era da responsabilidade dos espíritos que habitavam nas uvas. O
uso do álcool era considerado como benéfico quando utilizado
moderadamente e desaconselhado em excesso.

A necessidade de regulamentar o acto médico é tão antigo como


a própria prática. Os babilónicos através do código de Hamurabi
(1.900 a.C.) defendiam a conduta dos médicos e práticas para
uma boa saúde e as consequências da má prática (decerto que
muitos de nós não desejaria ser médico naquela altura, em que o
erro se podia pagar com a própria vida...).

As sociedades hebraicas primitivas alargaram o conceito de


doença e a promoção da saúde comunitária, através da regulação
da conduta humana – leis de Moisés.

Os hebreus tinham a percepção de que a conduta humana é


fundamental na saúde comunitária e na saúde individual.

Um dia de descanso semanal constituiu uma prática religiosa com


impactos significativos na saúde das populações.

64
Saúde Comunitária

As relações familiares e a conduta sexual eram dirigidas aos


melhores interesses de saúde comunitária, pessoal e familiar.

Muito se tem falado sobre o facto de os hebreus não comerem


carne de porco. Naturalmente, tal atitude não tem rigorosamente
nada a ver com problemas de saúde, já que tinham muito poucos
conceitos sobre a propagação da doença, mas mesmo assim
esforçaram-se para impedir a propagação de algumas.

O terem reconhecido que a carne de porco era impura e a sua


subsequente proibição, deve ter mais relação com as
características alimentares e de produção agrícola, já que o porco
compete com o homem relativamente a várias fontes
alimentares...

A primeira prática de medicina preventiva foi a segregação dos


leprosos (Levítico).

A lei mosaica encerra o "necessário" no que toca à saúde


materna, segregação dos leprosos, fumigação, descontaminação
dos edifícios, protecção das fontes hídricas, eliminação dos
excreta, protecção dos alimentos, etc.

Os gregos na sua época áurea exaltavam os aspectos físicos da


saúde pessoal, através de jogos, ginástica e outros exercícios,
destinados a alcançar o ideal de força física, destreza e
graciosidade. A filosofia baseava-se no desenvolvimento
harmonioso de todas as faculdades.

Davam particular atenção à higiene individual e à dietética. O


individual sobrepunha-se ao colectivo, pelo que não foi dada
muita atenção ao ambiente em termos sanitários. Tal atitude é

65
Notas e Técnicas Epidemiológicas

desconcertante na medida em que não foram capazes de


assimilarem as práticas sanitárias de outros povos.

Já os romanos privilegiavam o colectivo. O estado era de uma


importância superior ao interesse do indivíduo. Este existia para
servir o estado.

O desenvolvimento das ciências de engenharia, administrativa e


militar reflectem-se em muitos projectos de saúde comunitária.

O registo dos cidadãos e dos escravos e a realização periódica de


censos, serviu para ajudar no planeamento de medidas de saúde
comunitária, embora o seu objectivo primário fosse sem dúvida
mercenário.

A regulamentação das construções, a prevenção dos esgotos nas


ruas e a eliminação de bens em mau estado conservação, são
medidas ainda praticadas hoje em dia. Higiene sanitária das ruas
e habitações, remoção de lixos, abastecimento de água, banhos
públicos etc., constituíram medidas que contribuíram
significativamente para a saúde, assim como para o
desenvolvimento da civilização.

Não foi por acaso que as cidades romanas chegaram a albergar


centenas de milhares de habitantes, ao contrário de Corinto, que
no seu período mais alto não ultrapassou 35.000 pessoas.

Durante o período de Alta Idade Média, a civilização atingiu o


"caos". A ciência regrediu, era da responsabilidade do estado e
tinha pouco interesse.

Os clérigos constituíam a única classe culta, mas era dada


prioridade aos aspectos espirituais. O corpo era rejeitado face à

66
Saúde Comunitária

glorificação do espírito. Tal atitude teve repercussões na higiene


individual e colectiva.

O uso de roupas sujas, o não tomar banho (a visão de um corpo


desnudado era imoral), as más condições de higiene colectiva e
de alimentação foram determinantes para a explosão de várias
epidemias.

O aparecimento da nova religião – Islamismo – originou


mudanças com o aparecimento de epidemias com as
peregrinações a Meca.

Entre o final do século XI e meados do século XIII, ocorreram as


cruzadas. Durante estes movimentos, a cólera teve uma grande
expressão, além de outras doenças infecciosas. Também é de
realçar a criação de edifícios ao longo das vias de comunicação e
que permitiram minimizar as consequências para a saúde.

O ano de 1348 é um marco histórico na vida dos europeus e da


história da medicina. É o ano da peste negra, que causou grandes
convulsões demográficas, sociais e políticas, acabando por ser
indirectamente um dos percursores do Renascimento.

A história deste período é um dos mais ricos da história da


humanidade. Apesar das atribuições causais a diferentes factores:
tempestades, cometas, fome, seca, envenenamento dos poços
por judeus, havia alguns conceitos sobre a sua transmissão e
propagação. No entanto não havia condições sociais e cientificas
para a relação da doença, com o superpovoamento, má higiene e
migrações. No entanto as primeiras medidas segregacionistas e
de prevenção como a quarentena datam deste período.

67
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Tecnicamente a primeira medida de proibição de entrada numa


cidade (durante dois meses num lugar definido) a viajantes
oriundos de zonas com peste, foi em Rogusa em 1377. Marselha
decretou a lei da quarentena em 1383.

Em 1374 Veneza nomeou uma comissão de três responsáveis de


saúde pública, a qual negava a entrada a todos os suspeitos.

Apesar de tudo, as medidas de controlo de doença não foram


eficazes. Os académicos da altura podiam debruçar-se de uma
forma científica sobre o assunto, mas eram frequentemente
vigiados e perseguidos.

Em 1453, com a queda de Constantinopla surgiu uma nova época


do conhecimento. O escolaticismo desviou-se para o realismo e
esse facto teve repercussões na saúde comunitária.

Os séculos XV e XVI produziram nomes famosos, como


Copérnico, Galileu, Vesálio, da Vinci, etc.

A construção e a diferenciação das doenças começaram a surgir.

Em 1546, mentes demasiado evoluídas para a época teorizavam


que as doenças se propagavam através de microrganismos.
Girolamo Fracastorium (1478-1553) teorizava desta forma mais
de 300 anos antes da descoberta dos microrganismos...

A saúde comunitária na Europa sofreu um grande impulso a partir


do início do século XVII, graças a novas descobertas e ao impulso
de cientistas e filósofos, dos quais destacamos Bacon, Descartes,
Newton, Voltaire, Boyle, Harvey, Thomas Sydenham, Kircher, van
Leeuwenhoek, Pasteur, Koch. Jenner e muitos e muitos outros....

68
Saúde Comunitária

No início do século XIX, devido à rápida expansão industrial, as


actividades de saúde pública foram negligenciadas o que
determinou o aparecimento de muitas epidemias.

A Inglaterra foi o primeiro local em que a promoção de saúde


comunitária teve lugar, assim como foi o primeiro país a
reconhecer oficialmente a saúde pública.

Em 1842 Edwin Chadwick elaborou o relatório onde se analisavam


as condições deploráveis de trabalho e as implicações na saúde,
sobretudo das crianças trabalhadoras (Report on the Inquiry into
the Sanitary Condition of the Laboring Population of Great
Britain).

John Simon foi reconhecido oficialmente como o primeiro médico


de saúde pública em 1848.

A era moderna da saúde "começou" a partir de 1850 e representa


a forma organizada e disciplinada de analisar os problemas de
saúde. Período rico e controverso é habitualmente dividido em
cinco fases: a miasmática (1850 - 1880), a bacteriológica (1880 -
1920), a fase de recursos humanos (1920 - 1960), a fase de
envelhecimento social (1960 - 1975) e a fase de promoção da
saúde (1975 -?)

69
Saúde Pública – Da Filosofia à Prática

Saúde Pública – Filosofia ou Praxis?

Assim que tive a oportunidade de ler o convite para participar


nesta reunião, subordinada ao tema “Saúde Pública – Filosofia ou
Praxis?”, senti de imediato um conjunto de interrogações e
ansiedade.

As interrogações afloraram ao meu espírito de uma forma


intensa, desgarrada, como se tratassem de vários filmes, cujas
imagens apesar de não terem formas eram ricas em conteúdos e
princípios.

A ansiedade acompanhou este despoletar, porque não sabia e


mesmo hoje não sei se serei capaz de pôr em ordem o
emaranhado de noções, conceitos e princípios.

Afinal pensei eu, como responder a tão interessante questão?

O melhor seria começar por dissertar ou antes filosofar sobre o


conceito de Saúde Pública.

Como é natural tive logo a tentação de estruturar este tema de


uma forma académica e pedagógica, começando por uma
abordagem histórica da Saúde Pública.

Depois pensei, este tipo de análise corresponde aquilo a que


todos nós estamos habituados. Remontar a Hipócrates ou à
Antiguidade, passando pelas diferentes eras, descansando e
Notas e Técnicas Epidemiológicas

discutindo nos momentos mais prementes e ricos tais como os


que ocorreram no século passado com a cientificação da medicina
e a descoberta de novos paradigmas, focando a atenção nos
problemas sociais, culturais e sanitários, os quais estão
intimamente relacionados.

Não! Desta vez terei de fazer uma abordagem diferente. A Saúde


Pública é um conceito muito amplo, para o qual contribuem todos.
O conceito de Saúde Pública está intimamente associado com o
bem-estar, a felicidade, a promoção e a prevenção da saúde; ou
seja tudo aquilo que contribua para estes fins faz parte da Saúde
Pública.

A sociedade no seu todo é responsável pela saúde Pública e o


indivíduo é o alvo e contribuinte da mesma.

Mas a pergunta é “Filosofia ou Praxis?”

Este diapositivo (figura1) pode parecer despropositado. Descreve


notas de valor fiduciário muito elevado, que caracteriza o estado
económico e consequentemente o mal-estar social das
comunidades. Periodicamente os povos sofrem situações de
hiperinflação.

Neste diapositivo encontram-se notas que já circularam em


alguns países da América Latina. A hiperinflação verificada nestes
países está ligada a uma elevada dívida externa.

72
Saúde Pública da Filosofia à Prática

Figura1. Hiperinflação

A culpa é de quem empresta o dinheiro e de quem o pediu, ou


seja dos Governos desses estados.

Em 1973 a crise petrolífera foi o detonador seta situação. O


Mundo Ocidental tornou-se dependente dos fornecimentos do
petróleo dos países árabes.

A OPEP decidiu atingir o Mundo Ocidental culpabilizado do apoio


político a Israel. O preço quadruplicou!

Em poucos anos os países produtores de petróleo enriqueceram


de forma escandalosa. A maioria dessas dezenas de milhares de
milhões de dólares foi depositada nos principais bancos europeus.

73
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Figura 2. Bancos

A Europa vivia um período crítico em termos económicos: a


paragem do desenvolvimento e a inflação.

Os bancos europeus e americanos não sabiam o que fazer com os


elevados depósitos dos produtores de petróleo.

Deste modo optaram por conceder empréstimos aos países do


terceiro mundo.

Empréstimos de elevado risco, porque havia poucas garantias de


reembolso e dos juros. O dinheiro foi emprestado aos governos e
empresas públicas. Ao fim de alguns anos a dívida acumulada
tornou-se monstruosa e começaram a surgir dúvidas a propósito
dos pagamentos.

Apesar de grande parte destes empréstimos nunca terem sido


pagos e até foram perdoados, o que importa referir é que os
países devedores tiveram de pagar os juros em bens.

74
Saúde Pública da Filosofia à Prática

Uma parte desses bens traduziu-se numa forte e tremenda


desflorestação com as inevitáveis consequências ambientais,
nomeadamente a emergência de doença infecciosas
pretensamente acantonadas e que acabaram por terem
repercussões na saúde de muitas comunidades, no ambiente em
geral, além de modificações das culturas tradicionais e importação
de indústrias poluentes, susceptíveis de provocarem
desequilíbrios ecológicos muito graves à escala mundial.

Afinal estamos a analisar um problema de saúde pública, focando


a atenção nos factores a montante que são de natureza política e
económica.

Há em todo este processo uma cadeia de acontecimentos com


vários participantes em que o objectivo final é sempre o mesmo:
o Homem.

A intervenção em termo de Saúde Pública pode e deve fazer-se


em todos os níveis sem excepção. Mas não é fácil, porque mesmo
que se identifique a situação e sejamos capazes de intervir, aquilo
que se pode fazer é minimizar ou estabilizar o fenómeno em
níveis considerados críticos o que exige uma entropia negativa
nada fácil de atingir.

Tudo porque as verdadeiras causas escapam ao controlo dos


profissionais da saúde, e até aos próprios políticos.

A Saúde Pública tem que ser analisada em várias escalas. A


primeira é sobretudo a nível global (planetário), a segunda a nível
loco-regional, a terceira em comunidades devidamente

75
Notas e Técnicas Epidemiológicas

delimitadas e a quarta a nível individual. A tudo isto acresce a


necessidade de um ou vários sistemas organizativos complexos.

No fundo os problemas de Saúde Pública centram-se nos


indivíduos (sua biologia e comportamento) no ambiente e na
organização dos cuidados de saúde.

Os abusos de que tem sido vítima o nosso planeta começa a


preocupar-nos.

Em 3 de Junho de 1992 decorreu no Rio de Janeiro a Cimeira da


Terra. Estiveram presentes 178 países para estudar e analisar a
situação global.

Doze dias de trabalho, cujos resultados não conseguimos detectar


ao fim de sete anos.

Nesta cimeira, o então primeiro-ministro espanhol Filipe Gonzalez


afirmou: “Há 500 anos o homem descobriu o tamanho da Terra.
Nesta reunião iremos descobrir os seus limites”.

Infelizmente não foi esse o resultado.

Desde então muitos foram os atentados contra a Saúde Pública


na sua expressão máxima (geral).

A crise das vacas loucas e o uso indevido de rações por motivos


económicos; alimentos contaminados por dioxinas e outras
substâncias cancerígenas; o uso crescente do álcool, a não
redução do consumo do tabaco; as dúvidas sobre o perigo dos
alimentos transgénicos; a contaminação radioactiva ambiental; os
genocídios políticos; a explosão da mão obra infantil; o uso de
materiais impróprios para a construção; o trabalho esforçado dos

76
Saúde Pública da Filosofia à Prática

emigrantes, etc., são alguns dos inúmeros factores susceptíveis


de provocar graves perturbações da Saúde Pública.

Há aqui princípios filosóficos que devem ser respeitados, sem os


quais não podemos melhorar o estado de saúde das populações.
A Saúde Pública é de facto uma filosofia, na sua mais profunda
acepção, porque está intimamente relacionada com o pensamento
e a forma de estar da espécie humana. A sua má prática ou
ausência é a principal determinante para as grandes situações de
infortúnio e infelicidade que acabará por atingir cada um de nós.

O que fazer então?

Analisar as causas remotas e próximas dos principais problemas.


Diagnosticar as situações e definir as suas causas. Denunciá-las e
tentar corrigi-las através dos vários organismos e instituições, a
começar pela própria opinião pública, passando pelos diferentes
profissionais detentores de conhecimentos e meios para o fazer.

Aqui entram muitas e muitas categorias de profissionais entre os


quais os médicos, graças à sua capacidade de diagnóstico e de
estabelecer nexos de causalidade e até propor soluções.

Vacinar contra certas doenças e descobrir novas vacinas é uma


forma de praticar a Saúde Pública. Não obstante, não invalida a
análise das causas remotas dos problemas.

Controlar adequadamente o meio ambiente nos seus múltiplos


aspectos: qualidade do ar, da água, dos alimentos, da
urbanização, da segurança e dos regimes e qualidade do
trabalho, estão ao alcance dos profissionais de Saúde Pública.

77
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Legislar, fiscalizar são actos cada vez mais importantes, os quais


constituem práticas de Saúde Pública, desde que efectivamente
aplicadas.

Ensinar, informar, formar as populações sobre os perigos


decorrentes de maus comportamentos ou atentados contra o
ambiente constituem igualmente boas práticas.

Não quero enveredar por princípios autocráticos ou coercivos de


que certas condutas são benéficas para a sociedade.

A Saúde Pública não pode ser impregnada de princípios


estritamente coercivos. Há que respeitar a liberdade das pessoas,
desde que não comprometa o bem-estar dos outros.

A Saúde Pública não pode ser sinónimo de fascismo da saúde.


Esta tendência está a desenvolver-se em certos países e em
certas camadas, com o pretexto de salvaguardar o bem-estar
colectivo e individual.

Não podemos esquecer que os regimes totalitários começam


sempre com o objectivo de defender o bem-estar dos povos.

A tendência para transferir o espírito totalitário que presidiu em


certos países, para o campo da saúde é muito fácil e perigoso.

A prática da Saúde Pública tem de respeitar como princípio nº1, a


liberdade humana.

Não esqueçamos que o regime nazi estabeleceu muitas práticas


de Saúde Pública, hoje adaptadas em vários países. É um
paradoxo, como é que foi possível conciliar um regime totalitário

78
Saúde Pública da Filosofia à Prática

com algumas práticas, algumas consideradas pioneiras nestas


áreas.

Não posso deixar de terminar lembrando a obra e as palavras de


um grande médico, que teve a coragem de contestar muitas
medidas na área da saúde, lembrando a tendência para a
harmonização e uniformização do comportamento, para o perigo
da medicina coerciva e para a nocividade de muitos apóstolos
defensores de certos estilos de vida.

Petr Skrabanek, médico de origem checa, tornou-se famoso pelos


seus ataques violentos contra a medicina de massas e os
apóstolos dos estilos de vida. Foi um verdadeiro agitador da
medicina que lutou contra: a normalização colectiva do
comportamento, a tirania da norma, o fascismo da saúde e a
medicina coerciva.

79
Maria Tifóide (Mary Thyphoid)

Introdução

No século passado e até meados do actual a febre tifóide1 era


endémica, sendo responsável por altas taxas de morbilidade e de
mortalidade.

A história de Mary Mallon, conhecida mais tarde pelo apodo de


Mary Typhoid, ilustra a complexidade na transmissão de uma
afecção infecciosa.

Mary Mallon chegou aos E.U.A. em Janeiro de 1868 na companhia


de um anarquista. Irlandesa, dizia poucas palavras em inglês,
mas sabia dizer: "I can cook".

Em 1906, na localidade de Oyster Bay (Long Island) o Dr. George


Soper foi interpelado por um habitante a fim de investigar uma
epidemia de febre tifóide que tinha atingido 6 das 11 pessoas que
viviam na sua casa. Uma menina tinha falecido.

Após uma meticulosa investigação (da qual tinha eliminado um


conjunto de vectores responsáveis pela propagação do bacilo,
nomeadamente a água, o leite e outros vectores tradicionalmente
ligados à pobreza e falta de condições de higiene - Oyster Bay era
uma estância de gente rica) Soper que conhecia a teoria de
Robert Koch, segundo a qual a infecção podia ser propagada por
Notas e Técnicas Epidemiológicas

pessoas que albergassem o bacilo, centrou a sua atenção sobre a


cozinheira. Mary Mallon foi descrita como pessoa de poucas
palavras, sisuda e silenciosa quanto ao seu passado. Boa
cozinheira tinha, segundo o patrão, feito o mais delicioso gelado.

No entanto tinha desaparecido há três semanas, desconhecendo-


se o paradeiro.

Suspeitando da cozinheira, procurou saber o seu trajecto


profissional, tendo verificado que nos locais onde tinha
trabalhado, havia casos de febre tifóide (1900, 1901, 1902...).
Por onde passava deixava a sua assinatura...

Após seis meses de pesquisa, acabou por encontrá-la. Ao


confrontá-la com os acontecimentos, Mary indignou-se, negando
ser a responsável.

Através dos registos, Soper calculou que Mary foi responsável por
vinte e oito situações de febre tifóide. Uma das epidemias ocorreu
em Ithaca (Nova Iorque) com 1300 casos.

Quando foi descoberta, Mary usava um nome falso e trabalhava


numa casa onde tinha surgido casos de febre tifóide. Pediram-lhe
para se submeter a exames para detectar o bacilo, mas as armas
da cozinha fizeram demover a intenção do médico! Na segunda
tentativa um cutelo foi razão suficiente para que não fosse feito
exames à urina e fezes.

1
Em 1884 Georg Gaffky assistente de Robert Koch descobriu Salmonella
typhimurium

82
Maria Tifóide

A polícia deteve-a (com dificuldade), transportando-a ao hospital.


Não havia bacilos na urina, mas nas fezes abundavam como um
enxame de abelhas.

O Departamento de Saúde isolou-a durante três anos num


hospital para doenças infecciosas. Foi-lhe proposta a
colecistectomia, mas recusou com medo de lhe acontecer
qualquer coisa de mal...

Prometeu que nunca mais iria cozinhar, nem tocar nos alimentos
para as outras pessoas e aparecer de três em três meses perante
as autoridades de saúde. Deixaram-na sair e desapareceu.

Cinco anos depois, uma senhora Mary Brown cozinhava numa


Maternidade de Nova Iorque, onde vinte e cinco enfermeiras
adoeceram com febre tifóide, das quais algumas faleceram.
Detectada, foi transportada algemada ao hospital de doenças
infecciosas, onde permaneceu durante vinte e três anos até à sua
morte em 1938, devido a um AVC.

Oficialmente foi-lhe atribuída 51 casos e três óbitos, mas a


realidade deverá ser totalmente diferente já que a epidemia de
Ithaca provocou mais de 1.000 vítimas.

83
Principais etapas da investigação

Introdução

Já tivemos oportunidade de efectuar várias considerações a


propósito da investigação. Basicamente, investigar é um estado
de espírito que tem como objectivo colher informações, as quais
constituem a base de qualquer acção.

Podemos classificar os estudos de investigação em três grandes


grupos: estudos com interesse científico (referem-se a trabalhos
cuja esfera de acção abrange toda a humanidade, por exemplo, a
descoberta de uma vacina), estudos com interesse prático (os
mais frequentes e que dizem respeito a realidades locais e ou de
grupo) e, por fim, os ditos “auto-gratificantes”, que apesar de não
terem consequências práticas imediatas, constituem ponto de
partida de novos saberes, que mais tarde ou mais cedo acabarão
por contribuírem para o esclarecimento de muitos problemas.

Planeamento de uma investigação

Para iniciarmos uma investigação torna-se necessário identificar o


problema. A sua identificação é frequentemente o resultado de
conhecimentos práticos (o nosso dia a dia), de uma curiosidade
intelectual, da “intuição” e de uma análise lógica (com base em
experiências pessoais e de terceiros).
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Fases de uma investigação

A fase mais importante ou pelo menos a mais crítica corresponde


às etapas preliminares. Nesta fase o investigador deverá
equacionar o tópico que deseja abordar e transformá-lo de modo
a tornar-se num objectivo. O objectivo não é mais do que a
operacionalidade do tópico.

Nem sempre é fácil definir os tópicos.

Após a definição do tópico e a sua transformação em objectivo, o


investigador passará para as fases subsequentes: planeamento,
modo de colher os dados, colheita, processamento e
interpretação dos dados e por fim a elaboração de um relatório.

O “segredo” de um bom trabalho de investigação prende-se com


a forma como se estabelece o objectivo do estudo.

Os objectivos têm de ser bem definidos e deverão ser muito


poucos (muitos objectivos podem comprometer a execução do
trabalho).

Um objectivo bem definido corresponde a meio trabalho (analogia


com “uma pergunta bem formulada é meia - resposta”).

Não devemos esquecer que os objectivos do estudo, deverão


responder às seguintes questões: satisfazem os propósitos do
estudo? São claros? Estão expressos em termos mensuráveis?

Tipos de investigação

Basicamente podemos classificar duas grandes áreas: inquéritos e


experiências. A diferença assenta no seguinte: no primeiro caso o
investigador limita-se a analisar os fenómenos que ocorrem, sem

86
Principais etapas da investigação

qualquer capacidade de intervenção nas variáveis em estudo. No


segundo, manipula e controla a(s) variável(eis).

No tocante às experiências, estas podem ser controladas.


Falamos de experiências “cegas” quando os intervenientes
desconhecem a que grupos de intervenção pertencem. A razão de
ser das experiências controladas é evitar o enviesamento
resultante da análise subjectiva efectuada pelos indivíduos. No
entanto, o enviesamento pode ocorrer nos investigadores, os
quais podem ter tendências para valorizar o mais interessante e
desvalorizar o menos interessante. Tais situações podem
acontecer inconscientemente. Assim, quando o investigador e os
sujeitos às experiências desconheçam a que grupos de
intervenção pertençam, falamos de experiências “duplamente
cegas”.

O ideal seria efectuar experiências “cegas” ou “duplamente


cegas”. No entanto muitas vezes tal não pode acontecer por
motivos éticos. Ninguém vai sujeitar seres humanos à acção de
substâncias tóxicas (mesmo quando existem apenas meras
suspeitas), ou a falta de cuidados só para sabermos os efeitos. O
que não quer dizer que não fossem já efectuadas experiências
deste género, as quais violam os direitos dos seres humanos.

Os inúmeros problemas éticos levantados pelas experiências e


também por alguns inquéritos levou à necessidade de instituir
comissões de ética, destinados a avaliar os diferentes projectos
de investigação.

87
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Apesar da impossibilidade de realizar vários tipos de trabalhos, os


investigadores aproveitam certo tipo de circunstâncias para
levarem a cabo os seus estudos. Assim aproveitam as
“experiências naturais”, tais como cataclismos nucleares
(Chernobyll), químicos (Bophal), erupções vulcânicas, fomes,
desastres naturais, etc..

Muitos autores não consideram a revisão bibliográfica como uma


forma de investigação. No entanto parece-nos justo considerá-la
como tal, já que envolve um grande esforço de pesquisa, de
selecção e análise, com resultados muito positivos e importantes,
ao concentrar numa obra os aspectos mais salientes do
conhecimento numa determinada área.

Reprodutibilidade

Em investigação damos grande importância a dois aspectos


inerentes à medição: reprodutibilidade e validade.

A reprodutibilidade refere-se à estabilidade ou consistência da


informação; ou seja, até que ponto a informação é idêntica,
quando as medições são realizadas mais do que uma vez, ou por
mais do que uma pessoa.

Uma reprodutibilidade baixa, torna de imediato o procedimento


em questão pouco ou nada útil. Em contrapartida,
reprodutibilidade elevada não é sinónimo de procedimento
satisfatório.

Vejamos alguns exemplos: se enviarmos amostras séricas com a


mesma concentração de uma determinada substância a um

88
Principais etapas da investigação

conjunto de laboratórios, podemos verificar três factos: a maioria


fornece dados muito próximos uns dos outros, mas afastados
(para a direita ou para a esquerda) do valor verdadeiro. Estamos
perante um caso de reprodutibilidade elevada, no entanto os
valores médios afastam-se do verdadeiro (ver validade). Pode
acontecer que os valores sejam diferentes muito uns dos outros
com amplitudes muito grandes, os quais à partida permitem
diagnosticar fraca reprodutibilidade. A terceira hipótese diz
respeito a resultados muito próximos ou idênticos ao valor
verdadeiro.

Podemos e devemos medir a reprodutibilidade, antes de


efectuarmos a investigação de campo, de modo a salvaguardar a
qualidade do estudo.

A reprodutibilidade pode ser determinada, comparando os


resultados obtidos por dois métodos diferentes ou aplicando duas
vezes o mesmo método de medida..

O estudo da reprodutibilidade diz respeito ao próprio observador


(será que o mesmo investigador mantém a mesma qualidade nas
suas medições) ou a diferentes observadores (até que ponto
divergem ou não as medições efectuadas por diferentes
observadores?).

Para o efeito podemos utilizar o teste KAPPA, o qual permite


quantificar a reprodutibilidade das medições, ao avaliar a
concordância observada em relação à concordância devido ao
acaso.

89
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O quadro I revela os resultados de avaliações de 100 indivíduos


em função da presença ou não de uma determinada substância
efectuadas por dois médicos.

Podemos observar que aparentemente ambos concordaram no


total. Cada um diagnosticou 60 indivíduos sem a substância, 28
ligeiramente e 12 fortemente.

Quadro I. Substância X

“0” “+” “++” Total


Médico A 60 28 12 100
Médico B 60 28 12 100

A análise efectuada no quadro II permite-nos verificar qual a


concordância observada entre os dois médicos. Deste modo,
podemos verificar que num total de 100 amostras, os médicos
concordaram em 50 (40+6+4). Feitos os cálculos podemos
concluir uma concordância na ordem dos 50% ((40+6+4)/100).

Uma concordância desta natureza pode ser alcançada pelo


lançamento de uma moeda ao ar!.

Quadro II. Distribuição dos casos pelos dois médicos. Substância X

Médico Médico A
B “0” “+” “++” Total
“0” 38 18 4 60
“+” 12 10 6 28
“++” 10 0 2 12
Total 60 28 12 100

90
Principais etapas da investigação

Quadro III. Cálculo do coeficiente de KAPPA

Médico Médico
A
B 1 2 3 Total
1 n11 n12 n13 n1.
2 n21 n22 n23 n2.
3 n31 n32 n33 n3.
Total n.1 n.2 n.3 n..

Para calcularmos o coeficiente de Kappa, necessitamos de


calcular a concordância observada (po):

po = (n11+n22+n33)/n..)

e a concordância esperada (pe):

pe = (n1.n.1+n2.n.2+n3.n.3)/n..2)

Coeficiente KAPPA = (po-pe)/(1-pe)

O coeficiente KAPPA oscila entre -1,0 a +1,0 (acordo total).

Quadro IV. Comparação entre dois métodos, A e B.

A
B Positivo Negativo Total
Positivo 150 100 250
Negativo 50 700 750
Total 200 800 1000

91
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A análise do quadro IV permite-nos concluir que a concordância


observada (po) entre os dois métodos é 0,85 ((150+700)/1000).

Em seguida vamos calcular a concordância esperada (pe).

Multiplicando n1. (250) por n.1 (200) e dividindo por n.. (1000)
obtemos n11.

n11 = n1.*n.1/n..
n11 = 250*200/1000
n11 = 50

Seguindo um raciocínio idêntico podemos calcular n22.

n22 = n2.*n.2/n..
n22 = 750*800/1000
n11 = 600

Quadro V. Comparação entre dois métodos, A e B.

A
B Positivo Negativo Total
Positivo 50 250
Negativo 600 750
Total 200 800 1000

Aplicando o mesmo raciocínio podemos calcular n21 e n12, ou


então subtraindo aos totais das linhas os dados n11 e n22.

92
Principais etapas da investigação

Quadro VI. Comparação entre dois métodos, A e B.

A
B Positivo Negativo Total
Positivo 50 200 250
Negativo 150 600 750
Total 200 800 1000

A partir deste momento podemos calcular a concordância


esperada (pe).

Concordância esperada (pe) = ((50+600)/1000) = 0,65

Coeficiente KAPPA = (po-pe)/(1-pe)

Coeficiente KAPPA = (0,85-0,65)/(1-0,65) = 0.571

Não podemos considerar um resultado muito satisfatório (força de


concordância moderada).

Quando o valor de KAPPA oscila entre 0 a 0,2 a força de


concordância é ligeira, entre 0,21 a 0,40 consideramos como
mediana; entre 0,41 a 0,60 como moderada; substancial se
oscilar entre 0,61 a 0,80 e quase perfeita entre 0,81 a 1,00.

São numerosas as fontes de variação da reprodutibilidade. Pode


acontecer que o que estamos a analisar possa sofrer alterações
das suas características motivadas por diferentes factores
(temperatura, tempo, luminosidade, etc.).

93
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Os instrumentos analíticos são frequentemente fonte de erros


devido à sua não calibração (perda de precisão) ou haver
diferenças entre os aparelhos idênticos (perda de congruência).
Por último um terceiro factor muito importante diz respeito às
pessoas que efectuam as medições.

A perda de objectividade, resulta de uma constelação de factores


que afectam os seres humanos e que podem comprometer os
resultados.

Validade

A validade de uma medição reporta-se ao ponto em que a


característica que o investigador deseja conhecer corresponde à
realidade.

Nem sempre é fácil em investigação conhecer a realidade dos


fenómenos. Muitas vezes utilizamos meios mais práticos mas com
sacrifício da perda de alguma validade. Para sabermos se uma
determinada técnica mede de facto o fenómeno em causa,
obriga-nos a testá-la em função de critérios de maior validade
(“gold standard”, padrão de ouro), o qual nem sempre é possível
utilizar.

Para ilustrarmos este último ponto, socorremo-nos dos inquéritos


alimentares. Estes, têm como objectivo conhecer e quantificar os
hábitos das pessoas. O ideal, seria obter amostras iguais de tudo
aquilo que um indivíduo ingere diariamente e estudar num
laboratório todas as substâncias. Como é facilmente
compreensível, tal prática é impensável no decurso de um grande
estudo. Por esta razão, utilizamos os inquéritos alimentares, os

94
Principais etapas da investigação

quais devem ser testados quanto à sua validade em função do


critério anteriormente definido. Se a correlação for aceitável,
podemos utilizá-lo.

No decurso dos seus estudos o investigador deverá ter em linha


de conta a necessidade de utilizar perguntas e técnicas
caracterizadas por uma validade lógica intrínseca.

As perguntas de um questionário deverão ter validade lógica, ou


seja, deve assegurar-se se comportam ou não informação de real
valor para a investigação em causa.

Este aspecto é muito importante, já que a inclusão de perguntas


sem validade num questionário, não irá fornecer qualquer tipo de
informação. O investigador deverá tomar em linha de conta esta
situação, no planeamento das suas actividades.

Questionários que incluam perguntas do género: “tem


frequentemente dores de cabeça?”, são um exemplo de validade
lógica decepcionante.

Se por um lado é possível aferir a qualidade das nossas técnicas


em função de critérios de maior validade lógica, por outro somos
obrigados a socorrermo-nos, dos consensos, na ausência de um
critério “gold standard”.

A validade consensual é utilizada quando há acordo da validade


da medição entre vários peritos (caso da bronquite crónica, febre
reumática, classe social, etc.).

A validade consensual varia frequentemente com o tempo, devido


à aquisição de novos elementos que obrigam à reformulação dos
critérios. A título de exemplo apontamos a definição de

95
Notas e Técnicas Epidemiológicas

prematuridade que, durante muitos anos, foi efectuada em


função do peso e que, desde há alguns anos, foi estabelecida em
função de critérios neurológicos.

Apesar da validade lógica ser condição sine qua non, mesmo


assim, e sempre que possível, deverá ser analisada pelos critérios
de validade.

Os critérios de validade baseiam-se numa correlação entre duas


medições, ou variáveis em que uma delas é utilizada como
critério de maior validade.

Se quisermos saber a validade das causas de morte através das


certidões de óbito, devemos efectuar uma análise comparativa
com os resultados das autópsias, que assim funcionam como
critério de maior validade.

Por vezes utilizamos como critério um fenómeno ou característica


futura, o/a qual acreditamos estar associado/a à variável em
estudo (validade preditiva). Como exemplo, apontamos o valor
preditivo das alterações electrocardiográficas.

Quando não há possibilidade de testar a validade, o investigador


terá de julgar os seus resultados através de um pré-teste.

A reprodutibilidade e a validade de uma medição estão


interrelacionadas. Assim, se uma medição não for reprodutível, a
validade fica reduzida.

Podemos considerar várias hipóteses de associação entre a


reprodutibilidade e a validade:

• reprodutibilidade e validade elevadas

96
Principais etapas da investigação

• reprodutibilidade elevada e validade baixas

• reprodutibilidade e validade baixas

Assim, quando um investigador desejar conhecer quais as


características dos métodos a aplicar, deverá previamente
efectuar estudos no sentido de verificar se os métodos em causa
são ou não reprodutíveis e se respeitam a validade.

97
Relatório final

Introdução

Como é facilmente compreensível, houve desde sempre um


natural interesse em divulgar os conhecimentos. No entanto, foi
só há cerca de 300 anos que se iniciou o período da
comunicação científica moderna, momento coincidente com a
revolução científica.

As primeiras revistas eram caracterizadas por um carácter


descritivo.

Foi só no século passado, graças aos trabalhos de cientistas


como Pasteur, que através dos seus estudos, concluíram a
necessidade de garantir a reprodutibilidade das experiências,
dogma fundamental da ciência.

Sistema IMRD

O sistema IMRD (Introdução, Material e Métodos, Resultados e


Discussão e Conclusões) tem apenas 100 anos e constitui a
forma mais simples e lógica de comunicar os resultados.

Numa redacção científica temos que respeitar várias regras. Há


no entanto duas que são consideradas vitais: clareza na
exposição e utilização de linguagem apropriada. Devemos evitar
estilos “rebuscados”, cultivados por muitos e optar pela
Notas e Técnicas Epidemiológicas

utilização de frases simples e curtas, respeitando as regras


gramaticais e de sintaxe.

Mas a qual a lógica subjacente à escolha deste método de


transmitir os conhecimentos?

Fundamentalmente constituem a respostas a quatro perguntas.

A introdução corresponde à seguinte pergunta: qual o problema


a estudar?. O capítulo do material e métodos explica “como” se
estuda o problema; nos resultados procede-se à sua descrição,
finalizando pela sua discussão no capítulo final.

Um artigo científico é segundo o Council of Biology Editors: “um


relatório escrito que descreve os resultados originais de uma
investigação e deverá conter informações suficientes de modo a
permitir que se possa avaliar as observações e repeti-las,
avaliar os processos intelectuais e ser publicada numa revista
facilmente acessível”.

Em contrapartida, os artigos de revisão têm por objectivo:


resumir, analisar e avaliar informações já publicadas,
permitindo fazer periodicamente novas sínteses e produzir
novas ideias e teorias.

Título

Na elaboração de um artigo, devemos ter preocupação em


conseguir um título adequado ao trabalho em curso. Não
podemos esquecer que o título é lido por muitas pessoas e texto
por poucas. Neste caso todo o cuidado é pouco. Devemos evitar
títulos muito extensos ou muito curtos, mas que traduzam o

100
Relatório Final

conteúdo do trabalho. Os títulos devem ser específicos, e não


conterem abreviaturas nem serem utilizados sob a forma
interrogativa ou títulos em série.

Nome dos autores

A ordenação dos autores dos trabalhos merece algumas


considerações: assim antes de iniciar a investigação, deverá ser
combinado entre os diferentes participantes qual a ordenação e
as bases subjacentes à mesma, a fim de evitar eventuais
conflitos que possam romper longas e “sólidas” amizades,
aquando da publicação final. Deve-se evitar citar muitos autores
(de ano para ano vem aumentando o número médio de autores
por artigo), para que não haja mais investigadores do que
investigados...

Quanto aos nomes deve-se citar o nome próprio e apelido. Nas


revistas científicas, habitualmente não se indicam quais os
cargos ou os títulos. Nas revistas médicas existe a tradição de
em rodapé citar os títulos e os cargos que ocupam ( deverá
haver cuidado com o número e extensão dos mesmos!...).

Resumo

O Resumo é um capítulo muito importante de qualquer trabalho


científico e deve oferecer um sumário muito breve de cada uma
das secções. Deverá ser bem preparado, sem quadros e figuras
e sem bibliografia, contendo um máximo de 250 palavras.
Deverá ser escrito no pretérito. Não deverá conter nenhuma
informação ou conclusão que não conste no artigo.

101
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O Resumo deverá ser descritivo, informativo, parco em palavras


e escrito só num parágrafo.

Introdução

A elaboração da Introdução deve respeitar certas regras.


Devemos começar a escrevê-la simultaneamente ao decurso da
investigação. Deve fornecer antecedentes suficientes para a
compreensão do estudo; deve explicitar qual o propósito do
mesmo e conter as referências mais importantes sobre a
matéria.

Nesta secção além de uma exposição clara e cuidada sobre a


natureza e o objectivo do problema sob investigação, devemos
rever as publicações mais importantes sobre a matéria,
mencionar os principais resultados da investigação e até
expressar a conclusão principal sugerida pelo próprio trabalho.
“Em ciência não devem ser utilizados finais com surpresas”.

Material e Métodos

No tocante ao capítulo Material e Métodos, procedemos à


descrição de toda a classe de detalhes, descrevendo e
explicando o desenho experimental e fornecer todos os
elementos que permitam a qualquer investigador repetir as
experiências.

Quanto aos materiais utilizados devem ser fornecidos todos os


detalhes técnicos e quantidades exactas, assim como as
propriedades químicas e físicas. Se estivermos a estudar seres
humanos, deverão ser explicitados quais os critérios de selecção

102
Relatório Final

e a declaração de que os interessados deram o seu


consentimento (muitas revistas exigem esta documentação).

O capítulo Material e Métodos, tal como já afirmámos, é a pedra


angular de qualquer estudo, pelo que todos os aspectos devem
ser exaustivamente descritos. Quanto à análise estatística, esta
pode ser apenas citada, se tratar de análises vulgares. No
entanto em caso de métodos avançados ou pouco utilizados
deverá ser citada bibliografia adequada.

Resultados

A secção dos Resultados envolve dois importantes


componentes: a ampla descrição das experiências (sem a
necessidade de repetir os detalhes da secção Material e
Métodos) e a apresentação dos dados. Tal como na secção
anterior a redacção deverá ser feita no pretérito. No caso de
haver poucos resultados, limitamo-nos à sua descrição no texto.
Em caso de muitos resultados, poderão ser apresentados em
quadros ou figuras (devemos ter o cuidado de não
sobrecarregar excessivamente um quadro, é preferível utilizar
vários). Esta secção é habitualmente um pouco árida, já que
uma das regras básicas é evitar repetições de conceitos ou
técnicas pertencentes às outras secções.

Discussão e Conclusões

À última secção, Discussão e Conclusões, compete apresentar


os princípios e relações dos resultados. A formulação das
conclusões deverá ser feita da forma mais clara possível. O

103
Notas e Técnicas Epidemiológicas

autor ou autores deverão ser “afoitos” nesta secção. A timidez,


característica de muitos autores, impossibilita o
desenvolvimento das conclusões e a produção de novas ideias e
paradigmas. É aqui que o autor mostrará as consequências
práticas e teóricas do seu trabalho, abrindo novas perspectivas
para futuros estudos, de acordo com a sua capacidade
“especulativa”. Os tempos verbais podem oscilar entre o
presente e o passado e até mesmo o futuro.

Apesar do que acabamos de afirmar no anterior parágrafo, o


autor deverá mostrar as relações existentes entre os factos
observados, o que constitui a principal finalidade da discussão.

A parte final desta secção, deverá culminar com um breve


resumo das conclusões sobre o significado do trabalho.

Referências

Um trabalho científico tem que apresentar referências cuidadas


e seleccionadas. Não há necessidade de apresentar referências
exaustivas, mas sim as mais significativas e importantes
(sobrecarregar um trabalho com muitas referências, não é
sinónimo de erudição!).

Existem muitos estilos de referências. As mais utilizadas são os


sistemas: nome - ano, numérico - alfabético e ordem de
menção.

O sistema nome - ano, foi utilizado durante muitos anos. Tem


uma grande vantagem para o autor: a comodidade (as
referência não estão numeradas e consequentemente pode-se

104
Relatório Final

adicionar ou retirar). Para o leitor tem o inconveniente de


sobrecarregar e dificultar a leitura, quando existem muitas.

Os outros dois sistemas são frequentemente utilizados.

As referências devem ser citadas no texto e não no fim de cada


frase.

105
Ética da Investigação - Código de Nuremberga

Experiência de Tuskagee

Em 16 de Maio de 1997 o Presidente Clinton pediu desculpas a


oito negros norte-americanos, últimas vítimas de uma experiência
eticamente condenável e que constitui um paradigma para
explicar a estudantes o conceito de ética de investigação
científica.

Em 1932 iniciou-se uma experiência para conhecer a história


natural da sífilis e as suas complicações. Não obstante a
descoberta de medicamentos para o tratamento desta situação a
experiência continuou, violando os direitos dos cidadãos da cidade
do Alabama.

O Serviço de Saúde Pública dos E.U.A. iniciaram um estudo com


600 negros, dos quais 399 sofriam de sífilis. Os restantes não
padeciam da doença.

A experiência teve lugar em Tuskagee. Não foi dado


conhecimento às pessoas envolvidas sobre o motivo da
experiência, nem tão pouco lhes foi comunicado que sofriam de
sífilis.

O objectivo era conhecer qual a evolução da doença sem


terapêutica.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

As contrapartidas eram anedotas. Acompanhamento médico e


pagamento das despesas do funeral...!!!

A experiência continuou mesmo após a descoberta de fármacos


activos, o que constitui o ponto de partida para um escândalo
denunciado inicialmente por James Jones, que acabou por
publicar um livro sobre o assunto1.

Jean Heller publicou uma reportagem no New York Times de


26/7/72 denunciando a situação, facto que determinou o fim do
estudo.2

A experiência durou 40 anos. Durante este período morreram


mais de 100 negros com sífilis.

Muitos estudos foram publicados com a indicação expressa que o


objectivo do estudo era o não tratamento dos mesmos!!! Os
epidemiologistas deveriam andar distraídos...

Código de Nuremberga

As experiências com seres humanos datam de há muitos séculos.


Naturalmente as que começaram a ser executadas com base
científica são recentes e têm a ver com o nascimento ou aplicação
do método científico à medicina, pelo que foi no século passado
que tiveram início as experiências. A necessidade de as praticar é
um facto, que leva a um conhecimento mais profundo e prático
dos fenómenos, não obstante a distância que as separa do

1
Jones JH. Bad blood: the Tuskegee syphilis experiment. New York: Free,
1993:1-11.

2
Vieira S, Hossne WS. Experimentação com seres humanos. São Paulo:
Moderna, 1987:47.

108
Ética da Investigação

respeito e obediência de normas que protejam e defendam a vida


e a integridade humana.3

A inexistência de códigos ou regras, aliadas a certo voluntarismo


permitiram a realização de muitas experiências hoje impensáveis
em realizá-las. Também é certo que muitas vidas foram salvas,
em consequência dessa praxis.

Os tempos mudam, a necessidade de elaborar normas e regras


aumentam tornando-se complexas.

Não obstante a notável evolução verificada, não podemos deixar


de denunciar e informar a realização de práticas que constituem
ataques à vida e à dignidade humana, mesmo nos tempos
actuais.

O período nazi foi fértil em exemplos de experiências


perfeitamente condenáveis a todos os títulos. Naturalmente que
não foi só na Alemanha fascista que houve experiências
condenáveis. Mesmo em países defensores da liberdade e
considerados democráticos não evitaram comportamentos
perfeitamente condenáveis.

Pelo impacto e mediatismo decorrente do famoso julgamento de


Nuremberga, é importante descrever ainda que sumariamente
algumas situações que envergonham a classe médica e que
nunca mais se deveriam repetir.

3
Ler: Jonathan D. Moreno: Riscos Imorais - experiências secretas
governamentais em seres humanos - Livros do Brasil. Colecção Vida e Cultura.
Lisboa, 2000.

109
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O julgamento dos médicos de Nuremberga, constituiu um dos


treze julgamentos efectuados, o primeiro dos quais incidiu sobre
as principais figuras políticas e militares do Terceiro Reich.

Vinte e três médicos alemães Nazis foram julgados e condenados


por terem participado, conduzido ou foram cúmplices de
experiências que provocaram a morte de milhares de seres
humanos.

Obviamente que o número de médicos envolvidos era muito


superior. Os réus representavam centenas e centenas de muitos
outros envolvidos nas mais execráveis experiências. Foram
aspectos de natureza "prática" que condicionou e limitou o
número de réus.

Foram alvo de quatro tipos de acusações: crimes de guerra,


crimes contra a humanidade, conspiração e organizações
criminosas.

Os crimes contra a humanidade foram cometidos na procura do


conhecimento científico ou por puro sadismo.

Naturalmente seria fastidioso enumerar todo o tipo de


experiências realizadas. Técnicas de esterilização, enxertos
ósseos, emprego de novos fármacos, infecções provocadas,
experiências de hipotermia e hiperbáricas...

Na pronúncia dos crimes destacaram-se as experiências e


descobertas que beneficiassem os pilotos alemães: experiências
de salvamento a grande altitude, experiências com temperaturas
baixas contínuas e experiências para tornar potável a água

110
Ética da Investigação

salgada. Havia um conluio nítido entre os interesses militares e as


práticas médicas.

Himmler era um dos dirigentes mais enérgicos na concretização


das possíveis contribuições da medicina para o esforço de guerra
Nazi. Um jovem médico das suas relações pessoais Sigmund
Rascher, particularmente cruel, retalhava as suas vítimas ainda
vivas para estudar os seus pulmões, após estarem expostas a
situações de descompressão no Instituto de Aviação da Luftwaffe.
Muitas dezenas de pessoas foram mortas desta forma. A sua
intervenção estendeu-se igualmente ao estudo de congelação e
às técnicas de reaquecimento. Chegou a testar a hipótese do
"calor animal" (aquecimento das vítimas rodeadas de prisioneiras
nuas!)

A sua crueldade chegou a tal ponto que o próprio Himmler


mandou fuzilá-lo por ter raptado bebés, não obstante ser o seu
benfeitor.

Em 26 e 27 de Outubro de 1942 realizou-se em Nuremberga uma


conferência subordinada a "Problemas Médicos Resultantes de
Perdas no Mar e Provações no Inverno". Assistiram cerca de cem
médicos e cientistas. Um dos mais activos participantes foi
Hubertus Strughold amigo e colega de um dos réus do
julgamento, Siegfried Ruff do Departamento de Medicina da
Aviação no Instituto Experimental Alemão de Aviação em Berlim,
o qual curiosamente foi absolvido. Strughold acabou por ser
acolhido pelo exército norte-americano, acabando por
desempenhar um papel primordial no projecto espacial.

111
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Sem Strughold, o primeiro homem a chegar à Lua, teria sido


muito provavelmente um soviético. Óptimo investimento dos
americanos.

Muitos cientistas alemães recrutados pelos EUA, incluindo


médicos, caracterizavam-se por suspeitas bastantes graves. Em
1997, cinquenta anos após a partida de Strughold da Alemanha a
justiça americana afirmou que em meados de 1980 se tinha
iniciado a abertura do processo, preparando-se para perseguir
aquele cientista como criminoso de guerra. A morte em 1986
livrou o cientista e a América de uma situação bastante
incómoda.

O julgamento teve o condão de incriminar e condenar muitos dos


réus. O processo levou naturalmente à definição de um conjunto
de regras e normas, as quais constituíram a base de um código,
posteriormente utilizado para regular as experiências médicas.
Não obstante, o direito à defesa dos arguidos e à troca de
argumentos, utilizando inclusivamente algumas práticas de
investigação norte-americanas, também alvo de suspeitas de
violação dos direitos humanos, o julgamento de Nuremberga e o
código resultante é uma marca da modernidade da experiência
médica.

Os médicos não foram julgados como meros assassinos, mas sim


como delitos especialmente odiosos praticados num contexto
médico, o qual histórica e humanistamente deveriam respeitar a
vida e a dignidade humana desde Hipócrates.

112
Ética da Investigação

Um dos condenados foi Karl Brandt, Comissário do Reich para a


Saúde e a Sanidade e médico pessoal de Hitler e general de
divisão da Schutzstafell (SS). Responsável pelo programa da
eutanásia dos deficientes.

Karl Gebhardt, médico pessoal de Himmler, presidente da Cruz


Vermelha Alemã, médico das SS, professor efectivo da Faculdade
de Medicina de Berlim. São tristemente célebres as suas
experiências com prisioneiros dos campos de concentração para
testar as novas sulfamidas. Provocava deliberadamente lesões ou
infecções idênticas às que ocorriam nos campos de batalha.

Siegmund Ruff, autoridade nacional na investigação de "factores


humanos" em acidentes de aviação, efectuou várias experiências
em campos de concentração sobre a baixa pressão atmosférica.
Absolvido, continuou uma carreira na Alemanha do pós-guerra.
Nuremberga foi apenas uma breve interrupção na carreira deste
médico. Tornou-se director de um novo instituto de medicina
aeronáutica.

O julgamento decorreu de 9 de Dezembro de 1946 a 20 de


Agosto de 1947.4

4
As sentenças foram as seguintes:

113
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O código de Nuremberga cuja transcrição em inglês passamos a


seguir foi inspirado pelo choque causado pelas monstruosas
crueldades de um estado perverso. Objecto de várias
considerações e apreciações no pós-guerra, não queremos deixar
de expressar a impressão de um psiquiatra de Yale, Jay Katz, nos
seus tempos de faculdade: "Era um bom código para bárbaros,
mas um código desnecessário para médicos normais."

The Nuremberg Code (1947)5

Permissible Medical Experiments

The great weight of the evidence before us to effect that certain


types of medical experiments on human beings, when kept within
reasonably well-defined bounds, conform to the ethics of the

Fritz Fischer, condenado a prisão perpétua. Gerhard Rose, condenado a prisão


perpétua. Helmut Poppendick, condenado a dez anos de prisão. Hermann
Becker-Freyseng, condenado a vinte anos de prisão. Herta Oberheuser,
condenada a vinte anos de prisão. Joachim Mrugowsky, condenado à morte por
enforcamento. Karl Brandt, condenado à morte por enforcamento. Karl
Gebhardt, condenado à morte por enforcamento. Karl Genzken, condenado a
prisão perpétua. Oskar Schroeder, condenado a prisão perpétua. Rudolf Brandt,
condenado à morte por enforcamento. Siegfried Handloser, condenado a prisão
perpétua. Viktor Brack, condenado à morte por enforcamento. Waldemar
Hoven, condenado à morte por enforcamento. Wilhelm Beiglboeck, condenado a
quinze anos de prisão. Wolfram Sievers, condenado à morte por enforcamento.
Paul Rostock, Kurt Blome, Siegfried Ruff, Hans Wolfgang Romberg, Georg
August Weltz, Konrad Schaefer, e Adolf Pokorny, absolvidos. Os condenados à
morte foram executados na prisão de Landsberg na Bavaria a 2 de Junho de
1948. Durante o processo de recurso as penas de Handloser e Genzken foram
comutadas para 20 anos: as de Schroeder, Rose e Fischer para 15 anos; as de
Becker-Freyseng, Beiglboeck e Oberheuser para 10 anos e a de Poppendick ao
tempo já decorrido.
5
(British Medical Journal No 7070 Volume 313, 7 December 1996 )

114
Ética da Investigação

medical profession generally. The protagonists of the practice of


human experimentation justify their views on the basis that such
experiments yield results for the good of society that are
unprocurable by other methods or means of study. All agree,
however, that certain basic principles must be observed in order
to satisfy moral, ethical and legal concepts:

1.The voluntary consent of the human subject is absolutely


essential. This means that the person involved should have legal
capacity to give consent; should be so situated as to be able to
exercise free power of choice, without the intervention of any
element of force, fraud, deceit, duress, overreaching, or other
ulterior form of constraint or coercion; and should have sufficient
knowledge and comprehension of the elements of the subject
matter involved as to enable him to make an understanding and
enlightened decision. This latter element requires that before the
acceptance of an affirmative decision by the experimental subject
there should be made known to him the nature, duration, and
purpose of the experiment; the method and means by which it is
to be conducted; all inconveniences and hazards reasonably to be
expected; and the effects upon his health or person which may
possibly come from his participation in the experiment.

The duty and responsibility for ascertaining the quality of the


consent rests upon each individual who initiates, directs, or
engages in the experiment. It is a personal duty and
responsibility, which may not be delegated to another with
impunity.

115
Notas e Técnicas Epidemiológicas

2.The experiment should be such as to yield fruitful results for the


good of society, unprocurable by other methods or means of
study, and not random and unnecessary in nature.

3.The experiment should be so designed and based on the results


of animal experimentation and a knowledge of the natural history
of the disease or other problem under study that the anticipated
results justify the performance of the experiment.

4.The experiment should be so conducted as to avoid all


unnecessary physical and mental suffering and injury.

5.No experiment should be conducted where there is a priori


reason to believe that death or disabling injury will occur;
excepts, perhaps, in those experiments where the experimental
physicians also serve as subjects.

6.The degree of risk to be taken should never exceed that


determined by the humanitarian importance of the problem to be
solved by the experiment.

7.Proper preparations should be made and adequate facilities


provided to protect the experimental subject against even remote
possibilities of injury, disability or death.

8.The experiment should be conducted only by scientifically


qualified persons. The highest degree of skill and care should be
required through all stages of the experiment of those who
conduct or engage in the experiment.

9.During the course of the experiment the human subject should


be at liberty to bring the experiment to an end if he has reached

116
Ética da Investigação

the physical or mental state where continuation of the experiment


seems to him to be impossible.

10.During the course of the experiment the scientist in charge


must be prepared to terminate the experiment at any stage, if he
has probable cause to believe, in the exercise of the good faith,
superior skill and careful judgement required of him, that a
continuation of the experiment is likely to result in injury,
disability, or death to the experimental subject.

The Nuremberg Code (1947) In: Mitscherlich A, Mielke F. Doctors


of infamy: the story of the Nazi medical crimes. New York:
Schuman,1949: xxiii-xxv.

117
Má Conduta Científica

Introdução

Todos os cientistas têm a noção de fraude científica e do seu


impacto. Fraude científica pode revestir-se de diferentes formas:
manipulação e falsificação dos dados a plágios. Neste último caso
é difícil detectar as situações em determinados casos ditos
"bordline". Plágios grosseiros, falta de citação do original,
descrição dos "bons" resultados, omitindo deliberadamente os
"maus", constituem situações de má conduta científica.

As penalizações das situações diferem de acordo com a gravidade


e na literatura científica não são raros os casos...

Nem sempre é fácil provar ou demonstrar a má conduta científica.


Até porque há situações consideradas como potencialmente
dúbias, se forem consideradas repreensíveis ou eticamente
condenáveis, se um número suficiente de cientistas decidir nesse
sentido...

Muitas situações são consideradas fraudulentas, mas muito


poucas são definidas como fraude científica.

É importante que os alunos e os cientistas se debrucem sobre


esta temática, conheçam e desenvolvam as técnicas e os meios
destinados a avaliar e a detectar estas situações que além de não
prestigiarem a ciência, podem originar comportamentos ou
Notas e Técnicas Epidemiológicas

atitudes susceptíveis de comprometerem a saúde das


comunidades e a estabilidade da sociedade.

Historicamente a fraude e a má conduta científica não são novas.


Estão descritas desde a antiguidade e em todas as ciências.
Podemos estimar que estamos perante uma "constante".
Provavelmente a percentagem de "cientistas" não tem sofrido
grandes variações. Só que hoje o número de cientistas é muito
superior, pelo que é de prever que o número absoluto das
diferentes situações deverá atingir proporções epidémicas. Se as
situações mais vergonhosas são naturalmente descobertas, as
más condutas, com "efeitos" menos evidentes, são
frequentemente não detectadas. Nem por isso são menos
perigosas, porque originam e criam ideias falsas que acabam por
se generalizar, criando novos paradigmas, estereótipos e
influenciando o comportamento de milhares de indivíduos numa
verdadeira reacção em cadeia ou num PCR tipo social.

Analisar as razões que levam à má conduta é interessante, já que


envolve razões pessoais, interesses económicos, corrupção,
pressões de autoridades, desejo de promoção e reconhecimento
social e académico entre muitos outros.

De seguida vamos ilustrar alguns casos de fraude científica.


Esperamos através da sua análise uma melhor compreensão
deste fenómeno, contribuindo para a sua redução e detecção.

120
Má conduta cientifica

William McBride1

...William McBride is one of Australia's best known scientists,


widely noted for his discovery of the link between thalidomide and
deformed babies. In 1987, Norman Swan of the Australian
Broadcasting Commission published allegations that McBride had
falsified data in a paper published in the Australian Journal of
Biological Sciences, namely changing figures for doses of
scopolamine administered to pregnant rabbits and manufacturing
data for two non-existent rabbits. This had occurred in the early
1980s. Two junior researchers under McBride, Phillip Vardy and
Jill French, had tried to raise the problems with directors of
Foundation 41 where the research was done, but got nowhere
and resigned. Seven other junior researchers wrote to Foundation
41's Research Advisory Committee about the allegations; they
were retrenched. The Australian Journal of Biological Sciences did
not publish a letter sent by Vardy and French. The case would
never have received public attention but due to the persistence of
journalist Norman Swan. Another persistent journalist, Bill Nichol,
had written a book about McBride, including this case and other
information, but for years was unable to obtain publication due to
the risk of defamation. Nichol’s book only appeared after Swan's
stories and with Swan's help.

After the public revelations about McBride, Foundation 41 set up


an inquiry which found that McBride had engaged in scientific

1
Scientific Fraud and the Power Structure of Science. Brian Martin. Published in
Prometheus, Vol. 10, No. 1, June 1992, pp. 83-98. )

121
Notas e Técnicas Epidemiológicas

fraud. Yet, some time after the inquiry reported, McBride returned
to the Board of the Foundation.

Michael Harvey Briggs2

Michael Harvey Briggs built his scientific reputation on research


into the effectiveness of contraceptives. He worked in universities
in Zambia, the United States and New Zealand, and spent four
years in England working for the West German pharmaceutical
company Schering Chemicals. In 1976 he joined Deakin
University as foundation professor of human biology and dean of
science. As a professor and dean, he was one of the university
elite. In addition, he attracted sizeable research funding to the
university from the pharmaceutical industry, was a consultant to
the World Health Organisation and attended numerous overseas
scientific conferences each year. Briggs had many supporters at
Deakin among both junior scientists and the university elite.

Others were suspicious of him and his work from an early stage,
including Deakin professor Mark Wahlqvist, a colleague of Briggs.
Prominent Melbourne researchers Bryan Hudson and Henry
Burger raised their doubts with Deakin's Vice-Chancellor Professor
Fred Jevons in 1983. Jevons put questions from the anonymous
scientists to Briggs and conveyed Briggs' responses to them; they
decided at that stage not to proceed further.

2
Scientific Fraud and the Power Structure of Science. Brian Martin. Published in
Prometheus, Vol. 10, No. 1, June 1992, pp. 83-98. )

122
Má conduta cientifica

Dr Jim Rossiter also had doubts about Briggs and he persisted in


raising them. Rossiter, a paediatrician and member of Deakin
University Council (representing the community), was also
chairperson of the university's Ethics Committee. Rossiter wrote a
letter to Briggs querying his method of recruiting women subjects
for contraceptive research and questioning his analysis of
specimens. Rossiter was not satisfied with Briggs' reply and, in
1984, filed a formal complaint with Jevons.

When Jevons set up a preliminary committee to decide whether


formal charges should be laid, Briggs opposed this and succeeded
in obtaining the intervention of the University 'Visitor' to halt the
preliminary inquiry. In this Briggs had the support of many
Deakin staff, the Federation of Australian University Staff
Associations and the Chancellor of the University. After Rossiter,
joined by Hudson and Burger, made new allegations, a new
inquiry was set up. This inquiry was promptly terminated when
Briggs resigned.

William Sumerlin3

Dr. Summerlin, a dermatologist who had been conducting


research on skin grafts since the late 1960s, moved to the Sloan-
Kettering Cancer Institute in 1973. A protégé of Dr. Robert Good,
…Director of the Institute, Summerlin’s research was highly
publicized as a breakthrough in immunology with important
implications for cancer research. … In spite of a number of other
laboratories’ attempts to replicate Summerlin’s positive results,

123
Notas e Técnicas Epidemiológicas

confirmation was not forthcoming. In addition, one of


Summerlin’s own postdoctoral fellows was about to publish an
article reporting the inability to verify his supervisor’s well-
publicized claims. Summerlin was asked to present evidence of
his research to Dr. Good, and after selecting specimens showing
grey skin on a white mouse. Summerlin intentionally darkened
the transplanted skin [with a felt-tip pen] to make it appear as a
black patch on a white strain. He offered this forged example of
his work to Dr. Good, who accepted the results as prima facie
evidence of Summerlin’s claims. Several hours afterward,
however, a laboratory technician noted that the mouse had been
artificially darkened and that the ink was removable with alcohol.
The technician reported this finding to Summerlin’s fellow, who
took the information to Dr. Good. Summerlin was immediately
suspended.

John Long4

...John Long, a scientist at the Massachusetts General Hospital,


who in the late 1970’s was working with Hodgkin’s disease. He
had joined the hospital in 1970 as a resident, and had quickly
developed a luminous research career, complete with two large
grants from the National Institutes of Health. The grants, and the
prestige, were based on his establishment of several Hodgkin’s
disease tumour cell lines. His problems began when he and a
research assistant, Stephen Quay, submitted a paper for

3
Fake Data in Science: Implications for Detection and Prevention by Tina G.
Noonan, April 20, 1999 - http://www.hoosiers.iupui.edu/h546/tina.html
4
Ver 3

124
Má conduta cientifica

publication which was subsequently rejected because some of the


measurements were smaller than expected given the theory with
which Long was working.

During his assistant’s vacation, Long supposedly repeated the


experiment and obtained an answer which more closely matched
his theory. He resubmitted the article, and it was accepted for
publication. When Quay returned from vacation, however, he was
immediately suspicious because the experiment should have
taken longer to complete. Quay requested the raw data from
Long several times, but was told it had been lost. A few months
later, Long "found" the data, and gave it to Quay. It appeared to
completely vindicate Long. However, on closer inspection, Quay
noticed that some of the data entries showed evidence of having
been changed, and he took the lab notebook to Long’s superior.
Long, of course, denied all charges, and tried to prove his side by
pointing to the logbook of an instrument used in the experiment.
Unfortunately for Long, this was his undoing, since the logbook
proved just the opposite. After Long admitted the fraud, other
problems in his research were uncovered, including the fact that
some of the cell lines which were the basis of his fame were
fraudulently contaminated with primate cells. Notice that in this
case, as in the previous one, a whistleblower was the instrument
of disclosure. Neither the peer review of his grants, nor the
referee system for his manuscript, had detected the fraud.

125
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Thereza Imanishi-Kari5,6

After a highly publicized investigation of scientific fraud at an MIT


biomedical laboratory, the National Institutes of Health has
concluded that a former MIT researcher fabricated crucial data in
a 1986 scientific paper.

Thereza Imanishi-Kari co-authored the paper with Nobel laureate


and former Whitehead Institute Director David Baltimore '61 and
others. The paper, based on work at the MIT Centre for Cancer
Research, was published in the journal Cell in 1986.

...The NIH investigators did not accuse Baltimore of fraud, but


they called his continued defence of the Cell article and Imanishi-
Kari "extraordinary" and "difficult to comprehend," according to
portions of a draft report obtained by The Tech.

The draft report, which has not been made public, accused
Imanishi-Kari of "serious scientific misconduct," stating that she
"repeatedly presented false and misleading information" to the
investigators and expert scientific panels.

...The Cell article reported experiments on laboratory mice that


seemed to indicate that the introduction of foreign genes into an
animal could lead to the expression of related genes within the
animal, a topic which the biological community is still debating.
The finding, which has not been confirmed, could have
implications for immunological study and gene transplant work.

5
NIH report finds fraud in MIT research. By Andrew L. Fish (ver nota
bibliográfica na internet)
6
Fake Data in Science: Implications for Detection and Prevention by Tina G.
Noonan, April 20, 1999......

126
Má conduta cientifica

The NIH investigators said that, based on statistical and forensic


analysis, some of the data produced by Imanishi-Kari for the
paper and a subsequent correction were fabricated. Based on
analysis by the Secret Service, the report charges that parts of
Imanishi-Kari's laboratory notebook were falsified. Also, the
report alleges that some supporting computer tapes were made
years before the MIT research began. ..

A Grande Mentira7

The Big Lie has been maintained by outright fraud and the
persecution of scientists attempting to speak the truth. In 1990,
Dr. William Marcus, a senior scientist at the U.S. Environmental
Protection Agency, was fired for exposing a cover-up in a
government study showing that fluoride causes cancer. In 1992,
EPA ignored the union representing all 1200 scientists, lawyers
and engineers at EPA's Headquarters, when the union provided
evidence of scientific fraud in the development of the fluoride in
drinking water standard.

How the truth is suppressed

The powers that be work overtime at maintaining the Big Lie with
some fairly simple, but effective techniques: outright fraud and
cover-up, and intimidation and persecution of scientists and other
professionals who dare to speak the truth. One of the best

7
Corruption and Fraud at the EPA by Robert J. Carton, Ph.D. July 28, 1995.
http://www.sonic.net/kryptox/fluoride.htm>

127
Notas e Técnicas Epidemiológicas

examples of the use of these techniques can be found at the U.S.


Environmental Protection Agency in Washington, D.C.

In 1990, Dr. William Marcus, senior toxicologist in the Office of


Drinking Water at EPA, was fired for publicly questioning the
honesty of a long-awaited government animal study designed to
determine if fluoride causes cancer. Upon examining the raw data
of the experiment, Dr. Marcus found clear evidence that fluoride
causes cancer, and suggested that a review panel set up by the
government to review the data had deliberately downgraded the
results. He was vindicated in December of 1992 when
Administrative Law Judge David A. Clark, Jr. ordered EPA to give
him back his job, with back pay, legal expenses and $50,000 in
damages. EPA appealed, but the appeal was turned down in 1994
by Secretary of Labour, Robert B. Reich who accused EPA of firing
Dr. Marcus in retaliation for speaking his mind in public. Reich
found among other things that EPA had shredded important
evidence that would have supported Dr. Marcus in court. The
original trial proceedings also show that EPA employees who
wanted to testify on behalf of Dr. Marcus were threatened by their
own management. EPA officials also forged some of his time
cards, and then accused him of misusing his official time.

Other EPA scientists have attempted to get the truth in the open
without success. In November of 1991, Dr. Bob Carton, Vice-
President of the union representing all 1200 scientists, engineers,
and lawyers at EPA headquarters, presented the Drinking Water
Subcommittee of the Science Advisory Board of EPA with
evidence of scientific fraud in the preparation of EPA's fluoride in

128
Má conduta cientifica

drinking water standard. (reference) No follow up to verify these


accusations was ever made.

Six years earlier, Dr. Carton became aware of a cover-up, when


the person responsible for writing the justification for the fluoride
in drinking water regulation confided in him that he didn't believe
a thing he was writing. In other words, the regulation was a lie.
Then the regulation writer said: "well, that's the way they want
it." In other words, he had to follow orders. Rather than lose his
job, or his next promotion, he produced what his superiors
wanted.

Dr. Carton convinced the professional union to take fluoride on as


an ethics issue. The union attempted to join the National
Resources Defence Council in a lawsuit against EPA in September
of 1986 with a submission of a detailed brief to the U.S. District
Court in Washington, DC. The court refused to allow the union to
join the suit.

Atendendo à natureza do assunto e das pessoas envolvidas e não


tendo acesso directo aos processos, optámos pela transcrição de
parte de alguns artigos na língua original, de forma a não
comprometer o espírito dos autores.

Os casos descritos são paradigmáticos e obrigam-nos a reflectir


sobre a má conduta de alguns cientistas, a qual no seu extremo
chega à fraude científica, comprometendo o conhecimento e a
idoneidade da ciência8.

Nos últimos tempos, dois casos abalaram a comunidade científica: a


8

falsificação de dados por parte de um físico, Hendrik Schon, e a declaração de


desonestidade científica atribuída a Bjorn Lomborg, pela publicação da obra The

129
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Skeptical Enviromentalist, por parte da Comissão Dinamarquesa para a


Desonestidade Científica.
Estes casos merecem alguma reflexão. Quanto ao primeiro, é difícil
compreender como é que um jovem "brilhante" consegue publicar (a um ritmo
alucinante) em revistas altamente prestigiadas, como a Science e a Nature,
entre outras, "escapando" ao crivo apertado de selecção, e à vigilância da
instituição altamente prestigiada onde trabalhava. O segundo caso não configura
a figura de fraude científica, mas de uma situação de manipulação, não de
dados, mas da selecção, interpretação e análise dos mesmos. Tive a
oportunidade de o ler em finais de 2001. Confesso que o primeiro contacto com
a obra me perturbou. Mas, após leitura mais atenta, verifiquei que as afirmações
e análises estavam fortemente documentadas, o que transmitia natural
credibilidade. Apesar de não comungar com muitas interpretações, aceitei os
dados como sendo válidos (inclusive cheguei a citar alguns…).
Três denúncias levaram o organismo oficial dinamarquês encarregado de
analisar estes problemas, a efectuar um inquérito, concluindo pela "sentença" de
desonestidade científica.
Lomborg hipertrofiou e foi tendencioso em algumas análises. Será que quis ser
um "enfant-terrible", pondo em causa as posições clássicas dos ambientalistas?
É importante que haja vozes discordantes, a fim de equilibrar e dar a devida
dimensão aos problemas. Só que, no caso de Lomborg, poderá ter sido
ultrapassado a fronteira.
Face ao crescente número de casos de má conduta científica e às consequências
adversas para a sociedade, importa que sejam criados mecanismos de vigilância
e fiscalização. Muitos países possuem instituições, com o objectivo de analisar
todos os casos suspeitos, assim como periodicamente analisar os dados (a todos
os níveis) das investigações. Esta medida deveria ser institucionalizada também
entre nós, evitando que as conclusões e as aplicações práticas das mesmas
pudessem provocar prejuízos, por vezes, incalculáveis, além de contribuir para a
dignificação da investigação.

130
Epidemiologia: fonte de conhecimento e geradora de
confusões

Doenças e selecção natural1

O organismo humano é bastante complexo e altamente


vulnerável às doenças.

A selecção natural possibilitou a formação de órgãos tão


complexos como os olhos, o cérebro ou o coração e mecanismos
de defesa tão sofisticados como o sistema imunológico. Mesmo
assim não conseguimos substituir um dedo quando o perdemos,
reparar uma artéria obstruída ou viver pelo menos 200 anos!

Cada vez conhecemos mais o modo de contrair as doenças, mas


continuamos a saber muito pouco, porque é que elas existem.

Se comermos muita gordura, podemos morrer de enfarte do


miocárdio. Se nos expusermos muito ao sol, podemos contrair
cancro da pele. No entanto precisamos de ambos.

O estudo da fisiologia humana e dos diferentes sistemas são


terrivelmente maravilhosos. Mas curiosamente, a natureza não
explica (aparentemente) certos erros. Por exemplo, porque razão
as vias digestiva e aérea se cruzam? Para nos engasgarmos?
Velhos compromissos da evolução!

1
Randolph M. Nesse, George C. Williams. Why We Get Sick. Times Book,
Toronto, 1994.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Por que razão um quarto da população mundial sofre de miopia?


Porque é que os genes responsáveis não foram eliminados ao
longo da selecção? Não se deslumbra quaisquer vantagens
selectivas nos portadores dos genes da miopia. O mais certo é
que só dariam conta de que constituíam uma boa refeição para
um carnívoro, quando o vissem a um palmo do nariz. Mas os
míopes estão aí e não são tão poucos como isso!

Quanto à aterosclerose e às suas complicações – enfarte e


acidentes vasculares cerebrais – não vejo que tenham exercido
qualquer vantagem selectiva. Afinal é mesma coisa que aplicar
areia no sistema de distribuição de gasolina de um automóvel.
Entupiu, deixou de andar!

Podíamos descrever dezenas de outros exemplos, para mostrar a


incongruência em termos evolutivos de determinadas
características.

A ansiedade tão frequente nos dias de hoje é desencadeada por


vários factores: preocupações familiares, profissionais, fiscais,
entre outras, e estão na origem de graves problemas. Mark Twain
afirmou que passávamos a maior parte das nossas vidas a sofrer
tragédias que nunca ocorreriam.

A ansiedade, como a dor, é indispensável para nos protegermos


das agressões do meio ambiente, só que as agressões modernas
são bastante diferentes das primitivas.

As causas evolucionárias das doenças são diferentes das causas


próximas.

132
Epidemiologia: fonte de conhecimento e geradora de
confusões

No caso do enfarte do miocárdio, a ingestão excessiva de


alimentos aliada a genes que predispõem à aterosclerose são
causas major de doença coronária. São consideradas causas
próximas.

Talvez fosse importante avaliar e estudar as causas


evolucionárias.

O evolucionista quer conhecer, porque é que a selecção natural


não eliminou os genes responsáveis pela aterosclerose ou pela
hipercolesterolemia.

As explicações prévias permitem compreender porque é que


algumas pessoas adquirem a doença e outras não.

As explicações evolucionistas mostram, porque é que em geral os


seres humanos são susceptíveis a algumas doenças e não a
outras.

Para compreender as doenças, não podemos encarar somente as


causas próximas, temos de entrar em linha de conta com as
causas evolucionárias.

As explicações próximas respondem ao “ o quê?” e ao “como?”


(perguntas sobre estruturas e mecanismos). As explicações
evolucionárias respondem ao “porquê?” (perguntas sobre a
origem e funções)

133
Notas e Técnicas Epidemiológicas

São vários os mecanismos de defesa contra os microrganismos.


Além das defesas imunológicas e da febre, os baixos níveis de
ferro constituem mecanismos muito importantes.

A correcção de anemias de infecções crónicas tais como a


tuberculose crónica agrava a infecção.

A ingestão de cerveja feita em recipientes de ferro agrava as


lesões amebianas hepáticas dos Zulus. Os Masai, cuja
alimentação é pobre em ferro, fazem poucas infecções por
amibas. Mas se receberem suplementos de ferro, a doença
manifesta-se.

Os ovos conseguem manterem-se frescos durante bastante


tempo (apesar de serem fonte rica de nutrientes e a casca ser
permeável às bactérias). Qual a razão? Uma das albuminas fixa
fortemente o ferro impedindo a sua utilização pelas bactérias.
Antes da era pré antibiótica, os ovos eram utilizados para tratar
infecções.

A lactoferrina contribui com 20% das proteínas do leite materno e


fixa o ferro. A transferrina liberta o ferro para as células que
possuam os devidos receptores.

O ferro é indispensável para as bactérias. Ao impedir a sua


utilização, impede ou dificulta a agressão.

A perde de apetite, sobretudo de alimentos ricos em ferro durante


uma infecção, pode constituir uma forma de impedir a utilização
de ferro pelas bactérias.

A baixa de ferro sérico pode ser útil, não perigosa. No momento


actual (década de noventa) nos EUA só 11% dos médicos e 6%

134
Epidemiologia: fonte de conhecimento e geradora de
confusões

dos farmacêuticos sabem que o suplemento férrico pode ser


perigoso nas pessoas com infecção.

A resposta hiposiderémica ocorre em várias situações, desde as


infecções microbianas a neoplasias.

De acordo com Kent, coloca-se a hipótese das práticas correntes


serem potencialmente contrárias à redução da morbilidade.

A anemia das infecções e das doenças crónicas constitui uma


defesa do organismo contra bactérias, parasitas e invasão
neoplásica.

Muitos microrganismos, assim como células de animais e plantas


necessitam do ferro como um catalisador para a síntese do X e
para uma variedade de reacções redox e transporte de electrões.
Como os microrganismos não dispõem de capacidade para
armazenarem ferro, necessitam de utilizar o do hospedeiro.

São vários os microrganismos que têm causado várias epidemias


e flagelos à humanidade, que necessitam de ferro (fungos,
protozoários, bactérias gram positivas e negativas,
micobactérias).

A anemia das infecções e doenças crónicas joga um papel


importante contra as neoplasias e doenças inflamatórias crónicas.

Excesso de ferro nas lesões inflamatórias catalisa a produção de


radicais de oxigénio que destrói os lípidos das membranas.

135
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Homens e mulheres (pós menopausa) são particularmente


vulneráveis ao excesso de ferro alimentar devido ao
enriquecimento alimentar.

O enriquecimento indiscriminado de alimentos pode pôr a


população em risco para contraírem uma variedade de doenças,
incluindo cancro.

Afinal de contas qual a razão de ser desta introdução?

Ferro e doenças cardiovasculares

A razão prende-se com a metodologia e a importância dos


estudos epidemiológicos na compreensão e esclarecimento das
patologias e suas causas.

Os factos que acabamos de ilustrar prendem-se com a própria


evolução e adaptação humana e não deixa de ser curioso que o
próprio ferro tenha responsabilidade no enfarte do miocárdio.

A depleção férrica pode proteger-nos contra a doença coronária e


a perda regular de ferro menstrual pode ser responsável por
taxas mais baixas de doença coronária nas mulheres
comparativamente aos homens.

O ferro pode contribuir para aumentar o risco de doença


coronária ao contribuir para a oxidação da LDL com a
subsequente produção de radicais livres.

Animais com sobrecarga férrica sofrem mais lesões miocárdicas e


mais elevadas frequências de fibrilhação ventricular.

136
Epidemiologia: fonte de conhecimento e geradora de
confusões

Estudos de coorte (Salomen et all - 1992) efectuados em homens


finlandeses mostraram um aumento duas vezes superior de risco
de enfarte do miocárdio nos indivíduos com ferritina> 200 mcg/l.

Num estudo de coorte realizado no Canadá, verificou-se que o


risco de enfarte do miocárdio fatal era duas e cinco vezes
superior, respectivamente nos homens e mulheres com
sideremia> 175 mcg/dl, comparativamente aos que
apresentavam cifras inferiores a 120 mcg/dl. A sobrecarga em
ferro aumentava o risco de morte por doença coronária.

Epidemiologia e Metodologia

A necessidade de compreender os mecanismos e as causas das


afecções exige um desenho e aplicação de metodologias
correctas.

A epidemiologia fornece os elementos para atingir estes


objectivos.

Inicialmente o problema é despoletado por várias razões.


Conceitos populares, que constituem tópicos para elaborar
trabalhos. Exercício mental com base na experiência pessoal ou
na dos outros levam-nos muitas vezes à realização de estudos
observacionais, mais simples, mas fornecedores de hipóteses
interessantes.

Do mesmo modo a realização de estudos ecológicos relacionando


de uma forma grosseira a incidência ou a prevalência de um

137
Notas e Técnicas Epidemiológicas

fenómeno com certas características populacionais são uma base


excelente para criar hipóteses de investigação.

Os estudos ecológicos têm um impacto muito grande quer na


população científica, quer na população em geral. São fáceis de
analisar e de compreender e estão na origem de graves
problemas de interpretação e até mesmo criação de dogmas.

Quando se mostra uma figura em que está representada a


correlação entre o consumo de determinado produto e as taxas
de mortalidade por doença cardiovascular em diferentes países ou
regiões, temos que a interpretar como meramente indicativa. Ou
seja, provavelmente estes estudos não explicam mais de 10% da
verdadeira correlação (se é que existe!). Não podemos esquecer
que as unidades utilizadas não são os indivíduos, mas sim
unidades geográficas ou populacionais muito grandes.

Os estudos ecológicos são importantes como base para estudos


mais elaborados, os quais devem respeitar as bases de uma
investigação científica – precisão, lógica e verdade.

Aquilo que observamos frequentemente é uma aceitação quase


que imediata desses fenómenos, o que é um erro.

Apresentar correlações entre as taxas de mortalidade


cardiovascular com o consumo de sal, consumo de álcool, nível
socioeconómico, nível cultural, dureza das águas, PIB, consumo
de gorduras, número de televisores/habitantes é interessante,
mas deverá ser limitada e analisada com reservas para evitar
conclusões bombásticas, as quais por vezes são

138
Epidemiologia: fonte de conhecimento e geradora de
confusões

contraproducentes e perigosas, sobretudo quando caiem no


domínio público.

O dogmatismo científico é uma praga dos nossos dias.

As variáveis de confundimento e os viéses constituem autênticas


dores de cabeça para os epidemiologistas. Controlar ou evitar
estas areias é bastante difícil, apesar da aplicação de
metodologias apropriadas.

Mesmo assim, eles continuam a existir e a desafiarem-nos, o que


nos leva frequentemente a afirmar conclusões que não
correspondem totalmente à realidade.

A qualidade dos dados epidemiológicos está constantemente a ser


posta em causa. Tal facto não significa que não sirvam para nada.

Há necessidade de sermos mais precisos, mais exigentes, mais


críticos e menos dogmáticos.

Todos nós, ou quase todos, temos tendência para sermos


categóricos, sempre que falamos das nossas experiências ou dos
nossos conhecimentos.

Se alguém põe em causa a nossa saúde física, podemos ficar


entristecidos, mas acabamos por aceitar. Se põem em causa a
nossa saúde mental, então é que reagimos mal. Não admitimos
tal facto!

Do mesmo modo, gostamos com base na nossa experiência e nos


nossos estudos mostrar e evidenciar a nossa erudição científica.

139
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Só que a realidade muda frequentemente. E não é a repetição


das experiências que reforça o conhecimento e assegura a
primazia da verdade.

Toda a teoria é válida, apenas e só apenas enquanto não for


provada a sua falsidade.

O conceito poperiano da ciência é vital para compreendermos e


aceitarmos a mudança dos factos.

A epidemiologia fornece meios e métodos com o objectivo de


analisar os fenómenos e interpretá-los.

Há sempre a necessidade de manter um espírito crítico em todos


os trabalhos científicos. Tal não significa que os trabalhos não
tenham valor. O seu valor deve ser relativizado.

Devemos evitar dogmatismos, por vezes patéticos que são causa


de mais sofrimento e patologias.

A área das doenças cardiovasculares é muito susceptível a este


posicionamento e a epidemiologia curiosamente é a principal
responsável. Precisamente, porque a epidemiologia leva muitos
autores a uma aceitação plena, directa e básica dos factos, a qual
salta para a comunicação social e para a população em geral com
uma velocidade tal que até assusta.

A democratização do conhecimento científico a nível da sociedade


pode ser perigosa, porque não é acompanhada de mecanismos de
protecção por parte dos consumidores, tornando-os vulneráveis a
acções e comércios bastante discutíveis.

140
Epidemiologia: fonte de conhecimento e geradora de
confusões

Definir um caso – numerador das nossas taxas – é difícil e a


aparente ligeireza com que é tratado, pode levar a graves erros.

Se os numeradores são difíceis de definir, os denominadores


(população em risco) levantam igualmente muitos problemas.

Esta pequena reflexão sobre alguns aspectos da epidemiologia


tem como objectivo mostrar que o conhecimento é importante,
mas é também difícil e susceptível de interpretações erróneas e
até perigosas em termos de saúde. Estes aspectos negativos que
são reais, podem ser minimizados desde que se adquira uma
cultura epidemiológica capaz de disciplinar a nossa mente e
salvaguardar a realidade.

141
Principais estudos epidemiológicos

Introdução

Podemos basicamente classificar os diferentes estudos


epidemiológicos em estudos de observação1 e estudos
experimentais.

Os estudos de observação têm como objectivo a descrição e a


análise dos diferentes fenómenos implicados na saúde e na
doença. Enquanto os estudos descritivos analisam as
características e os fenómenos na perspectiva da tríade
ecológica, agente – hospedeiro – ambiente, contribuindo para a
quantificação e classificação, os estudos analíticos procuram
determinar os factores causais subjacentes aos fenómenos
saúde – doença.

Os alvos dos diferentes estudos analíticos podem ser indivíduos


ou grupos populacionais.

Naturalmente que os estudos que têm como unidade de


investigação os grupos populacionais estão mais sujeitos a
críticas e dificilmente são susceptíveis de serem reproduzidos,
além de que, se não forem devidamente apresentados poderão
induzir em erro os leitores ou estarem na base de opiniões
gerais, fáceis de serem adquiridas, mas difíceis de serem
eliminadas, às quais se juntam um cortejo de atitudes e
Notas e Técnicas Epidemiológicas

opiniões, cujo valor científico poderá ser facilmente posto em


causa.

Estes estudos ditos ecológicos têm como vantagem a facilidade


de execução e poderão constituir pontos de partida para outros
tipos de estudo cientificamente mais adequados a fim de testar
os dados obtidos. No entanto, em grande número dos casos não
se consegue provar a evidência dos estudos ecológicos, também
designados de correlação.

São muito úteis no estudo de doenças muito raras.

Os estudos transversais e os caso – controlo têm como


vantagem a rapidez de execução. Os primeiros têm uma
razoável utilidade no estudo de exposições múltiplas, assim
como nas diferentes consequências resultantes de exposição a
uma mesma causa.

Os estudos caso – controlo (ver capítulo respectivo) são


utilizados preferencialmente na investigação de doenças raras e
causas múltiplas, assim com na investigação de doenças
caracterizadas por longo período de incubação.

Os estudos de coorte (ver capítulo respectivo) são dentro de


todos, os que possuem mais atributos em termos de garantia e
qualidade dos resultados. Assim, a investigação de causas raras
consequências da exposição a diferentes factores, análise das
relações temporais e medição directa da incidência, constituem
algumas das principais características deste tipo de estudos.
Evidentemente que não há bela sem senão e, no caso dos

1
Também designados como estudos não-experimentais.

144
Principais estudos epidemiológicos

estudos de coorte, existem limitações que vão desde o tempo


na sua execução, ao dispêndio económico e às dificuldades de
logística para o seguimento, factos que, só por si, limitam a
realização deste tipos de estudos.

Dentro dos estudos experimentais, destacamos os ensaios


controlados aleatorizados, os quais constituem o paradigma da
investigação médica e aos quais nos referiremos no capítulo
respectivo.

A realização de um estudo e a sua escolha está condicionada,


entre outros factores a três importantes aspectos: viéses,
tempo e custos.

Quanto ao factor tempo, tal como já vimos, o mais demorado


reporta-se aos estudos de coorte, enquanto o mais rápido de
executar diz respeito aos estudos ecológicos. Os outros
caracterizam-se por durações médias.

Os custos acompanham passo a passo a análise efectuada para


o tempo.

Os viéses são distorções que ocorrem no decurso dos estudos e


que podem comprometer os resultados e, consequentemente,
as conclusões.

Arquitectura dos estudos epidemiológicos

Toda a investigação é caracterizada por uma arquitectura


própria que varia de estudo para estudo.

145
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Antes de procedermos à execução de um trabalho de


investigação torna-se necessário definir a respectiva
arquitectura.

O raciocínio de uma investigação clínica experimental assenta


em três grandes etapas: o estado inicial, o estado subsequente
e a manobra, responsável pela passagem do primeiro ao
segundo.

A primeira etapa consiste em definir o estado inicial dos


indivíduos (características da doença, aspectos sócio-
demográficos, etc.).

A segunda etapa corresponde à manobra e pode traduzir um


acto terapêutico ou outro.

A terceira etapa define o estado subsequente, precisando as


características que permitam avaliar o efeito da manobra.

Os seres humanos que vão participar no estudo são


caracterizados por uma heterogeneidade que constitui uma das
principais dificuldades da investigação médica, mas que a torna
igualmente interessante, ao exigir a aplicação de metodologias
próprias.

É perfeitamente compreensível que os indivíduos seleccionados


no estado inicial não são todos idênticos. A presença de
variáveis de confundimento constituem um problema, ao
dificultar a interpretação dos dados. Apesar da riqueza
metodológica ao nosso alcance é praticamente impossível
controlar todas as variáveis.

146
Principais estudos epidemiológicos

A manobra é o factor que envolve a passagem do estado inicial


ao estado subsequente e pode constituir um gesto diagnóstico,
uma atitude terapêutica ou factores de risco.

O estado subsequente descreve a situação dos indivíduos após a


aplicação da manobra.

Num projecto de investigação, os três principais pontos


respeitam o objectivo (que deve ser caracterizado por uma
elevada especificidade), a hipótese e o alvo (estudo das
características bem definidas no estado subsequente).

Antes de iniciar um projecto de investigação, o investigador


elabora um tópico, o qual a partir do momento em que é
expresso em termos operacionais, transforma-se em objectivo.

Este momento é crucial para a boa prossecução do estudo.

Se desejarmos avaliar o efeito duma atitude terapêutica,


devemos em primeiro lugar definir com precisão quais as
características dos doentes de forma a não deixar dúvidas.
Definição correcta da doença (as características têm que ser
idênticas em todos os participantes) e dos indivíduos a entrar no
estudo (sexo, idade, profissão, residência, etc.).

A etapa seguinte reporta-se à definição do tratamento (natureza


do medicamento, modo de administração, duração da
aplicação).

Finalmente devem ser definidos com precisão e clareza quais as


características da cura dos indivíduos sob tratamento.

147
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A partir do momento em que são respeitadas estas etapas, o


tópico da investigação transforma-se em objectivo.

Quando se realiza um estudo, há necessidade de definir a


hipótese. A hipótese é uma expressão do objectivo, que pode (e
deve) ser testada no plano estatístico. A avaliação da hipótese
implica que o investigador precise a importância da acção da
manobra sobre o estado inicial.

No caso da comparação entre dois tratamentos, o investigador


deverá pôr a hipótese de que o novo tratamento é superior ao
clássico em x vezes.

A definição de alvo é vital para a prossecução do estudo. Deve


ser bem definido e pode ser representado por uma característica
no estado inicial, no estado subsequente ou por uma exposição
a um factor causal.

Estudos de coorte

Os estudos de coorte constituem um dos principais tipos de


estudos epidemiológicos susceptíveis de contribuírem para o
esclarecimento etiológico duma afecção, para a avaliação de
uma medida terapêutica, estudar a história natural e o
desenrolar de uma doença.

Por coorte entende-se um conjunto de indivíduos que viveram


um acontecimento idêntico durante o mesmo período.

A sua origem romana explica o sentido, já que o corpo de


infantaria de 600 homens, formando a 10ª parte da legião
romana designava-se por coorte e era constituída por soldados

148
Principais estudos epidemiológicos

provenientes das mesmas regiões (falando a mesma língua e


com os mesmos hábitos, sob o comando de um oficial romano).
Estes últimos aspectos ilustram a necessidade de
homogeneidade na constituição de uma coorte, uma das
principais características a respeitar no desenho deste tipo de
estudos.

Um outro aspecto associado aos estudos de coorte é o factor


tempo. O tempo desempenha um papel importante,
constituindo por vezes o objectivo do próprio estudo: ou seja o
que é que acontece “ao longo do tempo” com determinada
doença ou característica.

Quando se fala de estudos de coorte, associa-se a ideia de


estudos longitudinais igualmente designados por estudos
prospectivos. No entanto, em certas circunstâncias podemos
efectuar estudos de coorte retrospectivos. Identificamos no
passado a constituição de grupos que pelas suas características
respeitem a formação de coortes (a maioria formam-se
espontaneamente) e estudamos os efeitos de exposição a
qualquer factor de risco suspeito no presente ou podemos
mesmo continuar a segui-los no futuro (coortes históricos).

A “deslocação” no tempo é uma das ideias centrais deste tipo de


estudos, podendo ser efectuada em qualquer momento,
abordagens sobre a evolução do mesmo com o objectivo de
colher dados (mesmo antes de atingirmos o estado
subsequente).

149
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Os indivíduos que irão constituir a coorte, entram no estudo no


“estado inicial”, vão sofrer uma “manobra” e são seguidos até
ao “estado subsequente”.

Este tipo de metodologia é completamente diferente do estudos


caso – controlo, onde os indivíduos, quando observados pela
primeira vez, já se encontram no “estado subsequente” com
uma doença perfeitamente caracterizada.

Nos estudos de coorte podemos estudar somente o efeito da


manobra (apenas com objectivos descritivos), ou então utilizar
mais do que um tipo para efeitos de estudos comparativos entre
o grupo sujeito à “manobra” principal e o grupo sujeito à
“manobra” comparativa. Neste caso estamos perante um estudo
analítico.

Muito do conhecimento da história natural de uma doença,


baseou-se em estudos longitudinais.

A evolução de uma afecção exige a formação de grupos de


indivíduos com a mesma doença. No entanto não é suficiente
definir a doença de uma forma precisa. É necessário aplicar
outros critérios, tais como idade, sexo, profissão, estadio da
doença, entre outros aspectos, de modo a homogeneizar o
máximo possível as características do grupo. Apesar de tudo, é
praticamente impossível padronizar todas as características e
evitar a presença de variáveis de confundimento muitas das
quais desconhecemos.

Um dos exemplos sobre a aplicação de estudos de coorte é


tratado no capítulo sobre as curvas de sobrevivência.

150
Principais estudos epidemiológicos

A principal aplicação destes tipos de estudos refere-se à


etiologia da doença.

Basicamente definem-se duas coortes constituídos por pessoas


saudáveis. Estamos perante o estado inicial do estudo. Em
seguida, uma delas é submetida à manobra principal (factor de
risco suspeito), enquanto a segunda constitui o grupo de
referência a qual ficará sujeito à manobra comparativa
(ausência de exposição ao factor de risco).

Ao fim de algum tempo (variável de acordo com o objectivo em


estudo) de exposição à manobra, iremos estudar no estado
subsequente o alvo resultante da exposição ou não ao factor em
análise (doença ou morte).

Comparam-se os resultados das taxas de incidência do


fenómeno entre os dois grupos. Para o efeito utiliza-se o risco
relativo.

Foi assim que Richard Doll e Richard Peto estudaram a


associação entre o cancro do pulmão e o consumo do tabaco
nos médicos britânicos de 1951 a 1971.

Foram constituídas duas coortes: uma de fumadores e outra de


não fumadores. Foram seguidas durante 20 anos e calculou-se
ao fim deste tempo qual a taxa de mortalidade por cancro do
pulmão em cada grupo. Neste caso concreto a taxa de
mortalidade nos fumadores foi de 104 / 105 médicos, contra 10/
105 nos não fumadores. A análise do risco relativo provou que
havia 10,4 vezes mais probabilidade de morrer por cancro do
pulmão nos fumadores.

151
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Já afirmámos que na constituição de coortes deve haver


homogeneidade nas características dos seus constituintes. No
entanto, quando a formação das coortes depende da
“espontaneidade”, torna-se difícil garantir que as diferentes
características dos indivíduos estejam distribuídas
equitativamente entre as diferentes coortes. Assim, no caso de
estudos naturalísticos (“espontaneidade”) pode haver
tendencialmente a possibilidade de se formarem coortes com
características próprias, as quais podem condicionar a evolução
da situação, comprometendo o “peso” real da manobra em
estudo.

Não deixa de ser curiosa a argumentação efectuada por


algumas indústrias tabaqueiras de que não estaria ainda
provada a associação causal do tabaco no cancro do pulmão,
devido ao facto de não se terem efectuado experiências
controladas!...

Naturalmente que ninguém vai obrigar as pessoas a fumarem


para provar se existe ou não associação causal entre o tabaco e
o cancro. Seria eticamente condenável sujeitar alguém à
exposição de qualquer substância sobre a qual recaia mesmo
uma ligeira suspeita que possa causar prejuízos à integridade
ou à saúde das pessoas.

Apesar destas criticas, a epidemiologia possui métodos


adequados para estabelecer um nexo de causalidade, mesmo na
ausência de experiências controladas.

152
Principais estudos epidemiológicos

Noutras circunstâncias, é possível distribuir os indivíduos de


uma forma aleatória em duas ou mais coortes. Este tipo de
selecção que podemos designar por aleatorização, é
frequentemente utilizada no decurso dos estudos de avaliação
terapêutica, constituindo os ensaios clínicos aleatorizados,
paradigma da investigação clínica.

Na interpretação de uma coorte, temos de garantir: em primeiro


lugar a representatividade da população; em segundo lugar, os
membros da coorte deverão ter no estado inicial uma
susceptibilidade face aos alvos a atingir no estado subsequente.

A susceptibilidade dos indivíduos incluídos nas coortes implica o


respeito de três dimensões temporais: tempo secular, tempo
biológico e tempo zero.

Quanto ao tempo secular, os membros a integrarem as coortes


devem ter vivido no mesmo período (na prática aceita-se o
decénio ou o quinquénio). A razão de ser prende-se com
eventuais exposições (diferentes) ou técnicas de diagnósticos
(mais elaboradas) em períodos distintos, as quais podem
condicionar a avaliação da exposição à manobra.

O tempo biológico é medido em função da idade cronológica e


do estado de saúde dos indivíduos. Tais factos podem causar
discrepâncias acentuadas entre as coortes e comprometer os
resultados. Naturalmente que podemos utilizar técnicas de
ajustamento para eliminar o peso da idade cronológica.

O tempo zero, diz respeito ao início da actividade do factor


causal da doença ou à própria doença. Por exemplo, no estudo

153
Notas e Técnicas Epidemiológicas

sobre a evolução de uma neoplasia é importante que todos os


casos pertençam ao mesmo estadio. Doutro modo podemos
obter resultados bastante diferentes de autor para autor. No
entanto a determinação do tempo zero nem sempre é fácil de
determinar.

As desvantagens dos estudos de coorte são evidentes.


Desvantagens relacionadas com o factor tempo (alguns
trabalhos exigem anos para serem desenvolvidos), com
aspectos financeiros (bastantes dispendiosos) e com apoios
logísticos.

De acordo com a exposição já efectuada, é fácil perceber que


existem viéses relacionados com os estudos de coorte. Os mais
frequentes de todos são os viéses de representatividade e o de
susceptibilidade. Por outro lado, ao longo do tempo pode
verificar-se a perda de indivíduos (por motivos vários).
Devemos calcular à partida o máximo de perdas admissível de
forma a evitar que o estudo possa ser comprometido.

Na análise dos alvos, o investigador deverá ter em linha de


conta as naturais tendências para valorizar o que desejaria
valorizar e desvalorizar o desvalorizável. Tem que ser o mais
“cego” possível, ao proceder à análise dos efeitos das manobras
comparativa e principal.

154
Principais estudos epidemiológicos

Seminaristas e águas de bebida

Estudo aleatorizado, controlado e cego com o objectivo de


analisar o efeito hipolipidemiante das águas duras versus águas
moles

No caso vertente e na sequência de vários estudos efectuados


com o objectivo de verificar qual o “peso” da acção das águas
“duras” versus águas “moles” no metabolismo lipídico,
efectuámos um estudo prospectivo numa população de
seminaristas.

A partir de 34 seminaristas voluntários efectuámos através de


aleatorização à constituição de dois grupos, cada um com 17
elementos.

A experiência realizou-se durante dois meses com três colheitas


sanguíneas (início, ao fim de um mês e no final dos dois meses)
e a aplicação de um inquérito alimentar diário.

Após a explicação do objectivo do estudo, cada um dos


intervenientes recebeu as respectivas embalagens de águas
com durezas distintas (ver quadro I). Os jovens não sabiam
qual o tipo de água que estavam a beber.

Durante este período de tempo, os jovens permaneceram no


seminário, vivendo em condições homogéneas.

O quadro II ilustra as características da experiência.

155
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro I. Características da população

População: 34 seminaristas voluntários

Estudo: experiência aleatorizada e controlada (cega)

Dieta: alimentação praticada no seminário (inquérito alimentar


quantitativo diário e individual)

Água “Mole” (composição):

Catiões
Aniões
− Ca 2+ = 1,6mg / l
HCO = 11,3mg / l
3
− Mg 2+ = 1,2mg / l
Cl = 9,8mg / l
Na + = 7,2mg / l
SO = 2,0mg / l
2

K + = 0,9mg / l
4

F = 0,05mg / l
Fe 2+ = 0,004mg / l

Água “Dura” (composição):

Aniões Catiões
HCO3− = 397,7 mg / l Ca 2 + = 137,6mg / l
Cl − = 102,2mg / l Mg 2 + = 15,6mg / l
SO42 = 2,0mg / l Na + = 42,78mg / l

Em seguida descrevemos as características das duas populações


sujeitas ao estudo.

156
Principais estudos epidemiológicos

Quadro II. Características dos dois grupos

Grupo A Grupo B
Número 17 17
Idade (anos) Média (DP) 20,3 19,9
(2,69) (2,02)
Índice de Massa Corporal 23,11 22,19
Média (DP) (2,05) (1,80)
Hidratos de Carbono (g/dia) 476 459
Média (DP) (55,4) (50,1)
Proteínas (g/dia) Média 116 111
(DP) (9,4) (7,71)
Proteínas animal (g/dia) 56,5 55,4
Média (DP) (5,8) (5,0)
Proteínas vegetais (g/dia) 59,4 57,3
Média (DP) (5,2) (5,5)
Lípidos (g/dia) Média (DP) 96,9 100,7
(11,6) (13,9)
Kcalorias/dia Média (DP) 3240 3231
(386) (322)
Colesterol (mg/dia) Média 440,9 453,3
(DP) (54,5) (45,0)
Colesterol (mg/dia)/1.000 136 140
Kcal

157
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O quadro III ilustra uma das fases da experiência (1ªfase).

Quadro III. Água e lípidos séricos numa população de


seminaristas

Água “Mole” Água “dura”


Basal Final Basal Final
Colesterol total (mg%) 140,5 163,3 149,4 163,0
Colesterol HDL (mg%) 50,3 49,9 51,8 50,6
Colesterol HDL2 13,2 10,9 11,2 12,1
Colesterol HDL3 37,1 38,8 40,1 38,5
Colesterol LDL (mg%) 77,9 98,2 82,4 99,2
HDL2/HDL3 0,35 0,30 0,28 0,33
Triglicerídeos (mg%) 60,5 76,4 61,5 68,1
Fosfolípidos (mg%) 166,4 171,5 170,5 170,6
Fosfolípidos HDL 83,9 85,8 85,9 84,7
Fosfolípidos LDL 73,3 75,1 74,1 75,5
Fosfolípidos VLDL 9,2 (3,4) 9,7 (6,5) 10,5 10,5 (4,0)
Glicemia (mg%) 82,0 78,7 78,2 79,4 (5,9)
Uricemia (mg%) 6,5 (1,3) 6,6 (1,4) 6,3 (0,9) 6,3 (0,9)
I.M.C. 23,1 23,5 22,2 22,8)
* F= 3,782; p=0,06 - **F= 4,64; p<0,05

O objectivo deste estudo foi tentar verificar se o consumo de


águas duras (ricas em sais de cálcio) se acompanhava ou não
de descida dos lípidos séricos, nomeadamente do colesterol.
Verificámos que não houve descida, pelo contrário, até
aumentaram em ambos os grupos. Estes dados contrariam
todas as experiências entretanto realizadas em diferentes
espécies animais (ratinhos, ratos, cobaias, coelhos e frangos).

Perante estes dados, pensamos que poderá ter havido uma ou


mais variáveis de confundimento. De facto a análise diária e
individual do comportamento alimentar dos indivíduos sujeitos à
experiência, revela um dado muito curioso, ou seja uma

158
Principais estudos epidemiológicos

melhoria da alimentação entretanto verificada. A dietista que


acompanhou o estudo demonstrou que durante a experiência,
os seminaristas sofreram um “enriquecimento” alimentar.
Estamos pois perante um viés tipo efeito Hathworne. A presença
do investigador perturba a própria experiência. Por outro lado
as cifras muito baixas à partida da colesterolemia “impedia”
estudar o efeito hipocolesterolemiante do cálcio hídrico.

Estudo caso-controlo

Constitui o método de estudo mais antigo e é particularmente


útil no estudo etiológico das doenças. Baseia-se em indivíduos
já doentes, nos quais se procurará identificar a exposição ou
não a um ou mais factores de risco. Este tipo de estudo utiliza-
se no caso de querermos estudar várias causas possíveis de
uma doença, assim como estudar quaisquer tipos de exposições
como potenciais factores de risco. É bastante útil no estudo de
doença raras, não necessitando (ao contrário dos estudos de
coorte) de muitos casos.

Trata-se de estudos retrospectivos, e a informação é obtida


através de inquéritos ou de registos médicos.

Apesar das naturais limitações relativas à validade das


medições, o grande problema deste tipo de estudo deriva mais
dos controlos do que dos casos. Habitualmente utilizamos como
grupo controlo, pessoas sãs, ou com patologia diferente daquela
que estamos a estudar. A selecção é difícil e está na origem de
vários erros.

159
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Apesar de tudo, quando este tipo de estudo é bem feito,


estudos subsequentes do tipo coorte ou aleatorizado acabam
por confirmar os dados.

As características que levam à sua opção são, além das já


enunciadas, a rapidez de execução, facilidades técnicas e serem
pouco dispendiosos.

Para ilustrar algumas das afirmações podemos dizer que a


doença dos legionários e a síndroma do choque séptico, foram
identificados através deste tipo de estudos.

Os principais problemas resultam da comparação entre os casos


e os controlos, sobretudo no grau de precisão do
emparelhamento (idade, sexo, residência, etc.). A forma como
se processa o recrutamento é fonte de erros, assim como as
diferentes variáveis de confundimento determinadas por vários
motivos, tais como a classe social. Outras fontes: diferentes
alvos, qualidade da hipótese causal, reprodutibilidade da
história de exposição, viéses de resposta, de memória e de
entrevistador, etc.

As técnicas analíticas que dispomos hoje tornam este tipo de


estudo, como um dos mais seleccionados para fins de
investigação.

Ensaios aleatorizados

Em 1946 os britânicos conseguiram comprar apenas uma


pequena quantidade de estreptomicina aos americanos, devido
às naturais dificuldades económicas do pós-guerra.

160
Principais estudos epidemiológicos

Levantou-se na época a necessidade de efectuar um estudo


rigoroso sobre a acção da estreptomicina, porque havia a
evidência de que certos casos de tuberculose melhoravam com
o repouso.

Ninguém contestava os efeitos da estreptomicina. Foi efectuado


um ensaio aleatorizado controlado (E.A.C.), que revelou os
efeitos positivos da estreptomicina, mas também as
consequências da mesma: resistência bacteriana e efeitos
tóxicos vestibulares.

Bradford Hill abriu uma nova geração de estudos, designada por


“Escola Britânica” dos ensaios médicos.

Poucos foram os países que aderiram a esta prática da


investigação clínica. Mesmo na década de setenta, eram
sobretudo os países mais desenvolvidos da Europa os que
lideravam esta importante área.

As novas tecnologias e terapêuticas constituem o grosso das


actividades médicas, principalmente atendendo às doenças
crónicas que atingem as comunidades ocidentais.

Torna-se imperioso saber se estas práticas têm qualquer


vantagem na saúde, bem-estar e no prolongamento da vida. O
problema prende-se sobre o que vamos ou devemos medir com
o mínimo de erro.

Os ensaios aleatorizados constituem um tipo particular de


estudo de coorte. Basicamente são seleccionados duas coortes
(ou mais) semelhantes, as quais são seguidas durante a

161
Notas e Técnicas Epidemiológicas

aplicação de manobras (principal e comparativa) até ao estado


subsequente.

Distingue-se do estudo de coorte do tipo analítico pelas


seguintes características: a escolha é feita ao acaso, de modo a
“distribuir” as características desconhecidas pelos dois grupos e
por outro lado a aplicação da manobra encontra-se sob o
controlo directo do investigador.

Trata-se por excelência da metodologia a utilizar nos estudos


dos fármacos e é “obrigatório” na avaliação de terapêuticas
medicamentosas, dietéticas e intervenções cirúrgicas.

Atendendo às dificuldades éticas, legais e sociais levantadas


nalguns casos, alguns autores propõem métodos não
aleatorizados ou modificações da aleatorização nos ensaios
clínicos. De qualquer modo as alternativas exigem sempre um
grupo de comparação. Por exemplo, nalgumas situações
aplicam-se técnicas de adaptação, as quais permitem quer a
distribuição dos indivíduos ou a duração da experiência de
acordo com a acumulação dos dados.

Nuns casos utiliza-se a distribuição fixa, a qual estabelece uma


proporção específica da população doente a cada um dos
tratamentos. Noutros a distribuição adaptativa. Neste caso,
utiliza-se a informação obtida durante o curso do tratamento. O
doente entra no ensaio. A resposta do doente anterior é
conhecida antes da entrada do doente seguinte e a resposta
deve depender só do tratamento (“joga o que ganhou”).

162
Principais estudos epidemiológicos

O objectivo destas distribuições é de atingir o maior número


possível de doentes com o tratamento mais eficaz.

Por vezes, tal como já afirmámos, existem problemas éticos os


quais não são de fácil solução. Pode acontecer que um clínico
considere a manobra comparativa como contrária à moral
médica, e deste modo não aceita submeter um doente a um
tratamento que julga menos útil. No entanto, não podemos
deixar de comentar que o código da moral médica não chega
para julgar a utilidade de uma terapêutica, já que os ensaios
não aleatorizados não permitem em geral julgar sobre a
utilidade de um tratamento.

Ninguém discute que um médico deverá estar suficientemente


informado sobre as diferentes situações, nomeadamente
conhecendo a validade do tratamento. O não respeito por esta
condição pode conduzir a uma situação paradoxal: um médico
insuficientemente informado aplicando um tratamento ineficaz
ou nocivo a um doente, pensando que é o mais útil. Neste caso,
respeita a ética médica, da mesma forma que um outro bem
informado e capaz de aplicar um tratamento útil ao mesmo
doente.

As vantagens de um ensaio aleatorizado são várias. Permite


comparar dois grupos de tratamentos, sem que seja falseado
pela selecção de uma categoria de doentes mais susceptíveis
num grupo em relação a outro. Equilibra, em princípio nos dois
grupos todas as variáveis conhecidas (as quais poderiam
influenciar os alvos) e por fim garante a validade das
comparações estatísticas entre eles, visto que o factor

163
Notas e Técnicas Epidemiológicas

aleatorizado não está correlacionado com as características dos


grupos.

Evidentemente que no caso da manobra médica ser


reconhecidamente útil, não há necessidade de efectuar estudos
aleatorizados (muitas terapêuticas actuais nunca foram sujeitas
a estudos aleatorizados).

No caso da manobra ser duvidosa, é imoral continuar a aplicá-la


sem se efectuar um estudo aleatorizado. É muito útil para a
medicina, provar que velhas e novas terapêuticas, não têm
valor.

Deste modo, os ensaios aleatorizados são necessários quando a


história natural da doença é mal conhecida ou polimorfa;
quando se trata de julgar a utilidade de um tratamento que não
modifique de forma decisiva a evolução e quando for preciso
comparar dois tratamentos cuja eficácia é semelhante, mas com
diferenças no tocante aos efeitos secundários.

Num estudo desta natureza é obrigatório o consentimento


escrito dos indivíduos envolvidos, de acordo com as regras da
ética médica. “Todos” devem conhecer “tudo”.

Apesar da elegância deste tipo de estudos, mesmo assim


ocorrem viéses. A maioria são controlados, o único que não
pode ser controlado diz respeito à representatividade dos
indivíduos sujeitos a estudo. Na maioria dos casos são
voluntários (menos representativos da população). Noutros são
excluídos velhos, crianças, mulheres grávidas, etc. Devido a
este aspecto um certo número de acidentes terapêuticos não

164
Principais estudos epidemiológicos

são detectados no decurso dos ensaios aleatorizados e


aparecem mais tarde no período correspondente à
comercialização dos medicamentos.

A aleatorização dos indivíduos não garante completamente a


supressão do viés de susceptibilidade. Por outro lado, o viés da
manobra está sempre presente e é necessário que o
investigador seja preciso nos meios utilizados para o medir.

Num estudo desta natureza, ocorrem sempre perdas de


elementos. Tal facto exige que se evitem estas situações. No
caso de ocorrerem perdas de indivíduos no seguimento de um
estudo, o autor deverá efectuar uma análise sobre os casos
“perdidos”.

Na parte final do estudo, a forma como que vai efectuar as


medições pode comprometer os resultados. Neste caso os
resultados podem ser falseados devido às diferenças de
qualidade das observações.

165
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Exemplo de um estudo de coorte, aleatorizado e


experimental

Aminoácidos e Colesterolemia

Introdução

As doenças cardiovasculares constituem a principal causa de


morbimortalidade nos países ocidentais.

Os numerosos estudos epidemiológicos já realizados,


sobretudo a partir do final da década de quarenta, possibilitou-
nos a quantificação deste grave problema, assim como a
identificação de vários factores de risco, dos quais se destacam
uma série muito importante e que já não oferecem dúvidas:
hiperlipidemias, hipertensão arterial, tabaco, diabetes mellitus,
obesidade, tipo de personalidade...

Naturalmente que as evidências epidemiológicas e a aplicação


de métodos de estudo cada vez mais sofisticados, vem reforçar a
importância daqueles, mas também equacionar novos problemas.

De facto, os factores de risco existentes – e contam-se em


mais de uma centena e meia! - não explicam totalmente as
doenças cardiovasculares. Muitos são factores precipitantes e
outros, eventuais espúrias.

Os factores de risco major já enunciados, não explicam mais


do que 50% das doenças cardiovasculares, além de que as suas

166
Principais estudos epidemiológicos

variações merecem ainda e provavelmente durante muito tempo


cuidadosa atenção por parte dos epidemiologistas.

O objectivo deste estudo prende-se sobre os efeitos de


factores pouco estudados no comportamento lipídico.

As variações dos lípidos sanguíneos são fundamentalmente da


responsabilidade de factores genéticos e alimentares. No tocante
a estes últimos tem sido dado atenção, sobretudo ao papel das
diferentes gorduras. Mas há outros aspectos que merecem ser
estudados a fim de esclarecer o seu papel. Estão inseridos neste
contexto o papel das proteínas alimentares e sobretudo dos
aminoácidos.

A relação entre as proteínas alimentares e a aterosclerose foi


estabelecida pela primeira vez em 1909 por A. Ignatowski, citado
por Sirtori(1). Este autor verificou que os coelhos alimentados
com proteínas animais desencadeavam importantes lesões
ateroscleróticas. Desde então foram efectuados vários estudos
sobre esta temática dos quais destacamos os efectuados por
Newburgh (1919 e 1923) (2). Este autor concluiu que os coelhos
alimentados com caseína (30g/dia) desenvolviam aterosclerose,
enquanto os alimentados com proteína de soja não apresentavam
lesões.

Podemos deste modo equacionar desde já o seguinte problema:


qual o papel das proteínas animais e vegetais na aterosclerose?
As lesões observadas podem ser explicadas em função do efeito
no metabolismo do colesterol?

167
Notas e Técnicas Epidemiológicas

As proteínas animais versus as vegetais produzem


hipercolesterolemia nos coelhos e ratos (3). Em contrapartida
este fenómeno não se observa com as proteínas vegetais. As
proteínas mais estudadas foram a caseína e a de soja (3).

Podemos considerar que estamos perante um efeito


hipercolesterolemiante das proteínas animais? Ou de um efeito
hipocolesterolemiante das proteínas vegetais? Ou será que as
variações observadas possam ser da responsabilidade da
composição dos aminoácidos das proteínas animais e vegetais?

Misturas de L-aminoácidos idênticas às existentes nas proteínas


do ovo e da caseína produzem hipercolesterolemia. Misturas de L-
aminoácidos idênticas às existentes nas proteínas da soja e
sementes de girassol produzem hipocolesterolemia (4). Estas
diferenças poderão ser explicadas face a diferenças na absorção
intestinal?

A proteína de soja provoca redução na absorção intestinal de sais


biliares e aumento da excreção fecal dos sais biliares (acção das
fibras?). Estes efeitos poderão explicar uma redução da
colesterolemia. Mas não podemos esquecer outros eventuais
mecanismos com efeitos hipocolesterolemiante como o aumento
da tiroxina e o aumento da indução de receptores de alta
afinidade para as lipoproteínas (5).

Os efeitos hipercolesterolemiantes da caseína poderão ser


explicados pelo aumento da insulina e aumento da absorção
intestinal do colesterol.

168
Principais estudos epidemiológicos

Os coelhos alimentados com proteína de soja apresentam um


"turn over" dos componentes proteico e lipídico da lipoproteina
IDL mais rápido. Quanto aos coelhos alimentados com caseína
observou-se um aumento da concentração da apo E na VLDL e
IDL, aumento da concentração da apo C na VLDL e até diferenças
nos receptores da apo B, E (?) (4).

Nos ratos alimentados com caseína, observou-se aumentos da


secreção hepática da VLDL, da apo C e diminuição da apo-A1 (4).

Os estudos de Kritchevsky (6) apontam pela primeira vez para


uma explicação de que o efeito hipercolesterolemiante poderá ser
devido ao aumento da relação lisina/arginina (7). A lisina inibe a
actividade da arginase hepática e deste modo pode disponibilizar
mais arginina para a síntese das apolipoproteínas ricas em
arginina. A adição de arginina à caseína produz redução do
colesterol (através da redução da HMG-CoA?).

De acordo com Descovich o efeito hipocolesterolemiante da


arginina é mais importante do que as modificações da lisina (8).

Outros aminoácidos tem sido implicados nestes importante


capítulo da aterosclerose. O triptófano provoca redução do
colesterol e dos triglicerídeos (3). A deficiência em colina produz
aterosclerose em ratos (5), enquanto a homocisteína é um
reconhecido factor de risco cardiovascular.

A composição em aminoácidos das proteínas alimentares


influencia os níveis pós prandiais dos aminoácidos, da insulina e
do glucagão (9). As proteínas de soja versus caseína contêm mais

169
Notas e Técnicas Epidemiológicas

arginina e glicina e induzem um aumento da arginina e da glicina


pós prandial e reduzem a relação insulina/glucagão pós prandial.
Por sua vez a caseína induz aumento da relação insulina/glucagão
pós prandial (10).

O objectivo do presente trabalho foi estudar os efeitos na


colesterolemia de ratos sujeitos à acção de quatro aminoácidos:
tirosina, lisina, triptófano e treonina em concentrações diferentes.

Material e métodos

Foram realizadas 7 experiências com ratos Wistar (machos) da


mesma idade e durante um mesmo período de tempo (30 dias).
Cada grupo de 16 ratos foi aleatoriamente dividido em dois
grupos, cada um com oito elementos. Um dos grupos continuaria
com a ração normal, e o outro ficaria sujeito à ração enriquecida
com o aminoácido em estudo. Antes de se iniciar a experiência,
cada grupo de animais foi submetido durante um mês à ração
normal (após a constituição do grupo controlo e grupo de
experiência).

Efectuou-se colheita de sangue na cauda de cada animal por


corte na extremidade, no início e fim da experiência. Cada animal
foi previamente anestesiado com éter.

As determinações do colesterol foram efectuadas segundo as


técnicas de rotina utilizadas no Instituto de Higiene e Medicina
Social.

170
Principais estudos epidemiológicos

Foram-no cedidos gratuitamente os aminoácidos tirosina, lisina,


triptófano e treonina, por parte da empresa INVE ( produtos
premix alimentares para animais).

Na experiência com tirosina utilizou-se uma concentração de


4,2%; com a lisina uma concentração de 3,4%; com o triptófano
uma concentração de 2,2% e com a treonina concentrações de
3,2%, 6,0% e 10,0%.

Utilizámos como tratamento estatístico a análise da variância


(TWO WAY ANOVA).

171
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Resultados

O quadro I revela os resultados do efeito da tirosina.

Quadro I. Tirosina e colesterolemia em ratos

Tipo de ração Colesterol inicial Colesterol final


(mg%) (mg%)

ração normal 82,2 (11,3) 94,6 (25,5)

ração c/ tirosina 79,8 (5,1) 83,4 (12,2)


a 4 2%
TWO WAY ANOVA: efeito da tirosina F=1,207; p=N.S.

O quadro II revela os resultados do efeito da lisina.

Quadro II. Lisina e colesterolemia em ratos

Tipo de ração Colesterol inicial Colesterol final


(mg%) (mg%)

Média (D.P.) Média (D.P.)

ração normal 60,1 (6,2) 90,2 (12,7)

ração c/ lisina a 67,7 (7,8) 93,5 (10,5)


3,4%

TWO WAY ANOVA: efeito da lisina, F=1,055; p=N.S.

172
Principais estudos epidemiológicos

O quadro III revela os resultados do efeito do triptófano.

Quadro III. Triptofano e colesterolemia em ratos

Tipo de ração Colesterol inicial Colesterol final


(mg%) (mg%)

Média (D.P.) Média (D.P.)

ração normal 80,3 (12,1) 95,8 (11,2)

ração c/triptófano a 70,9 (5,2) 93,1 (6,7)


2,2%

TWO WAY ANOVA: efeito do triptófano, F=0,9; p=N.S.

Os quadros IV a VI revelam os efeitos da treonina.

Quadro IV. Treonina e colesterolemia em ratos

Tipo de ração Colesterol inicial Colesterol final


(mg%) (mg%)

Média (D.P.) Média (D.P.)

ração normal 91,3 (14,8) 104,3 (22,1)

ração c/ treonina a 99,1 (8,8) 91,6 (10,3)


3,2%

TWO WAY ANOVA: efeito da treonina, F=3,242; p=0,102

173
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro V. Treonina e colesterolemia em ratos

Tipo de ração Colesterol inicial Colesterol final


(mg%) (mg%)

Média (D.P.) Média (D.P.)

ração normal 88,2 (19,5) 81,5 (12,1)

ração c/ treonina a 95,5 (19,7) 75,0 (8,7)


6,0%

TWO WAY ANOVA: efeito da treonina, F=4,460; p<0,05

Quadro VI. Treonina e colesterolemia em ratos

Tipo de ração Colesterol inicial Colesterol final


(mg%) (mg%)

Média (D.P.) Média (D.P.)

ração normal 96,6 (16,4) 98,0 (19,3)

ração c/ treonina a 101,4 (14,3) 88,4 (8,7)


10%

TWO WAY ANOVA: efeito da treonina, F=0,649; p=0,4301

174
Principais estudos epidemiológicos

Discussão

Relativamente à acção da tirosina verificámos que o grupo


alimentado com ração normal sofreu um aumento médio de 12,4
mg%, contra 3,4 mg% no grupo alimentado com o suplemento
de tirosina. Apesar de o aumento não ter sido tão intenso no
grupo da tirosina, as diferenças observadas não atingiram níveis
estatisticamente significativos.

Quanto à lisina observámos aumentos da mesma ordem de


grandeza nos dois grupos, não havendo quaisquer efeitos hipo ou
antihiperlipidemiante. O mesmo aconteceu com o triptófano. Os
aumentos verificados entre os valores iniciais e finais em ambos
os grupos podem ser explicados pelo facto de os animais em
estudo estarem numa fase de desenvolvimento.

Quanto aos três aminoácidos estudados já descritos o


denominador comum é a ausência de efeitos
hipocolesterolemiantes, ou no caso da tirosina efeitos muito
pouco significativos.

A abordagem do aminoácido treonina revelou-nos aspectos


diferentes. A primeira experiência com este aminoácido numa
concentração de 3,2% revelou uma diminuição média de 7,5
mg% contra um aumento de 13,0 mg% no grupo controlo.
Apesar da análise estatística não nos ter permitido retirar uma
conclusão concreta, constituiu pela primeira vez um achado, a
tendência hipocolesterolemiante da treonina. Este aspecto levou-
nos a realizar um segundo estudo, desta vez utilizando uma
concentração de treonina de 6,0%. Voltámos a observar uma

175
Notas e Técnicas Epidemiológicas

redução, desta feita da ordem dos 25,5mg%. A análise da


variância permitiu-nos concluir que a diferença observada era
significativa. A terceira experiência utilizando uma concentração
de tirosina mais elevada, da ordem dos 10,0% revelou
novamente uma redução da colesterolemia da ordem dos 13,0
mg%.

Dos quatro aminoácidos estudados a treonina constituiu o único


com efeitos hipocolesterolemiantes marcados.

O impacto destes achados nos seres humanos é ainda


desconhecido e por isso merece estudos mais aprofundados.

Se os futuros estudos apontarem para um real e eficaz efeito


positivo na colesterolemia dos seres humanos, por parte de
alguns aminoácidos, nomeadamente a treonina, tal facto
originará a necessidade de conhecer a concentração das
diferentes proteínas animais e vegetais no tocante aos
aminoácidos "protectores" e às suas relações, com o objectivo de
procurar novas "proteínas" naturalmente ricas em tais elementos.

Pensamos que a genética poderá contribuir para a selecção de


espécies cuja composição proteica se caracterize por um perfil
adequado e protector não só em relação à população em geral,
mas sobretudo aos que sofrem de hipercolesterolemia com o
objectivo de contribuir para a melhoria e bem-estar das
comunidades.

176
Principais estudos epidemiológicos

Bibliografia

1. Sirtori C. R. - Studies on the mechanism of the


hypocholesterolemic activity of the soybean protein diet. In
Lipoprotein and Coronary Atherosclerosis. G. Noseda, C.
Fragiacomo, R. Fumagalli and R. Paoletti Editors. Elsevier
Biomedical, 1992.

2. Newburgh L.H., Clarkson S. - Production of atherosclerosis in


rabbits by diets rich in animal protein. J. Am. Med. Assoc.
79:1106-1108,1922

3. Kritchevsky D. - Dietary protein and experimental


atherosclerosis. In Nutrition in Cardio-Cerebrovascular Diseases.
Annals of the New York Academy of Sciences. Pag.180-187. Vol.
676, 1993

4. Sirtori C. R., Even R., Lovati M.R. - Soybean protein diet and
plasma cholesterol: from therapy to molecular mechanisms- In
Nutrition in Cardio-Cerebrovascular Diseases. Annals of the New
York Academy of Sciences. Pag.188-201. Vol. 676, 1993.

5. Widhalm K. - Effect of diet on serum lipids and lipoproteins in


hyperlipidemic children. In Nutritional effects on cholesterol
metabolism. A.C. Beynen Ed.:133-140. Transmondial.
Voorthuizen.

6. Kritchevsky D., Tepper S.A., Czarnecki S.K., Klurfeld D.M. -


Atherogenicity of animal and vegetable protein. Influence of the
lysine to arginine ratio. Atherosclerosis 41:429-431,1982.

177
Notas e Técnicas Epidemiológicas

7. Kritchevsky D., Tepper S.A., Czarnecki S.K., Mueller M.A.,


Klurfeld D.M.- Effects of dietary protein on lipid metabolism in
rats.In Lipoprotein and Coronary Atherosclerosis. G. Noseda, C.
Fragiacomo, R. Fumagalli and R. Paoletti Editors. Elsevier
Biomedical, 1992.

8. Descovich G.C., Benassi M.S., Cappelli M., Gaddi A., Grossi G.,
Piazzi S., Sangiorgi Z., Mannino G., Lenzi S. - Metabolic effects of
lecithinated and non-lecithinated textured soy protein treatment
in hypercholesterolemia. In Lipoprotein and Coronary
Atherosclerosis. G. Noseda, C. Fragiacomo, R. Fumagalli and R.
Paoletti Editors. Elsevier Biomedical, 1992.

9. Sanchez A., Hubbard R.W. - Plasma amino acids and the


insulin/glucagon ratio as an explanation for the dietary protein
modulation of atherosclerosis. Med. Hypotheses 35:324-329,
1991.

10. Horigome T., Cho Y.S. - Dietary casein and soybean protein
affect the concentration of serum cholesterol, trglyceride and free
amino acids in rats. J. Nutr. 122:2273-2282, 1992.

Estudos transversais

As principais características destes tipos de estudo baseiam-se na


rapidez, na “facilidade” de execução e também na economia.

Para fazer epidemiologia é indispensável ter dados provenientes


de registos sistemáticos. Entre nós não há tradição nesta matéria

178
Principais estudos epidemiológicos

e praticamente o único registo sistemático que dispomos consiste


nos dados de mortalidade do INE.

Existem igualmente esboços de registos de morbilidade. No


entanto a acuidade e fidelidade dos mesmos levantam alguns
problemas.

Sem a quantificação de um fenómeno é praticamente impossível


resolvê-lo. Por isso há necessidade de empregar esta metodologia
para quantificar e consequentemente termos como ponto de
partida elementos que nos permitam uma análise comparativa,
avaliando a qualidade da intervenção proposta.

Num inquérito o investigador limita-se a analisar as variáveis sem


ter qualquer interferência no estudo. Limita-se a registar os
dados, obtidos através de métodos correctos.

Desconhecemos a prevalência da migraine em Portugal. Temos a


noção de que se trata de um fenómeno importante com impacto
em termos de saúde pública, devido à abstenção laboral, além do
sofrimento pessoal. Apesar de não constituir um assunto que
ponha em causa (em princípio) a vida das pessoas (não esquecer
que trabalhar sob o efeito da migraine pode conduzir a erros
graves, susceptíveis de provocar lesões em terceiros ou no
próprio...), é importante conhecer “quantos” portugueses sofrem
desta moléstia.

Para o efeito o investigador deverá utilizar um instrumento


previamente validado e aplicá-lo a um ou mais grupos da
população de forma a poder inferir a proporção de migrainosos e
a sua distribuição pelos sexos e grupos etários.

179
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O trabalho seguinte ilustra a metodologia usadas para conhecer a


prevalência da migraine na região Centro de Portugal.

Epidemiologia da migraine na região Centro de Portugal2

Introdução

A migraine é uma das afecções com mais elevada prevalência.


Apesar de não ser sinónimo de mortalidade, constitui uma grande
preocupação social e económica, além de um mal-estar por vezes
incapacitante.

Até ao momento foram efectuados vários estudos, com o


objectivo de estudar a prevalência desta doença. Walter F.
Stewart e col.1 efectuaram uma revisão sobre o tema. A análise
do estudo revela-nos resultados muito díspares, atendendo não
só às metodologias aplicadas, como também às populações
estudadas.

Dentro dos estudos efectuados e que respeitaram os critérios


definidos pela IHS (International Headache Society) (quatro
segundo Stewart), a prevalência da migraine é de 6% nos
homens e de 15 a 17% nas mulheres.

A prevalência varia com a idade, aumentando até à idade dos 40


anos e diminuindo depois em ambos os sexos1,2.

2
Trabalho realizado por: Salvador Massano Cardoso, Luís Cunha, Carlos
Ramalheira, e Lívia de Sousa

180
Principais estudos epidemiológicos

O presente estudo teve como objectivo conhecer a prevalência da


migraine na população portuguesa da região Centro do País.

Para o efeito utilizámos o questionário já testado e aplicado por P.


Henry e col.3 de acordo com os critérios da IHS. Atendendo às
notáveis características operativas ( sensibilidade e especificidade
elevadas) aliadas à simplicidade na sua aplicação (auto
questionário), procedemos à realização de três estudos: num
grupo de trabalhadores activos, num grupo de estudantes
universitários e um terceiro em estudantes do ensino secundário.

Desta forma abrangemos uma população significativa entre os 10


e os 60 anos. Assim foi possível obter elementos que permitiram
conhecer a prevalência da migraine na região Centro do País,
além de outras características inerentes a esta situação.

Em Portugal a prevalência da migraine aproxima-se daquela que


se verifica noutros estudos, embora com cifras um pouco
inferiores: 4,3% nos homens e 12,6% nas mulheres nas idades
compreendidas entre os 10 e os 60 anos.

Material e métodos

Para a realização do estudo efectuámos três trabalhos incidindo


em três populações distintas: uma população de trabalhadores
activos, uma outra constituída por estudantes universitários e
uma terceira por estudantes do ensino secundário.

181
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quanto à primeira – trabalhadores activos – aplicámos o inquérito


a 892 trabalhadores (579 homens e 312 mulheres)♦ no decurso
de exames periódicos e de admissão de um serviço de medicina
do trabalho (PT-ACS de Coimbra). Por Lei, os trabalhadores são
sujeitos a exames médicos no decurso da actividade profissional.
Estamos perante uma amostra representativa da população activa
da zona Centro, englobando trabalhadores de ambos os sexos, de
todos os estratos sociais, económicos e culturais, os quais
aderiram ao projecto que durou cerca de 6 meses a realizar.

O segundo estudo foi efectuado na Universidade de Coimbra


durante o mês de Março de 1999, em todas as Faculdades. O
questionário foi aplicado a 687 estudantes (364 do sexo
masculino e 317 do sexo feminino)♦. A aplicação do questionário
decorreu durante o mês de Março.

O terceiro estudo incidiu sobre 813 estudantes do ensino


secundário da região Centro (403 rapazes e 403 raparigas de
Coimbra, Aveiro, Viseu, Leiria, Castelo Branco, Guarda e Viseu). A
aplicação do questionário decorreu durante o mês de Maio.


O facto de o somatório dos inquéritos masculinos e femininos ser inferior à
cifra global, deve-se ao facto de nalguns deles não constarem o sexo

182
Principais estudos epidemiológicos

Quadro I. Distribuição das amostras

Total Homens Mulheres


Trabalhadores 37,3% 43,0% 30,2%
(n=892) (n=579) (n=312)
Estud. 28,7% 27,0% 30,8%
Universitários (n=687) (n=364) (n=317)
Estud. 34,0% 30,0% 39,0%
Secundário (n=813) (n=403) (n=403)
Total 100,0% 100,0% 100,0%
(n=2.392) (n=1.346) (n=1.032)

Questionário

Aplicámos o questionário elaborado por P. Henry e col.3. O


questionário apresenta uma sensibilidade de 95% e uma
especificidade de 78%. Comporta dez perguntas.

1. Costuma ter dores de cabeça? Não Sim (Em caso de


responder sim preencha o quadro seguinte)

2. Costuma ter dores de cabeça todos os dias? Não Sim


Não sabe

3. Quanto tempo dura as dores de cabeça sem tratamento?


Menos de 4 horas Entre 4 e 72 horas Mais de 72 horas
Não sabe

183
Notas e Técnicas Epidemiológicas

4. Em que sítio sente habitualmente as dores de cabeça?


Metade da cabeça Às vezes do lado esquerdo e outras do
lado direito Não sabe

5. As dores de cabeça são do tipo latejar? Não Sim Não


sabe

6. As dores de cabeça impedem-no habitualmente de executar


as tarefas normais? Não Sim Não sabe

7. As dores de cabeça agravam-se durante a actividade física?


Não Sim Não sabe

8. As dores de cabeça acompanham-se de náuseas e vómitos?


Não Sim Não sabe

9. 9a. Quando tem as dores de cabeça não suporta a luz?


Não Sim Não sabe

10.9b. Quando tem as dores de cabeça não suporta o ruído?


Não Sim Não sabe

11.Já teve mais de 4 crises de dores de cabeça ao longo da


vida? Não Sim Não sabe

Com base no algoritmo elaborado por P. Henry e col.3 (figura 1),


foi possível definir várias situações: possível migraine, cefaleias
não migrainosas, migraine “borderline” e migraine IHS (
International Headache Society). Para efeitos do presente estudo

184
Principais estudos epidemiológicos

epidemiológico associámos a migraine IHS + migraine


“borderline” num único grupo: migraine.

Figura 1. Algoritmo do diagnóstico da migraine3 .

185
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Calculámos a prevalência das diversas situações por sexos,


grupos etários e ajustámos a prevalência da migraine à população
portuguesa dos 10 aos 59 anos de idade, com base nas
populações projectadas para o nosso país em 1999 (com base
nos censos de 1981 e 1991 do INE). Deste modo reduzimos o
peso do factor idade, o qual podia constituir um enviesamento
dada à natureza das amostras populacionais estudadas.

Calculámos os odds ratio das diferentes variáveis entre sexos, de


forma a caracterizar os resultados de uma forma clinicamente
aceitável.

Para efeitos do cálculo dos odds ratio utilizámos o programa


Power and Precison (Biostat, Inc. 1421 Hudson Road, Teaneck,
New Jersey 07666, USA) o qual possibilitou igualmente avaliar a
precisão e a potência dos vários cálculos.

Autorizações

Os questionários aplicados aos estudantes foram anónimos.

Os Conselhos Directivos de todas as Faculdades deram


autorização para a aplicação do questionário no final das aulas.
Obtivemos autorização junto das autoridades competentes para a
aplicação do questionário aos estudantes do ensino secundário.

No tocante ao questionário aplicado aos trabalhadores activos, o


inquérito foi confidencial, tendo obtido a anuência de cada
trabalhador por escrito. A Administração da Portugal Telecom -

186
Principais estudos epidemiológicos

Associação Cuidados de Saúde (PT-ACS) deu autorização à


realização deste estudo.

Resultados

O quadro II revela os resultados globais da prevalência da


migraine, das cefaleias não migrainosas e da ausência de
cefaleias no conjunto homens mais mulheres e separadamente.

Quadro II. Prevalência da migraine, cefaleias não migrainosas e


ausência de cefaleias por sexos.

Total Mulheres Homens


(n=2377) (n=1.032) (n=1.345)
Migraine 7,1% 10,6% 4,5%
(6,1–8,2) (8,9–12,6) (3,5 – 5,7)
Cefaleias 21,5% 24,1% 19,8%
não (19,9–23,2) (21,6–26,8) (17,8 – 22,0)
migrainosas
Ausência de 45,6 29,4% 57,5%
cefaleias (43,6– 47,6) (26,7–32,3) (54,8 – 60,1)

O quadro III permite-nos avaliar os odds ratio entre


mulheres/homens e os respectivos intervalos de confiança.

187
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro III. Odds Ratios por sexos.

Odds ratio

Mulheres/Homens

(Int. Conf. 95%)


Migraine 2,52 (1,82 – 3,48)
Cefaleias não 1,29 (1,06 – 1,56)
migrainosas
Ausência de 0,31 (0,26 – 0,37)
cefaleias
Cefaleias 3,11 (2,62 – 1,31)

O quadro IV e a figura 2 revelam-nos a prevalência ajustada da


migraine na região Centro entre os 10 e os 59 anos.

Quadro IV. Prevalência ajustada da migraine na região Centro


entre os 10 e os 59 anos.

Total Mulheres Home


ns
Prevalência Ajustada 7,27% 12,66% 4,35%
Migraine
Por idade (10 – 59 anos)

188
Principais estudos epidemiológicos

Prevalência ajustada da Migraine (10-59 anos)

14
12
10
8
%
6
4
2
0
Homens Mulheres Total

Figura 2. Prevalência da migraine por grupos etários, por


sexos

O quadro V. descreve a prevalência de um conjunto de variáveis


e os respectivos odds ratio mulheres/homens no grupo de
indivíduos que apresentam cefaleias.

189
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro V. Frequência na região Centro entre os 10 e os 59 anos.

Cefaleias Mulheres Homens Odds ratio

Mulheres/Home
ns

(Int. Conf.
95%)
Impeditivas 45,8% 43,0% 1,12
de Tarefas (n=722) (n=561) (0,90 – 1,40)
Agravamento 44,7% 40,6% 1,18
Act. Física (n=721) (n=559) (0,95 – 1,48)
Cefaleias 7,1% 6,7% 1,06
todos os dias (n=731) (n=571) (0,69 – 1,64)
Dores tipo 58,6% 47,9% 1,54
latejar (n=722) (n=557) (1,23 – 1,92)
Náuseas e 20,0% 14,0 1,54
vómitos (n=730) (n=563) (1,14 – 2,07)
Intol. Luz 42,0% 41,5% 1,02
(n=724) (n=561) (0,82 – 1,28)
Intol. Ruído 56,8% 51,1% 1,26
(n=729) (n=564) (1,01 – 1,57)
>4 crises 71,5% 63,8% 1,42
(n=730) (n=567) (1,13 – 1,80)

O quadro VI e a figura 3 descrevem a prevalência da migraine por


grupos etários, por sexos e os respectivos odds ratio.

190
Principais estudos epidemiológicos

Quadro VI. Prevalência da migraine por grupos etários, por sexos


e odds ratio.

Mulheres Homens Odds ratio

Mulheres/Homens

(Int. Conf. 95%)


10 – 19 6,7 % 5,1% 1,34 (0,77 – 2,32)
anos (n=462) (n=469)
20 – 29 10,0% 4,9% 2,16 (1,15 – 4,03)
anos (n=280) (n=346)
30 – 39 15,8% 3,0% 6,07 (2,14 – 17,23)
anos (n=95) (n=168)
40 – 49 23,6% 3,6% 8,27 (3,60 – 19,01)
anos (n=110) (n=222)
50 – 59 7,4% 5,1% 1,49 (0,44 – 5,08)
anos (n=68) (n=118)

191
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Prevalência da Migraine por sexos

25
20
15
%
10
5
0
10 – 19 20 – 29 30 – 39 40 – 49 50 – 59
anos anos anos anos anos

M H

Figura 3. Prevalência da migraine por grupos etários, por sexos

O quadro VII revela-nos a prevalência de ausência de cefaleias


por grupos etários e sexo.

192
Principais estudos epidemiológicos

Quadro VII. Prevalência da ausência de cefaleias por grupos


etários, por sexos e odds ratio.

Mulheres Homens Odds ratio

Mulheres/Ho
mens

(Int. Conf.
95%)
10 – 19 22,1 % 42,6% 0,38
anos (n=462) (n=469) (0,29 – 0,51)
20 – 29 30,7% 63,6% 0,25
anos (n=280) (n=346) (0,18 – 0,35)
30 – 39 41,1% 68,5% 0,32
anos (n=95) (n=168) (0,19 – 0,54)
40 – 49 39,1% 70,3% 0,27
anos (n=110) (n=222) (0,17 – 0,44)
50 – 59 42,6% 59,3% 0,51
anos (n=68) (n=118) (0,28 – 0,93)

Discussão e Conclusões

O presente estudo permite-nos, não obstante alguns pormenores


de representatividade, estabelecer a prevalência da migraine na
região Centro do País.

Com base nas três amostras populacionais, cada uma delas com
potência e precisão suficientes para o cálculo da prevalência da

193
Notas e Técnicas Epidemiológicas

migraine nos respectivos grupos, foi possível estimar a


prevalência da migraine (migraine “borderline” e migraine IHS)
de acordo com um algoritmo de diagnóstico já testado (com
elevada sensibilidade e especificidade face aos critérios da
Sociedade Internacional da Migraine –IHS) em Portugal.

A prevalência da migraine é da ordem dos 7,1% para ambos os


sexos, sendo 10,6% (Int. Conf. 95%: 8,9 a 12,6%) nas mulheres
e 4,5% (Int. Conf: 95%: 3,5 a 5,7%) nos homens. Atendendo às
características das amostras foi necessário efectuar um
ajustamento do factor idade. Deste modo a prevalência ajustada
passou a ser de 12,66% nas mulheres e 4,35% nos homens.

Verificámos que a prevalência da migraine sofre variações ao


longo da idade. Enquanto nos homens as variações são pequenas,
nas mulheres observámos que a prevalência aumenta com a
idade atingindo o máximo no grupo dos 40-49 anos (23,6%)
descendo no grupo etário imediato (50-59 anos) para os 7,4%.

Torna-se igualmente interessante verificar que as cefaleias não


migrainosas são mais frequentes nos grupos etários mais novos
(10-19 anos e 20-29 anos) em ambos os sexos, diminuindo nos
grupos etários seguintes, voltando a aumentar a partir dos 50-59
anos.

No caso das cefaleias migrainosas e à excepção dos jovens dos


10-19 anos, a prevalência é significativamente superior nas
mulheres, atingindo odds ratio na ordem dos 6,07 e 8,27
respectivamente nos grupos dos 30-39 e 40-49 anos.

194
Principais estudos epidemiológicos

No caso das cefaleias não migrainosas não houve predomínio de


qualquer dos sexos.

O mesmo não aconteceu quando se analisa a prevalência de não


cefaleias. Não há quaisquer dúvidas de que as cefaleias são mais
prevalentes no sexo feminino. Somente 29,4% das mulheres
referem não terem tido cefaleias versus 57,5% nos homens. O
fenómeno manifesta-se em todos os grupos etários estudados.

Neste estudo não foram abordadas as pessoas com menos de 10


e com mais de 60 anos.

A população estudada revela que as cefaleias são impeditivas das


tarefas numa percentagem elevada quer nos homens, quer nas
mulheres (43,0% e 45,8%) e são agravadas pela actividade física
em percentagens semelhantes.

Chamamos a atenção para uma percentagem de homens e


mulheres que referem sofrerem cefaleias todos os dias (6,7% dos
homens e 7,1% das mulheres).

Numa percentagem razoável, as cefaleias acompanham-se de


náuseas e vómitos. A percentagem dos que referem intolerância à
luz é ultrapassada pela intolerância ao ruído e por dores tipo
latejar.

Mais de 60% dos homens e mais de 70% das mulheres afirmam


terem tido mais de 4 crises.

195
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A migraine é responsável por perdas de dias de trabalho, ou


quando não faltam ao trabalho a situação interfere com a
actividade profissional, originando perdas de produtividade
bastante elevadas.

Uma projecção imediata com base nos nossos dados permite-nos


estimar a existência de cerca de 650.000 portugueses sofrendo
de migraine entre os 10 e os 59 anos, sendo 165.000 homens e
485.000 mulheres.

Com base numa subamostra de trabalhadores com migraine foi


possível calcular uma perda da ordem de 3,74 dias de trabalho
por cada 100 dias de trabalho activo. Atendendo à existência de
centenas de milhares de indivíduos com migraine, não é difícil
estimar em centenas de milhares os dias de trabalho perdidos em
Portugal, devido a esta situação.

Na grande maioria dos casos os migrainosos não faltam ao


trabalho. No entanto trabalhar em circunstâncias desfavoráveis
compromete a qualidade do trabalho, além do desconforto
provocado. Cerca de 88% dos que referem sofrer de migraine
afirmam que a mesma prejudica a qualidade da actividade
pessoal...

Aliás estes aspectos não são originais, já que estudos efectuados


noutros países apontam para prejuízos anuais superiores a um
bilião de dólares por ano (USA)4.

Face à revisão de Stewart3 verificámos alguma concordância com


os dados apresentados. No entanto a prevalência em Portugal é

196
Principais estudos epidemiológicos

inferior nos homens (4,35% vs. 6,0%) e nas mulheres (12,6%


vs. 15-17%).

A prevalência também aumenta com a idade. Só que em Portugal


aumenta até aos 40-49 anos, diminuindo depois. O aumento da
prevalência com a idade está bem patenteado nas mulheres, mas
não nos homens, onde até se observou uma redução nas idades
médias, facto que afasta os homens portugueses dos seus
congéneres de outros povos.

Agradecimentos

Os autores agradecem a colaboração de todos os intervenientes,


nomeadamente ao Conselho de Administração da PT-ACS pelas
facilidades concedidas, à Exmª Sr.ª Dr.ª Noémia Rolo responsável
regional do Programa de Formação e Educação para a Saúde e
coordenadora da Saúde Escolar da DREC e a ao aluno do 4º ano
de Epidemiologia Francisco José de Oliveira Cabrita pelo apoio na
aplicação dos inquéritos aos alunos do ensino secundário e
universitário respectivamente.

Bibliografia

1. Stewart WF; Shechter A; Rasmussen BK. Migraine Prevalence


– a review of population-based studies. Neurology 1994;
44(suppl 4) S17-S23.

2. Stewart WF; Shechter A; Lipton R. Migraine heterogeneity –


Disability, pain, intensity, and attack frequency and duration.
Neurology 1994; (suppl 4): S24-S39.

197
Notas e Técnicas Epidemiológicas

3. Henry P; Michel P; Brochet B et al. A nationwide survey of


migraine in France: prevalence and clinical features in
adults.Cephalalgia 1992; 12:229-237.

4. Sanvito WL; Monzilo PH; Peres MFP et al. The Epidemiology of


Migraine in Medical Students. Headache 1996: 36: 316-319.

198
Epidemiologia clínica

Introdução

Tem havido muita controvérsia acerca da individualização da


Epidemiologia Clínica. Independentemente da discussão gerada
no início, podemos considerar a Epidemiologia Clínica como uma
disciplina aplicada da Epidemiologia Geral.

De acordo com Feinstein podemos afirmar que a grande diferença


existente entre as “duas” disciplinas, reside nos “denominadores”.
As disciplinas clínicas constituem hoje em dia um dos principais
componentes da “faceta” biológica do epidemiologista.

Uma das principais estratégias da Epidemiologia consiste na


colaboração com o sector clínico de uma forma concisa e
permanente.

Há muitas áreas de investigação epidemiológica que “tropeçam”


num beco sem saída, por falta de hipóteses viáveis. As fronteiras
da Epidemiologia estão a alargar-se de ano para ano graças a um
conjunto de factores dos quais destacamos: o ressurgimento da
cólera, o aumento das doenças sexualmente transmissíveis, o
“reaparecimento” da tuberculose, o aparecimento de novas
doenças, a emergência de epidemias não infecciosas (Chernobyl e
Bhopal), a necessidade de esclarecimento da etiologia de doenças
não infecciosas, o conhecimento da epidemiologia da saúde e a
Notas e Técnicas Epidemiológicas

atenção à eficácia dos serviços de saúde (prevenção, tratamento


e reabilitação).

Como já afirmámos a Epidemiologia “Geral” e Clínica utilizam


metodologias idênticas. As diferenças consistem
fundamentalmente nos denominadores.

A necessidade de conhecer a fundo os métodos, fornece


vantagens para que a obtenção da informação seja mais correcta
e mais próxima da “realidade”.

Podemos afirmar que todas as etapas da actividade clínica


beneficiam destes conhecimentos: diagnóstico clínico, selecção
dos testes de diagnóstico, interpretação dos dados, diagnóstico
precoce, elaboração do prognóstico, decisão da melhor
terapêutica e avaliação dos serviços prestadores de cuidados.

No nosso dia-a-dia clínico utilizamos basicamente quatro tipos de


estratégias de diagnóstico clínico:

1. Reconhecimento padrão (método gestalt)

2. Estratégia de ramos de árvore (algoritmos)

3. Estratégia exaustiva (colheita de todos os dados os quais


permitem chegar ao diagnóstico)

4. Hipotético-dedutiva (a única utilizada por quase todos os


médicos durante quase todo o tempo).

Vários estudos epidemiológicos permitem revelar que a última, é


a estratégia mais utilizada.

200
Epidemiologia clínica

Decisão clínica

Um dos principais problemas com que os médicos se defrontam


no seu dia a dia, prende-se com falta de informação ou
informações incompletas. As suas decisões são tomadas de
acordo com aquilo que espera ser o resultado mais provável. Este
comportamento é intuitivo, mas nunca ao acaso. Trata-se de um
processo heurístico. O médico actua de uma forma inconsciente
(processo cognoscitivo), o que lhe permite calcular uma
estimativa de probabilidade em que predomina uma experiência
prévia.

Um médico ao tentar resolver um problema é obrigado, por


vezes, a tomar decisões importantes, de diagnóstico ou
prognóstico, mesmo quando a informação é incompleta, ou os
resultados são ainda insuficientes.

Quando um médico se encontra face a um doente com um


conjunto de sinais e sintomas, procede de imediato a uma
comparação com o “padrão” típico da afecção que reside na sua
memória. Se houver uma sobreposição da maioria dos sinais e
sintomas, pode concluir pelo diagnóstico, caso contrário terá de
proceder a nova hipótese. No entanto esta estratégia é por vezes,
fonte de alguns erros. Como exemplos apontamos: o
desconhecimento da probabilidade de doença a priori, a utilização
de sinais ou sintomas inadequados ou redundantes, fenómeno de
regressão para a média, etc..

A técnica de análise de decisão é uma técnica que foi inicialmente


utilizada pelos homens de negócios. A medicina acabou por se

201
Notas e Técnicas Epidemiológicas

aproveitar dos mesmos princípios, a fim de melhorar as suas


actividades.

As regras de decisão clínica permitem ao médico actuar com mais


segurança, defendendo-o de situações menos agradáveis e
melhorando a sua performance, evitando a sobrecarrega do
excesso de exames, os quais não vão aumentar a informação,
resultante de uma anamnese mais cuidadosa.

Hoje em dia, podemos observar um grande consumo de


informação, por parte dos médicos. O excesso de informação
pode ser fonte de problemas, na medida em que é usada com
pouca eficiência, sobretudo nos casos mais complexos.

Se o clínico utilizar a informação com regras claras e explícitas


obtêm resultados muito mais reprodutíveis e válidos, do que
baseando-se apenas em aspectos predominantemente
“intuitivos”.

A análise de decisão não é mais do que um instrumento


matemático destinado a facilitar decisões clínicas complexas, nas
quais existem muitas variáveis, as quais tem de ser utilizadas
simultaneamente.

Este procedimento analítico vai seleccionar entre várias opções


terapêuticas ou diagnósticos, baseadas numa probabilidade pré
determinada e nas possíveis consequências das opções tomadas.

Podemos apontar algumas das vantagens inerentes à análise de


decisão clínica: justificação mais fácil de um diagnóstico ou
tratamento face à realidade, às companhias de saúde e ao poder
judicial, entre outros. Por outro lado, as consequências

202
Epidemiologia clínica

resultantes das actividades adoptadas, com base nesta técnica,


vai de encontro ao que previamente foi enunciado.

Para efectuar uma análise de decisão clínica devemos em


primeiro lugar, delimitar com precisão o problema. O tema deverá
ser claro, explícito e incluir toda a informação necessária para ser
distinguido de outros semelhantes.

A árvore de decisão é um mapa que associa todos os passos a


tomar e também as consequências resultantes das selecções (
figura 1).

A representação gráfica da árvore de decisão clínica, vai-nos


permitir visualizar o programa, as alternativas da acção e as
consequências. Para isso utiliza-se uma série de símbolos e linhas
de relação entre eles.

Assim os quadrados, designados nós de decisão, constituem as


alternativas de acção nos processos que estão sujeitos à vontade
de quem efectua a análise.

O primeiro nó de uma árvore de decisão é sempre um nó de


decisão (quadrado). Os círculos são designados nós de
probabilidade e representam consequências que vão decorrer com
uma determinada probabilidade (não estão sob o controlo directo
do decisor).

Na construção de uma árvore de decisão há necessidade de


calcular a probabilidade de ocorrência de cada uma das
consequências. O somatório deverá ser igual à unidade.

Quanto ao valor das consequências depende de vários factores.


Assim, à cura completa de uma situação será atribuído um valor

203
Notas e Técnicas Epidemiológicas

de 1,0, enquanto a morte terá um valor de 0. Entre os dois


fenómenos existe uma panóplia de situações, de acordo com a
qualidade de vida resultante e que receberão valores de
“utilidade” diferentes.

Na grande maioria das situações a cura não é completa. A técnica


para calcular a utilidade é designada como “negociar com o
tempo”.

Um conceito muito importante é calcular a “utilidade esperada”.


Para isso é necessário calcular a probabilidade da ocorrência de
qualquer processo em qualquer ramo da árvore. O cálculo da
“utilidade esperada” poderá ser obtido através da multiplicação
da direita para a esquerda da probabilidade de cada nó, pelo
prévio até chegar ao nó de decisão. Anotamos esse resultado até
ao extremo direito de cada ramo.

Os valores obtidos terão de somar 1, em cada nó de decisão.

Os valores de “utilidade esperada” serão multiplicados pelo valor


de utilidade atribuída ao tratamento ou diagnóstico. Em seguida
somam-se dentro de cada nó de decisão. O valor resultante
designa-se utilidade esperada e representam um valor ponderado
se se tomasse tal decisão.

A decisão é tomada em função dos valores de utilidade esperada


para cada nó de decisão (valor mais elevado).

A análise de decisão clínica é uma técnica, entre muitas outras,


que provam a importância da epidemiologia.

Os médicos devem “dominar” esta disciplina independentemente


da sua especialidade. As vantagens são óbvias: melhoria do

204
Epidemiologia clínica

desempenho, enriquecimento do conhecimento médico e


resolução mais eficaz dos problemas de saúde.

A seguinte árvore de decisão ilustra os passos a seguir para


efeitos de selecção de terapêutica num determinado caso:

Perante uma situação A, o médico decide ou não pelo tratamento.


No caso de decidir pelo tratamento, sabe que existe 90% de
probabilidade de sobreviver e 10% de morrer. No caso de
sobrevivência a probabilidade de cura completa ocorre em 70%
dos casos, a melhoria em 20% e uma melhoria duvidosa em
10%.

A partir destes dados a probabilidade de ocorrência de cada um


dos três estados de saúde é fornecido pela multiplicação da
probabilidade de sobrevivência vezes a probabilidade da
ocorrência.

Assim no caso da cura completa a probabilidade será (0,90*0,70


= 0,63) de 63%.

O médico atribui uma utilidade máxima de 1,0 a este último caso,


uma utilidade de 0,8 e de 0,5 respectivamente à melhoria parcial
e à melhoria respectivamente.

A utilidade esperada obtêm-se multiplicando os valores da


utilidade observada pela probabilidade de ocorrência do estado de
saúde.

Para a cura completa a utilidade esperada será de 0,144


(0,18*0,8) e para a melhoria duvidosa 0,045 (0,09*0,5).

205
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O somatório das utilidades esperadas neste grupo é igual a


0,819.

Procedendo da mesma forma para o não tratamento, verificamos


que o somatório da utilidade esperada é de 0,845.

Deste modo, o clínico opta por não submeter o doente ao


tratamento.

Probabilidade Utilidade
Esperada
Utilidade

Cura
Completa
0,63 1,0 0,63
0,70
Vive
0,90
Melhoria
Parcial 0,18 0,8 0,144
0,20
Com
Tratamento
Melhoria
Duvidosa 0,09 0,5 0,045
0,10

Situação
A
Morre 0,10 0,0 0,00
0,10
Total: 0,819

Sem Cura
0,55 1,0 0,55
Tratamento Espontânea
0,55

Melhoria
0,30 0,8 0,24
Parcial
0,30

Melhoria
Duvidosa 0,10 0,5 0,05
0,10

Morre
0,05 0,0 0,00
0,05

Total: 0,840

Figura 1. Árvore de decisão

206
Epidemiologia clínica

Utilizando os dados da seguinte árvore de decisão, o leitor poderá


verificar que neste caso o médico optará pela terapêutica.

Probabilidade Utilidade
Esperada
Utilidade

Cura
Completa
0,760 1,0 0,760
0,80
Vive
0,95
Melhoria
Parcial 0,1425 0,8 0,114
0,15
Com
Tratamento
Melhoria
Duvidosa 0,0475 0,5 0,0238
0,05

Situação
B
Morre 0,05 0,0 0,00
0,05
Total: 0,898

Sem Cura
0,2 1,0 0,20
Tratamento Espontânea
0,20

Melhoria
0,20 0,8 0,16
Parcial
0,20

Melhoria
Duvidosa 0,30 0,5 0,15
0,30

Morre
0,30 0,0 0,00
0,30

Total: 0,51

Figura 2. Árvore de decisão.

207
Notas e Técnicas Epidemiológicas

NNT (número necessário para tratamento)

Dentro das medidas para avaliar a eficácia de um tratamento ou


de um diagnóstico, aspectos muito importantes em termos de
decisão clínica, apresentamos a seguinte: NNT (number need to
treat) - número necessário para tratamento.

O objectivo do NNT é exprimir a eficácia em termos do número de


doentes que um clínico necessita tratar, para prevenir um
determinado acontecimento.

Fácil de calcular, reduz para um plano “secundário” outras


medidas, nomeadamente as reduções do risco relativo quando
expressos em termos de percentagem.

Para calcular o NNT necessitamos de dois elementos: a proporção


dos acontecimentos no grupo A (pA) e a proporção dos
acontecimentos no grupo B (pB).

O NNT é o inverso da diferença da proporção dos dois


acontecimentos:

NNT = 1 / p A − p B

Vejamos agora a relação entre três medidas de eficácia: risco


relativo, aumento proporcional e odds ratio da acção de uma
determinada terapêutica (grupo A) versus um grupo controlo B.

No final do estudo a proporção de óbitos no grupo A foi 0,03 e no


grupo B foi 0,06.

Risco relativo = pA / pB = 0,03/0,06 = 0,5

Aumento proporcional = (pA - pB)/ pB = - 0,03/0,06 = -50%

208
Epidemiologia clínica

Odds ratio = (pA / pB)* (qB / qA) = (0,03/0,06)*(0,94/0,97) =


= 0,485

Podemos observar que as medidas de eficácia apresentadas


revelam uma redução de 50% dos óbitos no grupo sob
terapêutica, um odds ratio de 0,485 e um risco relativo de 0,5;
cifras francamente “avassaladoras”1, traduzindo uma eficácia que
dificilmente se pode pôr em causa.

Vamos analisar de seguida o NNT.

NNT = 1/|0,03 - 0,06| = 33,33

Esta cifra significa que apenas um em cada 33 indivíduos tratados


beneficiam com a terapêutica instituída, apesar da redução de
50% no número de óbitos verificado no grupo A.

Talvez seja mais realista e mais compreensível esta forma de


apresentar os dados, do que as primeiras, sobretudo quando o
evento a estudar é a morte.

Analisando o estudo 4S (Scandinavian Simvastatin Survival


Study), verificamos uma mortalidade por causas coronárias de
8,5% e de 5,0% nos grupos placebo (189/2223) e sob
terapêutica (111/2221), respectivamente.

O risco relativo foi de 0,58 (int. conf. 0,46 - 0,79). O aumento


proporcional foi de - 41,17%.

1
Naturalmente que é necessário conhecer os respectivos intervalos de
confiança, para podermos fazer afirmações desta natureza (ver respectivo
capítulo).

209
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quando analisamos todas as doenças cardiovasculares,


verificamos que o risco relativo foi de 0,65 (int. conf. 0,52 - 0,80)
e o aumento proporcional foi de -34,41%.

No tocante a todas as causas de óbito, os autores observaram


256 óbitos (em 2223) no grupo placebo e 182 óbitos (em 2221
no grupo sob terapêutica).

O risco relativo foi de 0,70 (int. conf. 0,58 - 0,85) e o aumento


proporcional foi de - 28,7%.

Neste trabalho não foram apresentados os NNT.

Vejamos o que acontece a cada um dos grupos que acabamos de


citar, aplicando o NNT:

NNT (óbitos coronários) = 1|0,05 - 0,085| = 28,6

NNT (óbitos todas as DCV) = 1/|0,061 - 0,093| = 31,3

NNT (óbitos por todas as causas) = 1/|0,082 - 0,115| = 30,3

Podemos afirmar que apenas um em cada 29 indivíduos tratados,


beneficiou durante o ensaio com a terapêutica instituída no
tocante à morte por doença coronária; um em 31 por todas as
doenças cardiovasculares e um em 30 por todas as causas.

Apesar das cifras percentuais apresentadas serem elevadas, a


realidade vista através deste indicador, permite-nos encarar os
benefícios (que são evidentes!) de uma forma diferente...

210
Epidemiologia social – Novos conceitos da epidemiologia
da aterosclerose

Novos conceitos da epidemiologia da aterosclerose1

A epidemiologia tem sido definida (entre muitas definições) como


a ciência dos denominadores. A resolução de um problema obriga
em primeiro lugar à sua identificação e natural quantificação.

É com base em taxas e índices que nos habituamos a saber se


um fenómeno é grave ou não ou se está a aumentar ou a
diminuir.

Para podermos efectuar uma análise correcta necessitamos


basicamente de numeradores (os casos) e de denominadores ( a
população em risco).

No tocante aos casos, a sua identificação e caracterização nem


sempre é fácil, à excepção da morte, mas mesmo neste caso
também surgem dúvidas sobre a verdadeira causa.

Em primeiro lugar não quero deixar de focar que a tendência das


pessoas é categorizar e sobretudo dicotomizar as variáveis que
nos cercam.

1
Ver Social Epidemiology, editado por Lisa F. Berkman e Ichiro Kawachi. Oxford
University Press 2000
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Classificar as pessoas em boas ou más, brancas ou pretas, fiéis e


infiéis, bonitas e feias, novas e velhas, doentes e saudáveis, é
cómodo e aparentemente linear.

Na área da saúde é comum classificar as pessoas em doentes e


saudáveis. Esta dicotomia é falsa e simultaneamente fonte de
vários problemas.

Quando os jovens estudantes de medicina entram nas faculdades


já são possuídos por esta forma de pensar a qual é reforçada ao
longo da sua preparação.

Mas a doença é um fenómeno quantitativo. Esta descoberta foi


feita em 1954 por George Pickering, quando analisou a pressão
arterial. A distinção nítida entre doença e saúde é um artefacto
médico.

Muitas estatísticas vitais e estudos epidemiológicos baseiam-se na


contagem dos casos, os quais resultam da assunção de que a
doença pode ser claramente definida e separada da normalidade.

A natureza confronta-nos com um processo continuum e não com


uma dicotomia (poucas excepções).

A relação entre a pressão arterial e o acidente vascular cerebral


ou o enfarte do miocárdio está bem definida.

Para o efeito procede-se à determinação da pressão arterial e


aqueles que segundo os diferentes guidelines apresentam cifras
superiores a uma determinada cifra são submetidos a terapêutica
e classificados como hipertensos.

214
Epidemiologia Social

Esta política determina de facto a prevenção de muitos acidentes


cardiovasculares, mas também provocou danos ao encorajar as
pessoas que não pertencendo ao grupo de alto risco, eram
consideradas normais e por isso, não deveriam preocuparem-se.
Conceito falso, porque há uma relação contínua entre as duas
variáveis e os principais contribuintes da mortalidade e
morbilidade cardiovascular são precisamente os ditos normais.

Um dos principais problemas das nossas sociedades é focar


excessivamente a atenção nas minorias. As minorias sejam quais
forem, tem direito a tudo! Os doentes são um grupo minoritário e
por isso são efectuados esforços na sua redução, o que implica
que a maioria da população é normal e portanto deverá ser
deixada em “paz”.

Este conceito baseia-se no princípio tradicional de diagnóstico


médico. No que respeita à doença, o mundo divide-se em dois
grupos, o que sofre e o que não sofre de doença. No fundo
depende do modelo de diagnóstico que tem dominado o
pensamento médico e que urge modificar. Pensar em termos
quantitativos é diferente de pensar em termos categoriais.

A razão de ser desta introdução prende-se com a análise que


habitualmente se faz do processo aterosclerose.

Como medir? Como quantificar? Como analisar? É vital, não só


para a compreensão da dinâmica do fenómeno, assim como para
a identificação e correcção dos respectivos factores de risco.

Habitualmente a análise é feita através de epifenómenos tais


como a morte por doença coronária e AVC. Definir o caso através

215
Notas e Técnicas Epidemiológicas

da morte é fácil, mas saber se o óbito corresponde à causa que


pretendemos estudar não é tão simples.

É uma forma grosseira, que não obstante as técnicas


epidemiológicas utilizadas para diminuir ou reduzir os erros tem
sido bastante útil para a análise temporo - espacial do fenómeno.
E foi precisamente através desta abordagem que se conseguiu
determinar quais os povos, quais as regiões onde o fenómeno era
mais grave, permitindo detectar razões para as diferenças,
conduzindo a processos de identificação de factores causais e
respectivas correcções.

Foi também através deste indicador - taxas de mortalidade - que


tivemos possibilidade de saber quais as tendências temporais e
também da redução cardiovascular em determinados países.

Mesmo hoje, não estão esgotadas as riquezas de informação das


taxas de mortalidade. De facto, vários tipos de análise utilizando
as taxas de mortalidade permitem-nos avaliar o efeito das
“condições ambientais”, dos “factores internos” e da “competição
com outras causas de morte”, tais como por exemplo a análise
gompertziana da mortalidade cardiovascular.

Os estudos de morbilidade são aqueles que nos permitem avaliar


o “real” ou aparentemente “real” impacto deste tipo de patologia
susceptível de provocar uma hecatombe monstruosa nas
próximas décadas.

Em 1974 Omram definiu o conceito de transição epidemiológica, o


qual foi completado com um 4º estadio por Olshausky e Aukt
(figuras 1 a 6).

216
Epidemiologia Social

Transição epidemiológica

“Idade da peste e da fome”

“Idade das pandemias”

“Idade das doenças degenerativas e de

origem humana”

Figura 1. Transição epidemiológica.

Transição epidemiológica

4º estadio (Olshausky e Ault)

Idade das doenças degenerativas “adiadas”


(age delayed degenerative diseases)

217
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Figura 2. Transição epidemiológica (4º estadio)

Transição epidemiológica
Fase % óbitos Problemas Factores de
DAC circulatórios risco

I. da 5-10 Cardiomiopatias Infecções não


peste e por deficiências e controladas;
da fome d. infecciosas; d. deficiências
cardiacas
reumáticas

Figura 3. Idade da peste e da fome.

Transição epidemiológica
Fase % óbitos Problemas Factores de
DAC circulatórios risco

I. das 10-35 Cardiomiopatia Infecções não


pandemias s por controladas;
deficiências e deficiências
d. infecciosas; +
d. cardiacas Dietas ricas em
reumáticas + sal e tabaco
d. cardiacas
hipertensivas e
AVC`s
hemorrágicos

218
Epidemiologia Social

Figura 4. Idade das pandemias

Transição epidemiológica
Fase % óbitos Problemas Factores de
DAC circulatórios risco

I. das d. 35-55 Todas as formas Aterosclerose;


degenera de AVC; DIC alimentação,
tivas e de sedentarismo,
origem tabagismo…
humana

Figura 5. Idade das doenças degenerativas e de origem


humana.

Transição epidemiológica
Fase % óbitos Problemas Factores de
DAC circulatórios risco

I. das d. <50 AVC e DIC Educação e


degenerati (proporção mais alterações
vas pequena de comportamentais
"adiadas" óbitos em idades que levam à
avançadas) redução dos
factores de risco

219
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Figura 6. Idade das doenças degenerativas “adiadas”.

Apesar das tendências na diminuição da mortalidade


cardiovascular a nível dos países desenvolvidos (3ª e 4ª fases),
os países em desenvolvimento irão ser o grande o grande
contribuinte da hecatombe cardiovascular no futuro próximo.

Transição epidemiológica
I. Peste Idade das Idade das Idade das
e fome pandemias doenças doenças
degenerativas degenerativas
3 “adiadas”

AVC
4
DIC
2 DIC

D. Cardiacas
1 hipertensivas
AVC´s hemor.
D. reuma.; cardiomio.

Figura 7. Fenómeno de transição de epidemiológica


e doenças cardiovasculares.

As razões são simples, basta que esses países atingem uma


esperança de vida de 60 anos ( o que não é difícil de atingir
através de algumas medidas básicas). Quando atingirem este
limiar, o planeta irá sofrer a maior mortandade cardiovascular até
hoje verificada, não obstante o muito que se conhece em termos
de factores de risco e da prevenção cardiovascular. Paradoxo dos

220
Epidemiologia Social

paradoxos: cada vez sabemos mais sobre a etiopatogenia e


prevenção destas afecções e mesmo assim não conseguiremos
impedir a explosão das doenças cardiovasculares.

Mesmo nos países desenvolvidos, caracterizados por diminuição


da mortalidade por doença coronária e acidentes vasculares
cerebrais, a mortalidade cardiovascular irá sofrer ligeira redução
ou mesmo estabilização.

A insuficiência cardíaca não irá substituir a aterosclerose, mas


revelar-se como uma das suas principais consequências.

As técnicas actuais e os meios de prevenção secundária permitem


uma maior sobrevivência. No entanto, o aumento observado da
mortalidade e morbilidade por insuficiência cardíaca congestiva é
alarmante, sendo a doença isquémica actualmente responsável
por 70% desta situação.

Após esta abordagem genérica da epidemiologia e suas relações


com as doenças cardiovasculares, importa focar a atenção na
epidemiologia social.

Consideramos este capítulo da epidemiologia como sendo de


grande importância, porque proporciona novas perspectivas na
investigação epidemiológica, sobretudo na área das doenças
cardiovasculares.

Salientamos duas perspectivas: focagem dos problemas na


família, vizinhança, comunidade e grupos sociais; e a forma mais
adequada para estudar os factores de risco e doenças, criando
novas abordagens nos conceitos da etiologia e da intervenção.

221
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A doença e a saúde são influenciadas por factores, não só a nível


individual, mas também a nível de grupo ou comunitário.

Muitos estudos epidemiológicos centram-se no indivíduo e


factores de risco individuais. Na realidade são apenas descrições
e estudos sobre as características dos comportamentos
individuais relacionando-os com as doenças. No fundo é
investigação clínica aplicada a grande grupos de pessoas.

O desenvolvimento social é determinante e o estudo sobre o


suicídio de Durkheim, permite-nos verificar que as taxas de
suicídio nos diferentes grupos eram diferentes, permanecendo
altas ou baixas, ainda que os indivíduos se transferissem de
grupo para grupo.

Para explicar estas constâncias, Durkheim, atribuiu as razões ao


ambiente social próprio destes grupos. Os factores sociais do
ambiente não permitem saber quais os indivíduos que irão
cometer suicídio, mas explicam as diferenças entre eles.

A epidemiologia continua a focar a sua atenção nos indivíduos,


mais do que no meio.

Continuamos a estudar os factores de risco individuais e tentamos


intervir a nível do comportamento individual. Mesmo que esta
forma de intervenção fosse sempre bem sucedida, novos
indivíduos continuam a entrar na população em risco, e a serem
sujeitos às forças comunitárias.

É necessário uma nova epidemiologia e reconstruir o conceito de


doença aplicada não a nível individual, mas a nível colectivo
(comunitário).

222
Epidemiologia Social

Apesar do muito que se conhece a nível da prevenção


cardiovascular e dos meios para combater os factores de risco,
mesmo assim temos de aceitar que o sucesso está longe de ser
alcançado. As intervenções comunitárias focando os factores de
risco individual, não tem tido sucesso...

Uma das principais tarefas da epidemiologia é identificar os


factores de risco das doenças. A insuficiência na prática para
atingir este objectivo pode ser ilustrado através do que tem sido
feito a nível da doença coronária.

Primeira causa de morte a nível mundial. Estudadas desde o início


dos anos cinquenta de uma forma intensa, agressiva e altamente
financiada. Durante estes cinquenta anos de um esforço notável,
científico, técnico e financeiro, muitos factores de risco foram
identificados. Três deles são admitidos por todos: tabaco,
hipertensão arterial e hipercolesterolemia. Além destes foram
propostos dúzias e dúzias de outros: obesidade, diabetes,
sedentarismo, outros lípidos, factores de coagulação, stress,
factores hormonais....

No entanto quando consideramos todos os factores conhecidos,


eles só podem explicar apenas 40% da doença coronária.

Como é possível ao fim de 50 anos de pesquisa, que todos os


factores de risco conhecidos contribuam com menos de metade
da doença identificada? É possível que ao longo deste tempo, não
se tenha detectado outro ou outros factores de risco? É
admissível, mas na realidade não fomos capazes de identificar

223
Notas e Técnicas Epidemiológicas

factor(es) de risco(s) que expliquem os restantes 60% da doença


coronária?

É pouco provável que nos tenha escapado um ou mais factores de


risco com tamanho poder e importância. Ainda por cima
relativamente à doença mais exaustivamente estudada até aos
dias de hoje!!!...

John Cassel em 1975 verificou que uma grande variedade de


outcomes da doença estavam associados com circunstâncias
similares. Notou e mostrou notáveis semelhanças no conjunto de
factores de risco que caracterizam as pessoas que desenvolvem
tuberculose, esquizofrenia, que se tornam alcoólicos, vítimas de
acidentes e que cometam suicídios.

Este fenómeno geralmente escapou-se, porque os investigadores


habitualmente estão preocupados com apenas uma entidade
clínica, de forma que aspectos comuns a manifestações múltiplas
da doença tem tendência a serem ignoradas.

A epidemiologia tem adoptado a classificação de doenças


utilizadas na clínica. Importante a nível individual, mas
insuficiente para a prevenção.

A epidemiologia das doenças infecciosas é paradigmática. A nível


individual classificamos a doença, mas para efeitos de prevenção,
classificamos as doenças de outra forma: doenças veiculadas por
via hídrica, doenças transmitidas por via aérea, doenças
veiculadas por via alimentar e vectores.

Esta forma de entender a epidemiologia das doenças infecciosas a


nível da prevenção foi determinante para a sua redução e eficácia

224
Epidemiologia Social

no controlo. O problema que se nos coloca é como transpor este


conceito para o estudo das doenças não infecciosas, como as
doenças cerebrovasculares, cancro, acidentes e suicídios.

Podemos antever a construção social de novas entidades


susceptíveis de prevenção tais como doenças devidas ao tabaco?
Doenças sexualmente transmissíveis? Doenças da pobreza?
Doenças por deficiência nutricional? Doenças da riqueza? Doenças
dos incultos/analfabetos? Doenças politicamente induzidas?
Doenças economicamente induzidas? Doenças ligadas ao status?
Doenças ligadas à religião? Doenças ligadas ao sistema político?
Doenças devidas à descriminação, à migração, à desorganização
social, ao desemprego?

Para compreender e lutar contra as doenças cardiovasculares é


absolutamente necessário conhecer o meio em que o indivíduo
está inserido.

Saber quais as circunstâncias em que os indivíduos nascem e


crescem; o papel da cultura e nível organizacional, o papel desde
o pequeno grupo ao grupo comunitário mais vasto da nação é
determinante para explicar o aparecimento das doenças
cardiovasculares.

A identificação de riscos a nível individual, mesmos riscos


múltiplos não explica de uma forma satisfatória as interacções e
os mecanismos naquele nível, nem incorpora as forças sociais que
influenciam riscos nos indivíduos.

Para ilustrar alguns aspectos da nova epidemiologia social e o seu


impacto na aterosclerose, iremos de seguida analisar a associação

225
Notas e Técnicas Epidemiológicas

entre a situação socioeconómica e o estado de saúde. Esta


associação é reconhecida há vários séculos desde Paracelso
(1567) passando por Villermé (século XIX), Virchow, Farr e
Engels.

Avaliar a posição socioeconómica (factores sociais e económicos


que influenciam a posição dos indivíduos e grupos na estrutura da
sociedade) não é fácil e obrigar-nos-ia a efectuar considerações
sobre as três grandes tradições sociológicas : marxista,
weberiana e funcionalista.

Sabemos que a saúde e a mortalidade são sensíveis a finas


graduações das condições “neomateriais”, evidenciadas através
de vários indicadores, como acesso a usar carros, casa própria,
casa com jardim, alimentos saudáveis.

Além do mais, melhores condições “neomateriais”, podem ter


benefícios imediatos e cumulativos no decurso da vida e podem
influenciar a posição socioeconómica e o estado de saúde das
gerações futuras.

Crianças que tenham acesso a um computador podem melhorar o


sucesso educacional e consequentemente influenciar a posição
socioeconómica e saúde.

Num estudo finlandês, os homens que trabalham em empregos


com baixos salários, apresentavam maior insegurança financeira
e profissional, sofriam mais desemprego e lesões ocupacionais.
Ao mesmo tempo, fumavam mais, praticavam menos exercício,
faziam dieta menos nutritivas, bebiam mais, tinham pouco
esperança no futuro e morriam mais de doenças cardiovasculares.

226
Epidemiologia Social

Rendimentos adequados providenciam recursos generalizados que


permitem acesso a uma maior variedade e melhor qualidade de
bens e condições neomateriais.

As reservas dos rendimentos constituem um tampão para muitos


stresssógenos diários.

Muitas fontes de stress ambiental e social não estão distribuídos


ao acaso nas populações.

São precisamente os grupos com menor rendimentos, os que


estão mais sujeitos aos efeitos cumulativos do stress.

Quais os efeitos na saúde de uma exposição contínua a baixos


rendimentos, ou a mudança de baixos para altos rendimentos e
vice-versa?

Nos E.U.A , ao longo da vida, 26 a 39% dos indivíduos com idade


compreendidas entre os 45 e 65 anos, experimentam redução dos
rendimentos na ordem dos 50% ou mais, pelo menos uma vez
em cada 11 anos. As descidas e subidas nos rendimentos são
mais pronunciadas nos que se encontram no nível inferior da
distribuição dos rendimentos.

Num estudo canadiano, os homens cujos rendimentos tinham


aumentado progressivamente, mas que se mantinham ainda no
grupo economicamente inferior, tinham uma mortalidade muito
superior aos homens economicamente superiores.

As poupanças constituem um tampão social no stress económico.


No estado actual das coisas, com a redução das mesmas e o
apelo ao consumo, é de prever o agravamento de determinadas
patologias, nomeadamente cardiovasculares.

227
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O esquema seguinte (figura 8) ilustra a influência da posição


socioeconómica nas doenças cardiovasculares.

Posição sócio-ecómica

Condições intrauterinas Educação e condições Condições de trabalho e Income and assets


ambientais rendimento

Nascimento Adolescência Adulto Velhice

Baixo peso Tabaco, dieta, Stress profissional Cuidados de saúde


Atraso no crescimento exercício inadequados

ATEROSCLEROSE D. CARDIOVASCULARES FUNÇÃO REDUZIDA

Figura 8. Posição sócio-económica e doenças cardiovasculares

A desigualdade e a discriminação são factores determinantes da


saúde humana. Medir a discriminação não é fácil. A teoria eco-
social conceptualiza e operacionaliza as relações entre
discriminação, desigualdade e saúde. Esta teoria permite-nos
saber como incorporamos biologicamente da concepção à morte,
as nossas experiências sociais e a expressão deste “embodiment”
nos aspectos populacionais da saúde, doença e bem-estar.

A teoria eco-social permite-nos analisar como é que nos


desenvolvemos, crescemos, envelhecemos, adoecemos e
morremos dentro da inseparável história social e biologia.

Com base em vários estudos é possível verificar que a


discriminação social/étnica está associada com a hipertensão,

228
Epidemiologia Social

consumo do tabaco, stress, enquanto a discriminação sexual está


ligada à hipertensão, o mesmo ocorre com a orientação sexual.

A pressão arterial e os ataques cardíacos em negros norte-


americanos aumentam mais rapidamente quando sujeitos a
cenários ou filmes envolvendo assuntos racistas, versus não
racistas.

O bem-estar mundial está concentrado em poucas mãos. De


acordo com a United Nations Development Program (1996), os
358 indivíduos mais ricos controlam o equivalente ao somatório
dos rendimentos de países onde vivem 45% da população
mundial. Os 20% mais pobres da população mundial viram
reduzidos os seus rendimentos de 3,3 para 1,4% nos últimos 30
anos. Quanto à fatia dos 20% mais ricos, viram aumentar os seus
rendimentos de 70 para 85%.

Os ratio da distribuição dos “mais ricos/mais pobres” passou de


30:1 para 61:1 no mesmo período. Mas dentro de cada país a
polarização dos mais ricos e menos ricos acentuou-se igualmente.

Nos E.U.A em 1967 os 20% mais pobres partilhavam 4% dos


rendimentos de todas as famílias. Os 20% mais ricos contribuíam
com 43,8% dos rendimentos. Em 1996 os 20% mais pobres
viram diminuir os seus rendimentos para 3,7%, enquanto no
grupo dos 20% mais ricos houve uma subida para os 49%.

O que é certo é que actualmente 36,5 milhões de norte-


americanos são oficialmente pobres. Quais as consequências da
polarização? Não é favorável para a saúde das populações.

229
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Com base no Índice Robin Hood (que mede a proporção dos


rendimentos do agregado que devem ser redistribuídos dos ricos
para os pobres, de forma a obter uma perfeita igualdade dos
rendimentos-medição da desigualdade) um aumento de 1%
estaria associado com excesso de mortalidade, níveis elevados de
doença coronária, neoplasias, homicídios, mortalidade infantil.

A desigualdade dos rendimentos e a pobreza conjuntamente


podem contribuir para um quarto das variações da mortalidade.

Muitos factores de natureza social influenciam o desenvolvimento


da aterosclerose, tal como as condições trabalho.

As doenças cardiovasculares tem sido consideradas como um dos


mais importantes outcome nos estudos das condições de trabalho
e saúde. O modelo de Karasek descrito em 1979 analisa as
relações exigências-controlo e a sua dinâmica. A incapacidade de
controlar as actividades cada vez mais exigentes, leva ao
aparecimento e agravamento das lesões ateroscleróticas.

A aterosclerose tem uma expressão morfológica que em


determinadas circunstâncias obstruem as artérias originando o
aparecimento do acidente vascular. Além das características
genéticas, destacam-se um conjunto de factores metabólicos,
alimentares, virusais, imunológicos, bacterianos, que fazem as
delícias dos biólogos moleculares, patologistas, clínicos e
epidemiologistas.

O que é certo, é que toda a dinâmica do fenómeno responsável


pela principal causa de morte e doença dos nossos dias – e que
irá agravar-se de uma forma nunca vista nas próximas décadas –

230
Epidemiologia Social

tem de ser enquadrada de um forma diferente com o objectivo de


a controlar e minimizar. É certo que a prevenção primária, aliada
à prevenção secundária (graças ao progresso da terapêutica
médica e cirúrgica) tem dado algum contributo. Mas factores até
agora não muito considerados poderão contribuir decisivamente
para inverter a situação.

A epidemiologia social explica muito do que até agora foi


considerado como inexplicável.

Novas áreas, novas perspectivas estão abertas à investigação e


passarão por domínios que escapam à intervenção médica, a qual
poderá e deverá explicar muitos factores, obrigando a uma nova
forma de estar e de ordem social que permitam controlar e
reduzir o maior flagelo da humanidade.

231
Comunicação e saúde

Comunicação e saúde1

Todos temos conhecimento do manancial de informação com que


somos diariamente bombardeados. Apesar da riqueza intrínseca,
a informação que constitui uma preciosa matéria para o
conhecimento é confundida com o próprio conhecimento. O
conhecimento diz respeito à integração, à computação actual da
informação circulante no meio interno e externo do sujeito.

Um dos problemas da sociedade de informação não é tanto já o


da ignorância mas o da desinformação, da mentira, que passaram
a habitar também o mundo informacional. Estamos perante uma
situação sui generis que é a da poluição informacional.

1
Gregori J, Miller S. Science in Public – Communication, Culture and Credibility.
New York: Plenum Press, 1998.
Jorge M. Da Epistemiologia à Biologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
Pfizer - Positive Stories - Bald - Operation Pride, Summer 1996
www.positiveprofiles.com/stories/bald/story.html
Pfizer - Positive Stories – Hope - Operation Pride, Fall 1993,
www.positiveprofiles.com/stories/hope/story.
Pfizer - Positive Stories - Lemonade Afternoon - Operation Pride, Summer 1996,
www.positiveprofiles.com/stories/lemonade/story.html
Pfizer - Positive Stories - Molly - Operation Pride, Winter 1994.
www.positiveprofiles.com/stories/molly/story.html
Popper K., Condry J. Televisão: Um Perigo para a Democracia. Viseu: Gradiva,
1995.
Rubin R, Rogers H. Under the Microscope The Relationship between Physicians
and the News Media http://www.fac.org/publicat/medical/index1.htm
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Platão não sonhou que um dia a poluição contaminaria o seu


paradisíaco e asséptico mundo das ideias e que a verdade nele
encerrada se podia tornar biodegradável…

Há necessidade de separar e analisar o peso da informação, da


instrução, do conhecimento e da educação.

Alguns pedagogos concluem que "ninguém ensina nada a


ninguém". O professor não fornece conhecimentos (que são
processos de associação de informações). Actua como um
"facilitador" da organização informacional do meio, como um
animador da aprendizagem.

Aquilo que observamos hoje em dia é um despoletar da


transmissão de informação por todos os meios, acabando cada
um por "fazer o seu próprio conhecimento".

A falta de "educadores e facilitadores" de modo a que a


informação seja organizada e transformada em conhecimento
pode levar a situações muito graves em termos de saúde. Basta
olhar para o meio de comunicação mais difundido para vermos os
seus "perigos".

Karl Popper considerava a televisão como uma "ladra do tempo".


Todos sofrem os seus efeitos. No caso das crianças perdem o
benefício de outras actividades, além de influenciar as suas
atitudes, crenças e acções. A obesidade devido à falta de
exercício e incitamento a consumirem alimentos pode estar
relacionado também com os hábitos televisivos, isto para não
falar sobre o poder da mesma.

234
Comunicação e saúde

Este filósofo afirmou que a "televisão adquiriu um poder


demasiado vasto no seio da democracia. Nenhuma democracia
pode sobreviver se não se puser cobro a esta omnipotência". "O
poder da televisão é colossal, pode-se mesmo dizer que é
potencialmente, o mais importante de todos, como se tivesse
substituído a voz de Deus".

A televisão difunde um grande número de mensagens favoráveis


e desfavoráveis ao consumo de diversos produtos e substâncias.
As mensagens são enviadas quer de uma forma descarada,
despudorada e frequentemente encapotada… No cômputo geral
por cada mensagem desfavorável existe seis favoráveis ao seu
consumo (tabaco, bebidas, drogas, alimentos, etc..).

Existe legislação contra a propaganda do tabaco (como resultado


de estudos que provam os seus efeitos adversos). Mas tal medida
não é suficiente per si, para reduzir as doenças cardiovasculares e
as neoplasias.

Uma transmissão televisiva de corrida de fórmula 1 subverte


todas as tentativas ao apelar de uma forma indirecta para o
consumo do tabaco.

O mesmo se passa com os filmes onde o número de cenas em


que os actores aparecem a fumar, a beber ou a consumirem
determinados produtos prejudiciais para a saúde tem aumentado
de uma forma quase "exponencial" nos últimos tempos.

Paralelamente surgem novas indústrias que exploram as


consequências das mudanças de estilo de vida; combater a
obesidade pelos mais diversos meios, convite às pessoas a

235
Notas e Técnicas Epidemiológicas

praticarem certos tipos de exercícios físicos, consumo de certos


tipos de alimentos cujas características são realçadas pelo efeito
profiláctico ou curativo (consumo do vinho, do azeite, de fibras,
etc..) constituem fonte de riqueza, mas também de preocupação
para todos aqueles que se interessam pela saúde.

Naturalmente que é impensável modificar o sistema ou sistemas


em que estamos inseridos. Alertar não custa, reflectir dá prazer e
talvez possamos contribuir para que no futuro (provavelmente
muito distante) o tal equilíbrio desejável entre as agressões e as
defesas possa ocorrer num estrato menos elevado, mais
fisiológico e consentâneo com as próprias características da
espécie humana. Até lá, devemos continuar empenhados na luta
pela prevenção nos diferentes níveis.

Temos observado ultimamente que a compreensão pública da


ciência e a literatura científica tem vindo a subir de cotação.
Vários peritos debruçam-se sobre o que é o público pensa da
ciência e o que é que os cientistas pensam do público e
naturalmente como é que os media unem os dois.

Estamos perante uma matéria muito complexa alvo de pesquisas


e de muitas opiniões. É justo afirmar que esta é a primeira vez na
história que a compreensão pública da ciência foi analisada de
uma forma muito aprofundada, a tal ponto que na última década
foi criado um novo mandamento: "Deves Comunicar".

Num passado recente, muitos cientistas olhavam o envolvimento


na popularização da ciência como algo que podia pôr em causa as
suas carreiras. Agora dizem-lhes que para bem da ciência devem

236
Comunicação e saúde

comunicar com o público acerca dos seus trabalhos. Nalguns


casos até são remunerados, além da existência de financiamentos
para a popularização da ciência. Antes, o lugar do investigador
era o laboratório e a ciência deveria ser comunicada entre a elite.
Agora, grande parte das novas gerações de cientistas aprendem
técnicas de comunicação para tornar legíveis os seus trabalhos
ao grande público.

Os governos e o establishement científico insistem que o público


deve compreender a ciência, sinónimo de cidadãos conscientes e
úteis, capazes de actividades correctas quer como trabalhadores,
quer como consumidores e votantes no moderno mundo
tecnológico.

Os media tem sido postos sob pressão para comunicar mais e


cada vez mais ciência. O MCPC (Movimento para a Compreensão
Pública da Ciência) já chegou, facto que exige muitas e novas
solicitações aos cientistas, jornalistas e ao público. Esta
interacção abre novas possibilidades no campo do comércio, da
cultura e da democracia.

Os médicos preocupam-se com a qualidade das suas


comunicações. Muitos jornalistas não estão preparados para
dialogar com eles, especialmente quando o assunto é demasiado
técnico.

Num inquérito (First Amendment Center) representativo de uma


população médica verificou-se que os jornalistas raramente
transmitiam com correcção os detalhes técnicos (da medicina).
Cerca de 50% dos delegados da Associação Médica Americana

237
Notas e Técnicas Epidemiológicas

afirmam o mesmo, ao passo que só 8% dos jornalistas da saúde


concordam com esta afirmação. Quanto aos editores dos jornais,
30% afirmam que os jornalistas distorcem os detalhes técnicos
das histórias médicas.

Os jornalistas perante estes dados até se dispõem a aceitar a


responsabilidade, ou pelo menos a absolverem os médicos. Mais
de metade dos editores não concordam com o facto dos erros
serem imputados aos médicos. Evidentemente que a grande
percentagem dos médicos (73%) não concordam com estas
afirmações.

A falta de preparação dos jornalistas pode constituir uma


vantagem para os médicos. Stampfer da Escola de Saúde Pública
de Harvard, aconselha os jovens cientistas a decidirem como é
que as suas investigações deverão ser cobertas e
consequentemente levar os repórteres na direcção mais
adequada. Interrogar um cientista é diferente de entrevistar um
político. Em termos científicos o entrevistado sabe muito mais do
que o entrevistador. Somos "nós" quem tem a história e
transmitimo-la de forma activa e não passiva.

Os jornalistas gostam disto! Não tem que fazer trabalho de casa!


No entanto os melhores jornalistas médicos não querem press
releases ou o estudo propriamente dito. São críticos e estudiosos.
Deste modo, adaptam da melhor maneira os conhecimentos ao
público. Além disso, cada jornalista da saúde (os melhores)
socorre-se de um painel de peritos susceptíveis de darem as suas
opiniões sobre o assunto, confirmando ou não a qualidade do
projecto.

238
Comunicação e saúde

Um dos grandes problemas é a falta de formação nas áreas da


saúde por parte de muitos jornalistas. Vários inquéritos
efectuados revelam atitudes discrepantes consoante se interroga
os médicos ou os jornalistas. É óbvio! Em virtude de os jornalistas
não estarem bem preparados nestas áreas, justifica-se
plenamente uma diferenciação formativa em termos médicos. A
grande maioria não tem treino formal em ciência.

Tal como acontece em medicina, as escolas de jornalismo formam


generalistas. Após o curso deverão enveredar por áreas de
especialização temáticas. Nalguns países existem mesmo cursos
de pós graduação para os "escritores" de ciência e de medicina,
em escolas médicas, de saúde pública, diferentes universidades e
associações médicas.

Há dois tipos de jornalistas que colaboram na ciência: jornalistas


generalistas e jornalistas de ciência. Procuram as histórias em
muitos lugares. O ideal são as revistas de renome com revisores
científicos como a Nature, a Science, BMJ, The Lancet, NEJM,
JAMA, etc..

Trata-se de uma óptima estratégia. Não há risco de tocar numa


história pouco credível. Há quem chame a esta técnica "estratégia
preguiçosa". Uma secretária, boas revistas e saí uma história…
Trata-se de uma forma expedita de popularizar a ciência. No
entanto tal prática levou à criação de uma nova regra: a regra de
Ingelfinger.

239
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Franz Ingelfinger editor do NEJM "decretou" que nenhum artigo


poderia ser publicado no NEJM se fosse alvo de qualquer tipo de
abordagem pública, mesmo que fosse o jornal da paróquia!

Todos sabemos que os papers enviados a revistas científicas


levam muito tempo a serem publicados. Se caírem nas mãos de
um jornalista podem ser publicados no dia seguinte. Estamos pois
perante um caso de não entendimento entre a cultura científica e
a cultura jornalista.

Frequentemente existem no meio académico graves conflitos


profissionais por causa da divulgação dos resultados nos media.
Não é difícil apontar exemplos desta natureza. As publicações
científicas são óptimas fontes para os jornalistas, mas não
deixam de ser nalguns casos "velhas notícias"…

Os jornalistas também tem orgulho profissional em procurar


histórias por eles próprios.

Quanto aos press releases os jornalistas tem uma dupla atitude:


um bom press release pode ser uma boa história, mas muitos são
considerados como "lixo" e consequentemente ignorados.

Muitas instituições começam a criar os seu próprios gabinetes de


imprensa de forma a contactar os jornalistas. Tratam-se de
gabinetes com muito poder, como é facilmente compreensível.

Apesar de alguns afirmarem que os jornalistas de ciência não


considerarem como sua a responsabilidade de educarem o público
(é natural que queiram conservar os seus lugares e venderem as
suas publicações), consideramos que desempenham um papel na
descodificação de muitos assuntos e na educação do público.

240
Comunicação e saúde

Um dos objectivos é falar sobre os relatos dos casos clínicos na


imprensa.

A tendência dos media para personalizar histórias é uma ferida na


ciência. A ciência é feita habitualmente por alguém. De acordo
com a tradição científica o que conta é o "quê" e o "como" e não
o "quem".

As histórias médicas transformam-se habitualmente em histórias


do doente do que propriamente acerca da medicina.

Os prémios Nobel são notícias não só pela sua dimensão, mas


também por causa das pessoas. Provavelmente muito poucos
conheciam as pessoas antes de os ganharem e na maioria dos
casos nunca mais os ouvirão, mas numa perspectiva jornalista
são pelo menos pessoas… Os media publicam de tempos a
tempos casos clínicos.

Quando os casos clínicos se referem a pessoas notáveis, a


importância da divulgação e do impacto na comunidade do
assunto em causa é frequentemente relegado para um plano
secundário, já que a história se centra mais na personalidade em
questão.

Se um político ou actor sofrer ou morrer de enfarte do miocárdio,


não se perspectiva qualquer melhoria no controlo das condições
subjacentes a esta afecção. O mesmo se passa em relação ao
cancro ou a acidentes de viação. As causas do fenómeno são
ultrapassadas pela figura em si.

O que é que acontece em Portugal na nossa imprensa escrita,


relativamente aos diferentes tipos de notícias sobre a saúde? Com

241
Notas e Técnicas Epidemiológicas

base em 42 diferentes tipos de publicação regular em Portugal foi


possível num período de 58 dias (7/10/98 a 3/12/98) analisar
3.428 notícias médicas sobre saúde, o que dá uma média de 59
artigos/notícias por dia (quadro I).

Quadro I. Publicações regulares (7/10/98 a 3712/98)

24 horas ELLE Nova Semanário


A Capital Exame Nova Gente Económico
A Guia Exame Comércio do Porto Tal e Qual
Activa Fortuna e Informático Dia TV 7 Dias
Negócios Expresso Diabo TV Guia
ANA Família Cristã Independente Veja
Bébé de Hoje Finantial Times Primeiro de Vida Económica
Correio da Manhã J. Notícias Janeiro VIP
D. Notícias Le Figaro Público Visão
Diário Económico Le Monde QUO
Economia Pura Maria Saúde e Bem Estar
El Pais Mulher Moderna Semanário
Economia Pura

O quadro seguinte (quadro II) revela a distribuição dos


artigos/notícias por grandes temas.

242
Comunicação e saúde

Quadro II. Distribuição de um conjunto de notícias sobre saúde

Distribuição de 3.428 notícias

Divulgação técnico-científica 27,2%


Patologias 27,1%
Governo, Saúde e Sociedade 14,1%
Informação Genérica da Saúde 11,5%
Terapêuticas 10,5%
Educação, Prevenção e Promoção da Saúde 5,4%
Saúde Pública e Ambiental 3,7%
Casos Clínicos 0,5%

A divulgação técnico-científica e a patologia humana contribuíram


com 27,2% e 27,1% do total de artigos/notícias sobre saúde. As
notícias/artigos sobre educação, promoção e prevenção da saúde,
saúde pública e ambiental, contribuíram respectivamente com
5,4% e 3,7%, enquanto os casos clínicos com apenas 0,5%. Não
há grande tendência para a divulgação dos casos clínicos.

Se compararmos as notícias sobre Viagra (3,3%), da Sida (3,1%)


da BSE (5,2%) e greves (4,0%) verificamos que temas com
humor e saúde (1,0%) e drogas e toxicodependência (1,5%) são
aquelas que mais se aproximam da divulgação dos casos clínicos.

Os exemplos seguintes revelam aspectos particulares. Pode-se


falar de amor através do transplante renal (figura 1), ou de
situações extremas em que a vida da criança é "salva" por um
pentatransplante (figura 2), ou de um político acometido de
várias doenças e responsável por uma das maiores potências
mundiais, situação que mostra quão frágil é a segurança de um

243
Notas e Técnicas Epidemiológicas

povo ou do próprio mundo… (Figura 3), ou de uma ópera baseada


numa doença neurológica (figura 4) ou de uma situação de apelo
dramático como uma criança com cancro (figura 5) ou de uma
situação com um final triste (figura 6).

Nestes casos são noticiados factos que realçam a tristeza, o


sofrimento, o perigo, mas também a esperança e a solidariedade
e inevitavelmente a própria morte.

Poderão os casos clínicos constituírem meios de divulgação


privilegiada susceptíveis de influenciar o comportamento das
pessoas? Poderão mesmo os casos mais dramáticos serem
considerados como verdadeiras histórias positivas?

É possível apresentar casos clínicos com impacto, valorizando a


esperança com o desenvolvimento tecnológico e científico,
enriquecidos por estilos literários apelativos e criativos. A este
propósito cito alguns exemplos da Operation Pride (Figuras 7 a

10).

Figura 1. Rim faz viver amor

244
Comunicação e saúde

Figura 2. Criança sueca submetida a transplante..


Figura 3 Ieltsin o eterno doente.

245
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Figura 4.Um estranho relato clínico transformado em ópera

246
Comunicação e saúde

Figura 5. Esqueceram-se do Gonçalo.

247
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Figura 6. Cancro vence pequeno Gonçalo.

Figura 7. Molly.

248
Comunicação e saúde

Figura 8. Buddies Go Bald.

Figura 9. Hope.

249
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Figura 10. Lemonade on a Summer Afternoon.

250
Indicadores de saúde

Conceito de saúde
A definição de saúde da Organização Mundial de Saúde data de
1948 e podemos caracterizá-la como uma verdadeira definição
política, já que não suporta uma análise crítica.

O conceito de bem-estar físico depende de uma apreciação


subjectiva e objectiva. Quanto à primeira, um indivíduo pode ser
portador de uma situação grave e não apresentar quaisquer
sintomas e sinais (tumor, hipertensão arterial, etc.). Quanto à
segunda, apesar dos meios disponíveis ao nosso alcance (meios
de diagnóstico sofisticados), não podemos ter a certeza de que o
indivíduo esteja saudável, porque há limites que não são
ultrapassáveis, além dos quais a doença pode estar já presente.

O conceito de bem-estar psíquico é criticável, porque se prende


com conceitos de “normalidade”, os quais não são fáceis de
definir. Além disso, certo tipo de doenças mentais pode ser
acompanhadas de sensação de bem-estar!

O conceito de bem-estar social é igualmente difícil de definir,


porque prende-se com valores sociais e culturais muito distintos.
A passagem de comunidades de zonas degradadas para zonas
modernas acompanha-se muitas vezes de mal-estar entre os
Notas e técnicas epidemiológicas

elementos da mesma, por falta de um conjunto de laços e


comportamentos estreitamente ligados à vida anterior.

Assim, saúde e doença podem ser consideradas como duas


expressões de sinal contrário de um mesmo fenómeno: “equilíbrio
dinâmico entre o homem e a natureza”.

A doença e a saúde pertencem ao mesmo continuum e não


podem dissociar-se. O conceito clássico ainda em vigor na classe
médica de dicotomia entre saúde e doença (tem vantagens,
porque é simples e permite separar os que precisam ou não de
actos terapêuticos) tem que ser substituído pela ideia
“quantitativa” de doença e de saúde.

Conceito de normalidade
O conceito de normalidade, conforme se depreende do capítulo
anterior, é bastante difícil de definir.

O conceito mais generalizado de normalidade confunde-se com o


mais “frequente”. O que se desvia dos padrões estabelecidos é
considerado “anormal”. Os limites dependem de vários factores,
consoante o assunto, a área, a cultura e a época.

A estatística, através das suas técnicas, proporcionou


aparentemente a legitimidade de alguns conceitos, e dificilmente
é posta em causa. No entanto, o conceito de normalidade

252
Indicadores de saúde

estatística1 é relativa. Para justificar esta afirmação, basta


analisar o comportamento do colesterol sérico em duas
comunidades distintas: nos povos nórdicos a distribuição normal
da curva da colesterolemia está bastante desviada para a direita
face à curva de um povo do Sul da Europa, cujos hábitos
alimentares são perfeitamente distintos. Neste caso, como
classificar os indivíduos de ambos os povos? Se for em função da
curva de distribuição normal, muitos dos indivíduos do Norte da
Europa “ficam englobados” dentro da normalidade. No entanto,
face às consequências em termos cardiovasculares, esses
mesmos indivíduos correm muito mais riscos. Neste caso a
normalidade estatística tem de ser substituída por outro tipo de
normalidade, dita pragmática e estabelecida em função das
consequências.

Outras vezes, a normalidade é determinada em função dos


benefícios. Assim uma alimentação normal e equilibrada
acompanha-se de efeitos positivos. Do mesmo modo, a
moderação de certos tipos de hábitos, nomeadamente desporto e
álcool pode ser benéfica.

Quantificar a saúde e a doença é a base para prevenir as


doenças, promover a saúde e planear correctamente os serviços
de saúde.

1
Neste caso, “normal” é, frequentemente, definido como “dentro dos limites
definidos pela média de uma dada distribuição mais dois desvios-padrão e a
mesma média menos dois desvios-padrão, de uma dada distribuição ou entre o
percentil 10 e 90”

253
Notas e técnicas epidemiológicas

Casos
Em Epidemiologia é indispensável a caracterização de dois
factores: o caso e a população em risco. A razão prende-se com a
necessidade de quantificar os problemas.

Definir um caso2, implica o conhecimento de sinais, sintomas e a


aplicação correcta de testes de diagnóstico. Se em relação a
algumas variáveis é relativamente fácil a sua caracterização, em
relação a outras é mais complicado. A definição de um caso de
febre reumática exige a combinação de factores major e minor.
Ou seja, existe um consenso entre os autores para a definição de
uma doença, com base naturalmente num conjunto de estudos,
cujos testes permitem com muita probabilidade estabelecer a
existência da mesma.

Do mesmo modo a definição do SIDA implica a combinação de


vários critérios determinantes (sarcoma de Kaposi ou meningite
criptocócica), major e minor.

A identificação dos casos poderá ser feita em função de um


conjunto de critérios aplicados a diversas fontes: diagnósticos
clínicos, registos, inquéritos, rastreios, etc..

População em risco
Sem denominadores não há epidemiologia. Podemos afirmar sem
exagero que o conceito básico da epidemiologia assenta nos
denominadores.

2
O “caso” pode referir-se a um indivíduo com doença, perturbação de saúde ou
qualquer outra condição.

254
Indicadores de saúde

A razão é simples. Havendo necessidade de quantificar os


fenómenos, temos de os reduzir em função da população onde
ocorrem. De outro modo a utilização de valores absolutos pode e
induz em erro os leitores. Senão vejamos, se um investigador
analisar a hora do dia em que ocorrem mais acidentes, conclui
que é de manhã e ao fim da tarde. Em termos absolutos é
verdade. No entanto, se analisarmos a intensidade de tráfico
nesses mesmos períodos, concluímos que é muito mais intenso,
do que nos restantes. Se efectuarmos a análise em função da
intensidade do tráfico, concluímos pela ausência significativa de
diferenças.

No período do Natal e Ano Novo as estatísticas referentes aos


acidentes de tráfico são alarmantes, a ponto de haver campanhas
especiais de prevenção. Por outro lado fazem-se comparações
com os anos anteriores. Esquecem-se os “entendidos” de
referenciar qual a população em risco. Ou seja, de ano para ano,
vem aumentando o número de veículos automóveis e a
intensidade do tráfico. Logo se os dados fossem apresentados em
função dos denominadores, poderíamos eventualmente concluir
pela melhoria da situação, apesar do aumento absoluto
entretanto verificado.

Técnicas usuais em epidemiologia


As técnicas mais frequentemente utilizadas em epidemiologia
prendem-se com as taxas e razões. Através delas é possível
calcular a “quantidade de doença existente na comunidade, quem
tem a doença, quais os factores que contribuem para a

255
Notas e técnicas epidemiológicas

manifestação e distribuição da doença e se houve ou não


benefício com a prevenção, ou controlo de um problema para a
saúde humana”.

Taxas
As taxas medem a ocorrência de um dado acontecimento,
durante um determinado período de tempo, numa população em
risco.

A estrutura geral configura-se da seguinte maneira:

T = X / Y * K (por unidade de tempo)

Numa taxa o numerador (X) é parte integrante do denominador


(Y).

Razões
As taxas exprimem probabilidades, mas não são necessariamente
preditivas para qualquer indivíduo da população, mas apenas
para esta considerada no seu todo e desde que não haja grandes
modificações das circunstâncias em que um determinado risco
ocorre (valor preditivo para um conjunto, sem grande valor para
os elementos do grupo).

As razões exprimem relações entre um numerador (X) e um


denominador (Y). Só que neste caso o numerador não é parte
integrante do denominador.

A estrutura geral configura-se da seguinte maneira:

R=X/Y

256
Indicadores de saúde

O numerador (X) exprime o número de acontecimentos que não


são necessariamente uma parte de Y. Por outro lado Y exprime
também um número de acontecimentos, não sendo
necessariamente uma população ou pessoas expostas a um risco.

Proporções
As proporções são fáceis de calcular, permitindo uma rápida
análise com variações entre 0 e 1.

Através destas técnicas é possível “medir” a morbilidade, a


mortalidade, e muitos outros fenómenos.

Prevalência
A prevalência é um dos indicadores que permitem medir a
morbilidade. Através dela podemos calcular qual a quantidade de
indivíduos doentes (ou com qualquer outra característica)
existente num determinado período e lugar, em função de uma
população específica.

A prevalência pode reportar-se a um período de um ano, de um


mês, de uma semana (prevalência de período) ou num
determinado momento (prevalência pontual).

Está naturalmente sujeita a efeitos muito importantes nos dois


sentidos. Assim pode aumentar quando analisamos doenças de
longa duração, quando existem fortes correntes migratórias
(emigração com a saída de pessoas mais saudáveis, diminui o
denominador e consequentemente aumenta a taxa), aumento
efectivo da incidência e melhorias das capacidades técnicas de

257
Notas e técnicas epidemiológicas

diagnóstico e de tratamento. Naturalmente que é muito fácil


descrever as situações em que podem ocorrer uma diminuição da
prevalência.

Neste caso, as situações patológicas de curta evolução, assim


como a elevada letalidade das afecções (diminuição rápida do
numerador) ou a diminuição de novos casos, explicam facilmente
este fenómeno, além da imigração de pessoas saudáveis, as
quais vão aumentar o denominador.

P = (Nº de pes. com a doença / Nº de pes. em risco)* 105

Incidência
A taxa de incidência mede o número de novos casos de pessoas
que contraem uma determinada afecção em relação ao somatório
tempo-indivíduo na população de risco exposta, num determinado
período de tempo.

I = (Nº de pessoas que contraem a doença / Somatório tempo-


5
indivíduo da população em risco) * 10

No cálculo do denominador temos de ter em linha de conta qual o


tempo de exposição de cada indivíduo e não contar cada
elemento como sendo uma unidade. Assim, se um indivíduo
esteve exposto a um factor de risco durante 10 anos e um outro
durante um ano, o primeiro conta com um coeficiente de 10 e o
segundo com um coeficiente de um.

258
Indicadores de saúde

Incidência cumulativa
Paralelamente podemos calcular a incidência cumulativa. Neste
caso o denominador corresponde ao número de pessoas na
população sem a doença no início do período em questão.

Taxas brutas
O cálculo das taxas brutas normalmente não tem interesse na
medida em que podem induzir em erro o leitor devido a vários
viéses. A única vantagem prende-se com a facilidade e rapidez de
execução, podendo dar algumas orientações. No entanto, o papel
desempenhado por muitas variáveis, nomeadamente a idade e o
sexo, obriga a uma padronização a fim de tornar comparáveis as
taxas.

Taxas padronizadas
Como teremos oportunidade de calcular no capítulo adequado, as
taxas padronizadas, apesar de não serem reais (cifras fictícias)
permitem comparar regiões ou populações cujas diferenças em
termos de idade, ocupação e outras variáveis são notórias,
influenciando os resultados finais.

Denominadores
Já tivemos a oportunidade de afirmar a importância dos
denominadores, de tal forma que há quem afirme que a
Epidemiologia é a “ciência dos denominadores”.

Basicamente podemos descrever dois grandes grupos de


denominadores: população a meio do ano e tempo-indivíduo. No

259
Notas e técnicas epidemiológicas

último caso, damos importância ao tempo de exposição ao factor


de risco, contando o tempo real de exposição.

Utilizámos o último denominador para os cálculos de prevalência,


para a caracterização de doenças de longa exposição e para
estudar os períodos de incubação.

Modelos de investigação epidemiológica


Os modelos de investigação epidemiológica são importantes para
a caracterização da doença e esclarecimento etiológico das
mesmas.

O modelo indivíduo-lugar-tempo permite caracterizar as doenças,


analisando as características inerentes ao hospedeiro (sexo,
idade, estado nutricional, hábitos, estilos de vida,....), ao
ambiente (cidade, campo, local do trabalho, ...) e tempo.

O modelo agente-indivíduo-ambiente é utilizado nas situações em


que se conhece a etiologia do fenómeno.

Indicadores de saúde
Em epidemiologia utilizamos frequentemente um conjunto de
índices ou indicadores que nos permitem avaliar a situação de
saúde de uma dada região ou localidade e a sua evolução
temporal.

Tratam-se de variáveis susceptíveis de uma medição directa e


que está intimamente relacionada com a saúde global das
pessoas numa dada região.

260
Indicadores de saúde

São utilizados inúmeros indicadores. No entanto, os mais comuns


e frequentemente utilizados são a esperança de vida, as taxas de
mortalidade infantil, as taxas específicas de mortalidade e de
morbilidade, a taxa de absentismo, etc..

Esperança de vida
Representa o número médio de anos que um indivíduo de certa
idade espera viver (se não houver grandes variações nas taxas de
mortalidade específicas que foram utilizadas para o seu cálculo).

Frequentemente utiliza-se a esperança de vida ao nascer. Para o


seu cálculo utilizamos uma coorte de 100.000 recém-nascidos,
cujo número total de anos que esperam viver é dividido pelo
número de elementos de coorte.

Como é facilmente compreensível, a influência das taxas de


mortalidade infantil é muito grande. Por isso os aumentos
verificados nos últimos anos resultam fundamentalmente da
redução da mortalidade infantil.

Taxa de mortalidade infantil


Embora não seja verdadeiramente uma taxa, mas sim um
coeficiente, a designação vulgarizou-se, tornando-se um dos
principais indicadores de saúde.

Apesar de existirem fórmulas que permitam calcular de forma


mais correcta o fenómeno de mortalidade infantil, utilizamos
frequentemente a seguinte:

261
Notas e técnicas epidemiológicas

Taxa de mortalidade infantil = (nº de óbitos <1 ano no decurso


de um ano civil / nº de nados vivos nascidos na mesma
população no decurso desse ano) * 1.000

Taxa de mortalidade perinatal


Esta taxa calcula-se da seguinte maneira:

Taxa de mortalidade perinatal = (nº de óbitos fetais (≥ 28


semanas de gestação) + nº de óbitos pós-natais durante a 1ª
semana de vida extra-uterina) /( nº de óbitos fetais (≥ 28
semanas de gestação) + nado-vivos) *1.000

Taxa de mortalidade neonatal


Calcula-se da seguinte maneira:

Taxa de mortalidade neonatal =( nº de crianças nascidas vivas e


falecidas com menos de 28 dias (vida extra-uterina) durante um
dado período de tempo )/( nº de nado vivos nascidos durante o
mesmo período de tempo) *1.000

Taxa de mortalidade pós neonatal


Calcula-se da seguinte maneira:

Taxa de mortalidade pós neonatal = (nº de óbitos >28 dias e < 1


ano de vida extra-uterina / nado vivos nesse ano) *1.000

Incidência e prevalência (ver capítulos respectivos)


Alguns indicadores demográficos podem ser utilizados como
forma de avaliar o estado de saúde das populações. Assim à

262
Indicadores de saúde

medida que um país se vai desenvolvendo nos seus múltiplos


aspectos, a par de um decréscimo das taxas de mortalidade
específica e infantil, observa-se uma redução da taxa de
fecundidade.

Taxa de fecundidade geral = (nº de nado vivos numa dada área


durante um ano / população feminina fértil (15-44 anos) da
mesma área, estimada para o meio do ano) *1.000

Razão de fecundidade
Trata-se de uma medida que restringe o denominador apenas à
população feminina fértil, isto é, às mulheres em idade de
procriar:

Razão de fecundidade =(nº de mulheres <15 anos / nº mulheres


15-44 anos) *1.000

Esta medida permite aos técnicos demográficos e de saúde


avaliar o potencial de fecundidade de uma população, sobretudo
quando ocorre um rápido envelhecimento de topo e de base, tão
característico das sociedades desenvolvidas.

Taxa bruta de natalidade


Tal como já acabámos de afirmar, muitos indicadores
demográficos podem ser utilizados para a avaliação do estado de
saúde.

Comunidade ou regiões com baixas taxas de natalidade são


características dos povos mais desenvolvidos, e vice-versa.

263
Notas e técnicas epidemiológicas

Taxa bruta de natalidade = (nº de nascimentos vivos ocorridos


numa dada área durante um determinado período / população
média existente a meio do ano numa região) *1.000

Anos de vida potencial perdidos (AVPP)


Este indicador de saúde (utilizado sobretudo pelas autoridades
canadianas e americanas) é muito útil, porque permite ajudar os
planificadores de saúde a definir prioridades, particularmente no
domínio da prevenção.

Os AVPP entre os 1 e os 70 anos são essencialmente concebidos


para dar uma perspectiva global da importância relativa das
principais causas de mortalidade prematura, sem entrar em linha
de conta com a mortalidade antes do primeiro ano de vida, que
constitui um domínio à parte.

As razões que nos levam a escolher como idades limites o 1º e o


70º ano, são os seguintes:

Antes do 1º ano de vida, a mortalidade tem aspectos muito sui


generis, pelo que devemos considerar um domínio particular da
estatística e, por outro lado, o “valor” social de uma morte antes
do primeiro ano de vida, não terá o mesmo significado que aquela
que decorre após este período. Por último se entrássemos em
linha de conta com as mortes ocorridas neste período, elas iriam
pesar para efeitos estatísticos do cálculo dos AVPP, como 70 anos
de vida perdidos por cada óbito.

264
Indicadores de saúde

Escolhemos como idade limite superior os 70 anos, porque a


partir desta idade é difícil, senão impossível, concretizar
quaisquer medidas de carácter preventivo.

O método de cálculo dos AVPP, para uma determinada causa de


morte, ou para um grupo de causas, consiste em efectuar um
somatório dos produtos do número de óbitos em cada idade
(entre os 1 e os 70 anos) pelos anos de vida restantes até à idade
dos 70 anos.

Deste modo, os AVPP calculam-se da seguinte maneira:

AVPP = ∑ ai * oi = ∑ (70 − i − 0,5)oi


i =1 i =1

ai = número de anos que restavam para viver até aos 70 anos,


quando o óbito ocorreu entre as idades i e i + 1 = 70 - (i+0,5)

oi = número de óbitos entre as idades i e i + 1.

Se se desejar comparar os AVPP para duas populações, deve


utilizar-se um teste. Deste modo podemos calcular a taxa de
AVPP:

TaxaAVPP = ∑ ai * oi * 1000
. /n
i =1

n = número de pessoas com idades compreendidas entre os 1 e


os 70 anos para a população considerada.

Para efeitos de andares etários dos 1-4; 5-9;....65-69 anos


calculamos i da seguinte maneira:

265
Notas e técnicas epidemiológicas

i = (b + c)/2

b = limite inferior do andar etário

c = limite superior do andar etário

Calculamos as taxas de mortalidade específicas entre os 1 e os 70


anos:

ME (1− 70) = o / n * 105

o = número de óbitos entre os 1 e os 70 anos

n = população entre os 1 e os 70 anos

Indicadores
Por vezes podemos elaborar índices sanitários, com base num
conjunto de indicadores, cada um dos quais com um coeficiente
de ponderação. Por exemplo, foi utilizado durante bastante tempo
pelas autoridades sanitárias portuguesas um índice sanitário,
construído de maneira empírica e que de facto permitia avaliar o
grau de desenvolvimento sanitário de várias regiões do país.

Na elaboração do índice sanitário entravam os seguintes


indicadores. taxa de mortalidade infantil (coeficiente de
ponderação 5), taxa de mortalidade materna (c.p. 5),
percentagem de partos sem assistência médica (c.p. 3), taxa de
mortalidade proporcional de 1-4 anos (c.p. 4), mortalidade
específica por tuberculose (c.p. 4), mortalidade específica por
doenças infecciosas e parasitárias (excepto tuberculose) (c.p. 5),
mortalidade específica por pneumonia (c.p. 3), mortalidade

266
Indicadores de saúde

específica por gastrite, duodenite, enterite e colite (excepto


diarreia neonatal) (c.p. 2) e percentagem de óbitos sem
certificação médica (c.p. 2).

Para elaborar um índice temos de utilizar uma fórmula de modo a


congregar todos os indicadores numa escala que nos permita
classificar e relativizar as regiões ou épocas a que se reportam.

A seguinte fórmula permite-nos alcançar os objectivos:

V = [(X-A)/(B-A)]*coeficiente de ponderação

A = número inteiro imediatamente abaixo do valor mínimo


encontrado

B = número inteiro imediatamente acima do valor máximo


encontrado

X = valor a converter

V = número convencional a utilizar pelos indicadores e índices

Exemplificando: se a taxa de mortalidade mais baixa no distrito A


fosse de 6,1 por 1.000 e a mais alta de 12,4 por 1.000 (distrito F)
teríamos:

VA = (6-5)/(13-5)= 0,125

VF = (12,4-5)/(13-5) = 0,925

Procederíamos da mesma maneira para as taxas de mortalidade


dos outros distritos.

267
Notas e técnicas epidemiológicas

No caso de estarmos perante vários indicadores, utilizaríamos os


mesmos princípios. No final procederíamos ao somatório dos
indicadores (com os respectivos “pesos”) e desta forma
obteríamos um índice.

268
Rastreios

Rastreios

Os rastreios constituem um dos quatro tipos de exames médicos.


No exame médico habitual, os responsáveis são o médico e o
doente. A população a estudar são pessoas doentes, que
procuram o médico para resolver um problema.

O segundo tipo de exame corresponde ao diagnóstico precoce.


Continuam a ser responsáveis o médico e o doente, só que nesta
situação o doente procura o médico por causa de um problema e
é-lhe diagnosticado um outro desconhecido (caso da hipertensão
arterial desconhecida pelo doente). A população a estudar, não é
forçosamente constituída por doentes, mas pelos utentes de
determinada consulta.

O terceiro tipo de exame corresponde aos exames obrigatórios.


Os responsáveis são as autoridades administrativas e políticas. A
população a estudar corresponde aqueles que põem em causa a
segurança do público (casos dos pilotos de aviões). No fundo, o
exame obrigatório é um caso particular de rastreio, na medida em
que o seu objectivo não é ser útil ao grupo profissional em
questão, mas apenas verificar as suas aptidões físicas e mentais.

O quarto tipo de exame corresponde ao rastreio. Neste caso, as


autoridades responsáveis são administrativas e políticas e a
população a estudar é geral (e previamente definida).
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Em todos os países há unanimidade quanto à prioridade da


prevenção. É perfeitamente lógico impedir o aparecimento da
doença, controlando os factores de risco, ou tratá-la o mais
precocemente possível, do que “esperar” pelo doente em fase
avançada do seu processo.

O rastreio é um dos sectores mais importantes das actividades


médicas, que utiliza os princípios da investigação clínica-
epidemiológica.

Não podemos aplicar indiscriminadamente as técnicas de rastreio


a todas as situações. Sendo uma manobra médica, exige o prévio
conhecimento, tal como as outras, da sua utilidade, facto que
exige verificação clínica através de uma arquitectura exigente.

Os rastreios não são inócuos ou baratos. A possível presença de


efeitos secundários nocivos é uma constante que deve ser
tomada em linha de conta, além da existência de importantes
erros que podem interferir na avaliação dos benefícios.

Os sistemas de rastreio exigem uma prévia avaliação,


nomeadamente através de ensaios aleatorizados, os quais nem
sempre são realizáveis.

Dentro das diversas definições de rastreio, optámos pelo sistema


de exames clínicos ou biológicos oferecido à população, para a
detecção num estádio precoce, ou para a detecção de um factor
de risco de uma doença. Em quaisquer dos casos, aplica-se fora
do quadro clínico sintomático.

São vários os tipos de rastreio: rastreios de massa quando


aplicados a uma parte da população ou zona administrativa;

270
Rastreios

selectivos que se aplicam a uma determinada categoria, p.e.


sócio-profissional; os monofásicos quando se trata de uma
doença e os multifásicos quando se utilizam vários testes,
sobretudo biológicos.

Já tivemos oportunidade de dizer que os exames obrigatórios


constituem uma forma particular de rastreio. Mas além destes, há
outros exames médicos de rastreio que se tornaram obrigatórios
por determinação administrativa-política, com o objectivo de
proteger as populações dos efeitos de determinados produtos
tóxicos (trabalhadores).

Testes de rastreio

A avaliação da sensibilidade e da especificidade dos testes de


rastreio é vital para a realização do estudo.

Quadro I. Testes de rastreio

Resultados dos Doentes Não Total


testes doentes
Positivo a b M0
Negativo c d M1
Total N1 N0 N

O quadro I permite-nos calcular a sensibilidade de um teste


(número de doentes com teste positivo em função do número
total de doentes):

sensibilidade = a / N1

271
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A especificidade traduz o número de indivíduos não doentes com


teste negativo em função do número total de não doentes:

especificidade = b/ N0

Devemos seleccionar testes com elevada sensibilidade e


especificidade. No entanto nem sempre é possível utilizar testes
com estas características, o que motiva escolher os testes em
função da especificidade, “sacrificando” um pouco a sensibilidade,
já que estes parâmetros funcionam de acordo com o teorema de
Bayes1 em ordem inversa.

As razões prendem-se com o problema dos falsos positivos (b/N0)


que podem ocorrer em grande número no caso de utilizarmos
testes com fraca especificidade.

A utilização dos testes de rastreio exige o conhecimento prévio da


prevalência da doença. Se esta for baixa é preferível não efectuar
o rastreio, mesmo que eventualmente os testes tenham
sensibilidade e especificidade da ordem dos 100% (o que é
praticamente impossível de acontecer).

Se admitirmos que a prevalência da doença X é da ordem de


1/1.000, podemos calcular quantos doentes existem numa
população de 10.000.000 habitantes (quadro II).

1 Teorema utilizado em epidemiologia para determinar a probabilidade de uma doença num grupo de indivíduos com
uma dada característica, com base na taxa geral dessa doença (a probabilidade prévia da doença) e da verosimilhança
daquela característica em indivíduos saudáveis e em doentes
.

272
Rastreios

Quadro II. Prevalência da doença X na comunidade

Resultados dos Doentes Não Total


testes doentes
Positivo
Negativo
Total 10.000 9.990.000 10.000.000

Se admitirmos a existência de um teste com uma sensibilidade de


99,9% e uma especificidade de 99,9%, o que não é muito
provável de encontrar, podemos completar o quadro seguinte
(quadro II).

Quadro III. Doença X. Prevalência de 1/1.000

Resultados dos Doentes Não Total


testes doentes
Positivo 9.990 9.990 19.980
Negativo 10 9.980.010 9.980.020
Total 10.000 9.990.000 10.000.000

O quadro III revela-nos que a aplicação sistemática do teste


“quase patognómico” a uma população idêntica à portuguesa
originaria o rastreio de 19.980 pessoas “positivas”. No entanto
apenas 50% são doentes, os restantes são falsos positivos. Há
ainda a destacar, apesar da elevada sensibilidade do teste, dez
casos não diagnosticados.

Se a doença em causa exigisse o concurso de testes


complementares de diagnóstico, facilmente se compreendia as

273
Notas e Técnicas Epidemiológicas

dificuldades técnicas, a demora, e a angústia inerente (à espera


da confirmação ou não da situação), agravadas, se as alternativas
em termos de terapêutica não fossem as melhores.

O exemplo apresentado revela a importância da prevalência da


doença no rastreio. Só devemos proceder ao rastreio, se a
prevalência da doença em questão for elevada e se houver
possibilidades de solução (aspecto ético que não se pode
esquecer!).

274
Padronização1

Introdução

A padronização2 é uma técnica que permite eliminar as


divergências devido a um conjunto de variáveis. O factor idade
constitui uma das variáveis mais importantes que exige
naturalmente uma padronização, atendendo às enormes
diferenças das estruturas demográficas existentes entre países e
regiões.

No quadro seguinte, descrevemos dados fictícios sobre a


mortalidade em duas comunidades, designadas respectivamente
por População A e População B.

Quadro I. Taxas de mortalidade pela doença X, em duas


populações (dados fictícios)

POPULAÇÃO A POPULAÇÃO B
Escalão Habi. piA Mortes Taxa de Hab. piB Mortes Taxa de
Etário Morta. Morta.

(105) (105 )
20 - 30 400 000 0,40 40 10,0 200 000 0,10 8 4,0
31 - 40 300 000 0,30 60 20,0 400 000 0,20 40 10,0
41 - 50 200 000 0,20 60 30,0 600 000 0,30 120 20,0
51 - 60 100 000 0,10 60 60,0 800 000 0,40 320 40,0
Totais 1 000 000 1,00 220 22,0 2 000 000 1,00 488 24,4

1
Capítulo elaborado conjuntamente com o Dr. Carlos Ramalheira
2 Padronização: “conjunto de técnicas usadas para remover, tanto quanto possível, os efeitos das diferenças de idade e
de outras variáveis de confundimento, quando se comparam duas ou mais populações”.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Estes dados3 evidenciam o que à primeira vista pode parecer um


paradoxo: sendo as taxas de mortalidade específicas por escalões
etários da população A sempre superiores às suas
correspondentes da população B (10 > 4; 20 > 10; 30 > 20; 60
> 40), observa-se uma relação inversa no que respeita às taxas
respectivas brutas (22,0 < 24,4).

Como interpretar isto? Dá a impressão que, a acreditar nas taxas


específicas, o risco de morrer é sempre superior na população A,
enquanto que se atendermos às taxas globais, somos levados a
pensar que o risco de morrer com a doença X é maior no caso da
população B (24,4)! É precisamente este tipo de situação que
determina a necessidade de proceder a uma padronização das
taxas brutas.

Neste exemplo, a discrepância que assinalámos resulta da


diferente composição das populações A e B: os seus estratos têm
frequências relativas simétricas (piA e piB), sendo a população A
uma população “jovem”, enquanto a B se pode considerar
“idosa”.

Na eventualidade de não se poder, ou querer, realizar a


mencionada padronização, fica-se constrangido a comparar
apenas as taxas específicas.

Antes de exemplificar como se pode efectuar uma padronização


torna-se necessário demonstrar, porque é que as taxas brutas

3 Legenda do Quadro I: Habitantes - número absoluto de indivíduos em risco, em cada estrato etário; pi - frequência
relativa do estrato i; Mortes - número absoluto de mortes pela doença X registado no período de tempo Δt; Taxa... -
Taxa de mortalidade por 105
indivíduos em risco, no intervalo de tempo Δt.

276
Padronização

podem ser tão enganadoras. Na verdade elas são sempre


“ajustadas” para as características da população a que respeitam.

De acordo com o princípio geral

Meda = Σ λi * Medi,

uma qualquer medida bruta (Medb) diz-se ajustada (Meda) em


relação a um factor descrito por um sistema de pesos λi, quando
é transformada na que se obtém por ponderação de medidas
específicas de diversos estratos (Medi), com recurso a esse
mesmo sistema de pesos (λi)4 .

Nesta acepção, uma taxa bruta de mortalidade é, como não podia


deixar de ser, uma taxa “ajustada” em função de todas as
características da população a que respeita (estrutura etária,
sexo, etc.).

De acordo com os dados do quadro I as taxas brutas de


mortalidade das populações A e B, respectivamente 22,0 e 24,4
mortes por cada 105 habitantes, obtiveram-se, dividindo o
número total de mortes em cada população, pelo correspondente
número total de indivíduos em risco, no intervalo de tempo Δt.

Pop. A : TM = (220 / 106) * 105 = 22,0

Pop. B : TM = (488 / ( 2 * 106)) * 105 = 24,4

4 Como já se terá apercebido, os pesos atribuídos aos diferentes estratos (λi)


não são mais do que as frequências relativas com que o factor de ajustamento se distribui pelos estratos
correspondentes da população padrão. Assim, essas proporções podem ser, na generalidade, definidas como λi = wi / Σ
wI (i)
(onde wi representa a frequência absoluta do factor em cada estrato da população de referência).

277
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Também se podem obter recorrendo por adição das taxas


específicas dos diversos escalões etários, ponderadas pelos
sistemas de pesos que descrevem a estrutura etária de cada
população, piA e piB:

Pop. A: TMa = (0,4 * 10) + (0,3 * 20) + (0,2 * 30) + (0,1 * 60)
= 22,0

Pop. B : TMa = (0,2 * 4) + (0,24 * 10) + (0,26 * 20) + (0,3 *


40) = 24,4.

Fica assim demonstrada a razão porque não é lícito fazer


comparações entre populações diferentes descritas por taxas
brutas (ou simplesmente “auto-ajustadas”). No entanto, se se
recorrer a um sistema de pesos único para ponderar taxas de
duas populações, obtemos medidas que, como já dissemos, se
dizem padronizadas em função do sistema de pesos utilizado. É o
que faremos de seguida, recorrendo a três sistemas de pesos
diferentes: os que representam a estrutura etária de cada uma
das populações A e B (piA e piB), e o que representa uma
população teórica correspondente à soma, estrato a estrato, das
populações anteriores (piA+B). Os sistemas de pesos que
acabamos de descrever encontram-se discriminados no quadro II.

Na prática, sendo “indiferente” o sistema de pesos que se utiliza,


costuma optar-se por escolher como população de referência, ou
população padrão (a que fornece os pesos em relação aos quais
se padronizam as taxas), ou a que resulta da soma das duas
populações em causa, ou a população da região ou país que inclui
as mesmas.

278
Padronização

Com este tipo de opção tem-se a vantagem de os sistemas de


pesos que se utilizam diferirem um mínimo de cada uma das
populações, além de que são dotados de alguma
compreensibilidade, pois representam populações reais.

Para obter taxas padronizadas basta ajustar as taxas de


mortalidade específicas de ambas as populações com recurso ao
mesmo sistema de pesos. É o que se faz nos quadros seguintes,
onde se multiplicam as taxas específicas das populações A e B
pelos pesos patentes no quadro II que, repetimos, representam
respectivamente, a fracção populacional de cada estrato para
cada uma das duas populações, e a população teórica
representada pela adição estrato a estrato de A e B (de facto esta
última representa uma população intermédia em relação a A e B
pois a sua estrutura é idêntica à que se obteria efectuando uma
média das populações a comparar5.

Quadro II. Sistemas de pesos (λi) a utilizar na padronização

POPULAÇÃO A POPULAÇÃO B POPULAÇÃO A + B


Escalão Habitantes λi = pi Habitantes λi = pi Habitantes λi = pi
A B A+B
Etário
20 - 30 400 000 0,40 200 000 0,10 600 000 0,20
31 - 40 300 000 0,30 400 000 0,20 700 000 0,23
41 - 50 200 000 0,20 600 000 0,30 800 000 0,27
51 - 60 100 000 0,10 800 000 0,40 900 000 0,30
Totais 1 000 000 1,00 2 000 000 1,00 3 000 000 1,00

5
Efectivamente, os valores populacionais absolutos com que se trabalha nos
dois casos são diferentes, mas as relações dos estratos entre si, expressos pelos
pesos, são idênticas (i.e., as suas distribuições proporcionais são semelhantes).
Na prática, quer se proceda à padronização com recurso aos pesos, como temos
feito, quer se recorra a um método de estimativa de mortes esperadas, as taxas
finais ajustadas que se obtêm são as mesmas.

279
Notas e Técnicas Epidemiológicas

De passagem, refira-se novamente que, sendo vulgar a


padronização de medidas em função da distribuição etária, ou da
distribuição por sexos, será relevante efectuar padronizações que
controlem o efeito de todo e qualquer factor que se presuma
poder estar associado a variações na frequência do estado
mórbido em causa.

Um outro sistema de pesos a que se recorre com frequência na


realização de padronizações é o derivado da precisão das medidas
específicas: com efeito, quando há grandes discrepâncias na
precisão das taxas específicas, pode utilizar-se um sistema de
pesos em que, no cálculo da medida global, aquelas são
ponderadas pelo inverso da sua variância (Vari). Assim, se

λi = (1 / Vari) / (Σ 1 / Vari),

for o sistema de pesos utilizado para ponderar cada medida


específica, pode obter-se uma medida global, apenas ajustada,
mas com um valor proporcional à precisão das taxas específicas
utilizadas para a calcular6.

Como demonstração geral destas técnicas, iremos proceder a três


padronizações baseadas em distribuições de frequência
alternativas para mostrar que, de facto, o que muda nas taxas

6
Pode fazer-se esta afirmação em virtude da variância de uma distribuição de
estimativas amostrais de um qualquer parâmetro ser uma estatística que
diminui com o aumento da dimensão das amostras utilizadas, ou seja, que varia
na razão inversa da estabilidade das estimativas. Logo, daqui decorre que o seu
inverso variará numa razão directa com a estabilidade, ou precisão, de uma
estatística. Já agora, registe que a variância (Vartx) de uma distribuição
amostral de estimativas de uma taxa observada (tx, dada por a / N), pode ser
estimada por Vartx = tx2 / a. Finalmente, repare que um sistema de pesos
baseado no inverso da variância apenas permite obter medidas globais mais
ajustadas, mas não padronizadas, i.e., não comparáveis entre si.

280
Padronização

brutas após a padronização é a relação que mantêm entre si.


Deixa portanto de ter significado o seu valor absoluto, que apenas
depende do sistema de pesos utilizado.

Quadro III. Padronização das taxas das populações A e B em


função da estrutura etária da população A.

POPULAÇÃO A POPULAÇÃO B
Escalão Taxa de Taxa Taxa de Taxa
Etário λi = piA mortalidade Padronizad mortalidade Padronizada

(a) (por 105 a (por 105 Σ(a) • (c)

hab.) Σ (a) • (b) hab.)


(b) ©
20 - 30 0,40 10,0 4,0 4,0 1,6
31 - 40 0,30 20,0 6,0 10,0 3,0
41 - 50 0,20 30,0 6,0 20,0 4,0
51 - 60 0,10 60,0 6,0 40,0 4,0
Σ 22,0 Σ 12,6

O que sucedeu? Desta vez a taxa da população B é inferior à taxa


padronizada correspondente para a população A, uma
modificação que já esperávamos tendo em atenção que as taxas
específicas em todos os escalões da população B eram menores
que na A. Fica assim reposto o verdadeiro sentido, em que na
realidade se devem avaliar os riscos. Por outro lado, neste caso
particular, a taxa padronizada da população A apresenta o mesmo
valor que anteriormente tínhamos encontrado quando a
ajustáramos. Esta circunstância deve-se ao facto de nesta
padronização se tratarem ambas as populações (A e B) como se a
sua estrutura etária fosse a da população A.

281
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Vejamos agora o que acontece se efectuarmos a padronização


com o segundo sistema de pesos, correspondente à distribuição
etária da população B (vd. Quadro IV).

Quadro IV. Padronização das taxas das populações A e B em


função da estrutura da população B.

POPULAÇÃO A POPULAÇÃO B
Escalão Taxa de Taxa Taxa de Taxa
Etário λi = piB mortalidade Padronizad mortalidade Padronizada

(a) (por 105 a (por 105 Σ (a) * (c)

hab.) Σ (a) • (b) hab.)


(b) ©
20 - 30 0,10 10,0 1,0 4,0 0,4
31 - 40 0,20 20,0 4,0 10,0 2,0
41 - 50 0,30 30,0 9,0 20,0 6,0
51 - 60 0,40 60,0 24,0 40,0 16,0
Σ 38,0 Σ 24,4

Como se pode observar continua a obter-se uma inversão na


relação que as taxas brutas mantinham entre si (TMA < TMB).

Mais uma vez foi corrigido o efeito de confundimento das


estruturas etárias.

Os valores absolutos finais também são diferentes. Dependem do


sistema de pesos que se usa: de modo análogo ao que se poderia
ter referido sobre o exemplo anterior poder-se-ia, também neste
caso, dizer que se a estrutura etária da população A fosse a da
população B, a sua taxa de mortalidade seria de 38,0 por cada

105 habitantes (evidentemente que no exemplo anterior se teria


que formular a frase de modo inverso).

282
Padronização

Por último, podemos verificar que desta vez, como a população


padrão foi a B, a taxa padronizada que calculámos é igual à taxa
ajustada que antes determináramos.

Há um outro pormenor importante que permite relacionar os dois


processos de padronização anteriores: é que em ambas as
ocasiões só teríamos necessitado de conhecer as taxas brutas das
duas populações, as taxas específicas de mortalidade para uma
das populações, e a estrutura etária da outra, para podermos
obter taxas padronizadas em função da idade. Bastava usar a
distribuição no factor em causa de uma das populações como
sistema de referência para ajustar a outra (de que então só
necessitaria conhecer a taxa bruta e a distribuição do factor).

Este último método, chamado Padronização pelo Método


Indirecto, é, frequentemente, o único a que se pode recorrer. Na
realidade, não é raro ter de se comparar dados de regiões, ou
países, cujas estatísticas têm qualidade muito desigual (apesar de
muitas vezes não estarem disponíveis taxas específicas em
função do factor a controlar para um dos países ou grupos, já é
mais frequente conseguir-se obter dados sobre a distribuição
do(s) factor(es) a controlar).

Razão de mortalidade padronizada

Não se pode também deixar de mencionar que é na sequência


deste processo indirecto de padronização que se calcula um dos
indicadores mais frequentemente utilizados em epidemiologia:
trata-se de uma Razão Padronizada de Riscos (geralmente
expressa como uma razão de mortalidade, a que entre nós se

283
Notas e Técnicas Epidemiológicas

chama Razão de Mortalidade Padronizada, ou RMP), uma razão


entre o risco observado numa população, ou grupo, e o que seria
esperado observar caso nessa mesma população se exercessem
os riscos específicos de uma segunda população7.

Este método de contraste, formalizado como uma razão é, nem


mais nem menos, do que a comparação subjacente a um
processo indirecto de padronização. Ilustrando com o nosso
último exemplo, chama-se Razão de Mortalidade Padronizada à
seguinte ratio (convencionalmente apresentada como uma
percentagem):

RMP = (Mortes observadas / Mortes esperadas) * 100

= (Risco observado / Risco esperado) * 100

=(24,4 / 38,0) * 100 = 64,2 %

Poderia concluir-se que a mortalidade observada na população B


é de 64% da que se encontraria na população A, caso esta
tivesse a mesma estrutura populacional que a população B. Dito
de outra forma, a mortalidade da população A é superior à

7
Em rigor, a medida que descrevemos, embora de uso generalizado, não
corresponde exactamente à medida que os autores anglo-saxónicos chamam de
Standardized Mortality Ratio e que, entre nós, se costuma traduzir por Razão
Padronizada de Mortalidade. De facto, uma noção subjacente àquela medida
anglo-saxónica, frequentemente utilizada em medicina do trabalho, e que não se
verifica nesta nossa medida, é a de que naquela se compara a mortalidade
observada num subgrupo populacional de indivíduos expostos a um factor
(numerador) com a que seria de esperar ocorresse nos mesmos indivíduos se
estivessem sujeitos às taxas específicas da população de que fazem parte
(denominador). Nesta definição está, portanto, implícita a noção de comparação
de um grupo de indivíduos expostos com a população total em que se integram
(SMR=R0/Rt). Tal não sucede nas circunstâncias como a do nosso exemplo, em
que os grupos são independentes. Note-se ainda que se a medida SMR é apenas
ajustada (nas condições em que se definiu fornece quase sempre uma sobre-
estimativa do RR, porque sempre que RR > 1, Rt é maior do que R0), a nossa

284
Padronização

mortalidade da população B na medida em que, por cada 100


mortes na primeira, apenas ocorrem 64,2 na segunda. (ou, mais
plausivelmente, por cada 500 mortes na primeira, A, ocorrem 321
mortes na segunda, B8).

Vejamos agora o que se passa com o nosso último exemplo


(Quadro V), em que se procede a uma padronização em função
das duas populações reunidas.

Quadro V. Padronização das taxas das populações A e B em


função da estrutura etária das duas populações reunidas

POPULAÇÃO A POPULAÇÃO B
Escalão Taxa de Taxa Taxa de Taxa
Etário λi = pi mortalidade Padroniza mortalidade Padronizad
A+B
(a) (por 105 da (por 105 a

hab.) Σ (a) • (b) hab.) Σ (a) • (c)

(b) ©
20 - 30 0,20 10,0 2,0 4,0 0,8
31 - 40 0,23 20,0 4,6 10,0 2,3
41 - 50 0,27 30,0 8,1 20,0 5,4
51 - 60 0,30 60,0 18,0 40,0 12,0
Σ 32,7 Σ 20,5

Como seria de esperar obtivemos, mais uma vez recorrendo ao


Método Directo de Padronização, taxas convencionais que

medida RMP permite a comparação de duas medidas padronizadas pelo método


indirecto.
8
Repare que a RMP, sendo habitualmente definida como uma razão de números
absolutos de mortes observadas e esperadas ⎯ como indicámos em (7) ⎯, pode
também ser derivada de taxas observadas e esperadas ⎯ como em (8). Esta
última definição mostra que uma Razão de Mortalidade, ou de Morbilidade
Padronizada, pode, em certas circunstâncias, ser entendível como uma
estimativa indirectamente ajustada duma razão de riscos. Ainda a este respeito,
veja o esclarecimento que encerra esta secção.

285
Notas e Técnicas Epidemiológicas

revelam a verdadeira relação entre a mortalidade das duas


populações.

Nem sempre acontece como no nosso exemplo, que a


padronização produza uma inversão da relação entre duas
medidas brutas. É que nem sempre o efeito de confundimento do
factor que se controla é tão forte como o que aqui se exercia.

Também já mostrámos que a apreciação de taxas padronizadas


deve ser delineada mais de um ponto de vista qualitativo do que
quantitativo. O próprio processo de padronização pode introduzir
alguma distorção, sobretudo se for efectuado num pequeno
número de estratos (o que aliás acontece no nosso exemplo). Por
outro lado, além de, como referimos, os valores absolutos das
taxas padronizadas não terem grande significado, pois ocorrem
na dependência do padrão utilizado, verificamos que também as
suas diferenças, que idealmente deveriam ser constantes, podem
surgir enviesadas (podem constatar isto na nossa ilustração: as
diferenças entre as taxas obtidas em cada uma das tabelas
apresentam alguma variação).

Finalmente, deve fazer-se uma advertência: nem sempre está


indicado proceder a uma padronização. Só se pode ter a garantia
de poder apreciar a verdadeira correlação de forças entre duas
taxas se as diferenças entre todas as medidas específicas
subjacentes se exercerem no mesmo sentido: no exemplo fictício
que se acaba de apresentar, e em todos os escalões de idade, as
taxas da população B eram mais baixas do que na população A
(vd. supra, Quadro I). Sempre que esta condição não se

286
Padronização

verifique, ou seja, sempre que as taxas de A e B se entrecruzem9


(por exemplo como as seguintes: 10 > 4; 10 < 20; 30 > 20; 60
> 40) é preferível proceder apenas a comparações entre taxas
específicas. Em circunstâncias como estas, em que as medidas
parcelares, por se cruzarem, se podem caracterizar como
incongruentes, ou inconsistentes, os resultados da padronização
são sempre imprevisíveis.

Esclarecimento adicional: em muitos textos de análise de dados,


e/ou de epidemiologia, os ajustamentos e padronizações são
efectuados por um processo que, à primeira vista, parece
diferente daquele que adoptámos. Nessas abordagens, em vez de
se efectuar uma ponderação de taxas específicas, que de
imediato se podem adicionar, começa-se por estimar o número
absoluto de mortos esperado em cada estrato, multiplicando a
taxa específica da população a ajustar pelos indivíduos do estrato
correspondente da população padrão. Só depois de adicionar as
mortes esperadas em todos os estratos se pode, dividindo este
valor pelo total da população padrão, obter a taxa padronizada.
Claro que esta abordagem, bem como os seus resultados, são
perfeitamente sobreponíveis aos que mostrámos. Este método
alternativo, embora intuitivamente apelativo, e revestido de
algum valor pedagógico (é por se raciocinar em função dos
passos em que se efectua que se fala, a propósito do método
indirecto de padronização, de razão de mortes observadas e
mortes esperadas), exige maior número de passos e de cálculos,

9
Autores de língua francesa apelidam, sugestivamente, este padrão não
congruente, "entrelaçado", de enjambée.

287
Notas e Técnicas Epidemiológicas

além de que escamoteia a natureza do processo subjacente: uma


ponderação de taxas.

288
Testes de diagnóstico

Introdução

No nosso dia a dia utilizamos inúmeros testes com o objectivo de


confirmar ou infirmar as nossas hipóteses de diagnóstico. A
escolha de um teste obedece a um conjunto de regras de forma a
terem utilidade prática. Naturalmente que é muito difícil que um
teste tenha uma capacidade discriminante ou diagnóstica
absoluta. Não pretendemos efectuar a demonstração deste
teorema.

Procuramos rapidamente transmitir alguns conceitos de


sensibilidade e de especificidade de um teste.

O quadro I descreve a estrutura geral através do qual iremos


calcular a sensibilidade e especificidade de um teste.

Quadro I. Testes

Resultados dos Doentes Não Total


testes doentes
Positivo a b M0
Negativo c d M1
Total N1 N0 N

Sensibilidade = a / N1

Especificidade = d / N0
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Podemos definir sensibilidade de um teste como a proporção de


indivíduos com teste positivo na população em estudo e que são
considerados como doentes.

A especificidade corresponde à proporção de indivíduos com teste


negativo na população em estudo e que são considerados não
doentes. Quer uma quer outra são medidas de probabilidade
condicional e podem igualmente ser designadas por taxa de
verdadeiros positivos e taxa de verdadeiros negativos,
respectivamente.

No decurso de uma investigação tentamos conhecer quais as


características operativas de um novo teste de diagnóstico. Para o
efeito o investigador selecciona um conjunto de doentes e um
grupo controlo.

Quadro II. Resultado do teste X na doença Y.

Resultados dos Doentes Não Total


testes doentes
Positivo 85 15 100
Negativo 5 95 100
Total 90 110 200

Sensibilidade = 85/90 = 0,95 (95%)


Especificidade = 95/110 = 0,86 (86,4%)
Valor preditivo do teste positivo = 85/100 = 0,85 (85%)
Valor preditivo do teste negativo = 95/100 = 0,95 (95%)
Perante estes factos acabamos por concluir que o teste em causa
(para os limiares considerados) é um bom teste.

290
Testes de Diagnóstico

Na prática clínica, vimos com frequência que os limites de


anormalidade variam. Através das características operativas de
um teste, podemos definir qual o limite mais adequado para
“extrair” o máximo de potencialidades do mesmo, ou seja
estabelecer “pontos de corte”. Através dos pontos de corte
podemos conjugar a sensibilidade e a especificidade de um teste
de modo a evitar o máximo de falsos positivos e detectar a maior
proporção de verdadeiros positivos.

Para o efeito estabelecemos as curvas ROC (receiver operating


characteristic curve).

Testes em paralelo

Os clínicos usam geralmente os testes em paralelo quando é


necessário uma avaliação rápida de um doente, ou quando o não
internamento do doente leva à requisição de uma “bateria” de
testes para “poupar tempo”. A utilização dos testes segundo este
método vai:

• aumentar a sensibilidade e o valor preditivo negativo


• diminuir a especificidade e o valor preditivo positivo

Testes em série

Este método utiliza-se sobretudo quando há possibilidade de fazer


um seguimento do doente ao longo do tempo, permitindo uma
avaliação “passo-a-passo”, sendo também muito útil quando os
testes disponíveis são, isoladamente, pouco específicos. Por outro
lado, permite um escalonamento da utilização dos testes segundo
a sua agressividade intrínseca.

291
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A utilização dos testes em série vai:

• diminuir a sensibilidade e o valor preditivo negativo;


• aumentar a especificidade e o valor preditivo positivo.
De notar que, aquando da decisão de realizar testes em série,
deve ponderar-se a hipótese de requisitar inicialmente o teste
mais específico (desde que as outras características sejam
semelhantes).

Testes de verosimilhança

Os testes de verosimilhança permitem avaliar a acuidade de um


teste, de uma investigação ou de um diagnóstico.

O teste de verosimilhança consiste na razão de proporções de


doentes realmente doentes e com um diagnóstico clínico positivo
e os que não têm realmente a doença, mas com um diagnóstico
clínico positivo. Com base no quadro seguinte (III) é possível
explicar como se calcula o teste de verosimilhança.

Quadro III. Cálculo do teste de verosimilhança

Doença Sem a Total


verdadeira doença
verdadeira
Diagnóstico a b a+b
clínico positivo
Diagnóstico c d c+d
clínico negativo
Total a+c b+d a+b+c+d

292
Testes de Diagnóstico

Teste de verosimilhança = (a/(a+c))/(b/(b+d))


= sensibilidade/(1-especificidade)

Para mostrar a importância do teste de verosimilhança vamos


analisar as relações existentes entre odds e probabilidade.

odds = probabilidade/(1-probabilidade)

Se multiplicarmos o odds pré-teste pelo teste de verosimilhança,


obtemos o odds “posterior” de um determinado acontecimento
estar verdadeiramente presente.

odds pós teste = odds pré teste * teste de verosimilhança

Com base nas comparações entre os diagnósticos clínicos e por


autópsia do tipo de acidentes vasculares cerebrais, utilizamos os
dados de Heasman e Lipworth (citado por Shah Ebrahim).

Quadro IV. Comparação entre o diagnóstico clínico e autópsia dos


acidentes vasculares cerebrais.

Autópsia
Diagnóstico Hemorrágicos Outros Total
clínico AVC´s
Hemorrágicos 257 282 539
Outros AVC´s 120 583 703
Total 377 865 1242

Deste modo temos:

Sensibilidade = 257/377 = 0,68

Especificidade = 583/865 = 0,67

Valor preditivo do teste positivo = 257/539 = 0,48

293
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Teste de verosimilhança = 0,68169/(1 - 0,67398) = 2,09

Prevalência da hemorragia = 377/1242 = 0,30

Odds pré-teste = 0,3035/(1 - 0,3035) = 0,44

Odds pós-teste = odds pré-teste *razão de verosimilhança

= 0,43575*2,09 = 0,91

Probabilidade posterior = Odds pós-teste/(1 + odds pós-teste)

= 0,91/(1 + 0,91)

= 0,91/1,91 = 0,48

A capacidade de diagnóstico dos clínicos, relativamente aos


acidentes vasculares cerebrais hemorrágicos foi suficiente para
aumentar a evidência para a probabilidade de uma hemorragia de
30 para 48%. Quanto mais elevada for a cifra do teste de
verosimilhança, maior é a capacidade discriminante do método
diagnóstico.

294
Riscos1

Risco relativo

O risco relativo pode ser considerado como uma medida de


associação que se obtêm através da razão entre as incidências no
grupo exposto e no grupo não exposto ao factor em análise.

Quadro I. Mortalidade por cancro do pulmão em fumadores

1951 n %
Fumadores 28.585 83%
Não 5.855 17%
Fumadores
1971 Taxa mortal. Risco
padronizada Relativo
(105)
Fumadores 104 10,4
Não 10 1,0
Fumadores
Fonte: “Mortality in relation to smoking: 20 years observation on
male. British doctors.”Richard Doll, Richard Peto - British Medical
Journal, 2,1525-1536,1976.

1
Capítulo elaborado conjuntamente com o Dr. Carlos Ramalheira
Notas e Técnicas Epidemiológicas

No quadro I, podemos verificar que os fumadores apresentam


uma taxa de mortalidade por cancro do pulmão muito superior
aos não fumadores. O quociente entre as duas taxas
padronizadas permite-nos concluir que os fumadores têm um
risco relativo 10,4 vezes superior aos não fumadores.

O risco relativo aplica-se sobretudo num estudo de coorte.

O quadro II descreve a as características principais de um estudo


de coorte e os meios para procedermos ao cálculo do risco
relativo.

Quadro II. Descrição formal dos resultados de um estudo de


coorte

FACTOR
Positivo Negativo
Casos a b
Nº Pessoas em N1 N0 N
Risco

Deste modo podemos calcular o risco no grupo de expostos da


seguinte maneira:

R1 = a/N1

Por outro lado o risco mórbido no grupo dos não expostos é dado
através de :

R0 = b/N0

Podemos afirmar que R1 e R0 representam respectivamente


estimativas amostrais do risco de doença nos indivíduos expostos

296
Riscos

ao factor (R1) e do risco de doença nos indivíduos não expostos a


esse mesmo factor (R0 )2.

O risco relativo (RR) é uma razão dos riscos dos indivíduos


expostos, e dos não expostos, a dado factor:

RR = R1/R0 = (a/N1 )/(b/N0 ) = a*N0/b*N1

A análise do quadro III permite-nos comparar o risco relativo e o


risco atribuível.

O risco atribuível é calculado através da diferença entre as taxas


dos expostos e não expostos. É expresso em termos absolutos ao
contrário do risco relativo, que sendo uma razão é desprovido de
unidades.

No caso do cancro do pulmão a taxa de mortalidade entre os


fumadores e não fumadores é respectivamente 227 e 7 por 105
hab (quadro III).

A diferença entre ambos é 220 e constitui o RA (risco atribuível).

Quando se presume que se está perante mais do que uma


simples associação ainda não explicada entre um factor e doença,
ou seja, se se admite que há um mecanismo subjacente ao efeito
detectado costuma a passar a denominar-se diferença de riscos
por risco atribuível (RA).

R1 - R0 = 0 ; ausência de relação entre o factor e a doença

R1 - R0 > 0; associação positiva entre o factor e a doença

R1 - R0 < 0; associação negativa entre o factor e doença

2 R e R podem representar taxas de mortalidade, de incidência e de incidência cumulativa.


1 0

297
Notas e Técnicas Epidemiológicas

É óbvio que perante um RA > 0, e no caso de a diferença


detectada ser estatisticamente significativa, se pode dizer que há
um excesso (correspondente ao valor de RA) de casos entre os
expostos ao factor.

Quadro III. Mortalidade (105 hab.) por diversas causas e consumo


de tabaco (homens)

Causa de morte Fumadores Não RR RA


>25 cig./dia Fumadores
Cancro do pulmão 227 7 32,4 220
Bronquite crónica 106 5 21,2 101
D. Cardiovasculares 993 732 1,36 261

Voltando ao quadro III, o facto de um RR ser mais baixo numa


doença do que noutra, não significa que o impacto absoluto,
populacional, do efeito devido ao factor, seja menor.

Podemos observar que o RR das doenças cardiovasculares (1,36)


é inferior ao do cancro do pulmão (32,4) nos expostos ao tabaco,
versus não expostos. No entanto o RA das doenças
cardiovasculares (261 óbitos em excesso por 105 hab.) é superior
ao cancro do pulmão (220/105 hab.).

Analisando o quadro I podemos calcular o RA. O RA traduz o


“peso” do factor tabaco no aparecimento do cancro do pulmão.

R1 (taxa de expostos) = 104/100.000

R0 (taxa dos não expostos) = 10/100.000

p (probabilidade de fumadores) = 0,83

298
Riscos

RR = 10,4

RA = p*(R1-R0)

RA = 0,83*(104-10)/100.000

RA = 78/100.000

Podemos concluir que no caso dos óbitos por cancro do pulmão


nos fumadores, 78 dos 104 óbitos por 100.000 fumadores são da
responsabilidade do tabaco. Ou seja, alguns casos de cancro do
pulmão nos fumadores não são da responsabilidade do tabaco.

Na avaliação do RA devido a um factor, não podemos ignorar a


prevalência do mesmo, já que vai condicionar o resultado final,
conforme se pode verificar pela análise dos dados do quadro I.

Podemos igualmente calcular a fracção etiológica do risco


atribuível (%RA)

%RA = (p*(RR - 1))/(1 + p* (RR -1))

%RA = (0,83*(10,4 -1))/(1 + 0,83*(10,4 -1) = 0,886 (88,6%)

No caso dos médicos britânicos fumadores 88,6% dos cancros do


pulmão foram devidos ao tabaco.

O RR está relacionado com a prevalência da doença. No caso de


um RR elevado e aliado a uma prevalência baixa, podemos
afirmar que a associação é forte. A associação é igualmente forte
no caso de um RR pouco elevado associado a uma prevalência
elevada (caso do consumo do tabaco e doença coronária). A
associação é fraca no caso de um RR elevado mas com um RA
médio ou baixo.

299
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O sonho de um epidemiologista é encontrar uma associação de


um RR muito elevado com um RA superior a 60%. É aquilo que
designamos por “luxo epidemiológico”.

Razão dos produtos cruzados (odds ratio)

Se o risco relativo é uma das formas para avaliar a associação


entre um factor e uma consequência nos estudos de coorte, a
razão dos produtos cruzados3 utiliza-se nos estudos caso-
controlo. Nestes tipos de estudo, após uma selecção inicial de
uma amostra de doentes (os casos) e de uma amostra de
indivíduos não doentes ou padecendo de outras doenças
independentes da que se pretende estudar (os controlos),
procede-se a uma estimativa retrospectiva dos níveis de
exposição a um factor (ou factores), com o fim de estudar o seu
grau de associação com a doença.

Quadro IV. Descrição formal dos resultados de um estudo caso-


controlo

FACTOR
Positivo Negativo
Casos a B M1
Controlos c D M0
Legenda: M1 = a + b; M0 = c + d

Nos estudos caso-controlo não se podem medir correctamente os


riscos R1, R0, RR nem a DR (diferença de risco), tal como sucedia
para os estudos de coorte, a menos que se conheça o risco total

3 Também designado odds, razão de possibilidades, razão de produtos cruzados ou possibilidades relativas.

300
Riscos

na população, ou a fracção de amostragem dos testemunhos.


Apesar de tudo, a razão de produtos cruzados (RC) constitui uma
medida de associação, que fornece nas condições inerentes a este
tipo de estudo, uma estimativa bastante fiável do RR
populacional.

Assim podemos calcular estimativas de parâmetros populacionais


da seguinte forma:

a/M1 - a probabilidade de um caso ter estado exposto ao factor

b/M1 - a probabilidade de um caso não ter estado exposto ao


factor

c/M0 - a probabilidade de um testemunho ter estado exposto ao


factor

d/M0 - a probabilidade de um testemunho não ter estado exposto


ao factor

Como facilmente se depreende estamos a lidar apenas com dois


níveis de exposição e de acordo com o princípio geral de uma
distribuição dicotómica, p = 1 - q, verificamos que:

a/M1 = 1 - (b/M1)

c/M0 = 1 - (d/M0)

Já chamámos a atenção para a designação de odds ratio como


sinónimo de razão dos produtos cruzados. A designação odds
pode ser traduzida por possibilidades ou possibilidades
comparativas e têm origem nos jogos de azar. Para calcularmos
uma razão temos necessidade de calcular dois odds, o odds dos
casos e o odds dos controlos.

301
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Assim o odds dos casos obtêm-se da seguinte maneira:

Od = (a/M1)/(b/M1) = (a*M1)/(b*M1) = a/b

ou seja dividindo os expostos e os não expostos dos casos.

Quanto ao odds dos controlos obtêm-se de uma maneira idêntica:

Oc = (c/M0)/(d/M0) = (c*M0)/(d*M0) = c/d

ou seja dividindo os expostos e os não expostos dos controlos

Por definição RC = Od/Oc, logo procedendo à sua substituição


temos RC = (a/b)/(c/d) a qual após transformação origina:

RC = (a*d)/(b*c)

Como se pode observar através do quadro IV, esta fórmula


obtêm-se directamente dos valores do quadro através da razão
da multiplicação das células em diagonal, daí a designação de
razão dos produtos cruzados.

Apesar das limitações deste indicador, constitui uma boa


estimativa do risco relativo, sobretudo no estudo de doenças
raras. Naturalmente que no caso de doenças caracterizadas por
prevalências mais elevadas. o RC tende a fornecer uma sobre-
estimativa do RR.

Como interpretar os resultados do RC? Se o RC for igual à


unidade, podemos afirmar que não há associação ou então as
categorias são independentes. Se o RC for superior à unidade a
probabilidade de observar o factor nos doentes é superior à
correspondente para os não doentes (associação positiva). Por
outro lado, no caso de o RC for inferior à unidade estamos muito
provavelmente perante uma associação negativa.

302
Riscos

Vamos de seguida analisar o cálculo de um RC, através dos dados


fictícios descritos no quadro X.

Quadro V. Estudo caso-controlo

FACTOR
Fumadores Não fumadores
Cancro do 87 (a) 13 (c) M1=100
pulmão
Controlos 30 (b) 70 (d) M0=100
N1=117 N0=83 N=200

Utilizando a fórmula para o cálculo do RC, temos:

RC = (a*d)/(b*c) = (87*70)/(13*30) = 15,62

Outras medidas de associação

São utilizadas por vezes outras medidas de associação tais como


o índice Q e o Y de Yule. As vantagens são de que os valores
extremos oscilam entre -1 e +1, enquanto os riscos oscilam
entre 0 a ∞. O significado é fácil de compreender, assim um
índice de 0 significa ausência de associação, -1 associação
negativa e +1 associação positiva.

Intervalo de confiança dos riscos4

Após o cálculo de um RR ou RC, colocam-se algumas


interrogações. Até que ponto o valor encontrado corresponde à

4
No capítulo “Intervalos de confiança” analisamos diferentes maneiras de
proceder ao cálculo aproximado para intervalo de confiança para as médias e
proporções.

303
Notas e Técnicas Epidemiológicas

verdade? Qual o peso do factor acaso? Como controlar estes


aspectos?

Para responder a estas questões, não basta efectuar os cálculos


dos riscos, mas necessitamos de calcular os respectivos intervalos
de confiança, ou seja os limites superior e inferior dos riscos,
dentro de uma determinada probabilidade (habitualmente
utilizamos 95%).

Assim se um determinado risco for de 2,5 e os respectivos limites


superior e inferior (intervalo de confiança 95%) oscilarem entre
0,5 e 4,5, significa ausência de significância estatística, devido ao
facto de estar incorporado no intervalo a cifra 1. Noutro caso,
caracterizado pelo mesmo risco (2,5), mas agora com limites a
oscilarem entre 1,4 e 3,2, podemos afirmar que há uma
associação estatisticamente significativa entre o factor e a doença
em causa, devido ao facto de a unidade não estar incluída no
intervalo calculado.

De uma forma geral, os limites exactos inferior e superior de um


intervalo de confiança (IC) para uma estatística de risco r (uma
de entre p possíveis estimativas pontuais do parâmetro
populacional P) são dados, de acordo com o princípio
probabilístico geral:

p(r-t1-α *σr<p´< r+t1+α *σr) =1-α

Com base nas seguintes fórmulas é possível calcular os limites


superior e inferior do IC.

IC: (r-t1-α *σr; r+t1+α *σr)

IC: (lnr-zα/2 *σlnr; lnr+zα/2 *σlnr)

304
Riscos

IC: (r*e-Zα/2 *σlnr; r*e+Zα/2 *σlnr)

Senão vejamos, o r é conhecido (risco), o e é conhecido e o Zα/2


é dado pelas tabelas. Sendo assim para calcularmos o IC
necessitamos apenas de conhecer o σlnr (erro padrão da
distribuição amostral do logaritmo do risco).

No caso das razões de taxas

(RR = R1/R0 = TM1/TM0, onde TM1 = (a/N1) e TM0 = (b/N0)

o σlnRR obtêm-se da seguinte maneira:

σlnRR = ((1/a)+(1/b))1/2

No caso de uma razão de proporções:

RR = p1/p0, onde p1 = (a/N1) e p2 = (b/N0)

σlnRR = ((c/a*N)+(d/b*N0)) ½

No caso dos estudos caso-controlo:

σlnRR = ((1/a)+(1/b)+(1/b)+(1/c))1/2

Vamos analisar o quadro VI, a fim de ilustrarmos o cálculo do


intervalo de confiança de um RR.

Se numa população de 157.000 habitantes, 36% forem


fumadores, teremos de acordo com o quadro VI, 100.480 não
fumadores e 56.520 fumadores.

Sabendo que a taxa de mortalidade por cancro do pulmão é de


227 por 105 hab. no grupo dos fumadores, é fácil de concluir que
em números absolutos o número de óbitos neste grupo de
indivíduos é da ordem dos 128 (56.520*227/100.000). Por outro

305
Notas e Técnicas Epidemiológicas

lado, o número de óbitos no grupo dos não fumadores será da


ordem dos 7 (100.480*7/100.000).

Quadro VI. Mortalidade por diversas causas e consumo de tabaco


(homens)

Causa de morte Fumadores Não RR RA


>25 cig./dia Fumadores
(105 hab.) (105 hab.)
Cancro do pulmão 227 7 32,4 220
Bronquite crónica 106 5 21,2 101
D. Cardiovasculares 993 732 1,36 261
Fumadores Não Total
fumadores
População 56.520 100.484 157.000
Óbitos por cancro do 128 7 135
pulmão

IC: (RR*e-Zα/2 *σlnr; RR*e+Zα/2 *σlnr)

Com base na fórmula apresentada, vamos proceder ao cálculo;

RR = 32,4

σlnRR = ((1/a)+(1/b))1/2 = ((1/128)+(1/7)) ½ =0,3882

e = 2,718285

Zα/2 = 1,966

Agora basta substituir os valores na fórmula

5 Antilogaritmo de base e (constante dada por tabelas ou calculadoras electrónicas)

306
Riscos

IC: (RR*e-Zα/2 *σlnr ; RR*e+Zα/2 *σlnr))

IC: (32,4 *2,71828-1,96*0,3882 ; 32,4 *2,71828+1,96*0,3882)

IC: (32,4*0,4673 ; 32,4*2,1401)

IC: (15,1 ; 69,3)

Podemos concluir que os limites do intervalo de confiança, neste


exemplo são 15,1 e 69,3 para um risco relativo de 32,4.

Voltando ao quadro V, podemos igualmente efectuar um conjunto


de cálculos de forma a estabelecer quais os limites superior e
inferior do IC para uma razão de produtos cruzados.

A aplicação da fórmula

IC: (RC*e-Zα/2*σlnRC)

Sendo

σlnRC = ((1/a)+(1/b)+(1/c)+(1/d)) ½

Logo IC:

(RC*e-Zα/2* ((1/a)+(1/b)+(1/c)+(1/d)) ½
;

RC*e+Zα/2* ((1/a)+(1/b)+(1/c)+(1/d)) ½
)

IC: (15,6* e-1,96*0,36883 ; 15,6*e+1,96*0,36883)

IC: (7,57 ; 32,14)

6 Valor dado por tabelas

307
Risco aceitável

Introdução

Em termos epidemiológicos utiliza-se com certa frequência o


conceito de risco aceitável como sinónimo de aceitação à
exposição de um determinado factor. Em termos práticos, a
impossibilidade de o eliminar “obriga” à definição de critérios
consensualmente aceites pela comunidade científica e também
pela comunidade em geral. Nem sempre é fácil a sua definição.
No tocante ao cancro admite-se como aceitável um risco da
ordem de um caso para 100.000 indivíduos. Aparentemente tudo
bem, desde que o tal caso não seja nenhum de nós!!

A percepção do risco envolve diferentes variáveis e múltiplas


percepções de acordo com as populações envolvidas.

O facto de o mundo estar cada vez mais exposto a factores de


risco aliado a um melhor conhecimento e a uma rápida
informação, obriga-nos a reflectir sobre o pragmatismo do risco
aceitável. Não podem ser só os cientistas a defini-lo. Temos de
tomar em linha de conta as próprias populações envolvidas. Por
isso a percepção do risco aceitável por parte das populações tem
de ser levada em conta, sendo vital para conhecer a dinâmica
Notas e Técnicas Epidemiológicas

subjacente à sua construção. Miguel de Oliveira1 faz uma


abordagem interessante sobre o assunto.

“Os peritos e os leigos nunca se podem entender quando se trata


de risco percebido - é que o risco é percebido diferentemente por
uns e outros. Qual dos dois é que vale mais?

O Risco Socialmente Aceitável resultante do cálculo objectivo ou o


Risco Socialmente Aceitável para a Sociedade? Os peritos em
avaliação do risco contrapõem a serenidade do cálculo à histeria
popular!

Posição errada, porque confundem um potencial acidente


irrevogável com uma série cumulativa de dados existentes
estatisticamente tratáveis. O acidente irrevogável pode ser lento,
durar anos, ou rápido, durar uns segundos ou minutos. A sua
principal característica é a da sua irrevogabilidade e, por força de
razão, também as suas consequências. É por isso que o risco
percebido não pode ser o mesmo. O risco medido por modelos
probabilísticos como é o caso da expectância: probabilidade de se
dar um acontecimento indesejável, (sempre considerada baixa
nestes casos), a multiplicar pelo valor do acontecimento, é tão
criticável quanto a percepção popular.

As crenças quantificadas e incluídas num modelo de acaso não


são melhores ou mais objectivas do que as expectativas
subjectivas. As tais probabilidades ínfimas do acontecimento têm
de ser, ou baseadas em dados concretos - adequados ao cálculo

1
Miguel Oliveira. A co-incineração, o leigo, o cientista e o ministro. Comunicação pessoal. Coimbra,
Junho de 2000

310
Risco aceitável

que se quer fazer - ou devem corresponder ao resultado da “arte


de quantificar palpites usando probabilidades subjectivas”.

“Na prática, a regra da expectância dos peritos mostra-se


singularmente difícil de aplicar, porque nem probabilidade nem o
valor do acontecimento são fáceis de obter. Em alguns casos as
probabilidades podem ser derivadas de estatísticas, como é o
caso dos acidentes de automóvel. Mas os desastres discutidos
com maior calor são demasiados raros e/ou demasiados recentes
para que tais dados tenham sido coligidos e aí, os avaliadores do
risco devem recorrer ao trabalho de adivinhação (guesswork) e às
probabilidades subjectivas» que são graus de crença subjectiva
que nem sempre podem ser baseados na experiência porque ela
não existe.

O Risco Socialmente Aceitável é o risco que a sociedade (ou a


comunidade local) esclarecida está disposta a aceitar, baseada
nas suas próprias crenças subjectivas, tão válidas
democraticamente quanto são as crenças subjectivas dos peritos.

Os cientistas têm de se sentir racionalmente seguros do que


dizem e isso significa estar sempre pronto a duvidar dessa
mesma segurança. A precipitação é aqui o maior dos erros.

Há necessidade de analisar os conceitos de probabilidade


subjectiva e o bayesianismo, para ver que a ciência de hoje é
bem mais complicada e principalmente baseada em diversas
indecidibilidaades.

311
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Os cientistas não devem permitir que se afirmem certezas onde


apenas grassa a dúvida”2.

Nascimento do risco aceitável

Como é que nasceu e qual o real significado de 10-6 como


sinónimo de risco aceitável? O trabalho de Kathryn Kelly3, revela
que a sua origem foi arbitrariamente adoptada pela FDA como
nível de risco "essencialmente zero" para resíduos de fármacos
ministrados a animais. Não houve qualquer debate. Não houve
intenção de o utilizar como definição de risco aceitável; 10-6
aplica-se quase exclusivamente aos contaminantes que são
percebidos como sendo de grande risco (resíduos perigosos,
pesticidas).

Foi com base num artigo de Nathan Mantel e Ray Bryan de 1961,
solicitados a definirem regras para definirem o número de animais
de laboratório necessários para estabelecer a segurança de uma
substância. Consideraram que "seguro" é igual a 1 em
100.000.000 de desenvolver cancro. À pergunta como tinham
chegado aquela cifra, disseram "tiramos da cartola"4. A FDA
transformou esta relação em 1 para 1.000.000, em 1977.

Uma revisão da evolução de 10-6 revela que a percepção do risco


é o principal factor da sua escolha. Curiosamente aplica-se quase
exclusivamente aos resíduos perigosos, pesticidas e alguns

2
(Gigerenzer et al., 1989, The Empire of Chance. How probability changed
science and everiday life. Cambridge: Cambridge University Press, 265-269)
Citado por Miguel Oliveira.

312
Risco aceitável

carcinogéneos, mas não é aplicado ao ar, alimentos ou outras


fontes percebidas como de baixo risco.

A utilização de 10-6 como sinónimo de risco aceitável não tem


base científica ou regulamentar. Utiliza-se arbitrariamente e nas
circunstâncias dos riscos serem percebidos como de alto risco, na
ausência de dados disponíveis...

Não podemos esquecer que na definição de risco aceitável


deverão ser tomados em linha de conta, todos (sem excepção) os
factores que tenham de alguma forma a ver com o processo.
Toda e qualquer limitação em utilizar no cálculo do risco
aceitável, factores de responsabilidades de "terceiros" ou
"secundários" é uma violação da aplicação do princípio científico,
para salvaguardar a saúde pública.

No conceito de saúde pública, está implícita todas as variáveis


médicas e não médicas.

3
Original apresentado no 84th Annual Meeting Air & Waste Management
Association Vancouver, B.C., Canada 16-21 June 1991

313
Intervalos de confiança

Intervalos de confiança

Para estimar a média da colesterolemia da população de uma


região, não vamos naturalmente proceder à medição da pressão
arterial em todas as pessoas. Procedemos à obtenção de uma ou
mais amostras representativas. Cada uma das amostras irá
fornecer um valor médio ( X ) que diferirá de amostra para
amostra, segundo uma curva de distribuição normal.

Se conhecêssemos o valor médio verdadeiro da pressão arterial


sistólica da comunidade (μ) e o seu desvio padrão (σ),
poderíamos afirmar que as médias da pressão arterial sistólica
das diferentes amostras ( X ) obtidas teriam 95% de
probabilidades de ficarem incluídas dentro do espaço definido pela
média (μ) e mais e menos dois desvios padrões (σ).

Do mesmo modo, podemos afirmar que o valor médio verdadeiro


da colesterolemia da população se encontra dentro de
determinados limites, definidos com base no cálculo da média da
amostra e do desvio padrão.

Intervalo de confiança de uma média

Desconhecemos qual é o valor médio da colesterolemia dos


jovens com 20 anos de idade, no distrito de Coimbra. Com base
num estudo efectuado há algum tempo, com o objectivo de
Notas e Técnicas Epidemiológicas

estudar o comportamento lipídico nos jovens mancebos do


distrito de Coimbra, em relação com o grau de dureza das águas,
verificámos que havia 3.514 jovens nesse ano que deveriam ser
submetidos a inspecção militar. Calculámos que uma amostra de
600 pessoas tinha potência suficientemente elevada para que as
conclusões fossem consideradas como válidas.

O quadro seguinte (quadro I) ilustra alguns aspectos deste


estudo, relacionados com a vertente lipídica.

Quadro I. Comportamento dos lípidos séricos em jovens do


distrito de Coimbra (n=577)1

VARIÁVEL MÉDIA VARIÁVEL MÉDIA


(DP) (DP)
Idade 20 Colesterol das 20,5
VLDL (12,9)
Peso (Kg) 66,0 Triglicerídeos 102,6
(9,5) (64,3)
Estatura (cm) 169,0 Apoliproteina A 128,0
(6,4) (27,2)
Índice de Massa 23,1 Apolipoproteina 59,5
Corporal (2,9) B (20,3)
Colesterol total 176,1 Apo A/Apo B 2,41
(37,2) (1,15)
Colesterol das LDL 100.3 HDL/Colesterol 0,325
(33,5) total (0,09)
Colesterol das HDL 55,3 HDL/LDL 0,632
(13,4) (0,33)

1
Salvador Massano Cardoso et al. Comportamento dos lípidos séricos em
mancebos do distrito de Coimbra e sua relação com a dureza das águas
(trabalho não publicado).

316
Intervalos de confiança

Em seguida procedemos ao cálculo dos intervalos de confiança


das médias. Assim, no tocante à colesterolemia total detectámos
uma cifra média de 176,1 mg%.

A média da população (μ) tem 100(1-α) de probabilidades de


estar incluída no intervalo definido de acordo com a seguinte
fórmula:

X ± (t1−α / 2 * σ y )

em que:

X - média da colesterolemia da amostra

t1-α/2 - nível de confiança2

σy - erro padrão

Deste modo, quando estamos a calcular a média e o desvio


padrão de uma estatística de uma amostra, estamos a obter
elementos que nos irão permitir calcular o intervalo de confiança
da média, com um determinado nível de confiança.

No caso anterior (colesterolemia total) utilizaríamos os seguintes


elementos:

X = 176,1 mg%
s = 37,2
n = 577

2
De acordo com a tabela de distribuição do t, obtêm-se a cifra correspondente
de acordo com os graus de liberdade e o nível de confiança desejado. Assim
para as grandes amostras o valor de t1-α/2 é igual a 1,96 se quisermos calcular
com um intervalo de confiança a 95% e igual a 2,58 se quisermos calcular com
intervalo de confiança a 99%.

317
Notas e Técnicas Epidemiológicas

erro padrão sy = s/√n = 37,2/√577 = 1,55

Com base nestes elementos podemos estimar o intervalo de


confiança do verdadeiro valor médio (μ) da colesterolemia da
população masculina (20 anos de idade), com base na seguinte
fórmula:

ICμ = X ± t1-α/2*σ√n

Como desconhecemos o verdadeiro desvio padrão da população


(σ), utilizaremos o desvio padrão da amostra (s). A fórmula
tomará o seguinte aspecto:

ICμ = X ± t1-α/2*s√n

Assim:

s√n = 37,2/√577 = 1,55


ICμ = 171,6 ± t1-α/2*1,55

Se admitirmos um nível de confiança a 95%, temos t1-α/2 = 1,96;


logo:

ICμ = 171,6± 1,96*1,55

ICμ = 168,6 a 174,6

O valor verdadeiro da média (μ) deverá estar incluído dentro do


seguinte intervalo de confiança (95%): 168,6 a 174,6.

Mesmo assim há a possibilidade de 2,5% de o verdadeiro valor


médio estar aquém de 168,6 mmHg e 2,5% acima de 174,6
mmHg.

318
Intervalos de confiança

Intervalo de confiança da diferença entre médias

Com base neste raciocínio é fácil calcular o intervalo de confiança


para a diferença entre médias de duas populações:

IC ( μ A − μ B ) = ( X A − X B ) ± t ( s( X A − X
B
)
)

em que

s( X A − X B ) = sp 2 / N A + sp 2 / N B

sendo que

[ ]
s 2p = ( N A − 1) s 2A + ( N B − 1) s B2 / ( N A + N B − 2)

Intervalo de confiança de proporções

Para as proporções não é difícil calcular o intervalo de confiança:

IC p = p$ ± 1,96 [ p$ (1 − p$ ] / n

sabendo que o erro padrão de uma proporção é dada pela


fórmula:

Spˆ = [ pˆ (1 − pˆ ] / n

já que a proporção tem uma distribuição aproximadamente


normal com uma média igual a P e um erro padrão
P ( 1 − P ) / N , quando n(P) e n(1-P) forem iguais ou superiores a

5.

Queremos conhecer a proporção de alunos fumadores na


Faculdade de Medicina. A proporção de fumadores foi de 25%
(0,25) numa amostra obtida ao acaso (n=50). Qual o intervalo de
confiança da proporção de fumadores a 95%?

319
Notas e Técnicas Epidemiológicas

IC = 0 , 25 ± 1, 96 0 , 25(1 − 0 , 25 ) / 50

IC = 0 , 231a 0 , 269

A proporção real de fumadores da população estudantil da


Faculdade oscila entre 23,1% a 26,9% (intervalo de confiança a
95%).

320
Significância médica e significância estatística

Significância médica e estatística

A literatura médica pode ser benéfica ou perigosa. Através dos


artigos científicos é possível a transmissão de conhecimentos. No
entanto, a forma como o conhecimento é “tratado” merece
algumas considerações. Alguns autores (Sehor e Karten) afirmam
que cerca de 2/3 dos estudos publicados em revistas médicas
(nas mais exigentes), caracterizam-se por defeitos nos desenhos
e problemas relacionados com a interpretação, factos demasiados
importantes, os quais são mais do que suficientes para pôr em
causa as conclusões.

Um dos grandes problemas que se coloca aos autores de um


trabalho científico é a “confusão” que gira ao redor da hipótese
nula e da significância estatística.

A hipótese nula não deve ser confundida com a hipótese de


investigação e a significância estatística com a significância
médica. A hipótese nula traduz em termos estatísticos a
inexistência de diferenças ou de correlação, ou seja: não se
detecta nenhum efeito.

Quando o investigador prepara o seu trabalho, coloca uma


hipótese de investigação que, se estiver correcta, rejeitará em
princípio a hipótese nula de acordo com um determinado nível de
significância. No entanto, se não se conseguir rejeitar a hipótese
Notas e Técnicas Epidemiológicas

nula, o investigador intuitivamente aceita-a como verdadeira. Só


que neste caso, por vezes, pode haver enganos.

O facto de não se ter detectado um efeito que permita rejeitar a


hipótese nula, não permite excluir que o tratamento não tenha
actuado ou que o factor em causa não possa eventualmente ser
responsável. Assim se concluíram pela hipótese nula, tal não
significa que não se possa concluir pela associação.

A significância estatística (que permite rejeitar ou não a hipótese


nula) depende de muitos factores, sobretudo do tamanho e da
representatividade da amostra. Pode acontecer que se rejeita
erradamente a hipótese nula. Neste caso estamos perante um
erro do tipo I (rejeição da hipótese nula, quando é verdadeira).
Pode igualmente acontecer que os autores concluam pela
hipótese nula (aceite), quando na realidade a hipótese de
investigação é verdadeira. Este erro, tipo II é muito comum,
quando lidamos com amostras pequenas. Temos que aumentar a
potência, aumentando o tamanho da amostra.

Tem acontecido nalguns trabalhos, que a aceitação da hipótese


nula ocorra mesmo quando se conseguiu detectar diferenças de
25% em termos de melhoria clínica!

Amostras muito pequenas, podem originar casos de aceitação de


hipótese nula (quando na realidade é falsa). Do mesmo modo, se
obtivermos amostras de grandes dimensões, é muito fácil
detectar diferenças muito pequenas com significância estatística.

É possível, em termos de correlação, considerar como


estatisticamente significativo valores de r da ordem dos 0,1! tudo

322
Significância médica e significância estatística

depende do tamanho da amostra. Ora um valor de correlação r =


0,1, está muito perto do zero (ausência de associação).

Com base nestas correlações estatisticamente significativas,


foram efectuados vários tipos de afirmações que hoje fazem parte
dos conhecimentos médicos e da população em geral.

Para avaliar o grau de correlação utiliza-se frequentemente o


coeficiente de determinação (R2 ). Assim, sabendo o valor do
coeficiente de correlação, calculamos o respectivo quadrado (caso
de regressão simples). Um coeficiente de correlação de 0,8
origina um R2 de 0,64. Neste caso 64% das variações
observadas são devidas ao factor em análise. Mas um coeficiente
de correlação de 0,2 significa um R2 de 0,04. ou seja apenas 4%
da variabilidade observada são atribuíveis ao factor em estudo.

Nos estudos sobre lipoproteinas e consumo de álcool, achou-se


um r de 0,30 com as HDL. Neste caso apenas 9% das variações
observadas nas HDL, são devidas ao consumo do álcool.

Outros factores que podem comprometer os resultados dependem


do tipo de amostras. Se não houver cuidado na selecção e
representatividade das amostras corremos o risco de
estatisticamente aceitarmos a hipótese nula quando é falsa (erro
tipo I).

A literatura médica está cheia de casos desta natureza, as quais


acabam por se inserirem na cultura médica, apesar de serem
falsos.

Além dos aspectos que acabamos de descrever, queremos


chamar a atenção para a excessiva dependência dos níveis de

323
Notas e Técnicas Epidemiológicas

significância que temos observado em muitos autores. Esta


autêntica “P”dependência ou “P”mania pode estar na base de
atitudes não consentâneas com o espírito de significância médica.
A afirmação que acabamos de produzir não pode nem deve ser
considerada como sinónimo de exclusão dos meios estatísticos
nos estudos epidemiológicos. Pelo contrário, somos de opinião
que a metodologia estatística é absolutamente necessária como
um importante instrumento de trabalho. O grande problema está
na sua selecção e interpretação, aspectos negligenciados ou
pouco cuidados em grande número de estudos científicos.

Os “P´s” dão pouca informação sobre os resultados de um


estudo. São utilizados para definir dois possíveis resultados:
significativo ou não significativo. Não se deve dar mais
importância do que aquela que possui, evitando que se
transforme a significância estatística em sinónimo de importância
médica.

Muitos epidemiologistas sugerem a utilização dos resultados dos


estudos com os respectivos intervalos de confiança. A amplitude
do intervalo de confiança de uma estimativa amostral depende do
erro padrão dessa estimativa e, portanto, reflecte em termos de
precisão intervalar a importância do tamanho da amostra.

324
Causalidade1

Medidas de associação e nexos de causalidade

Em ciência, procuramos as causas de um determinado fenómeno.

Nem sempre é fácil estabelecer nexos de causalidade, apesar das


diferentes técnicas de que dispomos actualmente. De qualquer
forma não queremos deixar de descrever um conjunto de
princípios formulados pela primeira vez por Bradford Hill (a fim de
procurar nexos de causalidade entre o meio ambiente e a
patologia humana), e que são muito importantes e orientadores
para qualquer investigador.

Força da associação

Quanto maior for a intensidade de uma associação, sobretudo se


observada em vários estudos independentes, mais reforçada fica
a ideia de que a mesma não resulta de um enviesamento e
poderá traduzir uma relação relevante.

No entanto, existe a possibilidade de uma associação bastante


intensa poder resultar, indirectamente, de uma relação com um
outro factor não considerado. Assim, o segundo factor, que até
pode ser desconhecido, é que eventualmente será relevante no
contexto de um modelo causal. Pode citar-se um exemplo
anedótico deste tipo de associação causal indirecta: num estudo

1
Capítulo elaborado conjuntamente com o Dr. Carlos Ramalheira
Notas e Técnicas Epidemiológicas

detectou-se a existência de uma forte associação positiva entre


nível de rendimentos e incidência de enfartes do miocárdio. Claro
que não vamos defender que os ordenados altos constituem um
factor de risco para o enfarte! De facto, a associação até é
bastante verosímil se atendermos ao facto de que pessoas com o
mesmo nível de rendimentos terem maior tendência a
compartilharem os mesmos hábitos, por exemplo alimentares, ou
de estilo de vida. Esses sim, poderão ter algo a ver com a génese
da doença cardiovascular e, mesmo assim, certamente de uma
forma ainda indirecta. Contudo, já será produtivo considerar estes
últimos como factores de risco, uma vez que podem fundamentar
o estabelecimento de regras preventivas.

Efeito dose-resposta

O valor da variável dependente (por exemplo, a taxa de uma


doença) muda constantemente com a dose, ou nível, do factor
causal suspeito (por exemplo, aumenta quando aquele aumenta,
e vice versa).

A existência de um efeito dose-resposta constitui geralmente um


argumento de muito peso na consideração da importância causal
de um qualquer factor. Como vimos, só certos desenhos de
investigação, especificamente concebidos para este fim permitem
evidenciar efeitos deste tipo. Em contrapartida, em muitas
doenças não é possível, seja por razões técnicas ou por motivos
éticos, pôr em foco relações deste tipo. Idealmente um efeito
dose-resposta deveria ser passível de ser demonstrado quer a
nível grupal, quer individual, e tanto numa perspectiva sincrónica
como diacrónica. Finalmente, o exemplo hipotético que

326
Causalidade

fornecemos no ponto anterior poderia até corresponder, em


certas condições, aos pressupostos necessários para se pensar
haver um efeito dose-resposta entre níveis de rendimento e taxas
de enfarte.

Ausência de ambiguidade temporal

A acção da hipotética causa tem que preceder o desencadear do


efeito (mesmo que pareçam acontecer quase em simultâneo).

Este é talvez o único princípio de causalidade que se pode


considerar como uma condição absolutamente necessária para
que haja nexo de causalidade, isto é, quando se pode estabelecer
que este princípio não se verifica, tem que se eliminar a hipótese
de que o factor seja efectivamente causal. Porém, por vezes não
é possível fazer esta constatação sobretudo se estiver em causa
uma doença com um período de incubação ou de latência longo
e/ou indeterminado (como, por exemplo, a generalidade das
doenças mentais). Por outro lado, a circunstância de um factor
intervir antes de um efeito, por si só, torna-o apenas um pouco
menos do que irrelevante.

Consistência com os achados de outras investigações

A maioria, senão mesmo todos os estudos sobre um certo factor


causal, devem produzir resultados semelhantes.

Deve encarar-se esta regra como de valor algo relativo. Se é


verdade que não são admissíveis contradições grosseiras com
factos bem estabelecidos, sobretudo se fundamentados em
observações múltiplas provenientes de abordagens diversificadas

327
Notas e Técnicas Epidemiológicas

e robustas, a verdade é que a história dos avanços científicos se


tem feito sobretudo a partir da constatação de incongruências, ou
de factos não explicados, ou de circunstâncias particulares, que
exigem a formulação de novas hipóteses explicativas. A
circunstância de um grande número de estudos apontar para
certa conclusão pode apenas significar que compartilham os
mesmos erros metodológicos e enviesamentos. Aliás, o relato
diferencial de investigações concordantes com as já conhecidas
constitui um verdadeiro problema para a ciência em geral. É
muito mais fácil que perante resultados diferentes dos da maioria
dos investigadores, um autor deixe ficar na gaveta, ou seja
obrigado a deixá-las lá por não lhas publicarem, observações de
potencial valia. Este fenómeno, que alguns têm caracterizado
dizendo que no mundo da investigação científica se é pressionado
a “uivar com os lobos”, representa um significativo
empobrecimento para o avanço da ciência.

Plausibilidade teórica e biológica das hipóteses


decorrentes de um achado

A hipotética relação causal posta em foco mediante a detecção de


uma associação importante deve ser consistente com os
conhecimentos e teorias já bem estabelecidos.

Aplicam-se aqui, talvez ainda com mais acutilância, as


observações feitas no ponto anterior. Por outro lado, deve
admitir-se que em muitos domínios (por exemplo, no domínio da
fisiopatologia das doenças afectivas) ou nem sequer há teorias
que abarquem todos os factos conhecidos, ou então admite-se
que os conhecimentos já disponíveis são insuficientes para

328
Causalidade

autorizar uma visão de conjunto. Claro que, idealmente, só fica


bem esclarecida a etiologia de um estado mórbido quando se
conseguem compreender os mecanismos biológicos mais finos
subjacentes, o que, como dissemos, pode ser praticamente
impossível de realizar num dado momento histórico. Por outro
lado, é ainda verdade que a ciência se faz tendo sempre como
pano de fundo um conjunto de factos aceites e de hipóteses
explicativas e que, se um achado contradiz grosseiramente estes,
das duas uma, ou o achado não tem grande valor, ou têm que se
rever os primeiros.

Coerência em relação a factos conhecidos

Os achados não devem contradizer de forma muito marcada os


factos geralmente aceites sobre a variável resposta em estudo.

Este princípio deve ser encarado como tradutor de uma


necessidade de coesão e estruturação recíproca de todo o edifício
da ciência. É improvável que um novo dado, por si só, contradiga
todo um sistema mutuamente escorado e, inclusive, contrarie
relações conexas, pré-estabelecidas em contextos mais gerais.
Isto significa que a investigação se deverá de alguma forma
conformar com a definição prévia e consensual do objecto de
estudo. Ao estudar uma doença não se pode começar por
contradizer características fundamentais como a sua definição,
limites e história natural. Tem sempre que haver um certo grau
de sobreposição na maneira de se enquadrarem os problemas,
sob pena de não haver entendimento possível (por exemplo, na
área da saúde mental existem tantas perspectivas diferenciadas a
respeito de alguns temas que o resultado mais parece simular

329
Notas e Técnicas Epidemiológicas

uma acumulação quase esquizofrénica, em paralelo, de


observações inconciliáveis, sobre fenómenos provavelmente mal
caracterizados e, por isso, talvez até diferentes).

Especificidade da associação

A presumível causa deve estar apenas ligada a um efeito bem


definido, isto é, deve, por exemplo, causar apenas uma doença.

Quando se verifica, a especificidade de um efeito constitui-se


como um indício de grande valor. Contudo, reconhece-se hoje
que causas relevantes de uma infinidade de estados mórbidos são
tudo menos específicas. Há factores causais muito diversos que
produzem efeitos similares e também factores que produzem, às
vezes em jogo com muitos outros, efeitos individuais e grudais
diferenciados. Já vai longe o tempo em que se tinha dos estados
de saúde e doença uma visão tão nítida e simples como a que era
sugerida pelos modelos de doença então aceites para as doenças
infecciosas. O paradigma actual assume cada vez mais a
concomitância de acção de múltiplas causas na base de cada
doença, i.e., pressupõe-se um jogo multifactorial na causalidade
da doença.

As notas que acabamos de alinhar mostram que os conceitos de


factor causal e de factor de risco não são idênticos, nem
redutíveis entre si. A discussão do significado de uma associação,
ou do valor causal de um factor de risco, ou a concepção de um
modelo causal, é tudo menos fácil. Certamente que essa tarefa é
muito facilitada por se poder recorrer a métodos analíticos-
inferenciais quantitativos.

330
Causalidade

Finalmente, ainda um outro ponto importante: é sempre


problemática a transposição para o indivíduo isolado de regras
induzidas a partir da observação de um grupo.

Terá percebido que uma abordagem probabilística pressupõe a


tentativa de síntese do que se passa numa realidade complexa
mediante a aceitação explícita, e matematicamente formalizada,
de um termo individual de erro. Na verdade, os fenómenos
ligados ao ser humano em geral, e ao binómio saúde-doença em
particular, mostram ser radicalmente não compatíveis com
perspectivas determinísticas. O termo que especifica o erro nas
fórmulas estatísticas é por isso inultrapassável e, sendo a sua
expressão individual aleatória, deve ter-se todo o cuidado ao
fazer previsões individuais. Claro que a utilização de certos
métodos que apresentámos como técnicas de classificação se
justifica apenas pela sua eventual eficiência final, grupal, e não
necessariamente pelo acerto ou desacerto ao nível da
classificação de apenas um dos elementos. Sintetizando, se a
abordagem estatística da realidade pressupõe uma concepção não
determinística da mesma, nos modelos estatísticos há sempre um
lugar reservado para tudo aquilo que não se consegue ainda ou
não se pode conhecer, para a variabilidade individual, e para a
acção de todos os factores ainda desconhecidos, ou seja, o já
mencionado termo de erro.

331
Viés e variáveis de confundimento

Viés

Tal como já afirmámos, podem ocorrer distorções na selecção ou


no convite dos elementos a integrarem um estudo, ou nos
métodos utilizados na exposição e na detecção das
consequências. A diversidade decorrente da falta de
representatividade dos elementos que integram um grupo de
estudo, assim como diferenças na susceptibilidade e nas técnicas
de medição, podem originar resultados que não correspondem à
realidade com todas as consequências que facilmente se podem
deduzir de tais factos.

Classificar os vieses não é tarefa fácil, já que a forma de os


agrupar e de analisar difere muito de autor para autor a tal ponto
que alguns chegam a descrever cerca de seis dezenas! Mas não é
preciso ir tão longe.

Quando solicitamos a uma comunidade a sua participação num


determinado estudo, sabemos de antemão que vamos ter um
conjunto de indivíduos que aceitam com naturalidade e até com
algum espírito de colaboração a sua inclusão. A pergunta que
podemos desde já formular é se os indivíduos que respondem às
nossas solicitações são ou não representativos da população
donde são oriundos. Torna-se desde já evidente, que caso não
sejam representativos da comunidade, não podemos extrapolar
Notas e Técnicas Epidemiológicas

os resultados do nosso estudo a todos. Estamos perante um


enviesamento, dependente do voluntarismo de cada um. E o que
determina o voluntarismo, muito provavelmente determina um
sem número de características que tornam os voluntários
diferentes daqueles que não participam, nomeadamente
comportamentos sócio-culturais que podem ser essenciais na
análise em estudo.

De facto, se quisermos estudar algumas características como


hábitos tabágicos, preocupação com a saúde, actividade
económica e nível cultural, é fácil de compreender que os que
fumam menos, os cultores de hábitos saudáveis e os detentores
de formação cultural média e superior acabam por aderirem mais
a estudos caracterizados na base de recrutamento de voluntários.

Outro tipo de viés muito comum prende-se com estudos de


epidemiologia ocupacional, em que o recrutamento de
trabalhadores acaba por provocar problemas. Sabemos que os
trabalhadores são mais saudáveis do que a população em geral.
Nesta última estão incorporados os que trabalham, os que não
trabalham e outros que não podem trabalhar por qualquer outra
razão que não seja o seu estado de saúde. Sendo assim, se
efectuarmos uma selecção com base nos trabalhadores,
naturalmente que os resultados virão distorcidos e não poderão
ser aplicados à população em geral, precisamente devido a esta
característica.

Os indivíduos que cumpriram o serviço militar acabam por


apresentar indicadores de saúde mais favoráveis, mesmo ao fim
de algumas décadas.

334
Vieses e variáveis de confundimento

Outro tipo de viés diz respeito aos estudos feitos com base em
dados hospitalares. Naturalmente que o universo hospitalar não é
representativo da realidade do fenómeno que está em causa, na
medida em que nem todos acabam por serem hospitalizados. Os
estudos sobre enfartes do miocárdio dizem respeito a parte do
universo do enfarte, já que uma parte substancial dos enfartes
não chegam ao hospital, em virtude de provocarem morte súbita.
Do mesmo modo, certo tipo de afecção pode ser estudada a nível
hospitalar, correspondente a estadios de gravidade superiores, já
que grande parte da mesma afecção é tratada em regime
ambulatório. Assim, os resultados da investigação conduzida em
ambiente hospitalar não poderão ser extrapolados para a
população em geral.

Podemos estar perante duas situações: a perda dos mais graves


antes de atingirem o hospital pode tornar a doença menos grave,
ou então a não ida dos menos graves vai tornar a situação mais
grave. Este tipo de viés é designado por viés de incidência-
prevalência.

O viés de Berkson ou viés hospitalar é caracterizado por uma


associação espúria entre as características e a doença,
resultantes da admissão ao hospital. Como é facilmente
compreensível a admissão hospitalar é diferente para as pessoas
com a doença em estudo, sem a doença e com as características
que queremos estudar.

Se for efectuado um estudo de base hospitalar numa comunidade


cujo grau de poluição é muito elevado e se houver cuidados
especiais de atenção e vigilância para pessoas com depressão ou

335
Notas e Técnicas Epidemiológicas

distúrbios emocionais, um estudo conducente a analisar


manifestações respiratórias e distúrbios emocionais pode
apresentar uma associação muito marcada, apesar de não haver
qualquer relacionamento causal. O que houve foi uma “invasão”
local de dois tipos de patologia, condicionada por um lado, pelo
meio ambiente e por outro devido a cuidados e atenção especial
por parte de certos profissionais (psiquiatras).

Os investigadores podem ser também responsáveis por vieses.


Assim se derem mais atenção ao que estão a fazer acabam por
valorizar certos dados com consequências interessantes. Este
fenómeno é habitualmente conhecido por efeito de Hawthorne e
resultou do seguinte acontecimento: a produtividade na fábrica
Hawthorne da Western Electric Company aumentou quando a
iluminação melhorou assim como quando diminuiu!!! Quais as
razões? Mais atenção por parte dos investigadores junto da
população trabalhadora, a qual sabendo que estava a ser
investigada, naturalmente que acabou por contribuir com mais
esforço e dedicação.

O quadro I descreve alguns tipos de vieses.

336
Vieses e variáveis de confundimento

Quadro I. Tipos de vieses

Representação Informação Apresentação


dados
Concepção Interpretação Estimativa
Desenho Entrevistador Observador
Detecção Por antecipação Publicação
diagnóstico
Instrumento de Casos de longa Estimativa
medida duração
Desistência Mensuração Memória
Valores Observador Comunicação
extremos
Resposta Amostragem Selecção

Variáveis de confundimento

Paralelamente aos vieses não podemos esquecer um outro


fenómeno que frequentemente põe em causa a associação entre
um factor e uma doença. Trata-se das variáveis de
confundimento, as quais causam enormes dores de cabeça aos
epidemiologistas. As variáveis de confundimento caracterizam-se
por estarem associadas a um fenómeno, mas não fazem parte do
modelo causal. Vejamos o seguinte exemplo: um estudo permitiu
concluir a existência de uma associação entre o consumo do café
e as doenças cardiovasculares. Perante esta conclusão os autores
adiantaram de imediato a hipótese das pessoas começarem a
deixar de tomar café, devido ao risco que corriam. No entanto

337
Notas e Técnicas Epidemiológicas

uma análise mais aprofundada permitiu concluir que os bebedores


de café eram simultaneamente fortes consumidores de tabaco.
Logo, a associação detectada era da responsabilidade do consumo
de tabaco e não propriamente do café. Por isso, no decurso de
estudos sobre associação entre certos factores e doenças, torna-
se absolutamente indispensável, a utilização de técnicas
epidemiológicas que permitam controlar e identificar as variáveis
de confundimento. Doutro modo, corremos o risco de
erradamente fazer afirmações que não correspondem à realidade.

Para obstar aos inconvenientes das variáveis de confundimento e


de alguns tipos de vieses, podemos naturalmente restringir a
selecção dos participantes, apesar das limitações do método, ou
aplicar técnicas de emparelhamento, estratificação, padronização
e análises estatísticas, tais como as de regressão múltipla.

A técnica de Mantel-Haenszel permite de uma forma simples


controlar em certas situações, o efeito das variáveis de
confundimento.

No cálculo da razão de produtos cruzados da associação entre um


factor e a doença, em que haja uma variável de confundimento
que possa distorcer a razão utilizamos a técnica de Mantel-
Haenszel.

Rc = ( ∑a d
i i / ti ) / ( ∑b c
i i / ti )

338
Vieses e variáveis de confundimento

Quadro II. Relação entre doença e factor por estratos.

Estrato Doença Doença - Total


1 +
Factor + a1 b1 a1+b1
Factor - c1 d1 c1+d1
Total a1+c1 b1+d1 t1
Estrato Doença Doença - Total
2 +
Factor + a2 b2 a2+b2
Factor - c2 d2 c2+d2
Total a2+c2 b2+d2 t2

Vamos através de um exemplo fictício aplicar os conhecimentos já


expostos. O quadro III revela os dados resultantes da associação
de uma doença e um factor responsável.

339
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro III. Relação entre doença X e factor Y por grupo etário.

Grupo Doença Doença - Total


etário +
25-34
anos
Factor + 30 50 80
Factor - 40 45 85
Total 70 95 165
Grupo Doença Doença - Total
etário +
35-44
anos
Factor + 55 65 120
Factor - 35 45 80
Total 90 110 200

Aplicando a fórmula calculamos a razão dos produtos cruzados


Rc.

Rc = [(30*45)/165 + (55*45)/200]/[(50*40)/165 + (65*35)/200]

Rc = 0.8750

Deste modo foi possível “eliminar” o peso do factor idade.

Os eventuais efeitos de confusão provocados pelo factor idade


foram reduzidos.

Quando não dispomos de informação suficiente para controlar as


variáveis de confundimento de uma forma directa, é necessário e
desejável avaliar o seu potencial efeito.

340
Vieses e variáveis de confundimento

Num estudo de coorte podemos indirectamente avaliar o efeito de


variáveis de confundimento.

A seguinte fórmula permite-nos calcular o efeito das variáveis de


confundimento.

I = I 0 (1 − Pvc) + Ivc * Pvc

I = taxa de incidência total no coorte

I0 = taxa de incidência nos não expostos

Ivc = incidência nos expostos à variável de confundimento

Pvc = proporção do coorte exposto à variável de confundimento

Podemos aplicar uma fórmula idêntica para os estudos caso-


controlo.

A razão do risco de confundimento RRC pode ser calculada de


acordo com a seguinte fórmula:

RRC = [( RR − 1) * P2 + 1] / [( RR − 1) P1 + 1]

RR = risco relativo associado com a exposição à variável de


confundimento

P1 = proporção (entre aqueles cujo estado de confundimento é


conhecido) de controlos não expostos à variável de
confundimento

P2 = proporção (entre aqueles cujo estado de confundimento é


conhecido) de controlos expostos ao factor em estudo que estão
expostos à variável de confundimento

341
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Para exemplificar utilizamos os seguintes dados fictícios. Numa


população de trabalhadores da indústria metalúrgica a proporção
de fumadores é de 40%.

Na população em geral a proporção de fumadores é de 30%.


Sabemos igualmente através de estudos anteriores que o RR de
contrair cancro do pulmão nos fumadores é de dez vezes mais.

O que queremos saber é a razão do risco de confundimento nesta


população de trabalhadores, face ao cancro do pulmão devido ao
facto de fumarem.

Assim de acordo com a fórmula temos:

RRC = [(10 − 1) * 0,4 + 1] / [(10 − 1) * 0,3 + 1]


RRC = (3,6 + 1) / (2,7 + 1) = 1,24

No tocante à população fumadora geral o RRC = 1,00.

Estes cálculos são muito importantes, sobretudo quando


queremos analisar a associação entre uma determinada forma de
neoplasia e a actividade profissional.

No exemplo anterior que acabámos de apresentar, se


encontrássemos um RR de 1,27 entre o cancro do pulmão e a
exposição profissional nos metalúrgicos, nada nos garante de que
essa associação fosse significativa. Neste caso concreto, o facto
de haver proporcionalmente mais fumadores poderia explicar o
valor e não propriamente a associação.

Mas vejamos um exemplo semelhante ao anterior.

Desta feita, consideramos que apenas 20% dos metalúrgicos são


fumadores.

342
Vieses e variáveis de confundimento

Assim:

RRC = [(10 − 1) * 0,2 + 1] / [(10 − 1) * 0,3 + 1)]


RRC = 2,8 / 3,7 = 0,757

Se na prática verificássemos um RR de 1,27, então podíamos


interpretar este valor como significativo já que o efeito da
variável de confundimento é inferior a 1.

Em termos práticos, estas noções são importantes para os casos


de RR inferior a 2, já que RR > 2 ou a 3 são muito pouco
prováveis devido a variáveis de confundimento.

No caso de existir mais do que dois grupos com RR diferentes,


procedemos da seguinte maneira: aos não expostos atribui-se o
RR igual a 1, nos expostos moderadamente um RR de 10 e nos
fortemente expostos um RR de 20 (como exemplos).

Se em Portugal houver 70% de não fumadores (RR=1), 10% de


grandes fumadores (RR=20) e 20% de fumadores moderados
(RR=10), podemos calcular a taxa de incidência do cancro do
pulmão nos fumadores da seguinte forma:

I total = 1 * 0,7 + 10 * 0,2 + 20 * 0,1 = 0,7 + 2 + 2 = 4,7

Numa população de trabalhadores encontramos a seguinte


proporção de fumadores: 30% grandes fumadores (RR=20), 20%
fumadores (RR=10) e 50% não fumadores (RR=1)

I trabalh. = 1 * 0,5 + 10 * 0,2 + 20 * 0,3 = 0,5 + 2 + 6 = 8,5


RRC = 8,5 / 4,7 = 1,809

343
Amostragem

Amostragem

Como é facilmente compreensível, a grande maioria dos estudos


são realizados em amostras das populações. Só em casos muito
específicos, é possível efectuar estudos em populações totais.

O objectivo de um estudo é estimar o valor do parâmetro a


partir da correspondente estatística amostral.

De um conjunto populacional, é possível extrair n amostras.


Cada estatística difere de uma para outra, respeitando uma
curva de distribuição normal.

O intervalo de confiança da estimativa do parâmetro, toma em


linha de conta a variação de amostra para amostra.

Antes de abordarmos os diferentes tipos de amostragem e a


importância do cálculo do intervalo de confiança, torna-se
obrigatório descrever alguns aspectos relacionados com a
estatística elementar.

Vocabulário

Designamos parâmetros aos dados da população ou universo.


Assim a pressão arterial média e o respectivo desvio padrão da
população portuguesa constituem parâmetros.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quando procedemos à análise da pressão arterial e respectivo


desvio padrão de uma amostra representativa da população
portuguesa estamos perante estatísticas.

Notação algébrica

Uma população de determinado tamanho define-se por N, e


cada elemento é representado por X1, X2, X3,.....,Xj,......,Xn

Uma amostra de determinado tamanho representa-se por n e


cada elemento é representado por: x1, x2, x3,.....,xj,......,xn

Os parâmetros média e desvio padrão são representados sob a


forma de letras gregas (μ e σ respectivamente), enquanto as
estatísticas se representam por letras romanas ( x e s
respectivamente).

Basicamente podemos considerar a existência de quatro tipos


de amostragem:

• amostragem simples aleatorizada

• amostragem estratificada aleatorizada

• amostragem sistemática

• amostragem por agrupamentos

Amostragem simples aleatorizada

Simples em teoria. Obtêm-se uma lista de N elementos


(habitualmente indivíduos). Atribui-se a cada um, um número

346
Amostragem

variável entre 1 e N de uma forma sequencial. Através de uma


tabela de números aleatórios seleccionamos n indivíduos de um
conjunto de N.

De acordo com esta técnica cada elemento da população tem a


mesma probabilidade de ser seleccionada.

A vantagem deste tipo de amostragem é a sua simplicidade de


execução. Contudo, não é habitualmente o método mais
eficiente, visto que não providencia a estimativa mais precisa
pelo custo mais baixo. Torna-se absolutamente indispensável
conhecer previamente a rede de amostragem, aspecto que não
é necessário com outros métodos.

É preciso igualmente ter a certeza de que a amostragem é


aleatorizada. Se utilizarmos a lista telefónica como base do
universo, a obtenção da amostra fica enviesada pelo facto de
haver pessoas sem telefone.

Se quisermos seleccionar amostras de famílias com base nas


crianças que frequentam os estabelecimentos de ensino,
acabamos igualmente por enviesar o estudo, devido ao facto de
as famílias com mais crianças terem mais probabilidade de
serem escolhidas.

Assim o ponto fundamental desta técnica assenta na certeza de


que qualquer indivíduo tem a mesma probabilidade de ser
escolhido dentro do universo a que pertence.

347
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Amostragem aleatorizada estratificada

Com esta técnica pretende-se identificar sectores da população


por estratos. Pretende-se evitar o erro da amostragem.

Podemos apontar como exemplos de variáveis usadas na


estratificação, o sexo, a idade, a raça e a classe socio-
económica.

A amostragem estratificada é frequentemente usada e tem


muitas vantagens sobre a anterior.

O investigador com esta técnica tem a certeza de que estão


representados os diferentes subgrupos da população, além de
que há a garantia de homogeneidade por estratos em relação à
população total, aspecto que reduz a variância intra-grupos.

A principal desvantagem desta técnica é a perda de precisão


que pode ocorrer se o número de indivíduos por estrato for
muito pequeno.

Amostragem sistemática

Neste tipo de amostragem os indivíduos seleccionados para


fazerem parte da amostra são seleccionados regularmente a
partir da população total de acordo com um critério definido
pelo tamanho da amostra.

Se a selecção da amostra indicar que são necessários 300


indivíduos de uma população de 3.000, a selecção far-se-á de 1
em cada 10.

Podemos apontar três vantagens básicas para esta técnica. Nem


sempre é necessário conhecer o tamanho da população. A

348
Amostragem

obtenção dos indivíduos da amostra pode ser feita à medida que


o estudo avança. No entanto temos de ter uma estimativa do
universo.

Por outro lado, a investigação de campo torna-se mais simples


se utilizarmos a técnica de visitar uma residência em cada dez,
por exemplo (facilidade prática).

Por fim, mesmo que haja qualquer gradiente de complexidade,


ou de outra ordem, o facto de seleccionarmos um indivíduo de x
em x casos, acaba por facilitar a extracção proporcional dos
indivíduos representativos de todas as classes.

Obviamente que este método tem também as suas


desvantagens. É o caso da ocorrência de tendências cíclicas
dos dados (altura do ano em que ocorra uma entrevista, ou
selecção de casas no mesmo bairro). A segunda desvantagem é
a impossibilidade de conhecermos a estimativa da variância.

Amostragem de agrupamento

Neste tipo de amostragem são seleccionados agrupamentos e


não indivíduos.

Se quisermos estudar os hábitos tabágicos da população escolar


de um concelho, é muito mais fácil seleccionar ao acaso as
escolas (e respectivos anos) e examinar todas as crianças
pertencentes às classes.

Deste modo não é necessário conhecer todo o universo


estudantil e torna-se muito mais económico e operacional a
realização do estudo ( execução mais rápida).

349
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Tamanho da amostra

Uma das perguntas que se nos coloca na planificação de um


trabalho de investigação refere-se ao tamanho da amostra.

Existem vários maneiras de procedermos ao cálculo.

Iremos proceder à analise de uma das formas, baseada na


estimativa da proporção do fenómeno a estudar e respectivo
erro padrão.

Estimativa de uma proporção

Talvez seja pouco ortodoxo necessitarmos “saber” previamente


qual a proporção (p) do fenómeno que desejamos conhecer
para calcular o tamanho da amostra!

O tamanho da amostra depende do erro padrão da variável em


estudo.

O erro padrão de p (d) é igual a:

d= [ p(1 − p)] / n
Admitindo que d = 0.02:

1.96 EP(p) = 1.96 [ p(1 − p)] / n = 0.02

Se a proporção do fenómeno em causa for p = 0.30, temos:

1.96 EP(p) = 1.96 [0.30(1 − 0.30)] / n = 0.02

Deste modo n = 2.017

Ou seja são necessários 2.017 indivíduos para estimar uma


proporção de 0,30 com um erro padrão de 0,02. Neste caso

350
Amostragem

95% das proporções das amostras oscilarão entre 0.28 a 0,32


numa amostra de 2017 indivíduos.

Se em vez de utilizarmos um erro padrão de 0,02, usarmos


0,04 é facilmente compreensível que o número de indivíduos a
seleccionar será muito menor.

1.96 EP(p) = 1.96 [0.30(1 − 0.30)] / n = 0.04

n = 504

Assim 95% das proporções da amostra oscilarão entre 0,26 a


0,34 numa amostra de 504 indivíduos.

Se admitirmos que a estimativa da proporção for 0,10, com um


erro padrão de 0,04, temos:

1.96 EP(p) = 1.96 [0.10(1 − 0.10)] / n = 0.04

n = 216

De uma forma simplista podemos verificar que:

[ p(1 − p)] / n = d
Logo:

n = [p(1-p)] / d2

Como já tivemos oportunidade de afirmar, o valor de n depende


de p que é desconhecido. Se aceitarmos que p(1-p) < ¼ para
qualquer valor de p calcularemos

n = 1/4d2

351
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Estudos de coorte e tamanho da amostra

O tamanho de uma amostra nos estudos de coorte depende de


vários factores: erro nominal alfa, erro nominal beta, do valor
do risco relativo a ser detectado, da incidência da doença no
grupo de controlo não exposto e do ratio dos não-expostos aos
expostos ao factor em questão.

Quanto ao erro do tipo alfa, significa que há diferença entre os


grupos, quando na realidade ela não existe.

Quanto ao erro do tipo beta, significa que não há diferença


entre os grupos, quando existe na realidade.

Se o valor mínimo do risco relativo a ser detectado for muito


pequeno, isso implicará uma amostra muito maior e vice-versa.

A quarta variável diz respeito à incidência esperada da variável


no grupo de controlo não exposto. Se a situação for muito rara,
a amostra deverá ser muito grande.

Por último, devemos calcular quantos controlos para cada


exposto.

O poder estatístico de um estudo exige que para cada exposto


haja um controlo. No entanto quando o número de expostos for
muito pequeno, conseguimos aumentar o poder, seleccionando
mais do que um controlo por cada exposto. Saliente-se que
apesar de se duplicar o número de controlos, tal não significa
um acompanhamento da mesma grandeza do poder estatístico.
Assim o aumento do poder de 2:1 para 3:1 (controlos:expostos)
é muito mais pequeno do que passar de 1:1 para 2:1.

352
Amostragem

Podemos afirmar que não há grande interesse em utilizar mais


do que três ou quatro controlos para cada exposto.

Existem várias fórmulas para calcular o tamanho da amostra.


Seleccionamos a de Schlesselman, descrita por Strom:

⎧⎪Z 1−α (1 + 1 / K )U (1 − U ) + ⎫⎪
n = 1 /[ p(1 − RR)] * ⎨
2

⎪⎩+ Z 1− β pRR(1 − RR p ) + p(1 − p ) / K ⎪⎭

p - incidência da doença nos não-expostos

RR - mínimo do risco relativo a ser detectado

α - erro do tipo alfa (I)

β - erro do tipo beta (II)

K - razão do número de controlos e expostos

U - (Kp+pRR)/(K+1)

Com base nos dados de Strom podemos verificar que para


detectarmos testes da função hepática anormais, são
necessários 3.104 indivíduos expostos e 3.104 não expostos, se
se verificar as seguintes condições:

taxa de incidência aceite para os não expostos: 0,01

valor de alfa (duas caudas): 0,05

valor de beta: 0,01

risco relativo a ser detectado: 2

razão controlo/exposto: 1

São necessários 1.323 expostos e 5.292 não expostos nas


seguintes condições:

353
Notas e Técnicas Epidemiológicas

taxa de incidência aceite para os não expostos: 0,01

valor de alfa (duas caudas): 0,05

valor de beta: 0,02

risco relativo a ser detectado: 2

razão controlo:exposto: 4

Neste último caso a diferença verificou-se no valor de beta e na


razão controlos-expostos. O primeiro aumentou de 0,01 para
0,02 e no segundo de 1:1 para 4:1. Deste modo, reduziu-se
substancialmente o número de indivíduos sujeitos ao factor em
análise (de 3.104 para 1.323) e aumentou o número de
controlos ( de 3.104 para 5.292).

Tamanho da amostra para estudos caso-controlos

Podemos afirmar que os mesmos princípios utilizados para os


estudos de coorte podem ser utilizados para os estudos caso-
controlo. A grande diferença é que nos estudos de coorte os
sujeitos são seleccionados em função da exposição ou não ao
factor, enquanto nos estudos caso-controlo a selecção é feita
em função da presença, ou ausência, da doença.

Nesta situação dá-se relevo à prevalência da exposição no


grupo controlo, em vez da incidência utilizada nos estudos de
coorte.

354
Distribuição binomial e de Poisson

Distribuição binomial

A distribuição binomial é muito importante em certos tipos de


estudos, assim como para a compreensão da distribuição de
vários tipos de probabilidade.

Para ilustrar o que é a distribuição binomial vamos analisar o


seguinte: o nosso espaço de actuação consiste em apenas dois
elementos, homens (H) e mulheres (M), sendo

p= P(H), a probabilidade de o indivíduo pertencer ao sexo


masculino e

q=P(M), a probabilidade de o indivíduo pertencer ao sexo


feminino,

Então p = 1- q, dado que a proporção de homens e mulheres


numa comunidade é forçosamente igual a 1,0 (100%).

Perante estes elementos, podemos calcular o que pode acontecer


às amostras de dois indivíduos retirados da comunidade: um
grupo de dois homens, um grupo de duas mulheres e dois grupos
de um homem e uma mulher.

(HH, HM, MM)

(p2, 2pq, q2)

Se quisermos obter amostras de três indivíduos teremos: um


grupo de três homens, um grupo de três mulheres e três grupos
Notas e Técnicas Epidemiológicas

de dois homens e uma mulher e três grupos de duas mulheres e


um homem.

(HHH, HHM, HMM, MMM)

(p3, 3p2q, 3pq2, q3)

Daqui se pode inferir que podemos obter amostras de três


homens ou três mulheres apenas de uma maneira.

A probabilidade de obtermos uma amostra de três homens é 1*p3


e de três mulheres 1*q3. Mas temos três maneiras de obter
amostras de dois homens e uma mulher (3*p2q).

Já afirmámos que

p = 1- q , (p+q) = 1

Para obtermos amostras de 1 indivíduo temos:

(p+q)1 = p + q

E para amostras de 2 indivíduos?

(p + q)2 = p2 + 2pq + q2

E para amostras de 3 indivíduos?

(p + q)3 = p3 + 3p2q + 3pq2 + q3

E para amostras de n indivíduos?

(p+ q)n = ....................................

358
Distribuição binomial e de Poisson

Para desenvolver o binómio, podemos utilizar o triângulo de


Pascal

1 1
2 1 2 1
3 1 3 3 1
4 1 4 6 4 1
5 1 5 10 10 5 1
n
.........................................................................

Com este triângulo é fácil desenvolver o binómio, sabendo que o


primeiro e último coeficiente é 1 e que os restantes são a soma
dos valores da linha de cima imediatamente colocados à direita e
à esquerda.

Assim na linha n = 5, podemos observar que o 5 é a soma de 1 +


4, da linha de cima e que o primeiro 10 é a soma de 6 + 4 e o
último 5 a soma de 4 + 1.

Perante este triângulo podemos desenvolver o binómio:

( p + q ) 6 = p 6 + 6 p 5 q + 15 p 4 q 2 + 20 p 3 q 3 + 15 p 2 q 4 + 6 pq 5 + q 2

relativamente às potências recorde que

p6 ----------------- 6

p5 q-----------------5 +1= 6

p4 q2----------------4+2 =6

p3 q3----------------3+3 = 6

359
Notas e Técnicas Epidemiológicas

No caso de não desejar calcular os coeficientes, pode utilizar


tabelas já elaboradas para o efeito.

Qual será a probabilidade de obtermos amostras constituídas por


dois homens e uma mulher, sabendo que a proporção de homens
na comunidade X é igual a 0,45 e a das mulheres igual a 0,55?

( p + q ) n = ( 0 , 45 + 0, 55) 3
( p + q ) 3 = p 3 + 3 p 2 q + 3 pq 2 + q 3
( 0 , 45 + 0, 55) 3 = ( 0 , 45) 3 + 3( 0 , 45) 2 ( 0, 55) + 3( 0, 45)( 0 , 55) 2 + ( 0, 55) 3

Tínhamos dito que queríamos saber qual a probabilidade de


obtermos amostras de dois homens e uma mulher.

3 p 2 q = 3( 0 , 45 ) 2 ( 0 , 55 ) = 0 , 3341

Podemos utilizar a distribuição binomial para estudarmos uma


doença infecciosa X. Sabendo que p corresponde à proporção dos
que não têm a doença e q os que têm, logo,

p = 1− q

Partimos do princípio de que 10% da população está afectada.

Queremos estudar amostras de 5 indivíduos retirados da


população inicial.

De acordo com a distribuição binomial teríamos:

( p + q ) 5 = p 5 + 5 p 4 q + 10 p 3 q 2 + 10 p 2 q 3 + 5 pq 4 + q 5
( 0, 9 + 0, 1) 5 = ( 0 , 9 ) 5 + 5( 0, 9 ) 4 ( 0, 1) + 10( 0, 9 ) 3 ( 0 , 1) 2 + 10( 0, 9 ) 2 ( 0, 1) 3 + 5( 0, 9 )( 0 , 1) 4 + ( 0, 1) 5

360
Distribuição binomial e de Poisson

Quadro I. Distribuição binomial.

Nº pessoas Coeficiente Frequência Frequência Frequência


infectadas p = 0 ,9 q = 0,1 binomial esperada esperada observada
(Y) relativa absoluta (f)
(fr) (fa)
5 0,590490 1,0 1 0,590490 590.490
4 0,6561 0,1 5 0,32805 328.050
3 0,729 0,01 10 0,0729 72.900
2 0,810 0,001 10 0,0081 8.100
1 0,900 0,0001 5 0,00045 450
0 1,0 0,00001 1 0,00001 10

1,0 1.000.000

Com base neste quadro é possível verificar que temos a


probabilidade de obter 590.490 amostras de cinco indivíduos sem
a doença, 328.050 amostras constituídas por quatro indivíduos
saudáveis e um doente de um total de 1.000.000. Neste contexto
a probabilidade de obtermos amostras de cinco indivíduos todos
doentes é de apenas de 1.000.000!

A última coluna está reservada para o trabalho de campo. Assim


o autor procederia à obtenção de amostras e de acordo com os
resultados obtidos compararia com a coluna anterior.

Numa distribuição binomial a média é dada pela seguinte


fórmula:
μ = np
μ = 5 * 0, 9 = 4, 5

Quanto ao desvio padrão, obtêm-se da seguinte forma

σ = npq
σ = 5 * 0 , 9 * 0 , 1 = 0 , 45 = 0 , 6708

361
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Numa comunidade X queremos saber como se distribui o sexo de


filhos de casais com cinco filhos descendentes.

Sendo assim qual a probabilidade de todos os filhos serem


rapazes?

Qual a probabilidade de serem três rapazes e duas raparigas?

Sabendo que a probabilidade é igual para ambos os sexos (0,5).1

O quadro seguinte descreve os cálculos necessários de acordo


com o desenvolvimento do binómio:

( p + q ) 5 = p 5 + 5 p 4 q + 10 p 3 q 2 + 10 p 2 q 3 + 5 pq 4 + q 5

Quadro II. Distribuição binomial

Nº rapazes Coeficiente Frequência Frequência Frequência


(Y) p = 0,5 q = 0,5 binomial esperada esperada observada
relativa absoluta (f)
(fr) (fa)
5 0,03125 1,0 1 0,03125 31 100 (+)
4 0,0625 0,5 5 0,15625 156 200 (+)
3 0,125 0,25 10 0,3125 313 300
2 0,25 0,125 10 0,3125 313 300
1 0,5 0,0625 5 0,15625 156 80 (-)
0 1,0 0,03125 1 0,03125 31 20 (-)

1,0 1.000 1.000

Neste quadro podemos observar que há probabilidade de todos os


cinco serem rapazes na ordem dos 3,1% (linha 1, coluna 5) e
serem três rapazes e duas raparigas na ordem dos 31,25% (linha
3, coluna 5).

1 A realidade é ligeiramente diferente. Nascem mais rapazes do que raparigas. Para efeito de cálculo admitimos a mesma proporção.

362
Distribuição binomial e de Poisson

Com base na frequência relativa esperada, vamos ver o que


acontece numa determinada comunidade, estudando 1.000 casais
com cinco filhos.

Verificámos (última coluna - frequência observada) que o número


de casais com cinco rapazes, e quatro rapazes mais uma filha
eram superiores aos valores esperados. Por outro lado,
observámos menos casais com quatro e cinco filhas.

Havendo um desvio tão pronunciado, como explicaria este


fenómeno?

Distribuição de Poisson

Por vezes defrontamo-nos com situações caracterizadas pela


ocorrência rara de um fenómeno numa população numerosa.

A distribuição de Poisson é também uma distribuição discreta do


número de vezes que um fenómeno raro ocorre.

Relativamente à distribuição binomial, a distribuição de Poisson


aplica-se nas situações em que o número de vezes que um
determinado fenómeno possa ocorrer é muito baixo. Os
fenómenos deverão ser raros e o tempo de observação ser
suficientemente longo para que possam ocorrer.

μ r / r !eμ

A fórmula acima representada corresponde à distribuição de


Poisson, em que r indica a frequência relativa esperada das
amostras contendo 0,1,2,3,....r fenómenos; e a base do logaritmo
natural e μ a média da distribuição.

363
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Para calcular as frequências relativas esperadas da distribuição de


Poisson só precisamos de conhecer a média dos fenómenos.

Vamos ilustrar com o seguinte caso: numa empresa com mil


trabalhadores o número de acidentes por trabalhador no ano de
1994 foi o seguinte (quadro III).

Quadro III. Resultados de acidentes numa fábrica X

Nº de acidentes Frequência
por trabalhador observada
0 800
1 134
2 50
3 10
4 5
5 1
1.000

Quadro IV. Frequências observadas de acidentes numa fábrica X

Nº de acidentes Frequência Total de


por trabalhador observada acidentes
(1) (2) (1)*(2)
0 800 0
1 134 134
2 50 100
3 10 30
4 5 20
5 1 5
1.000 289

364
Distribuição binomial e de Poisson

Deste modo a média de acidentes foi de 289/1.000 = 0,289

Com base neste valor é fácil o cálculo da distribuição de Poisson


de acordo com a fórmula já enunciada:

μ r / r !eμ
r = 0 → 0 , 289 0 / 0 ! e 0,289 = 1 / 1 * e 0,289 = 0 , 7490
r = 1 → 0 , 289 1 / 1! e 0,289 = 0 , 289 / 1 * e 0,289 = 0 , 2165
r = 2 → 0 , 289 2 / 2 ! e 0,289 = 0 , 0835 / 2 * 1 * e 0,289 = 0 , 031279
r = 3 → 0 , 289 3 / 3 ! e 0,289 = 0 , 02414 / 3 * 2 * 1 * e 0,289 = 0 , 0030132
r = 4 → 0 , 289 4 / 4 ! e 0,289 = 0 , 00698 / 4 * 3 * 2 * 1 * e 0,289 = 0 , 0002177
r = 5 → 0 , 289 5 / 5 ! e 0,289 = 0 , 00202 / 5 * 4 * 3 * 2 * 1 * e 0,289 = 0 , 0000126

Quadro V. Frequências observadas de acidentes numa fábrica X

Nº de Frequência Frequência Desvio do


acidentes observada esperada esperado
por (Poisson)
trabalhador r*1.000
0 800 749 +
1 134 216,5 -
2 50 31,279 +
3 10 3,0132 +
4 5 0,2177 +
5 1 0,0126 +

1.000

Numa distribuição de Poisson a variância é igual à média. Sendo


assim através do cálculo do coeficiente de dispersão
CD = variância/média podemos ter uma ideia se um determinado

365
Notas e Técnicas Epidemiológicas

fenómeno se distribui ou não segundo a lei de Poisson. Se o


coeficiente de dispersão se aproximar da unidade é sinónimo de
que a lei de Poisson está a ser respeitada. Se desviar num ou
noutro sentido, então é porque há algo que faz com que não se
respeite a distribuição.

No exemplo que acabámos de descrever, podemos observar na


última coluna que há um “forte” desvio dos valores observados
versus valores esperados. Sendo assim é de prever que haja
condições nesta empresa que justifique o excesso de acidentes
(deficiente preparação de um grupo de trabalhadores? risco
acrescido nalgum sector?).

Há necessidade de dar o alerta e proceder a uma análise


exaustiva dos trabalhadores em causa e respectivas condições de
trabalho a fim de “normalizar” a situação.

366
Probabilidades

Probabilidades

Variáveis

Em epidemiologia, sobretudo em epidemiologia clínica, jogamos


frequentemente com probabilidades.

Quando se faz um diagnóstico, se estabelece uma terapêutica, ou


se prognostica sobre o futuro do doente, jogamos implicitamente
com estes conceitos.

A investigação médica estuda e compara diferentes variáveis, as


quais tem características e qualidades próprias. Quando se fala de
uma variável, associamo-la imediatamente ao conceito de que
pode ser medida e que está sujeita a variações.

As variáveis são classificadas de acordo com certas escalas, as


quais permitem medi-las e ao mesmo tempo defini-las a fim de
serem passíveis de correctos tratamentos estatísticos.

Podem ser classificadas em quantitativas e qualitativas. As


variáveis quantitativas podem ser:

• contínuas ( pertencentes a uma escala numérica). Neste caso


podem em termos teóricos assumir um número infinito de valores
(ex.: peso: 75,03245678....Kg).
Notas e Técnicas Epidemiológicas

• discretas ou merísticas. Neste caso são representadas por


cifras inteiras. Na enumeração dos dentes, não existem 20,5,
19,4 dentes!

Basicamente utilizamos quatro tipos de escalas para medir as


variáveis: nominal, ordinal, intervalar e numérica.

Escala nominal

Na escala nominal as categorias não podem ser ordenadas.


Excluem-se mutuamente. A classificação dos indivíduos de acordo
com o seu grupo sanguíneo, permite-os afirmar que uns
pertencem ao grupo A, outros ao B, outros ao AB e ao grupo 0.
Não podemos afirmar que uns estão “à frente” de outros, nem
mesmo afirmar que há indivíduos com dois tipos de grupos de
sanguíneo. Logo, não há ordenação, havendo ao mesmo tempo
exclusão dos outros.

Escala ordinal

Na escala ordinal as categorias podem ser ordenadas de uma


certa forma, não havendo obrigatoriamente gradientes fixos entre
elas. Nos inquéritos é frequentemente detectarmos categorias
deste género. Se perguntarmos qual o estado de satisfação do
inquirido em relação a uma qualquer temática, e se agruparmos
as respostas em três grandes tipos, tais como: muito, pouco ou
nada, verificamos que efectuamos uma ordenação, mas as
diferenças entre as três categorias não são obrigatoriamente
idênticas.

366
Probabilidades

Escala quantitativa discreta

Neste tipo de escala as categorias são contadas e expressas em


cifras inteiras (número de dentes, idade).

Escala intervalar

Na escala intervalar as medições das categorias estão espaçadas


na mesma ordem de grandeza. A medição da temperatura é um
exemplo ilustrativo deste tipo de escala. A grande diferença entre
este tipo de escala e a racional, assenta no facto de nesta última
o zero é verdadeiro, enquanto na intervalar o zero é estabelecido
por convenção..

Escala racional

O quarto tipo de escala é a numérica, nas quais as medições se


iniciam num zero verdadeiro. Como exemplos deste tipo de escala
destacamos o peso, a idade, o volume, etc..

Como já afirmámos as variáveis podem ser classificadas em dois


grandes tipos: qualitativas e quantitativas. No caso das primeiras
enquadram-se as variáveis do tipo nominal, enquanto nas
segundas enquadram-se as variáveis ordinais, intervalares e
numéricas.

As variáveis estão sujeitas a vários fenómenos. A flutuação das


variáveis pode decorrer de fenómenos biológicos inerentes às
suas próprias características. Como exemplo paradigmático
podemos citar as variações da pressão arterial. A determinação
correcta de certas variáveis tem que tomar em linha de conta
estes fenómenos. Doutro modo corremos riscos em obter

367
Notas e Técnicas Epidemiológicas

diferentes determinações, com todas as consequências daí


resultantes. Mas, se as variações devidas ao acaso ou a outros
fenómenos são relativamente frequentes, existem outras
importantes fontes de variação, tais como a variação sistemática
(devido a fenómenos conhecidos, como variações sazonais, ou
diárias), ou erros da medição, as quais tem a ver com as
características dos aparelhos ou capacidade dos técnicos.

Probabilidades

“A probabilidade não existe, a probabilidade reina em toda a


parte”. Esta posição, assumida por vários autores, revela a
dificuldade na abordagem deste tema.

“A probabilidade, embora sendo sempre uma característica de


todos os juízos, não é nunca um conceito lógico; as asserções que
contêm juízos probabilísticos não são nunca analíticos, pois
exprimem sempre e só o nível de crença que, no estado de
informação presente, o sujeito que julga atribui ao objecto da
asserção. Em síntese, ela caracteriza a atitude do sujeito
conhecedor perante uma dada asserção”

Quando alguém é interrogado sobre qualquer acontecimento tem


três respostas possíveis: “Sim”, Não” ou “ Não sei”.

A primeira e a segunda correspondem ao verdadeiro e ao falso,


respectivamente, são pragmáticas. Quanto à terceira “Não sei”,
revela ignorância ou indecisão de gradiente variável e
momentâneo.

Podemos considerar três níveis de conhecimento. Um


acontecimento A pode ser do ponto de vista lógico “Falso” ou

368
Probabilidades

“Verdadeiro”, sob o ponto de vista cognoscitivo “Falso”,


“Verdadeiro” ou “Incerto” e, sob o ponto de vista psicológico
(subjectivo), “Falso”, “Verdadeiro” e, no caso de “Incerto”, com
probabilidade de situar-se entre 0 e 1,0.

Esta lógica a três valores pode resultar no desenvolvimento de


expressões lógicas ou matemáticas, as quais tem implicações
muito importantes no campo da medicina.

É do conhecimento geral que a medicina não é considerada como


uma ciência exacta. Tal facto implica o conhecimento da
probabilidade, como passo fundamental no processo de decisão
clínica.

O conhecimento da probabilidade e a sua aplicação está implícito


em todos os procedimentos que caracterizam a epidemiologia
clínica.

Na formulação de um diagnóstico, são necessários um conjunto


de dados clínicos e complementares, os quais irão ser utilizados
de acordo com as regras de decisão clínica e probabilísticas.

Podemos definir probabilidade de um evento A, como o número


de vezes que esse evento ocorre em função do número total de
vezes que pode ocorrer.

Sendo assim, e tratando-se de uma proporção, a probabilidade de


ocorrência oscilará entre 0 (ausência de ocorrência) a 1 ( ocorre
sempre). Por outro lado, a soma das probabilidades de todos os
fenómenos que podem ocorrer numa amostra tem de ser
forçosamente igual à unidade.

369
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Como na prática lidamos com amostras, a probabilidade

observada Pˆ ( A) é uma estimativa da probabilidade verdadeira

p(A).

Sendo assim, a probabilidade de um determinado evento (A) será


estimada por:

Pˆ ( A) = a / n

em que n corresponde ao tamanho da amostra.

No quadro I, descrevemos os resultados hipotéticos da pressão


arterial numa comunidade de 1.000 homens com idades
compreendidas entre 40-49 anos.

Quadro I. Pressão arterial sistólica numa população X.


Pressão Arterial Frequência Frequência Frequência
Sistólica relativa (%) acumulada (%)
80-89 10 1,0 1,0
90-99 20 2,0 3,0
100-109 30 3,0 6,0
110-119 80 8,0 14,0
120-129 130 13,0 27,0
130-139 180 18,0 45,0
140-149 130 13,0 58,0
150-159 90 9,0 67,0
160-169 80 8,0 75,0
170-179 80 8,0 83,0
180-189 70 7,0 90,0
190-199 60 6,0 96,0
200-209 20 2,0 98,0
210-219 10 1,0 99,0
220-229 5 0,5 99,5
230-239 3 0,3 99,8
240-249 2 0,5 100,0
Total 1000 100

370
Probabilidades

Com base neste quadro é fácil calcular a probabilidade da pressão


arterial de um indivíduo seleccionado ao acaso pertencer à classe
de 170-179 mmHg.

P(A) = P (pressão arterial sistólica entre 170-179 mmHg)

P(A) = 80/1.000 = 0,08

É possível igualmente estimar a probabilidade de um indivíduo


seleccionado ao acaso dentro da comunidade referida ter uma
pressão arterial sistólica inferior a 150 mmHg.

Assim,

P(A) = (pressão arterial sistólica inferior a 150 mmHg)

P(A) = 580/1.000 = 0,58

A cifra 580 obtêm-se adicionando os valores de


10+20+30+80+130+180+130, correspondentes aos grupos de
pressão arterial entre 80 e 149 mmHg.

Podemos sumariar os resultados da aplicação de um teste,


através da elaboração de tabelas de 2x2. Uma tabela deste tipo
consiste em quatro células distribuídas por duas colunas e duas
linhas (quadro II).

Quadro II. Estrutura de uma tabela 2x2


Doença Ausência de Total
(+) doença
(-)
Teste positivo a b a+b
(+)
Teste c d c+d
negativo (-)
Total a+c b+d a+b+c+d
Totais marginais Grande Total

371
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Com base no quadro anterior podemos calcular a probabilidade


de:

Teste positivo - Pˆ (T + ) = (a+b)/(a+b+c+d)

Teste negativo - Pˆ (T −) = (c+d)/(a+b+c+d)

Presença de doença - Pˆ ( D + ) = (a+c)/(a+b+c+d)

Ausência de doença - Pˆ ( D −) = (b+d)/(a+b+c+d)

É fácil de compreender que

Pˆ (T +) + Pˆ (T −) = 1,0

e do mesmo modo

Pˆ ( D + ) + Pˆ ( D −) = 1,0

Para ilustrar o que acabamos de afirmar utilizamos o quadro


seguinte (valores fictícios)

Quadro III. Resultados da aplicação de um teste de diagnóstico


na doença X

Doença Ausência de Total


(+) doença
(-)
Teste 17 3 20
positivo (+)
Teste 3 77 80
negativo (-)
Total 20 80 100
Totais marginais Grande Total

Com base neste quadro podemos calcular a probabilidade de :

372
Probabilidades

Pˆ (T + ) = 20/100 = 0,20

Pˆ (T −) = 80/100 = 0,80

Pˆ ( D + ) = 20/100 = 0,20

Pˆ ( D −) = 80/100 = 0,80

Probabilidade conjunta

A probabilidade conjunta é a probabilidade de dois ou mais


fenómenos ocorrerem simultaneamente. Descrevemos esta
probabilidade da seguinte maneira:

P(AeB)

Socorrendo do quadro III podemos calcular a probabilidade


conjunta de o teste ser positivo e, simultaneamente, de se estar
doente.

P(T+ e D+) = a / (a+b+c+d)

P(T+ e D+) = 17/100 = 0,17

Com base no axioma da probabilidade conjunta temos:

P(A e B) = P(A|B)*P(B)

A probabilidade conjunta de A e B é igual ao produto da


probabilidade condicional p(A|B) pela probabilidade de B.

Assim:

P(T+ e D+) = P(T+|D+)*P(D+)

P(T+|D+) = a / (a+c)

P(D+) = (a+c) / (a+b+c+d)

373
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Logo:

P(T+|D+)*P(D+) = a / (a+c)*(a+c) / (a+b+c+d)

P(T+|D+)*P(D+) = a/(a+b+c+d)

Daqui se pode provar que:

P(T+ e D+) = P(T+|D+)*P(D+)

Probabilidade condicional

A probabilidade condicional refere-se à possibilidade de um


fenómeno ocorrer quando um outro já ocorreu.

Descrevemos esta probabilidade da seguinte maneira:

P(A|B)

O evento à direita da barra vertical pode ser controlada pelo


médico.

Com base no quadro I, podemos calcular a probabilidade de um


indivíduo seleccionado ao acaso com uma pressão arterial inferior
a 160 mmHg, ter uma pressão arterial entre 120 e 129 mmHg.

Para o efeito temos de calcular A e B.

Assim B corresponde ao número de indivíduos com pressão


arterial inferior a 160 mmHg.

B = 670

A corresponde ao número de indivíduos pertencentes ao grupo


120 e 129.

A = 130

374
Probabilidades

Logo a probabilidade condicional P(A|B) ou seja P(ter pressão


arterial entre 120 e 129 dado que se tem pressão arterial inferior
a 160) será:

P(A|B) = 130/670 = 0,194

Podemos definir a probabilidade condicional em termos de


probabilidade conjunta, utilizando a seguinte fórmula:

P(A|B) = P(A e B) / P(B)

Do mesmo modo podemos exprimir a probabilidade conjunta em


termos de probabilidade condicional.

P(A e B) = P(A|B)*P(B)

P(A e B) = P(B|A)*P(A)

Neste caso qual seria a probabilidade de um indivíduo não ter um


teste negativo (quadro III)?

P(D- e T-) = P(D-|T-)*P(T-)

P(D- e T-) = 77/80*80/100

P(D- e T-) = 0,77

Relativamente à probabilidade conjunta a seguinte regra é


verdadeira:

P(A e B) = P(B e A)

Com base no quadro III podemos calcular a probabilidade


condicional.

P(T+|D+) = P(T+ e D+) / P(D+)

P(T+|D+) = P(T+ e D+) / P(D+) = 17/20 = 0,85

375
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Relativamente à regra dos produtos temos:

P(A|B) = P(A)

quando o fenómeno B não é afectado pelo fenómeno A.

Isto significa que a probabilidade A não está alterada pela


ocorrência de B (i.e. A e B são ocorrências ou sucessos
independentes).

No caso da probabilidade conjunta, se os fenómenos A e B forem


independentes temos:

P(A e B) = P(A|B)*P(B)

e como

P(A|B) = P(A)

substituindo P(A|B) temos:

P(A e B) = P(A)*P(B)

Relativamente ao quadro I, seleccionamos duas pessoas ao acaso


das 1.000 estudadas.

Neste caso qual seria a probabilidade de que ambas as pessoas


tenham cifras de pressão arterial inferior a 160 mmHg?

A < 160 mmHg = 670

B < 160 mmHg = 670

Tratando-se de fenómenos independentes temos:

P(A e B) = P(A)*P(B)

P(A) = 670/1.000

P(B) = 670/1.000

376
Probabilidades

P(AeB)=P(A)*P(B)=670/1.000*670/1.000=0,449

Qual seria a probabilidade de seleccionarmos duas pessoas ao


acaso de 1.000, em que A tivesse cifras inferior a 160 mmHg e B
inferior a 120 mmHg ( ou o contrário em termos de ordem)?

P(A e B) = P(A)*P(B)

P(A e B) = 670/1.000*140/1.000 = 0,094

Qual será a probabilidade dos três primeiros filhos de um

casal serem do sexo masculino1?

P(A e B e C) = P(A)*P(B)*P(C)

P(A) = 0,5

P(B) = 0,5

P(C) = 0,5

P(A e B e C) = 0,5*0,5*0,5 = 0,125

Dados quaisquer dois fenómenos A e B, a probabilidade marginal


de A iguala a probabilidade conjunta de A e B mais a
probabilidade conjunta de A e não B.

P(A) = P(A e B) + P(A e não B)

P( A e não B) = P(A) - P(A e B)

Em primeiro lugar vamos utilizar os dados do quadro seguinte.

1
Na prática existem diferenças de probabilidades entre os sexos, havendo mais
hipóteses do nascituro ser do sexo masculino. Para efeitos práticos admitimos
igualdade entre os sexos.

377
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro IV. Resultados da aplicação de um teste de diagnóstico na


doença Y

Doença Ausência de Total


(+) doença
(-)
Teste 34 6 40
positivo (+)
Teste 6 154 160
negativo (-)
Total 40 160 200
Totais marginais Grande Total
A partir deste quadro elaboramos o seguinte, com base em
proporções e não em valores absolutos.

Quadro V. Resultados da aplicação de um teste de diagnóstico na


doença Y (proporções)

Doença Ausência de Total


(+) doença
(-)
Teste 0,17 0,03 0,20
positivo (+)
Teste 0,03 0,77 0,80
negativo (-)
Total 0,20 0,80 1,00
Totais marginais Grande Total

Agora, com base no quadro anterior podemos calcular:

P(T+) = P(T+ e D+) + P(T+ e D-)

P(T+ e D+) = 0,17

P(T+ e D-) = 0,3

P(T+) = 0,17 + 0,3 = 0,20

378
Probabilidades

Utilizando a regra geral da adição para a probabilidade conjunta


temos:

P(A ou B) = P(A) + P(B) - P(A e B)

Deste modo podemos calcular qual a probabilidade de um


indivíduo seleccionado ao acaso de uma população não ter a
doença ou o teste ser negativo.

P(D- ou T-) = P(D-) + P (T-) - P(D- e T-)

Com base nos dados do quadro IV temos:

P(D- ou T-) = 160/200 +160/200 - 154/200

P(D- ou T-) = 0,8 + 0,8 - 0,77 = 0,83

Neste cálculo tivemos de eliminar os indivíduos que


simultaneamente não têm a doença e cujos testes são negativos,
de modo a evitar que sejam contabilizados duas vezes, já que
estão incluídos num ou no noutro dos grupos considerados.

Quando estamos perante situações em que os fenómenos se


excluem mutuamente não necessitamos de entrar em linha de
conta com P(A e B). Neste caso a probabilidade conjunta para os
dois fenómenos utilizando a regra geral da adição será:

P(A ou B) = P(A) + P(B)

Para as probabilidade condicionais o princípio geral da adição


será:

P(A)= P(A|B1)*P(B1)+....P(A|Bn)*P(Bn)

379
Análise de sobrevivência

Curvas de sobrevivência

As curvas de sobrevivência são importantes para o estudo do


desenrolar de uma doença. Permitam calcular a sobrevivência
após o diagnóstico ou devida à acção de terapêuticas.

Os critérios para o estabelecimento de uma curva de


sobrevivência exigem a entrada de pessoas sujeitas ao estudo
num determinado período de tempo definido (respeito pelo tempo
secular), a existência de uma manobra aplicada ao estado inicial
e o estado subsequente com um alvo a atingir (morte).

Tabelas de sobrevivência

É um método que usa dados agrupados. As observações são


agrupadas em períodos fixos (dias, semanas, meses ou anos).

O cálculo da probabilidade de sobrevivência num determinado


intervalo de tempo i é dado pela seguinte fórmula:

qi = (ni - oi - di/2) / (ni - di/2)

qi - probabilidade de sobrevivência no intervalo de tempo i

ni - número de doentes vivos no início do intervalo i

oi - número de óbitos no intervalo de tempo i

di - número de desaparecidos no intervalo i


Notas e Técnicas Epidemiológicas

A probabilidade de sobrevivência desde o início do estado até ao


fim do intervalo i obtêm-se pela seguinte fórmula:

Si = q1*q2*....qn

A curva de sobrevivência obtêm-se unindo os pontos Si.

O quadro I descreve o momento do óbito e o desaparecimento de


um conjunto de 18 doentes.

Quadro I. Descrição do comportamento da evolução de casos por


doença X

Doente nº Óbito (mês) Desaparecido


(mês)
1 7
2 9
3 10
4 13
5 14
6 15
7 19
8 21
9 23
10 26
11 27
12 32
13 32
14 32
15 38
16 40
17 44
18 46

384
Análise de sobrevivência

Os quadros seguintes (II, III, IV e V) permitem analisar passo a


passo a forma de calcular a probabilidade de sobrevivência no
intervalo de tempo i (qi) e a probabilidade de sobrevivência desde
o início do estudo (Si).

No quadro seguinte (II) definimos em primeiro lugar o


agrupamento temporal dos dados (neste caso anual).

Quadro II. Análise da tabela de sobrevivência

Meses após Nº Nº de Nº de Probabilidade Probabilidade


o diagnóstico doentes óbitos desapar. sobrevivência sobrevivência
vivos no durante (di) no intervalo desde o
início do o de tempo início do
intervalo intervalo (qi) estudo
(ni) (oi) (Si)
< 12
12 - < 24
24 - < 36
36 - < 48

Em seguida procedemos ao preenchimento das três colunas


seguintes com os dados do quadro base (quadro I).

385
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro III. Análise da tabela de sobrevivência

Meses após Nº Nº de Nº de Probabilidade Probabilidade


o diagnóstico doentes óbitos desapa. sobrevivência sobrevivência
vivos no durante (di) no intervalo desde o
início do o de tempo início do
intervalo intervalo (qi) estudo
(ni) (oi) (Si)
< 12 18 3 0
12 - < 24 15 3 3
24 - < 36 9 3 2
36 - < 48 4 3 1

Com base nos dados do quadro anterior, é fácil calcular a


probabilidade de sobrevivência no intervalo de tempo i (quadro
IV).

Quadro IV. Análise da tabela de sobrevivência

Meses após Nº Nº de Nº Probabilidade Probabilidade


o diagnóstico doentes óbitos de sobrevivência sobrevivência
vivos no durante desa no intervalo desde o
início do o pa. de tempo início do
intervalo intervalo (di) (qi) estudo
(ni) (oi) (Si)
< 12 18 3 0 0,83
12 - < 24 15 3 3 0,78
24 - < 36 9 3 2 0,63
36 - < 48 4 3 1 0,14

qi = (ni - oi - di/2) / (ni - di/2)

386
Análise de sobrevivência

A probabilidade de sobrevivência desde o início (Si) é calculada


multiplicando os dados da probabilidade qi de uma forma
sucessiva (quadro V).

Quadro V. Análise da tabela de sobrevivência

Meses após Nº Nº de Nº Probabilidade Probabilidade


o diagnóstico doentes óbitos de sobrevivência sobrevivência
vivos no durante desa no intervalo desde o
início do o pa. de tempo início do
intervalo intervalo (di) (qi) estudo
(ni) (oi) (Si)
< 12 18 3 0 0,83 0,83
12 - < 24 15 3 3 0,78 0,65
24 - < 36 9 3 2 0,63 0,41
36 - < 48 4 3 1 0,14 0,06

Si = q1*q2*q3*q4

Método Kaplan-Meier

Com este método utilizamos o momento exacto do óbito e dados


não agrupados

387
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro VI. Método Kaplan-Meier


Doente Óbito Desapareci Probabilidade de Probabilidade de
do sobrevivência no sobrevivência desde o
momento i início
(qi) (Si)
1 7 0,944
2 9 0,941
3 10 0,938
4 13 0,933
5 14
6 15
7 19
8 21 0,929
9 23 0,923
10 26
11 27 0,917
12 32 0,909
13 32 0,900
14 32
15 38 0,888
16 40 0,875
17 44 0,857
18 46
qi = (nº vivos no momento ti)/(nº vivos + nº óbitos no momento ti)

Quadro VII. Método de Kaplan-Meier


Doente Óbito Desapareci Probabilidade de Probabilidade de
do sobrevivência no sobrevivência desde
momento i o início
(qi) (Si)
1 7 0,944 0,944
2 9 0,941 0,888
3 10 0,938 0,833
4 13 0,933 0,777
5 14
6 15
7 19
8 21 0,929 0,722
9 23 0,923 0,666
10 26
11 27 0,917 0,611
12 32 0,909 0,555
13 32 0,900 0,500
14 32
15 38 0,888 0,444
16 40 0,875 0,388
17 44 0,857 0,333
18 46
Si = q1*q2*...*qn

388
Análise de sobrevivência

Com o método Kaplan-Meier utilizamos dados individuais e


ignoramos os casos desaparecidos, apesar de podermos utilizar
dados agrupados. Neste último caso é preferível o método de
sobrevivência para casos agrupados.

Teste logrank

A análise comparativa de duas ou mais curvas de sobrevivência


pode ser efectuada pelo teste logrank.

Em primeiro lugar, os dados dos dois grupos são colocados num


quadro de 2x2, referente a um determinado momento ti...

Quadro VIII. Teste logrank

óbitos sobrevivente total


s
grupo A oiA niA- oiA niA
grupo B oiB niB- oiB niB
oi ni- oi ni

Partindo do princípio de que o risco de morte é idêntico nos dois


grupos (hipótese nula), o número de óbitos esperados num dado
momento ti.. é:

E ( oiA ) = n iA * oi / n i

Var ( o iA ) = o i * ( n i − ) * n iA * n iB / n i2 * ( n i − 1)

No momento ti.. podemos observar um óbito no grupo A, no


grupo B ou em ambos. Neste caso oi pode ser igual a 1 ou a 0.

Torna-se necessário calcular:

nº total de óbitos observados TA = ∑o iA

389
Notas e Técnicas Epidemiológicas

nº total de óbitos esperados EA = ∑ E(o iA )

variância total VA = ∑ var( o iA )

Após termos calculado TA, EA e VA é possível aplicar um teste


estatístico para avaliar a mortalidade nos dois grupos:

X 2 = ( TA − E A ) 2 / VA

X2 segue uma distribuição semelhante a χ2.

Podemos realizar o mesmo teste da seguinte maneira:

X 2 = ( T A − E A ) 2 / E A + ( TB − E B ) 2 / E B

390
Meta-análise

Meta-análise

A meta-análise é uma revisão crítica e quantitativa baseada numa


série de estudos.

O elevado número de trabalhos com as respectivas discrepâncias,


a propósito do mesmo assunto, foi o principal factor para o
desenvolvimento de técnicas capazes de fazer a “síntese”.

As principais áreas onde pode ser aplicada esta metodologia são:


os ensaios clínicos, os estudos de coorte e caso-controlo e os
rastreios, entre outros.

É possível analisar as associações do tipo causal, a importância


dos factores de risco e avaliar a importância de um determinado
fenómeno.

As principais diferenças entre os diversos estudos sobre a mesma


temática, resultam dos desenhos dos mesmos, do factor acaso,
dos participantes e das circunstâncias em que decorreram os
trabalhos.

A análise dos ensaios clínicos permite-nos verificar a existência de


vários tipos de diferenças: critérios de inclusão e de exclusão,
tratamentos, controlos, tempo de execução, alvos diferentes,
forma de aleatorização, etc.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Certos tipos de estudo estão menos sujeitos a estas diferenças,


devido à forma como são desenhados: casos dos estudos de
coorte e dos ensaios controlados aleatorizados,
(comparativamente aos estudos caso-controlo).

Quando estudos efectuados sobre o mesmo tema apresentam


resultados semelhantes, acabam por reforçar o valor dos
mesmos. No entanto alguns não têm “peso” suficiente para
terem significado estatístico. Este problema pode ser ultrapassado
pela “combinação de vários estudos”. Assim a combinação de
vários trabalhos pode revelar que um resultado observado num
estudo não é mais do que um artefacto ou fruto do acaso.

Em síntese a meta-análise permite:

• aumentar o poder estatístico


• resolver incertezas quando os estudos não são
concordantes
• responder a novas questões
• melhorar a qualidade da pesquisa
• sumariar com mais acuidade os dados dispersos na
literatura.
Para efectuar uma meta-análise, devemos seleccionar os
trabalhos, utilizando para o efeito uma base de dados. Em
seguida seleccionar aqueles que preencherem certos requisitos
definidos previamente (nem todos os artigos tem qualidade, ou
respeitam a arquitectura dos ensaios aleatorizados). A dimensão
do trabalho condicionará a selecção (optar pelos de maiores
dimensões). Em seguida devemos seleccionar o alvo a estudar

392
Meta-análise

(como é facilmente compreensível, alvos diferentes


comprometem a análise).

Para exemplificar a utilização metodológica de uma meta-análise


vamos utilizar dados fictícios sobre se um determinado
tratamento (A) é ou não superior a um outro (B), no caso de uma
doença X.

Em primeiro lugar procedemos a uma revisão da literatura e


seleccionamos apenas cinco artigos de um universo mais vasto,
devido ao facto da maioria não respeitar algumas das regras
enunciadas previamente (foram eliminados dez artigos).

O quadro I descreve o resumo dos dados dos estudos do


tratamento A versus tratamento B.

Quadro I. Resumo dos dados dos estudo do tratamento A versus


tratamento B

Tratamento A Tratamento B
Estudo Casos Curados Casos Curados
P 100 50 180 120
Q 50 20 90 30
R 40 20 50 25
S 30 15 40 10
T 20 15 30 10
Total 240 120 390 195

Em primeiro lugar calculamos as diferenças de taxas (d) entre os


dois tratamentos por cada estudo, sendo pa (proporção de

393
Notas e Técnicas Epidemiológicas

curados com o tratamento A) e pb (proporção de curados com o


tratamento B):

d = pa − pb

d p = 50 / 100 − 120 / 180 = −0 . 167

Quadro II. Diferenças de taxas entre dois tratamentos

Estudo d = pa − pb
P -0,167
Q 0,067
R 0,000
S 0,250
T 0,417

Uma diferença positiva significa que o tratamento A é mais


favorável. Uma diferença negativa tem o significado oposto.

Assim, neste caso o tratamento B é favorável apenas num estudo


(P), enquanto o A é favorável em três, havendo um (R) em que
não há diferenças.

Após o cálculo das diferenças de taxas, devemos proceder ao


cálculo do intervalo de confiança das mesmas.

Se o intervalo de confiança calculado para cada um dos estudos


incluir o zero, então podemos afirmar que o estudo em causa não
apresenta diferenças significativas1.

1
Ver capítulo “Cálculo do intervalo de confiança”

394
Meta-análise

Para calcular o intervalo de confiança, devemos em primeiro lugar


calcular a variância.

A variância da diferença entre duas variáveis é igual à soma das


suas variâncias.

No caso do estudo P, a proporção de casos curados é de 0,5 (pa)


no tratamento A e de 0,67 no tratamento B.

A variância da diferença é dada pela fórmula seguinte:

s 2 d = pa (1 − pa ) / na + pb (1 − pb ) / nb

No caso do estudo R, podemos calcular a variância

s 2 d P = 0 , 5 (1 − 0 , 5 ) / 100 + 0 , 67 (1 − 0 , 67 ) / 180 = 0 , 003728

sd = s 2 = 0 , 003 = 0 , 055

Os limites de confiança a 95% serão d ± 1,96*0,055

(-0,059; -0,275)

Este resultado permite-nos verificar que o zero não está incluído


no intervalo de confiança, pelo que as diferenças encontradas são
significativas. Neste caso o tratamento B é mais favorável.

Em seguida procedemos aos cálculos dos restantes estudos


(quadro III).

395
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro III. Diferenças de taxas entre os dois tratamentos e


respectivos intervalos de confiança

Estudo d = pa − pb IC (95%)
P -0,167 (-0,059; - 0,275)
Q 0,067 (-0,021; 0,155)
R 0,000 (-0,206;0,206)
S 0,250 (-0,262;0,762)
T 0,417 (0,162;0,672)

Podemos verificar que apenas dois dos cinco estudos não incluem
o zero (estudo P e estudo T). No caso do estudo P o tratamento
mais favorável é o B e no estudo T, o mais favorável é o
tratamento A.

Os restantes três estudos Q, R e S não apresentam diferenças


significativas (todos incluem o zero a nível dos limites do intervalo
de confiança).

Após esta fase, deveremos em seguida calcular as diferenças de


taxas para o conjunto dos cinco estudos.

Como efectuar?

Para calcular o resultado do conjunto dos cinco estudos devemos


determinar a média das taxas das diferenças:

d = ( da + db + ... dn ) / n

A variância das diferenças:

s 2 d = ( s 2 a + s 2 b + ... + s 2 n ) / n 2

Logo

396
Meta-análise

d = ( −0 ,167 + 0 , 067 + 0 , 0 + 0 , 250 + 0 , 417 ) / 5 = 0 ,113

s 2 d = ( 0 , 003 + 0 , 007 + 0 , 013 + 0 , 017 ) / 5 = 0 , 010

No conjunto dos estudos a média das diferenças é:

d = 0,113

Para calcularmos o intervalo de confiança, necessitamos conhecer


sd .

sd = sd 2 = 0,01 = 0,1

Em seguida aplicamos a seguinte fórmula

d ± 1, 96 * 0 , 1

(-0,083;0,309) ( intervalo de confiança 95%)

No conjunto dos cinco estudos não detectámos diferenças entre


os dois tratamentos, apesar da diferença +0,113 ser
aparentemente mais favorável ao tratamento A. No entanto,
como o intervalo de confiança engloba o zero, não podemos
aceitar a existência de diferenças significativas a 95%.

Há no entanto um problema que merecer ser discutido e


resolvido.

Podemos verificar que o “peso” de cada estudo é diferente uns


dos outros.

Na análise que acabámos de efectuar, utilizámos cada estudo


como se tivesse o mesmo peso.

397
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Uma breve análise permite-nos verificar que um estudo com um


efectivo muito maior, fornece melhor informação que outro com
um efectivo menor.

Deste modo, há necessidade de cada estudo intervir com os seu


“peso” real.

Vamos em seguida elaborar um quadro com o “peso” de cada


estudo.

Quadro IV. Cálculo do “peso” médio das diferenças de taxas

Estudo Variância 1/variância Pesos Taxas de Peso das


(1) s2 1 / s2 pi = 1 / si2 S diferenças diferenças
(2) (3) (4) di pi d i
(5) (6)
P 0,003 333,3 0,473 -0,167 -0,079
Q 0,007 142,9 0,203 0,067 0,0014
R 0,011 90,9 0,129 0,000 0,000
S 0,013 76,9 0,109 0,250 0,0273
T 0,017 58,8 0,084 0,417 0,0350
S=702,8 0,998 dp =-0,01527
1/S = 0,0014229 1/√S = 0,03772

Intervalo de confiança para dp : (-0,0892;0,0587)

Para calcular o “peso” (pi) de cada estudo necessitamos de


conhecer a variância (coluna 2), calcular o seu inverso (coluna 3)
e calcular o somatório do inverso das variáveis (S).

O “peso” (pi) é dado por pi = 1 / si2 S (Coluna 3).

398
Meta-análise

A coluna 5 corresponde às taxas de diferenças (previamente


calculadas).

Multiplicando os dados da coluna 5 pelos da coluna 4 (taxa de


diferenças*”peso”) obtemos os dados que estão representados na
coluna 5.

O somatório dos dados da coluna 6 (peso das diferenças) é igual


a -0,01527.

Para calcularmos o intervalo de confiança necessitamos de


conhecer o 1/√S que é 0,03772.

Deste modo teremos:

0 , 01527 ± 1, 96 * 1 / S
0 , 01527 ± 1, 96 * 0 , 03771
dp = 0 , 01527 ( −0 , 0892 ; 0 , 0587 − int. conf 95%)

Assim, podemos verificar que os últimos valores diferem dos


calculados anteriormente (em que não entrámos com o “peso” de
cada trabalho).

Mesmo com a correcção não houve diferenças significativas, visto


que o zero se encontra incluído no intervalo de confiança
considerado. No entanto houve uma redução da diferença e um
estreitamento do intervalo de confiança.

399
Métodos quantitativos para identificar agrupamentos
temporo-espaciais

Agrupamentos espaciais

No decurso do nosso dia a dia profissional, seja como clínicos ou


epidemiologistas, temos necessidade de avaliar se determinado
acontecimento “foge” ou não ao normal em função do tempo ou
do lugar.

Frequentemente observamos determinados casos que “parecem”


ocorrer com mais frequência numa determinada época, ou num
determinado local.

Há naturalmente a necessidade de verificar se esses


agrupamentos são significativamente diferentes do habitual
(esperado), traduzindo um evento que possa ser muito
importante em termos clínicos, como por exemplo, estarmos
perante uma epidemia.

O período de observação é dividido em vários intervalos de tempo


iguais (t). Calculamos as taxas de incidência em função dos
intervalos de tempo considerados (dias, semanas, meses,
anos...).

Taxa de incidência p1 p2 p3 ........ pn


Intervalo de 1 2 3 ........ n
tempo t
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A proporção global (p) obtêm-se da seguinte maneira:

p = ∑n / t

Em seguida calculamos

χ 2 = ∑ ( pi − p) 2 / p

Esta estatística permite-nos rejeitar a hipótese de ausência de


agrupamentos, caso a cifra encontrada ultrapasse o valor
representado nas tabelas do qui-quadrado.

Vamos ilustrar os cálculos com o seguinte exemplo: casos de


tentativas de suicídio verificadas num serviço de urgência,
durante um período de 12 semanas (Quadro I).

Quadro I. Distribuição semanal de casos de tentativas de suicídio


(Hospital X).

Semana 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 Total
Nº casos 2 1 0 3 4 5 1 2 3 0 2 2 24

Observámos 24 tentativas de suicídio num período de 12


semanas num hospital central.

Com base nestes dados deveríamos calcular a proporção semanal


das tentativas de suicídio, dividindo o número de suicídios por
semana pela população total. Assim na semana 1, a proporção p1
seria igual a 2/N, sendo N a população da área em questão.

Em seguida calcularíamos a proporção de tentativas na semana 2


(p2), que seria igual a 1/(N-2).

402
Métodos quantitativos para identificar agrupamentos temporo-
espaciais

Neste caso seria retirado ao denominador duas pessoas, porque


no cálculo da proporção, o denominador representa o número de
pessoas saudáveis no início do período em questão.

Atendendo ao facto de os denominadores apresentarem (neste


caso) valores consideráveis, não há necessidade (visto não
influenciarem de uma forma decisiva o cálculo da proporção) de
proceder à correcção que se expôs. Ou seja, podemos utilizar a
mesma população para todas as semanas.

Deste modo, como o denominador vai ser sempre o mesmo,


podemos dispensá-lo e utilizar só os numeradores.

No exemplo em causa verificámos que houve 24 tentativas em 12


semanas. Logo a média de tentativas semanal foi de 2.

Em seguida aplicamos a estatística χ 2 .

χ2 = ∑(X i − X)/ X

Neste caso χ 2 = 12,5. A tabela do qui-quadrado revela-nos que


para 11 graus de liberdade (n-1), o limiar crítico a 0,05 é igual a
24,725. Logo não estamos perante um agrupamento anormal.

Agrupamento espacial

Para efectuarmos uma análise de agrupamentos em termos


espaciais, utilizamos uma metodologia idêntica.

Dividimos as regiões em unidades geográficas e calculamos as


respectivas proporções em função da população global de cada
zona. Em seguida procedemos de uma forma idêntica ao exemplo
anterior.

403
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Distribuição espacial ao redor de um ponto

Podemos efectuar uma análise estatística entrando em linha de


conta com as distâncias reais entre os casos e um determinado
ponto.

Uma central de tratamento de lixos tem sido responsabilizada


pelo aparecimento de determinado tipo de patologia.

Um investigador é chamado para efectuar um estudo


epidemiológico sobre o assunto.

Faz um levantamento de 20 casos da patologia em questão,


nessa região.

Calcula para cada caso as coordenadas cartesianas das suas


residências, face à central.

Os resultados estão representados no quadro II.

Quadro II. Localização de casos de patologia X, face a uma


central incineradora (dados fictícios).

Caso xi yi di Caso xi yi di
1 -1,500 1,500 11 1,500 2,500
2 -1,000 1,800 12 4,500 2,500
3 4,300 1,000 13 -2,800 -1,300
4 -2,400 -1,100 14 -5,600 -3,400
5 -4,400 1,200 15 -4,000 -2,700
6 -3,400 2,500 16 3,500 2,900
7 -2,600 1,800 17 3,900 3,000
8 3,200 -1,500 18 4,500 -2,500
9 -4,500 -3,200 19 6,000 1,000
10 -3,600 1,500 20 5,000 -3,000

404
Métodos quantitativos para identificar agrupamentos temporo-
espaciais

Após a descrição efectuada caso a caso, o investigador procede


ao cálculo da distância média em relação à central de x e y. Deste
modo temos:

X = 0 , 03
Y = 0 , 225

Estas cifras constituem o ponto de exposição da fonte (x0 = 0,03


e y0 = 0,225).

O investigador vai de seguida calcular a distância média


observada entre os 20 casos.

A distância d = (1 / n ) ∑d . i

Para calcularmos di utilizamos a seguinte fórmula:

di = ( x i − x 0 ) 2 + ( yi − y0 ) 2

...............................................................................

405
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro III. Localização de casos de patologia X, face a uma


central incineradora (dados fictícios).
Caso xi yi di Cas xi yi di
o
1 -1,500 1,500 1,992 11 1,500 2,500 2,709
2 -1,000 1,800 1,882 12 4,500 2,500 5,016
3 4,300 1,000 4,340 13 -2,800 -1,300 3,215
4 -2,400 -1,100 2,768 14 -5,600 -3,400 6,696
5 -4,400 1,200 4,536 15 -4,000 -2,700 4,980
6 -3,400 2,500 4,116 16 3,500 2,900 4,381
7 -2,600 1,800 3,066 17 3,900 3,000 4,762
8 3,200 -1,500 3,609 18 4,500 -2,500 5,235
9 -4,500 -3,200 5,679 19 6,000 1,000 6,020
10 -3,600 1,500 3,847 20 5,000 -3,000 5,925

A distância média esperada (DE) é obtida da seguinte maneira:


k k
DE ≈ ∑ p d ′ /∑ p
i =1
i i
i =1
i

Em que pi corresponde ao número de pessoas em risco numa


determinada subárea e d i à distância do centro da subárea ao
ponto de exposição e k ao número de subáreas.

Para calcularmos a variância de DE, procedemos da seguinte


maneira:
k k
Variância ( DE ) ≈ ∑
i =1
pi ( d i ′ − DE ) 2 / ∑p
i =1
i

406
Métodos quantitativos para identificar agrupamentos temporo-
espaciais

Com base nos dados já referidos, aplicamos um teste estatístico


para avaliar a existência ou não de associação entre a distribuição
espacial da doença e o ponto de fonte de exposição:

z = ( d − DE ) / Variância ( DE ) / n

Este tipo de análise não toma em linha de conta outras variáveis


de confundimento, que possam comprometer os resultados,
nomeadamente hábitos e estilos de vida, nível socio-económico,
acesso aos cuidados médicos, ou seja, ficam de fora muitas
variáveis que poderão eventualmente explicar muitas das
diferenças.

Análise temporo-espacial (agrupamentos por pares)

Os estudos epidemiológicos de muitas doenças implicam a análise


da distribuição temporo-espacial das mesmas. Aliás o estudo
desta distribuição pode contribuir para o conhecimento etiológico
das afecções: caso de doenças infecciosas, problemas de
exposição a agentes químicos, fonte de radiações ou outros.

Para o efeito temos de classificar os casos, em função da


proximidade temporal e local. Assim são possíveis quatro tipos de
combinações:

• próximos no tempo e no espaço (n11)

• próximos no espaço e afastados no tempo (n12)

• afastados no espaço e próximos no tempo (n21)

• afastados no espaço e no tempo (n22)

Naturalmente que temos de definir quais os critérios de


“proximidade” temporal e local.
407
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Podemos ensaiar várias hipóteses, ou utilizar técnicas mais


complexas. Após a classificação dos casos procedemos ao
preenchimento de uma quadro 2x2.

Quadro IV. Distribuição dos casos em função do tempo e do


espaço.

Tempo
Próximo Afastado Total
Próximo n11 n12 n1.
Espaço Afastado n21 n22 n2.
Total n.11 n.21 n..

No caso de ausência de relação temporo-espacial os pares


vizinhos no tempo e no espaço, seguem uma distribuição segundo
a lei de Poisson (ver capítulo respectivo), cuja média
μ = (n1′ * n1 ) / n . Se o valor n11 for significativamente superior à
média, rejeitamos a hipótese nula.

Na prática rejeita-se a hipótese se ( n11 − μ ) / μ > 1,65 .

Numa determinada região existe uma fonte de poluição que é


suspeita pelo aparecimento de vários casos de determinada
patologia.

O autor encarregado da investigação determina face à patologia


em questão, que os critérios de proximidade temporal e espacial
são respectivamente 15 dias e 1Km ( a partir da fonte poluidora).

Com base nestes critérios, verificou face aos registos hospitalares


os seguintes factos:

408
Métodos quantitativos para identificar agrupamentos temporo-
espaciais

• próximos no tempo e no espaço (n11) = 25

• próximos no espaço e afastados no tempo (n12) = 50

• afastados no espaço e próximos no tempo (n21) = 190

• afastados no espaço e no tempo (n22) = 500

Quadro V. Distribuição dos casos em função do tempo e do


espaço. Patologia X face a uma central poluidora.

Tempo
<15 dias
Próximo Afastado Total
Próximo 25 50 75
Espaço Afastado 190 500 690
<1Km
Total 215 550 765

Valor da média = (75*215)/765 = 21,08

Aplicando a fórmula anterior ( ( n11 − μ ) / μ ) temos:

(25-21,08)/4,59 = 0,853 < 1,65

Como esta cifra é inferior a 1,65, concluímos pela ausência de


agrupamento temporo-espacial.

Uma análise mais pormenorizada permite-nos no entanto efectuar


algumas críticas.

O que é aconteceria se se modificasse os critérios de


proximidade?

409
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Desta feita, o autor define como critérios de proximidade


temporo-espacial 30 dias e 2Km.

Procedeu a nova análise dos dados e concluiu o seguinte:

• próximos no tempo e no espaço (n11) = 50

• próximos no espaço e afastados no tempo (n12) = 55

• afastados no espaço e próximos no tempo (n21) = 200

• afastados no espaço e no tempo (n22) = 460

Quadro VI. Distribuição dos casos em função do tempo e do


espaço. Patologia X face a uma central poluidora.

Tempo
<30 dias
Próximo Afastado Total
Próximo 50 55 105
Espaço Afastad 200 460 670
<2Km o
Total 250 515 765

A análise dos dados foi a seguinte:

μ = 34,31
μ = 5,8578

410
Métodos quantitativos para identificar agrupamentos temporo-
espaciais

Assim, aplicando a fórmula ( n11 − μ ) / μ encontramos o valor


1,8675, superior a 1,65, pelo que podemos concluir pela
existência de agrupamento temporo-espacial.

Como é facilmente compreensível a simples modificação dos


valores limite pode originar ou não a existência de um
agrupamento.

411
Agrupamento espacial do enfarte do miocárdio

Aplicação dos métodos de Grimson e de Moran

Introdução

A necessidade de saber se existe ou não uma tendência para


certos fenómenos terem comportamentos semelhantes (ou não)
ao longo do tempo ou no espaço é vital para identificar ou
levantar hipóteses quanto à sua etiologia.

Em medicina a análise de agregações temporais, espaciais e


temporo-espaciais é designada por análises de clusters (análises
de agrupamentos). A investigação dos clusters tem sido
efectuada ao longo do tempo com meios mais ou menos
sofisticados. A descoberta do vírus HIV, a relação de pesticidas
com certos tumores, o aparecimento do angiossarcoma na
exposição profissional ao cloreto de vinilo, constituem paradigmas
da aplicação de métodos para identificar agrupamentos de casos.

Porque é que surgem clusters ? Os verdadeiros clusters tem uma


causa ou exposição comum, de acordo com os casos, e explicam
pouco mais de 5% dos clusters descritos 1. Os outros clusters
ocorrem por diversas razões. Algumas são devidas ao acaso e a

1
Jacquez G M. Statistical software for the clustering of health events.
BioMedware.Ann Arbor, 1994.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

discrepâncias regionais na notificação dos casos, entre outros


aspectos.

Podemos distinguir os “verdadeiros clusters” dos “clusters


aparentes”, através da evolução do estado de saúde, de uma
potencial exposição, da relação exposição-saúde e através de
significâncias estatísticas..

A identificação dos clusters é muito útil, porque permite levantar


hipóteses de investigação. Gerar hipóteses que possam ser
exploradas em estudos mais aprofundados, é vital para a
compreensão dos fenómenos. No caso presente, pretendemos
analisar o comportamento da mortalidade por enfarte do
miocárdio a nível regional, com o propósito de identificar
agrupamentos concelhios.

Em trabalhos anteriores 2, tivemos oportunidade de verificar que


as doenças isquémicas do coração apresentavam índices de
mortalidade padronizada superiores no Sul, nas regiões da
Grande Lisboa e do Grande Porto. Este tipo de conclusão resulta
de uma visão directa do mapeamento então efectuado. Agora,
pretendemos mediante técnicas mais adequadas, conhecer se de
facto existem agrupamentos ou não.

No caso de existirem agrupamentos espaciais, podemos concluir


pela existência de factores locais (sociais, culturais, económicos,

2
Massano Cardoso. Epidemiologia das doenças cardiovasculares (definição de
um modelo experimental de investigação epidemiológica). Dissertação de
doutoramento. Coimbra 1983.
Massano Cardoso. Água, elementos e saúde pública. Coimbra Médica, 1:9, 1986.
Massano Cardoso, Mota A, Costa C. Domingos C. Água e doenças cardiovas-
culares (acção antihiperlipidemiante do cálcio veiculado por via
hídrica).Arquivos do Instituto Nacional de Saúde,12,83-109,1987.

416
Agrupamento espacial

alimentares e comportamentais) que possam explicar as


variações geográficas.

Posteriormente, estudos mais adequados a nível regional,


possibilitar-nos-á identificar os factores responsáveis e quantificá-
los. Em seguida, medidas de intervenção dirigidas em relação aos
ditos factores, poderiam ser acompanhadas de resultados
positivos, com a subsequente alteração dos agrupamentos.

Para alcançar os nossos objectivos, calculámos os índices de


mortalidade padronizada por sexo e concelhos relativamente ao
período de 1985-1989, com base nos registos do Instituto
Nacional de Estatística3, aos quais aplicamos a metodologia da
padronização indirecta. Desta forma eliminámos as variações
ocasionais (anuais), já que abrangemos os dados de um
quinquénio. A escolha de um quinquénio tem a ver com o facto de
o número dos eventos anuais de mortalidade por enfarte do
miocárdio em concelhos pequenos sofrerem grandes variações, as
quais são minimizadas em função de um período de tempo mais
longo.

A análise do agrupamento de clusters por enfarte do miocárdio foi


realizada aplicando dois tipos de métodos: método de Grimson e
índice de Moran.

3
INE (Instituto Nacional de Estatística) - Anuários de Saúde e Anuários
Demográficos. Vários (1985,1986,1987,1988,1989).Lisboa

417
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Material e métodos

Na análise utilizámos dois métodos: o método de Grimson4 e o


índice de Moran5. Socorremo-nos do programa STAT! (Space-time
analyst)6.

O método de Grimson pode ser usado para detectar clusters, quer


no espaço, quer no tempo, quer no espaço-tempo. O teste
estatístico A corresponde ao número de pares adjacentes. Neste
caso a concelhos vizinhos.

Para o cálculo, necessitamos dos seguintes parâmetros: número


de concelhos (x=275) e número de concelhos com risco elevado
(n). Relativamente a este último aspecto, temos que definir
arbitrariamente qual a cifra considerada. No nosso estudo
utilizámos para o enfarte do miocárdio índices de mortalidade
padronizada igual ou superior a 118, a 115 e a 110,
respectivamente para homens, mulheres e para ambos (homens
e mulheres).

Calculámos o número médio de fronteiras por concelhos


(y=5,207) e a respectiva variância (var(y)=2,909). Por fim
calculámos o número de pares de concelhos vizinhos com risco
elevado.

Usámos a distribuição Normal, porque a razão VC/Var(A) foi


sempre superior a 0,20 nos três testes efectuados (VC =
comportamento da variabilidade e Var(A) = variância de A).

4
Grinsom, R.C. A versatile test for clustering and a proximity analysis of neurons.
Methods of Information in Medicine 30:299-303, 1991
5
Jacquez G M. Statistical software for the clustering of health events. BioMedware.Ann
Arbor, 1994.

418
Agrupamento espacial

Aplicámos igualmente o índice de Moran. Este método permite


detectar pontos de partida para a aleatorização espacial. Este
método requer dois ficheiros: o ficheiro de dados Moran e o
ficheiro de relação. O ficheiro de relação descreve os pesos. Cada
linha tem o formato: iwCj1j2…jk.

O concelho em causa é representado por i; w é o valor do peso a


atribuir; C é o número de concelhos que têm fronteiras com o
concelho i usando o peso w; j1 indica o número do primeiro
concelho que está relacionado com o concelho i usando o peso w.
Enumerámos de 1 a 275 todos os concelhos do país por ordem
alfabética (concelhos/distritos). Caso exista fronteira atribuímos
w = 1, caso contrário w = 0.

Assim os primeiros concelhos terão a seguinte representação:

Águeda 1 1 9 3 259 272 261 271 17 2 5 14

Alberg.-A-Velha 2 1 6 1 17 13 8 12 5

Anadia 3 1 5 11 259 1 14 71

…………………………………………………………………………………………………

O primeiro “1” indica o número de ordem do primeiro concelho


(Águeda). O segundo “1” é o peso a atribuir (1 = concelhos
limítrofes; 0 = concelhos não fronteiriços). A cifra seguinte “9”
indica o número de concelhos limítrofes, e os restantes a
identificação destes últimos (3 = Anadia; 259 = Mortágua; 272 =
Tondela; 261 = Oliveira de Frades; 271 = Tarouca; 17 = Sever
do Vouga; 2 = Alberg.-A-Velha; 5= Aveiro; 14 = Oliveira do
Bairro).

6 3
Ver
419
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O ficheiro de dados Moran contêm os índices de mortalidade


padronizada (x1) e têm o seguinte formato:

x1, nome do concelho 1

x2, nome do concelho 2

…………………

xn, nome do concelho n

Resultados

As figuras 1 a 3 revelam a distribuição geográfica, quando


estabelecemos como concelhos de risco, aqueles que apresentam
índices de mortalidade padronizada, superiores às cifras descritas
no capítulo anterior.

420
Agrupamento espacial

421
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Os quadros I, II e III descrevem por ordem decrescente os


índices de mortalidade padronizada média por enfarte do
miocárdio dos diferentes concelhos, para o conjunto de homens e
mulheres, homens e mulheres, respectivamente.

422
Agrupamento espacial

423
Notas e Técnicas Epidemiológicas

424
Agrupamento espacial

As figuras 4, 5 e 6 revelam as distribuições Normal e a de Poisson


(Normal a cheio, a de Poisson a tracejado) para as situações de
risco consideradas.

425
Notas e Técnicas Epidemiológicas

426
Agrupamento espacial

427
Notas e Técnicas Epidemiológicas

As linhas verticais “cortam” as curvas em pontos cujo significado


estatístico estão descritos nos quadros IV, V e VI.

Quadro IV. Resultados e níveis de significância da aplicação do


teste de Grinsom e do índice de Moran na análise de clusters dos
índices de mortalidade padronizada por enfarte do miocárdio
(homens).

Análise de clusters
IMP por Enfarte Agudo do Miocárdio (homens)

Teste de Grimson Indice de Moran


Valor mínimo : IMP ≥118
n = 69 I de Moran = 0, 219807
y = 5,2070 E[I] = -0,003650
Var(y) = 2,9090
RC = 24,8726 R
VC = 9,2589 Variância = 0, 001297
A = 61 Valor de Z = 6,204216
E(A) = 44,5826 Significância = 0,0000000
Var(A) = 34,1316
Valor de Z = 2,8101 Simulação
Significância Normal = 0, 00248 Significância = 0,0200000
Significância Poisson = 0,01120
VC/Var(A) = 0,27127

Quadro V. Resultados e níveis de significância da aplicação do


teste de Grinsom e do índice de Moran na análise de clusters dos
índices de mortalidade padronizada por enfarte do miocárdio
(mulheres).

428
Agrupamento espacial

Análise de clusters
IMP por Enfarte Agudo do Miocárdio (mulheres)

Teste de Grimson Indice de Moran


Valor mínimo : IMP ≥115
n = 61 I de Moran = 0,194450
y = 5,2070 E[I] = -0,003650
Var(y) = 2,9090
RC = 20,9420 R
VC = 6,6071 Variância = 0, 001265
A = 45 Valor de Z = 5,570639
E(A) = 34,7767 Significância = 0,0000000
Var(A) = 27,5490
Valor de Z = 1,9478 Simulação
Significância Normal = 0,02572 Significância = 0,0200000
Significância Poisson = 0,05405
VC/Var(A) = 0,23983

Quadro VI. Resultados e níveis de significância da aplicação do


teste de Grinsom e do índice de Moran na análise de clusters dos
índices de mortalidade padronizada por enfarte do miocárdio
(homens e mulheres).

Análise de clusters
IMP por Enfarte Agudo do Miocárdio
(homens e mulheres)
Teste de Grimson Indice de Moran
Valor mínimo : IMP ≥110
n = 81 I de Moran = 0, 240636
y = 5,2070 E[I] = -0,003650
Var(y) = 2,9090
RC = 30,4563 R
VC = 14,1993 Variância = 0, 001248
A = 74 Valor de Z = 6,916176
E(A) = 61,5718 Significância = 0,0000000
Var(A) = 44,6555
Valor de Z = 1,8598 Simulação
Significância Normal = 0, 03146 Significância = 0,0200000
Significância Poisson = 0,06742
VC/Var(A) = 0,31797

429
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A técnica do cálculo do índice de Moran revela a existência de


clusters para homens, mulheres e para ambos. As linhas verticais
da figura 7 encontram-se à direita dos valores obtidos, através de
simulação (método de Monte Carlo).

Discussão e conclusões

Já tivemos oportunidade de verificar que em Portugal existem


discrepâncias regionais no tocante ao comportamento das
doenças cardiovasculares, com tendência para um agravamento
das doenças cerebrovasculares no Centro e Norte do País em

430
Agrupamento espacial

contraste com um flagrante predomínio do enfarte do miocárdio


no Sul e região da Grande Lisboa7.

As variações regionais não são devidas ao acaso. Existem


naturalmente factores que explicam os agrupamentos. No tocante
às doenças cardiovasculares não será de admirar este
agrupamento, atendendo aos factores de risco subjacentes, os
quais tem a ver com comportamentos e hábitos, os quais têm
naturalmente tendência para se agruparem.

Se uma análise geográfica do problema permite de uma forma


"grosseira" definir a existência de variações regionais, torna-se
imperioso através da aplicação de técnicas epidemiológicas
adequadas, quantificar essa mesma variação e atribuir-lhe um
significado que possa ser alvo de estudos mais pormenorizados
(in loco ) de modo a conhecer os factores de risco tradicionais e a
equacionar outros aparentemente menos relevantes, mas que em
termos práticos possam explicar muito do "inexplicável" na área
da epidemiologia das doenças cardiovasculares.

A aplicação das técnicas em causa permite-nos afirmar a


existência de verdadeiros clusters para o enfarte do miocárdio.
Existem afinidades geográficas bem definidas, as quais deverão
ter "denominadores comuns". O estudo dos diferentes factores de
risco nas áreas geográficas que conseguimos definir com a

7
Massano Cardoso. Epidemiologia das doenças cardiovasculares (definição de
um modelo experimental de investigação epidemiológica). Dissertação de
doutoramento. Coimbra 1983.
Massano Cardoso. Água, elementos e saúde pública. Coimbra Médica, 1:9, 1986.
Massano Cardoso, Mota A, Costa C. Domingos C. Água e doenças cardiovas-
culares (acção antihiperlipidemiante do cálcio veiculado por via
hídrica).Arquivos do Instituto Nacional de Saúde,12,83-109,1987.

431
Notas e Técnicas Epidemiológicas

aplicação das técnicas em apreço poderá constituir uma base


científica para estudos futuros.

No caso vertente é nítido o agrupamento ao redor do Grande


Porto e da Grande Lisboa, assim como no Baixo Alentejo. Há uma
sobreposição entre os sexos. No entanto, não deixa de ser curioso
o duplo agrupamento alentejano (Alto e Baixo Alentejo) para as
mulheres. Por outro lado, não é tão visível o agrupamento ao
redor do Porto para as mulheres. Quais os motivos para estas
discrepâncias? Factores locais? Fenómenos sociológicos e
comportamentais? Vieses da aplicação de técnicas cada vez mais
elaboradas?

Em epidemiologia tem-se verificado grandes dificuldades na


análise, identificação e "peso" de certos factores face ao
"impacto" dos chamados factores de risco tradicionais, os quais
apresentam sem sombra de risco "forte associação" com o
fenómeno cardiovascular. Estudar os factores de risco minor e as
suas consequências em termos de saúde comunitária não é fácil.
Nem podemos desprezá-los. Somos "obrigados" a dirigir a nossa
atenção para áreas diferentes, as quais exigem abordagens cada
vez mais elaboradas.

A aplicação de técnicas simples e acessíveis a qualquer


investigador, permitirá a identificação de agrupamentos espaciais,
temporais ou temporo-espaciais, capazes de explicarem a
dinâmica de certos fenómenos que ocorrem na prática clínica
diária e perante os quais existe necessidade de explicações, as
quais por sua vez podem ser geradoras de novos paradigmas ou

432
Agrupamento espacial

fontes de investigação que permitam conhecer a realidade dos


fenómenos que nos cercam.

O presente estudo, teve como objectivo dar a conhecer técnicas


cuja utilidade prática seja evidente e que estejam ao alcance de
qualquer um. Ao contribuirmos para o despertar da necessidade
de levantar novas hipóteses, estamos a fornecer aos nossos
colegas da biologia molecular e de outras áreas de ciências
aplicadas motivos para que possam explicar muitos fenómenos.

433
Discrepância nas medições (análise da concordância
entre dois métodos)

Discrepância nas medições

Um dos problemas mais complicados, quer na investigação quer


na prática clínica é saber se o que estamos a medir está correcto
e corresponde à realidade.

Não entrando em pormenores de natureza epistemológica sobre o


real significado da realidade e da sua medição, queremos com
esta nota, efectuar algumas reflexões e apresentar algumas
técnicas que possam ter interesse prático e que estejam ao
alcance de qualquer um.

Medir uma variável não é fácil e implica entre muitos outros


aspectos, conhecer pelo menos duas facetas muito importantes: a
reprodutibilidade e a validade.

O conceito de reprodutibilidade não é difícil de alcançar e diz


respeito à estabilidade ou consistência de informação. Ou seja, a
informação obtida é idêntica? A reprodutibilidade diz respeito ao
próprio observador e a observadores distintos.

Sempre que a reprodutibilidade de uma medição for baixa,


significa automaticamente que o procedimento em causa é inútil.
No entanto o facto de estarmos perante uma reprodutibilidade
elevada, não nos garante que seja sinónimo de procedimento
satisfatório.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Paralelamente à reprodutibilidade de uma medição, está


associado um outro conceito: a validade. Será que a característica
que o investigador deseja conhecer corresponde à realidade?

Como medir a reprodutibilidade? Há naturalmente várias técnicas,


mas aquela que iremos desenvolver em seguida é das mais
simples e acessíveis.

Através do coeficiente Kappa, podemos calcular a


reprodutibilidade de dois observadores, do próprio observador e
mesmo da aplicação de dois métodos ou do mesmo método.

O seu cálculo é muito fácil e consiste num quociente entre a


diferença observada entre a concordância esperada a dividir pela
diferença entre a unidade e a concordância esperada.

O coeficiente Kappa varia entre -1 (discordância total) a +1


(concordância total) passando por 0 (ausência de concordância).

O quadro seguinte (quadro I) revela os resultados (fictícios) da


aplicação de dois métodos (método A e método B) numa
população de 1000 indivíduos. O método A permitiu classificar
250 das 1000 como “positivos”, enquanto o método B identificou
200 na mesma população.

...............................................................................

414
Discrepâncias das medições

Quadro I. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 150 100 250

Negativo 50 700 750

Total 200 800 1000

O primeiro passo no cálculo do coeficiente Kappa é obter a


concordância observada. Para o efeito verificamos qual o número
de casos “positivos” e “negativos” comuns aos dois métodos, que
são respectivamente 150 e 700. A concordância observada é o
resultado do quociente do somatório 150+700 (850) a dividir pelo
total de indivíduos estudados (1000).

Deste modo a concordância observada corresponde a 0,85.

Aparentemente uma concordância de 0,85 (85%) é elevada.

Mas temos que entrar em linha de conta com outros factores,


nomeadamente o acaso, o que nos obriga a calcular a
concordância esperada. Para o efeito iremos utilizar os produtos
marginais.

O quadro II descreve os resultados finais dos dois métodos, tal


como foi descrito no quadro anterior.

415
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro II. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 250

Negativo 750

Total 200 800 1000

(200*250)/1.000=50

Em seguida procedemos ao cálculo do produto dos “positivos”


obtidas pelos dois métodos (250 e 200), dividindo-o pelo número
total dos indivíduos em estudo.

Neste caso concreto, o valor esperado de “positivos” para os


métodos A e B é de 50.

Colocámos este valor na célula vazia (Quadro III).

416
Discrepâncias das medições

Quadro III. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 50 250

Negativo 750

Total 200 800 1000

Em seguida procedemos ao cálculo do valor esperado de


“negativos” utilizando o mesmo processo (quadro IV).

Quadro IV. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 250

Negativo 750

Total 200 800 1000

(750*800)/1000=600

Desta feita o valor encontrado é de 600, o qual irá ser colocado


na célula respectiva (negativo A-negativo B) (quadro V).

417
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro V. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 250

Negativo 600 750

Total 200 800 1000

Em seguida e apenas por curiosidade podemos completar o


quadro (quadro VI) com as restantes cifras, as quais não são
necessárias para o cálculo da observância esperada.

Quadro VI. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 50 200 250

Negativo 100 600 750

Total 200 800 1000

418
Discrepâncias das medições

Através do quadro VI, a concordância esperada é igual ao


quociente da soma dos “positivos” e “negativos” comuns
((50+600)/1000=0,65).

Desta feita, possuindo os dados da concordância observada e da


concordância esperada, podemos calcular o coeficiente Kappa.

Coeficiente Kappa = (Co1-Ce2) / (1-Ce)

Coeficiente Kappa = (0,85-0,65) / (1-0,65) = 0,57.

Vimos que o coeficiente Kappa é superior a zero, facto que revela


uma certa concordância entre os dois métodos.

No entanto encontra-se ainda muito afastado do limite máximo


de concordância (+1).

Como interpretar este valor?

Naturalmente quanto mais perto se encontrar de +1, maior será


a força de concordância entre os dois métodos ou entre os dois
observadores ou entre o próprio observador.

Para efeitos práticos podemos utilizar uma escala, a qual nos


permite hierarquizar os diferentes valores de Kappa de modo a
termos uma ideia da força da concordância.

Como qualquer escala, está sujeita a contradições e diferentes


interpretações.

Tem um valor orientador.

1
Co – concordância observada

419
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O quadro seguinte (quadro VII) ilustra uma escala, a qual


estabelece a “força” da concordância.

Força de concordância
Kappa = 0 a 0,2 (ligeira)
Kappa = 0,21 a 0,4 ( mediana)
Kappa = 0,41 a 0,6 ( moderada)
Kappa = 0,61 a 0,80 ( substancial)
Kappa = 0,81 a 1, 0 (quase perfeita)

No exemplo considerado, o valor encontrado (0,57), permite-nos


afirmar que estamos perante uma situação de concordância
“moderada”.

Na análise da reprodutibilidade de uma medição existem várias


fontes que podem perturbar esta característica. Podemos
classificá-las em três grandes grupos: alteração das variáveis em
estudo, problemas com os instrumentos analíticos e factores
intrínsecos relacionados com as técnicas que procedem às
medições.

Assim, no tocante às variáveis em estudo, todos temos


consciência da variabilidade biológica e temporal de algumas
delas.

Quando os instrumentos utilizados não são calibrados, perdemos


a precisão ou perdemos a congruência entre aparelhos idênticos,
constituindo fontes de variação de reprodutibilidade.

2
Ce – concordância esperada

420
Discrepâncias das medições

Por fim, quem mede, pode involuntariamente alterar a


reprodutibilidade, junto de vários condicionalismos que se
caracterizam pela perda de objectividade.

Na medição de uma variável temos de ter em linha de conta uma


outra característica muito importante: a validade.

O ideal seria utilizar o “gold standard”. Mas nem sempre é


possível utilizá-lo e por vezes não os há.

Temos de ter a preocupação de utilizar sempre que possível,


perguntas e técnicas que tenham validade lógica intrínseca.

Para termos a “certeza” de que estamos a medir correctamente,


utilizamos critérios de validade, os quais baseiam-se numa
comparação entre duas medições em que uma delas é utilizada
como critério de maior validade.

Já referimos que nem sempre é possível medir a validade.

Tal como já foi afirmado, se não for possível utilizar métodos que
encerram em si uma validade lógica, temos de socorrer-nos da
validade consensual, a qual varia com o tempo e com a
reformulação de critérios.

Em medicina, esta forma de “medir” é utilizada frequentemente.

Torna-se evidente que os métodos de medição comportam


frequentemente erros devido às variabilidades biológica, técnica e
comportamental.

Sempre que possível, na prática médica e na investigação


procuramos utilizar métodos fáceis, baratos, precisos, válidos e
reprodutíveis. Combinação nem sempre fácil de obter.

421
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Coloca-se frequentemente na prática clínica a substituição dum


método “clássico” por um novo método, sempre com o objectivo
de aumentar a nossa capacidade de diagnóstico, quer em termos
de simplicidade, de rapidez, de eficiência, em suma, tentar
conhecer mais e melhor.

Para o efeito o novo método deverá ser validado e provar que


fornece mais informação ou pelo menos torne a informação mais
acessível, sob todos os pontos de vista que norteiam a prática
clínica.

Validar um novo método é frequentemente difícil e muitas vezes é


impossível comparar os resultados com os valores padrões.

Na literatura médica abundam a comparação dos dois métodos.


Mas uma análise preliminar permite-nos concluir que as técnicas
usadas não são as mais correctas. É frequente a utilização dos
coeficientes de correlação para comparar dois métodos.

Por uma questão de curiosidade vamos ilustrar através de um


exemplo concreto, porque razão não se deve utilizar este método
para comparar dois métodos na avaliação de um determinado
indicador ou variável.

Kein e colaboradores no seu trabalho “Impedance cardiography


for the determination of stroke index”3, calcularam o coeficiente
de correlação entre medições feitas por um novo método padrão.

Referiram terem efectuado várias medições em 20 doentes. Os


coeficientes de correlação variaram entre -0,77 a +0,80.

3
Kein HJ, Wallace JM, Thurston H et all. J Appl Physiol 1976; 41: 797-799

422
Discrepâncias das medições

Os autores concluíram que os métodos não concordavam, porque


a correlação era baixa, quando a amplitude do débito cardíaco era
pequeno e era elevada quando a amplitude do débito cardíaco era
maior.

Através do cálculo do coeficiente de correlação podemos medir a


associação de relação entre duas variáveis, mas não podemos
inferir se há ou não concordância entre elas.

Não podemos esquecer que a alteração das escalas de medição


não afecta a correlação, mas afecta a concordância.

Por outro lado a correlação depende da amplitude.

Assim, se estivermos perante dados com amplitude elevada, a


correlação será igualmente elevada. Os testes de significância
podem mostrar que dois métodos estão correlacionados. No
entanto não nos permitem afirmar que haja concordância entre
eles.

Outros métodos que são frequentemente utilizados com o


objectivo de estudar a concordância, são o cálculo das médias e a
análise da variância.

Relativamente ao cálculo das médias, alguns autores concluem


que os métodos concordam, porque as médias não são
significativamente diferentes !!!.

As médias podem concordar. Mas o que queremos estudar são os


indivíduos.

Estes métodos não permitem avaliar a concordância.

423
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A questão principal é saber se o “novo” método pode substituir o


“velho”.

Para o efeito procedemos em primeiro lugar à medição pelos dois


métodos (A e B) nos mesmos indivíduos.

Em seguida calculámos a diferença entre os dois métodos (A-B),


para cada indivíduo.

Finalmente procedemos ao cálculo das médias das diferenças e ao


respectivo desvio padrão das diferenças.

O quadro VIII ilustra os resultados (fictícios) da aplicação de dois


métodos (A e B) nos mesmos indivíduos.

Quadro VIII. Resultados da aplicação dos métodos A e B

Metodo A Metodo B A-B


492 519 -27
396 423 -27
514 514 0
418 436 -19
473 500 -27
584 613 -29
414 412 2
437 385 52
644 650 -6
431 439 -8
419 426 -8
645 616 29
271 244 28
485 472 13
172 264 -92
398 360 38
424 447 -23

424
Discrepâncias das medições

Com base nos dados das diferenças encontradas entre os dois


métodos para o mesmo indivíduo (A-B), calculamos a média (-
0,6029) e o respectivo desvio padrão (33, 204).

Se as diferenças encontradas (A-B) respeitarem a distribuição da


normalidade, podemos definir os limites de concordância.

Se não respeitarem a distribuição normal, temos que proceder à


transformação dos dados de modo a aplicar o método em
questão.

Basicamente, o que pretendemos saber é se relativamente a um


resultado x (método A), a segunda observação (método B)
diferirá da primeira observação entre a média mais e menos dois
desvios padrões.

A figura 1 descreve nas ordenadas as diferenças entre os dois


métodos (A-B) e nas abcissas a média dos dois métodos
((A+B)/2).

Limites de concordância entre dois métodos

150

100

Média + 2s
50
A-B

0
Média

-50

Média -2s
-100
0 100 200 300 400 500 600 700
(A+B)/2

425
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Figura 1. Limites de concordância entre dois métodos.

Cada ponto da figura representa simultaneamente a diferença


(para cada indivíduo) da aplicação dos dois métodos e a média
das mesmas.

A figura 2 representa os mesmos dados, acrescidos de três linhas


que correspondem à média e à média +2DP.

Limites de concordância entre dois métodos

150

100

Média + 2s
50
A-B

0
Média

-50

Média -2s
-100
0 100 200 300 400 500 600 700
(A+B)/2

Figura 2. Limites de concordância entre dois métodos.

Podemos observar que os dados estão dispersos entre as linhas


correspondentes à média +2DP e à média –2DP.

Há uma grande dispersão. Deste modo podemos concluir que o


resultado de um dos métodos corresponderá ao segundo, com
95% de probabilidades de variar entre +59,175 a -72,233
unidades. Ou seja a amplitude da segunda observação é da
ordem de 121,408 unidades.

426
Discrepâncias das medições

Tal facto permite-nos concluir pela ausência de concordância


entre os dois métodos.

Podemos “complicar” um pouco mais o nosso raciocínio ao


calcular os intervalos de confiança para os limites de concordância
(média +2DP e média - 2DP).

Assim a figura 3 ilustra as “amplitudes” dos dados, que podem


chegar a valores muito superiores aos encontrados
anteriormente, facto que limita muito mais a concordância entre
os dois métodos.

Correlação entre os métodos A e B

700

600

500
Metodo B

400

300

200

100

0
0 100 200 300 400 500 600 700
Metodo A

Figura 3. Correlação entre dois métodos.

Estas técnicas descritas por Bland e Altman4 permitem na prática


clínica ter uma ideia da concordância entre métodos diferentes

4
Bland JM, Altman DG. International Journal of Epidemiology 1995; 24 (Suppl.
1): S7-S14

427
Notas e Técnicas Epidemiológicas

com o objectivo de quantificar o mesmo fenómeno no mesmo


indivíduo.

Se analisarmos a força da associação entre os dois métodos,


através do cálculo do coeficiente de correlação (figura 4)
acabamos por concluir pela existência de uma associação forte
(mas de fraca concordância).

Correlação entre dois métodos


AeB

0 100

r = 0,95

Figura 4. Correlação entre dois métodos.

Existem outras técnicas para a análise da concordância entre dois


métodos, como o erro técnico ou o coeficiente de concordância de
Kendall. Este último é importante na classificação das pessoas em
escalas ordinais. Necessitam de um mínimo de classes (c=7).

Altman DG. Statistics and ethics in medical research. British Medical Journal
1980; 281: 1473-1475
Bland JM, Altman DG. Statistical Methods for Assessing agreement between two
methods of clinical measurement. The Lancet 1986; 307-310

428
Discrepâncias das medições

O exemplo seguinte baseia-se nos dados de Darryl J. Burstow


5
(Quadro IX).
Quadro IX . Gradiente valvular em mmHg Darryl J. Burstow6
Gradient
e mmHg
Máximo Média
Doente Idade Tipo Tamanho Cateteris- Doppler Cateteris- Dopple
/Sexo prótese (mm) mo mo r
1 69/f Starr-Edwards 31 22 26 12 13
14A
2 69/f Starr-Edwards 9A 23 27 27 14 14
3 50/m Starr-Edwards 27 33 33 15 16
12A
4 67/m Starr-Edwards 26 36 36 22 21
11A
5 71/f Starr-Edwards 9A 23 39 46 20 22
6 70/f Starr-Edwards 24 48 61 27 33
10A
7 58/f Starr-Edwards 9A 23 54 56 28 32
8 59/m Starr-Edwards 8A 21 58 62 38 37
9 47/m Starr-Edwards 26 62 74 36 42
11A
10 67/f Bjork-Shiley 21 38 36 20 17
11 69/m Bjork-Shiley 23 70 66 40 36
12 77/m Bjork-Shiley 23 47 12 24 21
13 80/f St. Jude 21 33 23 16 12
14 73/f St. Jude 21 30 31 14 15
15 80/f Braunwald-Cutter 22 38 40 19 19
16 54/m Hald-Medtronic 23 13 15 6 9
17 60/m Sorin 23 27 20 13 10
18 68/f Hancock 23 24 22 13 12
19 47/f Hancock 27 37 32 25 19
20 62/m Hancock 23 50 58 30 33
21 63/f Ionescu-Shiley 25 34 31 22 18

O leitor deverá com base neste exemplo calcular as diferenças


entre os valores médios do gradiente fornecido pelo cateterismo e
pelo Doppler7.

5
Burstow DJ, Nishimura RA, Bailey KR et all. Circulation 1989; 80: 504-514
Doenças e selecção natural
6
Burstow DJ, Nishimura RA, Bailey KR et all. Circulation 1989; 80: 504-
514Doenças e selecção natural
7
Pode utilizar também os gradientes máximos

429
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O quadro seguinte (quadro X) revela as diferenças entre os dois


métodos (C-D) assim como a média dos dois ((C+D)/2).

Quadro X. Gradiente valvular em mmHg Darryl J. Burstow8

Gradient
e mmHg
Média
Doente Idade Tipo Tamanho Cateteris- Doppler C-D (C+D)
/Sexo prótese (mm) mo /2
1 69/f Starr-Edwards 31 12 13
14A
2 69/f Starr-Edwards 9A 23 14 14
3 50/m Starr-Edwards 27 15 16
12A
4 67/m Starr-Edwards 26 22 21
11A
5 71/f Starr-Edwards 9A 23 20 22
6 70/f Starr-Edwards 24 27 33
10A
7 58/f Starr-Edwards 9A 23 28 32
8 59/m Starr-Edwards 8A 21 38 37
9 47/m Starr-Edwards 26 36 42
11A
10 67/f Bjork-Shiley 21 20 17
11 69/m Bjork-Shiley 23 40 36
12 77/m Bjork-Shiley 23 24 21
13 80/f St. Jude 21 16 12
14 73/f St. Jude 21 14 15
15 80/f Braunwald-Cutter 22 19 19
16 54/m Hald-Medtronic 23 6 9
17 60/m Sorin 23 13 10
18 68/f Hancock 23 13 12
19 47/f Hancock 27 25 19
20 62/m Hancock 23 30 33
21 63/f Ionescu-Shiley 25 22 18

A média da diferença (C-D) é igual a 0,142557 mmHg com um


desvio padrão de 3,5355.

8
Burstow DJ, Nishimura RA, Bailey KR et all. Circulation 1989; 80: 504-514
Doenças e selecção natural

430
Discrepâncias das medições

A partir destes dados o leitor é convidado a elaborar um gráfico


com os limites superior e inferior de concordância (figura 5 -
papel milimétrico).

Através da análise dessa figura poderá ver se há ou não dispersão


dos resultados e simultaneamente verificar se há ou não
concordância entre os métodos

Em seguida deverá efectuar um estudo de correlação entre os


métodos.

Assim poderá ver se existe associação (através do coeficiente de


correlação) e concordância através dos limites definidos pelo
método descrito).

Dois métodos são concordantes se ao resultado da observação do


primeiro método corresponder uma cifra do segundo método num
intervalo curto que seja clinicamente aceitável.

Não podemos definir com precisão quais os limites que permitem


afirmar afirmar se existe concordância ou não. Aqui entra o senso
clínico. Como tal, o clínico “saberá” se deve aceitar ou não a
amplitude dos dados.

431
Custo-efectividade

Custo-efectividade

O método de análise custo-efectividade permite-nos escolher


entre várias alternativas, quando não dispomos de recursos
suficientes para abrangê-las todas. O objectivo é maximizar em
termos de impacto de saúde, minimizando os custos. A tecnologia
nestes casos é determinante para a interpretação dos fenómenos.

Efectividade diz respeito ao conceito que procuramos ao examinar


benefícios e prejuízos. É a diferença entre aquele e este, ou seja
o saldo positivo. No entanto este conceito aplica-se não só a um
indivíduo particular, mas também aos indivíduos da sociedade em
geral.

Quando tivermos de escolher entre duas ou mais alternativas,


devemos calcular a razão custo-efectividade:

Razão custo-efectividade = Custo / Efectividade

Esta razão permite-nos calcular quanto temos de pagar em média


para obtermos uma unidade de efectividade, ou seja uma vida em
plena saúde.

Quando lidamos com grupos de indivíduos, calculamos a


efectividade da seguinte forma:

Efectividade = (Nº de casos de doença prevenível) x (Média


da utilidade ganha na prevenção da doença)
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Em que:

Nº de casos de doença prevenível = (probabilidade de


desenvolver a doença) x (Nº de indivíduos existentes)

Donde:

Efectividade = (probabilidade de desenvolver a doença) x


(nº de indivíduos existentes) x (média de utilidade ganha)

Em seguida ilustramos ficticiamente o cálculo de duas situações


clínicas A e B.

Doença A:

Probabilidade de ocorrência de doença = 0,001 (0,1%)

População = 9.500.000

Média de utilidade ganha:

Os que sofrerem da doença é-lhes atribuído numa escala


de 0 a 1 um coeficiente de saúde intermédio da ordem dos 0,5.
Se a recuperação fosse completa a utilidade seria igual a 1. Se
ocorresse a morte a utilidade seria igual a 0.

Assim, podemos atribuir numa escala de 0 a 1 a utilidade


observada para cada indivíduo.

Se um indivíduo é atingido pela doença e fica com um utilidade de


0,5 a utilidade média ganha com a prevenção será: 1 – 0,5 = 0,5.

Se o indivíduo ficasse apenas com uma utilidade de 0,2, a


prevenção da doença originaria um ganho de 1 –0,2 = 0,8.

Quanto mais baixa a utilidade na sequência do processo, maior


será naturalmente o ganho médio da prevenção da doença.

432
Custo-efectividade

Neste caso concreto, a utilidade média dos indivíduos com a


doença é da ordem dos 0,5. Logo a utilidade média ganha com a
prevenção é igual a 1 –0,5 = 0,5.

Cálculo da efectividade de A:

Efectividade = (0,001) x (9.500.000) x (1 - 0,5) = 4.750


(qualidade ajustada de vidas salvas)

Doença B:

Probabilidade de ocorrência de doença = 0,05 (5%)

População = 9.500.000

Utilidade média dos indivíduos com a doença = 0,8

Média da utilidade ganha com a prevenção = 1 – 0,8 = 0,2

Efectividade = (0,05) x (9.500.000) x (1 – 0,8) = 9.500


(qualidade ajustada de vidas salvas)

Quanto aos custos calculámos que a prevenção da doença A


oscila em média ao redor dos 5.000 contos, enquanto para a
doença B oscila em torno dos 100 contos.

Cálculo dos custos de prevenção:

Custo de prevenção = (Nº de casos de doença prevenida) x


(custo médio de prevenção em caso de doença)

Custo de prevenção = (probabilidade de desenvolver a


doença) x (nº de indivíduos existentes) x (custo médio de
prevenção de um caso de doença)

Custo de prevenção doença A = 0,001 x 9.500.000 x 5.000


= 47.500.000 contos

433
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Custo de prevenção doença B = 0,05 x 9.500.000 x 100 =


47.500.000 contos

Em termos práticos os custos de prevenção de ambas é igual.

A partir daqui é fácil calcular a razão custo-efectividade:

Custo-efectividade(A) = 47.500.000 / 4.750 = 10.000

A prevenção da doença A custa 10.000 contos por qualidade


ajustada de vidas salvas.

Custo-efectividade(B) = 47.500.000 / 9.500 = 5.000

No tocante à doença B a prevenção custa 5.000 contos por


qualidade ajustada de vidas salvas.

A análise da razão custo-efectividade sugere que a escolha da


prevenção da doença B comporta um custo inferior por qualidade
ajustada de vidas salvas.

Aparentemente tudo certo. No entanto, não podemos esquecer


que estamos a tratar com populações e é importante conhecer
não só quantas vidas são salvas, mas também quanto tempo irão
viver.

Desta forma importa calcular o número de anos de vidas salvos


com base na esperança de vida. A doença A apesar de ser pouco
frequente, ocorre predominantemente em crianças e a doença B
em velhos. A doença A ocorre em crianças com uma média de
idades de 4 anos e a doença B com uma média de idades de 60
anos.

434
Custo-efectividade

A esperança de vida das crianças aos 4 anos é de 70 anos,


enquanto aos 60 anos é de 15. É possível embora com algumas
limitações, incorporar a esperança de vida na nossa decisão.

Se a prevenção da doença A salva 4.750 qualidade ajustada de


vidas, a prevenção da doença B salva 9.500 qualidade ajustada
de vidas. Em média as vidas salvas no caso da doença A têm uma
esperança de vida de 70 anos contra 15 da doença B.

Se multiplicarmos o número de qualidade ajustada de vidas pela


esperança de vida obtemos os anos de qualidade ajustada de
vidas (QALYs – quality adjusted life years).

Um QALY é igual a um ano completo de saúde para um


indivíduo. Ou seja um ganho de um ano de vida em plena de
saúde num indivíduo que teria morrido.

Claro que pode resultar de melhorias parciais ou breves de vários


indivíduos.

Doença A = 4.750 x 70 = 332.500 QALYs

Doença B = 9.500 x 15 = 142.500 QALYs

Em termos práticos a prevenção origina mais QALYs para a


doença A do que para a doença B.

Em seguida calculamos a razão custo-efectividade, usando não a


qualidade ajustada de vidas mas os QALYs.

Deste modo teremos:

Doença A

Custo-efectividade(A) = 47.500.000 contos / 332.500 QALYs


= 142.857 contos por QALY

435
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Doença B

Custo-efectividade(B) = 47.500.000 contos / 142.500 QALYs


= 333,33 contos por QALY

E agora?

Prevenimos a doença A ou a doença B?

A prevenção da primeira apresenta um benefício superior à


segunda. É natural, é visível. Evidentemente que um decisor
político não pode equacionar radicalmente as coisas deste modo:
ou seja optar integralmente por uma das alternativas.

Através desta análise é possível avaliar os anos de vida ajustados


à qualidade de vida (QALYs) para as diferentes situações e
possibilitar aos decisores, de acordo com os orçamentos e
gravidade das situações, seleccionar prioridades e definir
estratégias.

Análise de terapêuticas

A análise custo-efectividade pode ser igualmente utilizada na


escolha da terapêutica.

Quando as terapêuticas têm os mesmos custos ou a mesma


efectividade, a aplicação do cálculo custo-efectividade pode ser
útil.

A aplicação das terapêuticas A e B caracterizam-se pelos mesmos


QALYS (1.000).

Comparativamente à terapêutica convencional a terapêutica A


despende 50.000 contos para produzir 1.000 QALYs.

436
Custo-efectividade

Por outro lado a terapêutica B é muito económica, não exige


internamento para tratamento das complicações que podem
ocorrer com a terapêutica convencional, pelo que economiza
relativamente a esta 10.000 contos por cada 1.000 QALYs.

Relativamente à terapêutica convencional as duas novas


terapêuticas apresentam-se da seguinte forma:

Terapêutica A: 50.000 contos / 1.000 QALYs = + 50 contos por


QALY

Terapêutica B: -10.000 contos / 1.000 QALYS = -10 contos por


QALY

Perante esta situação deveria ser escolhida a terapêutica B,


porque até poupa em relação à terapêutica convencional, para os
mesmos QALYs.

Uma terceira terapêutica (C) economiza igualmente em relação à


terapêutica convencional – 10.000 contos. No entanto as
complicações tardias observadas com esta terapêutica reduz o
número de QALYS em 200.

Donde:

Terapêutica C: -10.000 contos / - 200 QALYs = + 50 contos por


QALY

437
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Custos
70.000

Aumento Custos Aumento Custos


Diminuição Melhoria de vida Aumento Melhoria de vida
A

10.000

-1.000 -200 200 1.000


QALYs
C B
- 10.000

Diminuição Custos Aumento Custos


Diminuição Melhoria de vida Diminuição Melhoria de vida

- 70.000

Podemos observar através da figura que as terapêuticas A e C


têm o mesmo custo-efectividade.

As razões custo-efectividade são medidas pelo pendente das


linhas que unem determinada terapêutica e o ponto zero.

Com base no gráfico é possível analisar as quatro hipóteses


possíveis. Qualquer terapêutica que se localize no quadrante
superior esquerdo é para não ser utilizada, visto que corresponde
a diminuição de qualidade de vida.

As que se localizarem do lado direito são positivas, embora com


conceitos distintos. As do quadrante superior caracterizam-se por
aumento da qualidade de vida, embora com mais custos. As do

438
Custo-efectividade

quadrante inferior correspondem ao ideal, porque são efectivas


em termos de QALYs com menos custos.

No entanto se reportarmos à aplicação do custo-efectividade


podemos obter as mesmas cifras embora com conceitos
diferentes.

No exemplo citado, podemos verificar que as terapêuticas A e C


apresentam as mesmas razões, embora no caso de C haja
economia à custa da perda de QALYs.

Este exemplo tem como objectivo alertar para a necessidade de


interpretar correctamente o conceito custo-efectividade.

439
Discrepância nas medições (análise da concordância
entre dois métodos)

Discrepância nas medições

Um dos problemas mais complicados, quer na investigação quer


na prática clínica é saber se o que estamos a medir está correcto
e corresponde à realidade.

Não entrando em pormenores de natureza epistemológica sobre o


real significado da realidade e da sua medição, queremos com
esta nota, efectuar algumas reflexões e apresentar algumas
técnicas que possam ter interesse prático e que estejam ao
alcance de qualquer um.

Medir uma variável não é fácil e implica entre muitos outros


aspectos, conhecer pelo menos duas facetas muito importantes: a
reprodutibilidade e a validade.

O conceito de reprodutibilidade não é difícil de alcançar e diz


respeito à estabilidade ou consistência de informação. Ou seja, a
informação obtida é idêntica? A reprodutibilidade diz respeito ao
próprio observador e a observadores distintos.

Sempre que a reprodutibilidade de uma medição for baixa,


significa automaticamente que o procedimento em causa é inútil.
No entanto o facto de estarmos perante uma reprodutibilidade
elevada, não nos garante que seja sinónimo de procedimento
satisfatório.
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Paralelamente à reprodutibilidade de uma medição, está


associado um outro conceito: a validade. Será que a característica
que o investigador deseja conhecer corresponde à realidade?

Como medir a reprodutibilidade? Há naturalmente várias técnicas,


mas aquela que iremos desenvolver em seguida é das mais
simples e acessíveis.

Através do coeficiente Kappa, podemos calcular a


reprodutibilidade de dois observadores, do próprio observador e
mesmo da aplicação de dois métodos ou do mesmo método.

O seu cálculo é muito fácil e consiste num quociente entre a


diferença observada entre a concordância esperada a dividir pela
diferença entre a unidade e a concordância esperada.

O coeficiente Kappa varia entre -1 (discordância total) a +1


(concordância total) passando por 0 (ausência de concordância).

O quadro seguinte (quadro I) revela os resultados (fictícios) da


aplicação de dois métodos (método A e método B) numa
população de 1000 indivíduos. O método A permitiu classificar
250 das 1000 como “positivos”, enquanto o método B identificou
200 na mesma população.

...............................................................................

416
Discrepâncias das medições

Quadro I. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 150 100 250

Negativo 50 700 750

Total 200 800 1000

O primeiro passo no cálculo do coeficiente Kappa é obter a


concordância observada. Para o efeito verificamos qual o número
de casos “positivos” e “negativos” comuns aos dois métodos, que
são respectivamente 150 e 700. A concordância observada é o
resultado do quociente do somatório 150+700 (850) a dividir pelo
total de indivíduos estudados (1000).

Deste modo a concordância observada corresponde a 0,85.

Aparentemente uma concordância de 0,85 (85%) é elevada.

Mas temos que entrar em linha de conta com outros factores,


nomeadamente o acaso, o que nos obriga a calcular a
concordância esperada. Para o efeito iremos utilizar os produtos
marginais.

O quadro II descreve os resultados finais dos dois métodos, tal


como foi descrito no quadro anterior.

417
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro II. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 250

Negativo 750

Total 200 800 1000

(200*250)/1.000=50

Em seguida procedemos ao cálculo do produto dos “positivos”


obtidas pelos dois métodos (250 e 200), dividindo-o pelo número
total dos indivíduos em estudo.

Neste caso concreto, o valor esperado de “positivos” para os


métodos A e B é de 50.

Colocámos este valor na célula vazia (Quadro III).

418
Discrepâncias das medições

Quadro III. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 50 250

Negativo 750

Total 200 800 1000

Em seguida procedemos ao cálculo do valor esperado de


“negativos” utilizando o mesmo processo (quadro IV).

Quadro IV. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 250

Negativo 750

Total 200 800 1000

(750*800)/1000=600

Desta feita o valor encontrado é de 600, o qual irá ser colocado


na célula respectiva (negativo A-negativo B) (quadro V).

419
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Quadro V. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 250

Negativo 600 750

Total 200 800 1000

Em seguida e apenas por curiosidade podemos completar o


quadro (quadro VI) com as restantes cifras, as quais não são
necessárias para o cálculo da observância esperada.

Quadro VI. Distribuição de resultados pelos métodos a e B

Método A

Método B Positivo Negativo Total

Positivo 50 200 250

Negativo 100 600 750

Total 200 800 1000

420
Discrepâncias das medições

Através do quadro VI, a concordância esperada é igual ao


quociente da soma dos “positivos” e “negativos” comuns
((50+600)/1000=0,65).

Desta feita, possuindo os dados da concordância observada e da


concordância esperada, podemos calcular o coeficiente Kappa.

Coeficiente Kappa = (Co1-Ce2) / (1-Ce)

Coeficiente Kappa = (0,85-0,65) / (1-0,65) = 0,57.

Vimos que o coeficiente Kappa é superior a zero, facto que revela


uma certa concordância entre os dois métodos.

No entanto encontra-se ainda muito afastado do limite máximo


de concordância (+1).

Como interpretar este valor?

Naturalmente quanto mais perto se encontrar de +1, maior será


a força de concordância entre os dois métodos ou entre os dois
observadores ou entre o próprio observador.

Para efeitos práticos podemos utilizar uma escala, a qual nos


permite hierarquizar os diferentes valores de Kappa de modo a
termos uma ideia da força da concordância.

Como qualquer escala, está sujeita a contradições e diferentes


interpretações.

Tem um valor orientador.

1
Co – concordância observada

421
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O quadro seguinte (quadro VII) ilustra uma escala, a qual


estabelece a “força” da concordância.

Força de concordância
Kappa = 0 a 0,2 (ligeira)
Kappa = 0,21 a 0,4 ( mediana)
Kappa = 0,41 a 0,6 ( moderada)
Kappa = 0,61 a 0,80 ( substancial)
Kappa = 0,81 a 1, 0 (quase perfeita)

No exemplo considerado, o valor encontrado (0,57), permite-nos


afirmar que estamos perante uma situação de concordância
“moderada”.

Na análise da reprodutibilidade de uma medição existem várias


fontes que podem perturbar esta característica. Podemos
classificá-las em três grandes grupos: alteração das variáveis em
estudo, problemas com os instrumentos analíticos e factores
intrínsecos relacionados com as técnicas que procedem às
medições.

Assim, no tocante às variáveis em estudo, todos temos


consciência da variabilidade biológica e temporal de algumas
delas.

Quando os instrumentos utilizados não são calibrados, perdemos


a precisão ou perdemos a congruência entre aparelhos idênticos,
constituindo fontes de variação de reprodutibilidade.

2
Ce – concordância esperada

422
Discrepâncias das medições

Por fim, quem mede, pode involuntariamente alterar a


reprodutibilidade, junto de vários condicionalismos que se
caracterizam pela perda de objectividade.

Na medição de uma variável temos de ter em linha de conta uma


outra característica muito importante: a validade.

O ideal seria utilizar o “gold standard”. Mas nem sempre é


possível utilizá-lo e por vezes não os há.

Temos de ter a preocupação de utilizar sempre que possível,


perguntas e técnicas que tenham validade lógica intrínseca.

Para termos a “certeza” de que estamos a medir correctamente,


utilizamos critérios de validade, os quais baseiam-se numa
comparação entre duas medições em que uma delas é utilizada
como critério de maior validade.

Já referimos que nem sempre é possível medir a validade.

Tal como já foi afirmado, se não for possível utilizar métodos que
encerram em si uma validade lógica, temos de socorrer-nos da
validade consensual, a qual varia com o tempo e com a
reformulação de critérios.

Em medicina, esta forma de “medir” é utilizada frequentemente.

Torna-se evidente que os métodos de medição comportam


frequentemente erros devido às variabilidades biológica, técnica e
comportamental.

Sempre que possível, na prática médica e na investigação


procuramos utilizar métodos fáceis, baratos, precisos, válidos e
reprodutíveis. Combinação nem sempre fácil de obter.

423
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Coloca-se frequentemente na prática clínica a substituição dum


método “clássico” por um novo método, sempre com o objectivo
de aumentar a nossa capacidade de diagnóstico, quer em termos
de simplicidade, de rapidez, de eficiência, em suma, tentar
conhecer mais e melhor.

Para o efeito o novo método deverá ser validado e provar que


fornece mais informação ou pelo menos torne a informação mais
acessível, sob todos os pontos de vista que norteiam a prática
clínica.

Validar um novo método é frequentemente difícil e muitas vezes é


impossível comparar os resultados com os valores padrões.

Na literatura médica abundam a comparação dos dois métodos.


Mas uma análise preliminar permite-nos concluir que as técnicas
usadas não são as mais correctas. É frequente a utilização dos
coeficientes de correlação para comparar dois métodos.

Por uma questão de curiosidade vamos ilustrar através de um


exemplo concreto, porque razão não se deve utilizar este método
para comparar dois métodos na avaliação de um determinado
indicador ou variável.

Kein e colaboradores no seu trabalho “Impedance cardiography


for the determination of stroke index”3, calcularam o coeficiente
de correlação entre medições feitas por um novo método padrão.

Referiram terem efectuado várias medições em 20 doentes. Os


coeficientes de correlação variaram entre -0,77 a +0,80.

3
Kein HJ, Wallace JM, Thurston H et all. J Appl Physiol 1976; 41: 797-799

424
Discrepâncias das medições

Os autores concluíram que os métodos não concordavam, porque


a correlação era baixa, quando a amplitude do débito cardíaco era
pequeno e era elevada quando a amplitude do débito cardíaco era
maior.

Através do cálculo do coeficiente de correlação podemos medir a


associação de relação entre duas variáveis, mas não podemos
inferir se há ou não concordância entre elas.

Não podemos esquecer que a alteração das escalas de medição


não afecta a correlação, mas afecta a concordância.

Por outro lado a correlação depende da amplitude.

Assim, se estivermos perante dados com amplitude elevada, a


correlação será igualmente elevada. Os testes de significância
podem mostrar que dois métodos estão correlacionados. No
entanto não nos permitem afirmar que haja concordância entre
eles.

Outros métodos que são frequentemente utilizados com o


objectivo de estudar a concordância, são o cálculo das médias e a
análise da variância.

Relativamente ao cálculo das médias, alguns autores concluem


que os métodos concordam, porque as médias não são
significativamente diferentes !!!.

As médias podem concordar. Mas o que queremos estudar são os


indivíduos.

Estes métodos não permitem avaliar a concordância.

425
Notas e Técnicas Epidemiológicas

A questão principal é saber se o “novo” método pode substituir o


“velho”.

Para o efeito procedemos em primeiro lugar à medição pelos dois


métodos (A e B) nos mesmos indivíduos.

Em seguida calculámos a diferença entre os dois métodos (A-B),


para cada indivíduo.

Finalmente procedemos ao cálculo das médias das diferenças e ao


respectivo desvio padrão das diferenças.

O quadro VIII ilustra os resultados (fictícios) da aplicação de dois


métodos (A e B) nos mesmos indivíduos.

Quadro VIII. Resultados da aplicação dos métodos A e B

Metodo A Metodo B A-B


492 519 -27
396 423 -27
514 514 0
418 436 -19
473 500 -27
584 613 -29
414 412 2
437 385 52
644 650 -6
431 439 -8
419 426 -8
645 616 29
271 244 28
485 472 13
172 264 -92
398 360 38
424 447 -23

426
Discrepâncias das medições

Com base nos dados das diferenças encontradas entre os dois


métodos para o mesmo indivíduo (A-B), calculamos a média (-
0,6029) e o respectivo desvio padrão (33, 204).

Se as diferenças encontradas (A-B) respeitarem a distribuição da


normalidade, podemos definir os limites de concordância.

Se não respeitarem a distribuição normal, temos que proceder à


transformação dos dados de modo a aplicar o método em
questão.

Basicamente, o que pretendemos saber é se relativamente a um


resultado x (método A), a segunda observação (método B)
diferirá da primeira observação entre a média mais e menos dois
desvios padrões.

A figura 1 descreve nas ordenadas as diferenças entre os dois


métodos (A-B) e nas abcissas a média dos dois métodos
((A+B)/2).

Limites de concordância entre dois métodos

150

100

Média + 2s
50
A-B

0
Média

-50

Média -2s
-100
0 100 200 300 400 500 600 700
(A+B)/2

427
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Figura 1. Limites de concordância entre dois métodos.

Cada ponto da figura representa simultaneamente a diferença


(para cada indivíduo) da aplicação dos dois métodos e a média
das mesmas.

A figura 2 representa os mesmos dados, acrescidos de três linhas


que correspondem à média e à média +2DP.

Limites de concordância entre dois métodos

150

100

Média + 2s
50
A-B

0
Média

-50

Média -2s
-100
0 100 200 300 400 500 600 700
(A+B)/2

Figura 2. Limites de concordância entre dois métodos.

Podemos observar que os dados estão dispersos entre as linhas


correspondentes à média +2DP e à média –2DP.

Há uma grande dispersão. Deste modo podemos concluir que o


resultado de um dos métodos corresponderá ao segundo, com
95% de probabilidades de variar entre +59,175 a -72,233
unidades. Ou seja a amplitude da segunda observação é da
ordem de 121,408 unidades.

428
Discrepâncias das medições

Tal facto permite-nos concluir pela ausência de concordância


entre os dois métodos.

Podemos “complicar” um pouco mais o nosso raciocínio ao


calcular os intervalos de confiança para os limites de concordância
(média +2DP e média - 2DP).

Assim a figura 3 ilustra as “amplitudes” dos dados, que podem


chegar a valores muito superiores aos encontrados
anteriormente, facto que limita muito mais a concordância entre
os dois métodos.

Correlação entre os métodos A e B

700

600

500
Metodo B

400

300

200

100

0
0 100 200 300 400 500 600 700
Metodo A

Figura 3. Correlação entre dois métodos.

Estas técnicas descritas por Bland e Altman4 permitem na prática


clínica ter uma ideia da concordância entre métodos diferentes

4
Bland JM, Altman DG. International Journal of Epidemiology 1995; 24 (Suppl.
1): S7-S14

429
Notas e Técnicas Epidemiológicas

com o objectivo de quantificar o mesmo fenómeno no mesmo


indivíduo.

Se analisarmos a força da associação entre os dois métodos,


através do cálculo do coeficiente de correlação (figura 4)
acabamos por concluir pela existência de uma associação forte
(mas de fraca concordância).

Correlação entre dois métodos


AeB

0 100

r = 0,95

Figura 4. Correlação entre dois métodos.

Existem outras técnicas para a análise da concordância entre dois


métodos, como o erro técnico ou o coeficiente de concordância de
Kendall. Este último é importante na classificação das pessoas em
escalas ordinais. Necessitam de um mínimo de classes (c=7).

Altman DG. Statistics and ethics in medical research. British Medical Journal
1980; 281: 1473-1475
Bland JM, Altman DG. Statistical Methods for Assessing agreement between two
methods of clinical measurement. The Lancet 1986; 307-310

430
Discrepâncias das medições

O exemplo seguinte baseia-se nos dados de Darryl J. Burstow


5
(Quadro IX).
Quadro IX . Gradiente valvular em mmHg Darryl J. Burstow6
Gradient
e mmHg
Máximo Média
Doente Idade Tipo Tamanho Cateteris- Doppler Cateteris- Dopple
/Sexo prótese (mm) mo mo r
1 69/f Starr-Edwards 31 22 26 12 13
14A
2 69/f Starr-Edwards 9A 23 27 27 14 14
3 50/m Starr-Edwards 27 33 33 15 16
12A
4 67/m Starr-Edwards 26 36 36 22 21
11A
5 71/f Starr-Edwards 9A 23 39 46 20 22
6 70/f Starr-Edwards 24 48 61 27 33
10A
7 58/f Starr-Edwards 9A 23 54 56 28 32
8 59/m Starr-Edwards 8A 21 58 62 38 37
9 47/m Starr-Edwards 26 62 74 36 42
11A
10 67/f Bjork-Shiley 21 38 36 20 17
11 69/m Bjork-Shiley 23 70 66 40 36
12 77/m Bjork-Shiley 23 47 12 24 21
13 80/f St. Jude 21 33 23 16 12
14 73/f St. Jude 21 30 31 14 15
15 80/f Braunwald-Cutter 22 38 40 19 19
16 54/m Hald-Medtronic 23 13 15 6 9
17 60/m Sorin 23 27 20 13 10
18 68/f Hancock 23 24 22 13 12
19 47/f Hancock 27 37 32 25 19
20 62/m Hancock 23 50 58 30 33
21 63/f Ionescu-Shiley 25 34 31 22 18

O leitor deverá com base neste exemplo calcular as diferenças


entre os valores médios do gradiente fornecido pelo cateterismo e
pelo Doppler7.

5
Burstow DJ, Nishimura RA, Bailey KR et all. Circulation 1989; 80: 504-514
Doenças e selecção natural
6
Burstow DJ, Nishimura RA, Bailey KR et all. Circulation 1989; 80: 504-
514Doenças e selecção natural
7
Pode utilizar também os gradientes máximos

431
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O quadro seguinte (quadro X) revela as diferenças entre os dois


métodos (C-D) assim como a média dos dois ((C+D)/2).

Quadro X. Gradiente valvular em mmHg Darryl J. Burstow8

Gradient
e mmHg
Média
Doente Idade Tipo Tamanho Cateteris- Doppler C-D (C+D)
/Sexo prótese (mm) mo /2
1 69/f Starr-Edwards 31 12 13
14A
2 69/f Starr-Edwards 9A 23 14 14
3 50/m Starr-Edwards 27 15 16
12A
4 67/m Starr-Edwards 26 22 21
11A
5 71/f Starr-Edwards 9A 23 20 22
6 70/f Starr-Edwards 24 27 33
10A
7 58/f Starr-Edwards 9A 23 28 32
8 59/m Starr-Edwards 8A 21 38 37
9 47/m Starr-Edwards 26 36 42
11A
10 67/f Bjork-Shiley 21 20 17
11 69/m Bjork-Shiley 23 40 36
12 77/m Bjork-Shiley 23 24 21
13 80/f St. Jude 21 16 12
14 73/f St. Jude 21 14 15
15 80/f Braunwald-Cutter 22 19 19
16 54/m Hald-Medtronic 23 6 9
17 60/m Sorin 23 13 10
18 68/f Hancock 23 13 12
19 47/f Hancock 27 25 19
20 62/m Hancock 23 30 33
21 63/f Ionescu-Shiley 25 22 18

A média da diferença (C-D) é igual a 0,142557 mmHg com um


desvio padrão de 3,5355.

8
Burstow DJ, Nishimura RA, Bailey KR et all. Circulation 1989; 80: 504-514
Doenças e selecção natural

432
Discrepâncias das medições

A partir destes dados o leitor é convidado a elaborar um gráfico


com os limites superior e inferior de concordância (figura 5 -
papel milimétrico).

Através da análise dessa figura poderá ver se há ou não dispersão


dos resultados e simultaneamente verificar se há ou não
concordância entre os métodos

Em seguida deverá efectuar um estudo de correlação entre os


métodos.

Assim poderá ver se existe associação (através do coeficiente de


correlação) e concordância através dos limites definidos pelo
método descrito).

Dois métodos são concordantes se ao resultado da observação do


primeiro método corresponder uma cifra do segundo método num
intervalo curto que seja clinicamente aceitável.

Não podemos definir com precisão quais os limites que permitem


afirmar afirmar se existe concordância ou não. Aqui entra o senso
clínico. Como tal, o clínico “saberá” se deve aceitar ou não a
amplitude dos dados.

433
Estratégias das medidas preventivas

Introdução
A importância da epidemiologia está ligada à história da medicina
e da saúde pública. Sendo a medicina preventiva uma das quatro
formas de actuação médica, torna-se indispensável referir as
principais estratégias preventivas, a fim de evitar conflitos ou
fundamentalismos, ou má interpretações com todas as
consequências que daí podem advir para a comunidade.

A prevenção é uma disciplina que “exige” bastantes


conhecimentos epidemiológicos. Para ilustrar a sua importância,
socorremo-nos de um caso particular de prevenção: a prevenção
das doenças cardiovasculares.

Uma breve análise da história da medicina permite-nos apreciar


diferentes fases na sua evolução.

Durante muito tempo foi influenciada pelo pensamento de


Aristóteles e pelo escolasticismo da Idade Média, os quais com os
seus conceitos de hierarquia de ordem e de causalidade
impediram o progresso científico nesta área, mesmo na época em
que a astronomia e a física receberam um forte impacto,
motivado pela revolução científica do séc. XVII em que o espírito
newtoniano e galilaico se impuseram como determinantes do
futuro da humanidade.

Quando os princípios estruturalistas e de causalidade alcançaram


a medicina (um pouco tardiamente), foi possível a
Notas e Técnicas Epidemiológicas

individualização das doenças e a partida para a epopeia do estudo


das causas.

Há cerca de 125 anos foi introduzida nos EUA por Oliver Holmes
uma posição nihilística relativamente à actuação da medicina que
se caracterizava pela aplicação de terapêuticas perigosas que iam
desde as violentas sangrias às purgas e uso de substâncias
tóxicas, cujos efeitos eram mais perniciosos do que benéficos.
Não fazer nada era mais útil do que as tradicionais atitudes, que
foram objecto de chacota e de críticas literárias, passando o
médico a constituir o objecto central de ridículo e a medicina
sinónimo de charlatanice.

No princípio deste século os médicos disponham de limitadas


opções terapêuticas relativamente eficazes. Praticamente o
arsenal terapêutico resumia-se à digitalina e à morfina. Neste
período, foi dada prioridade ao reconhecimento e estudo das
doenças e à analise da história natural da doença.

Rapidamente apareceu uma nova classe de médicos com


capacidade de diagnosticar e interpretar o sofrimento humano,
mas sem grande possibilidades de intervenção. Curiosamente
este período colocou a profissão médica no auge do respeito e da
admiração.

Deste modo, deixou de ser considerado como charlatão e adquiriu


o estatuto do mais nobre e respeitado dos profissionais, não
obstante as limitadíssimas capacidades de intervir e modificar o
curso natural de muitas doenças. A literatura e a pintura
descrevem de uma forma sublime este quadro. Aceitava-se

444
Estratégias medidas preventivas

fatalmente o destino mas com a presença “tranquilizadora” do


médico.

As descobertas na área da farmacologia no período pós guerra,


foram tão súbitas e tão brutais que desde logo se pensou que
rapidamente se descobririam os meios para tratar todos os males.

O respeito naturalmente aumentou, mas mesmo assim não


deixou de ser acompanhado de um certo grau de desilusão.

Paradoxo da revolução médica


Estamos perante um paradoxo da revolução médica.

A medicina científica é cada vez mais poderosa e, no entanto,


podemos observar um relativo descrédito junto das comunidades,
o que determina um crescendo das medicinas ditas alternativas e
mesmo de seitas religiosas que num revivalismo dos princípios já
explorados por Mesmer no século XVIII - prometendo a cura
imediata para muitas doenças - permite-nos concluir que se
mantêm inalterável a proporção de pessoas pouco esclarecidas ao
longo dos séculos.

A razão de ser desta introdução, prende-se em certa medida


como uma tentativa de explicação do relativo insucesso da
medicina preventiva.

Prevenção
A prevenção utiliza basicamente dois tipos de medidas: colectivas
e individuais.

445
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Algumas medidas só podem ser implementadas à escala geral,


como é o caso da prevenção ambiental. Estas acções não
dependem da vontade individual.

Quando as medidas preventivas são aplicadas a nível individual,


tornam-se de um modo geral ineficazes, já que somente irão
beneficiar uma pequena minoria. Por outro lado a falta de
personalização das medidas preventivas, impede frequentemente
a mudança do curso de uma doença. As pessoas são de um
modo geral renitentes a adaptarem-se a novos comportamentos,
desde que não “sintam” na própria pele ou na dos familiares e
amigos as consequências de hábitos e estilos de vida perigosos.

Os seres humanos são geralmente motivados pelos benefícios


visíveis, frequentes e precoces. Os benefícios na saúde raramente
preenchem estes requisitos. Como grande parte da patologia
humana assenta em fenómenos sociais e psicológicos, não é difícil
descortinar o crescente desenvolvimento de actividades pseudo-
religiosas e pseudo-médicas que ofereçam curas certas e
imediatas.

As doenças cardiovasculares constituem uma das formas mais


eficaz e frequente de matar um indivíduo.

A história da epidemia das doenças cardiovasculares remonta aos


princípios deste século e constitui um paradigma dos distúrbios da
cultura humana, a par de outros tais como a Peste na Idade
Média ou a SIDA dos nossos dias.

As epidemias aparecem e, frequentemente desaparecem, sem


deixar traços, sempre que ocorre um novo período cultural.
Muitas vezes o esclarecimento das causas aparece tardiamente

446
Estratégias medidas preventivas

ou mesmo após o seu eventual “apagamento” ou


“desaparecimento”.

É interessante verificar actualmente um decréscimo das doenças


cardiovasculares, apesar da ignorância que ainda circula ao redor
da sua génese.

Prevenir constitui a forma mais elegante de lutar contra a doença.


Ser-se saudável e manter-se nesta situação o máximo de tempo
possível, constitui o denominador comum a qualquer habitante
deste planeta, independentemente das suas características
biológicas e culturais.

A prevenção socorre-se de dois argumentos: o económico e o


humanitário. O primeiro está bastante disseminado, ou seja a
doença motiva incapacidade e os custos dos cuidados médicos
são elevados, logo prevenção pode poupar dinheiro.
Aparentemente estamos perante um argumento interessante, só
que não é verdadeiro. Um sucesso implica frequentemente um
adiamento do problema.

Deixar de fumar reduz os riscos de doença isquémica coronária


em qualquer idade, mas os ex-fumadores irão viver mais e
muitos irão sofrer doença isquémica na velhice. Estamos perante
um paradoxo: embora o tabaco provoque enfartes do miocárdio,
os não-fumadores sofrerão eventualmente mais enfartes. Daqui
se pode inferir que os custos correspondentes são adiados e não
evitados.

O investimento na prevenção de determinadas situações tais


como acidentes de tráfico e SIDA é economicamente desejável

447
Notas e Técnicas Epidemiológicas

mas apenas até cerca dos 50 anos. “A partir desta idade o doente
mais barato é um doente morto” (Geoffrey Rose).

A noção economicista em termos de prevenção é válida quando


relacionada com as crianças e adultos. A partir dos 50 anos as
medidas preventivas são anti-económicas (porque aumentam a
sobrevivência).

O argumento humanitário de que ter saúde é melhor do que estar


doente ou morto é suficiente e constitui o único argumento real
da medicina preventiva.

Raciocínio dicotómico
Um dos grandes problemas que caracteriza o pensamento médico
baseia-se no facto de utilizar o raciocínio dicotómico; “ter ou não
ter a doença”.

George Pickering afirmou em 1954 que a distinção entre doença e


saúde é um artefacto médico.

As doenças e os seus factores de risco são fenómenos


quantitativos contínuos e não categoriais.

O fenómeno hipertensão arterial foi utilizado como paradigma


desta nova visão, extensível a todos os domínios da medicina.

A natureza confronta-nos com um processo continuum e não


como uma dicotomia. Claro que há excepções, mas são muito
poucas.

A definição de um caso é perfeitamente compreensível e


desejável. Só que aquilo a que muitas vezes chamamos

448
Estratégias medidas preventivas

diagnóstico é, pura e simplesmente a selecção de um caso para


tratamento e não propriamente uma doença.

Na comunidade o que não “se vê” é muito mais importante do


que aquilo que vemos.

É o caso da doença coronária: somente uma pequena proporção é


diagnosticada. O que não se vê não é necessariamente tratável,
mas pode ser prevenido.

O facto de a hipertensão ter sido definida com base em critérios


padronizados, originou que fossem salvas muitas vidas, mas
também provocou uma sensação de bem-estar e de segurança
entre os “não-hipertensos”. Conceito falso, porque existe uma
relação contínua entre as duas variáveis. Sendo assim as pessoas
“normotensas” acabarão por contribuir com mais acidentes
cardiovasculares do que os indivíduos de alto risco.

Este conceito aplicado à pressão arterial é igualmente extensível


ao colesterol e a outros factores de risco.

Paradoxo da prevenção
Todos já ouviram falar do paradoxo da prevenção.

O paradoxo da prevenção é uma realidade que merece ser


analisada.

Uma medida preventiva oferece grandes benefícios à


comunidade, mas oferece pouco a nível individual.

O facto de um fumador de meia-idade desistir ou não de fumar


influencia as possibilidades de estar vivo nos próximos 20 anos
em menos de 10%.

449
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Em epidemiologia damos muita atenção ao seguinte axioma: “


um grande número de pessoas expostas a um pequeno risco pode
originar mais casos do que um pequeno número exposto a um
risco elevado”.

De um modo geral o interesse colectivo sobrepõe-se aos


interesses individuais.

No caso da colesterolemia, o interesse é muito mais importante


nas pessoas que apresentam cifras pouco elevadas, do que nas
que apresentam valores altos.

Estratégias da prevenção
Sendo a doença um fenómeno pessoal e não colectivo, obriga-nos
a evitar o conjunto de infortúnios individuais e a acreditar que a
acção preventiva deverá atingir os indivíduos em risco. Estamos
perante a estratégia de alto risco.

A estratégia de alto risco permite a identificação dos que


necessitam cuidados especiais.

A prevenção pode revestir duas formas: controlo do nível de


exposição e providenciar medidas contra as agressões. A
motivação constitui um dos principais pilares da estratégia de alto
risco.

As medidas preventivas exigem um grande esforço de


actualização e de informação sobretudo o mais personalizado
possível.

Há exemplos na área da prevenção das doenças cardiovasculares


em que o afrouxamento da vigilância e aconselhamento dos
indivíduos (muitas vezes por motivos financeiros) resulta numa

450
Estratégias medidas preventivas

regressão aos “bons velhos hábitos”, acompanhado da natural


recrudescência da morbimortalidade cardiovascular.

Provas evidentes de efeitos positivos e de regressão, consoante


se actua ou não.

Relativamente aos principais factores de risco cardiovascular, não


há hoje grande discussão.

Ninguém contesta a natureza plurifactorial da doença coronária.


São conhecidos até à data cerca de 300 marcadores de risco.

Marcadores de risco
Esta expressão, “marcador de risco” foi utilizada pela primeira vez
por James McCormick em vez do tão propalado factor de risco.

Mas quais as diferenças entre os conceitos de “marcador” e


“factor” de risco?

Para nós epidemiologistas, um factor de risco é um factor que


está associado com uma alteração provável da doença.

Como muitos dos factores de risco não implicam uma associação


causal, e podem eventualmente induzir em erro os leitores é
aconselhável a designação de marcadores de risco.

A razão de ser desta breve descrição prende-se com o tamanho


actual da lista de marcadores de risco que aumenta de dia para
dia. Assim, além dos clássicos como: tabaco, hipercolesterolemia,
hipertensão, obesidade, diabetes, níveis baixos das HDL, níveis
elevados das LDL, citamos outros tais como diuréticos tiazídicos,
não beber bebidas alcoólicas, não fazer exercício, não fazer a
sesta, não comer peixe (sobretudo bacalhau), viver em países

451
Notas e Técnicas Epidemiológicas

anglo-saxónicos, ter o inglês como língua materna, sofrer de


ansiedade fóbica, ser escrupuloso quanto ao cumprimento de
horários, não beber óleo de fígado de bacalhau, ressonar, ser
careca, etc.. Não esquecer que a idade, a história familiar e o ser-
se pobre, são factores com associações muito importantes.

O elevado número de marcadores de risco que de ano para ano


vêm aumentando é fonte de indústrias muito lucrativas por um
lado, e de um real monumento à nossa ignorância, por outro.

Dizer que uma doença tem uma origem plurifactorial é muito útil,
mas não passa de uma ilusão. Todas as doenças são o resultado
da interacção de muitos factores.

A designação multifactorial ou plurifactorial quando aplicada à


etiologia de uma doença é uma tautologia e não é mais do que
um sinónimo de desconhecimento, constituindo o eufemismo
mais utilizado para descrever a nossa ignorância.

Como epidemiologistas, partilhamos da posição de McCormick


quando afirma que a epidemiologia das doenças crónicas atingiu o
fim da estrada. A epidemiologia nunca dará respostas etiológicas
acerca das doenças crónicas. A única coisa que pode fazer é
sugerir hipóteses, que deverão ser analisadas e aprofundadas a
nível da biologia molecular.

A abordagem epidemiológica é, de facto, ingenuamente simples.


Aquilo que faz é obrigar-nos a compreender o que é realmente
complexo e difícil.

452
Estratégias medidas preventivas

Por isso o futuro da compreensão da doença coronária não


dependerá dos estudos epidemiológicos, mas sim dos estudos
laboratoriais.

Estamos perante uma situação curiosa e até mesmo perigosa. O


conhecimento dos marcadores de risco providencia uma
estratégia para a prevenção, quando a causa da doença é
desconhecida.

Factores de risco das doenças cardiovasculares


A análise dos principais factores de risco: tabagismo, hipertensão
arterial e hipercolesterolemia permite-nos efectuar algumas
considerações sobre as estratégias de prevenção cardiovascular.

Tabaco
Quanto ao tabaco, hoje não temos dúvidas sobre os efeitos na
saúde humana.

Em 1964 o célebre relatório norte-americano determinou de uma


forma insofismável que o tabaco é prejudicial para a saúde.

Há estratégias e políticas destinadas a combater o tabagismo. Os


esforços para abolir o tabaco não são de hoje. Em 1963 o Sultão
Murad IV de Constantinopla decretou a pena de morte para os
fumadores: enforcamentos, esquartejamentos, esmagamentos
das mãos e pés, entrega dos fumadores aos inimigos. Apesar de
tudo, os seus súbditos continuaram a fumar.

Mas não foi só Murad IV o único a combater os fumadores. Talvez


tenha sido o mais violento de todos. MiKhail Feodorovich (o
primeiro dos Romanov) proibiu o consumo de tabaco, estabeleceu

453
Notas e Técnicas Epidemiológicas

a aplicação de diversos castigos e de elevados impostos. Mas


mesmo assim os moscovitas eram no final do século XVIII os que
fumavam mais e pagavam o tabaco mais caro da Europa.

Na Inglaterra civilizada de Jaime I foi decretado que o uso do


tabaco era imoral e não saudável.

Os americanos com as suas raízes puritanistas efectuaram


campanhas antitabágicas entre 1890 e 1920 e cada estado tinha
as suas leis. A legislação opressiva norte-americana foi abolida ou
não respeitada a partir da I Grande Guerra.

O que é certo é que em 400 anos de história, as pessoas


utilizaram o tabaco e continuarão a usá-lo no futuro.

O “Muradismo” é uma atitude que não beneficia a estratégia de


luta contra o tabaco, podendo mesmo ser perigosa.

Nas sociedades humanas há um esforço para informar as pessoas


sobre as consequências do tabagismo. Os que continuam a fumar
fazem-no por opção pessoal consciente. Tem que haver uma
filosofia em que o equilíbrio entre os riscos potenciais para a
saúde com a liberdade de escolha constitua o direito fundamental
do indivíduo à autodeterminação.

Parece-nos que transformar um fumador em marginal não será a


forma mais correcta de combater esta epidemia.

Como é do conhecimento público, verifica-se nalgumas


sociedades mais desenvolvidas, uma verdadeira marginalização,
nomeadamente no Serviço Nacional de Saúde da Grã-bretanha,
com ameaças de abandono de milhares de doentes fumadores e
bebedores que comprometam a sua saúde, assim como a recusa

454
Estratégias medidas preventivas

de intervenções cirúrgicas ( a favor dos não bebedores e não


fumadores).

Debates televisivos e comentários jornalísticos abordam esta


temática, em que o conceito moralista começa a dominar as
opiniões, inclusive a dos próprios médicos.

Os argumentos são vários: excesso de trabalho, doentes que


necessitam de serem tratados mais do que uma vez em
detrimento de outros, que podiam beneficiar de acções
terapêuticas.

Claro que estes conceitos puritanistas, acabam por transbordar


para a opinião pública e não é de admirar que começam a
organizar-se associações de não fumadores e de não bebedores a
exigirem prioridade nas terapêuticas e hospitalizações. E, como
os recursos humanos e os financiamentos são curtos, há um real
perigo de divisão social com os defensores dos direitos do
consumo de tabaco a saírem a terreiro e a extremarem posições.

A melhor estratégia consiste em conhecer o porquê e o como as


pessoas começam a fumar e adequar as medidas mais
convenientes para contrariar este fenómeno.

São precisos cerca de dois anos para que um indivíduo passe de


fumador ocasional a fumador dependente.

Toda a estratégia deverá incidir sobre os adolescentes. A


probabilidade de que um indivíduo se torne fumador a partir dos
18-20 anos é muito baixa, pelo que a estratégia passa
basicamente por um grupo etário bem definido (12-18 anos).

455
Notas e Técnicas Epidemiológicas

As medidas repressivas deverão ser evitadas, possibilitando aos


fumadores, locais em número e em qualidade, adequados ao seu
comportamento, na base de que por um lado é impossível a sua
erradicação e, por outro, deverão respeitar os direitos dos não
fumadores.

Quanto aos avisos de perigo nas embalagens de tabaco, podemos


afirmar que além de qualquer efeito positivo, poderão ter efeitos
paradoxais. Como se demonstra com a ideia de um fabricante de
cigarros, cuja marca passou a ser designada por “Death”,
utilizando como imagem de marca uma caveira com duas tíbias.
Atingem vendas muito significativas entre os adolescentes.

A estratégia dos impostos como limitação à venda do tabaco é


benéfica até um certo valor, sobretudo para os governos que no
caso português, chega a arrecadar 140 milhões de contos por
ano!.

Educar os jovens e aconselhar os indivíduos a deixarem de fumar


é muito importante.

Estudos norte-americanos descritos por Geoffrey Rose afirmam


que a principal razão para os americanos deixarem de fumar foi a
conselho do médico assistente.

O peso desta acção é muito importante e deveria ser incentivada.


O que é pena é que, proporcionalmente, os médicos portugueses
fumem mais do que a população em geral.

Colesterol
A hipercolesterolemia é um factor major. Atinge muitas pessoas e
com intensidade diferentes. A genética tem um “peso” bastante

456
Estratégias medidas preventivas

acentuado no perfil lipídico. O potencial genético aguarda


naturalmente as influências do meio ambiente para se exprimir.

A redução da colesterolemia acompanha-se da redução doença


coronária. Mas em que medida? Há necessidade de rastrear todas
as pessoas? Ou devemos seleccioná-las de acordo com o risco?
Os rastreios sistemáticos que são feitos trarão benefícios ou
prejuízos?

Se a percentagem de hipercolesterolemia for da ordem dos 20%


nos homens com idades compreendidas entre os 25-34 anos é
necessário rastrear 21.100 pessoas para prevenir uma morte em
cinco anos. Além disso, é necessário que as 4.200 pessoas
identificadas como hipercolesterolemiantes adiram ao tratamento.

No caso de estarmos perante o sexo feminino e para o mesmo


grupo etário, agora com uma prevalência de hipercolesterolemia
(>6,5 mmol/l) da ordem dos 15%, o universo a rastrear rondará
as 137.300 mulheres, das quais 20.600 deverão sujeitar-se a
tratamento para prevenir um óbito dentro de cinco anos.

São os grupos etários dos 45-54 e dos 55-64 anos os que


eventualmente beneficiam mais com as medidas de rastreio e
terapêuticas.

Os diferentes consensos apontam para cifras de colesterolemia


que não ultrapassem determinados limites. Tais atitudes
baseiam-se nos factos de que a valores baixos, corresponde um
risco menor. O problema coloca-se na fasquia para o início da
terapêutica farmacológica. Esta pode variar de consenso para
consenso e médico para médico.

457
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O clínico na sua abordagem, deverá tomar em linha de conta


muitos factores e sobretudo não dar ao paciente, a confiança total
de que o facto de ter o colesterol normal, lhe permita continuar
com os mesmos hábitos.

Assim, perante uma cifra normal de colesterol, o médico deverá


dar a conhecer tal facto ao doente, não esquecendo no entanto,
que tal não significa que o doente possa comer à vontade tudo
aquilo que habitualmente faz parte dos seus hábitos alimentares.
Ao afirmar a “normalidade” deverá recomendar cuidados
especiais no sentido de moderar os seus hábitos, aconselhando
que coma menos gorduras, já que a tendência é o aumento
progressivo com a idade. O excesso de tranquilidade é perigoso,
assim como a rotulagem rápida e intempestiva. Afinal o senso
clínico deverá prevalecer em todos os actos, sobretudo quando se
trata de cuidados de medicina preventiva.

A genética e os hábitos alimentares influenciam de forma


significativa a colesterolemia.

Um dos grandes problemas relacionados com a terapêutica da


hipercolesterolemia prende-se com a definição de normalidade.
As numerosas reuniões de consenso tem tido a preocupação de
definir os limites. Limites baixos não significam necessariamente
tratamento. Os limites recomendados correspondem aos riscos
mais baixos de sofrer complicações cardiovasculares.

Paralelamente a esta observação, há que ter em conta as


variações dos lípidos e as consequências das terapêuticas a longo
prazo.

458
Estratégias medidas preventivas

Pressão arterial
A hipertensão arterial é um importante factor de risco
cardiovascular.

A associação entre a hipertensão arterial e o consumo de sal é


conhecido desde há muitos anos.

A pressão arterial é o resultado de influências multigénicas


(relação entre “nature” e “nurture”).

Na longa história do homem que se arrasta por alguns milhões de


anos, podemos afirmar que os primeiros homens não estavam
expostos a adicionar sal nos alimentos, nem a beber álcool ou
dados a excessos calóricos.

Tendo os primeiros homens surgido em África, e sendo este


continente pobre em sal, determinou uma curiosa adaptação, que
permanece, consistindo numa conservação fisiológica de
quantidades mínimas de sal e a sua retenção.

A indústria do sal é muito recente. Tem apenas seis a oito mil


anos. O aparecimento muito tardio na evolução humana, não
permitiu uma adaptação genética por selecção natural: ou seja a
hipertensão que habitualmente surge após o período reprodutivo
impossibilitou naturalmente a “eliminação” dos hipertensos por
selecção natural.

Desta forma, uma percentagem muito elevada da população é


sensível aos efeitos hipertensivos do sal alimentar e por tal
motivo, estão mais sujeitos às complicações.

A estratégia neste caso passaria por uma redução da ingestão do


cloreto de sódio. De toda a população?

459
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Somos de parecer que não devemos sujeitar todos às mesmas


regras. Mas antes de abordarmos as razões, não podemos deixar
de afirmar que uma das principais consequências da hipertensão
arterial são as doenças cerebrovasculares.

Tal como vem acontecendo para a doença coronária, tem sido


observado uma diminuição temporal em muitos países.

A taxa de declínio é sobretudo expressiva nos EUA desde 1900 a


1920, com aceleração a partir de 1974. Fenómeno idêntico tem
sido observado no Reino Unido, Japão, Finlândia e Suécia, embora
mais recentemente.

Quais as razões para o declínio temporal? Melhoria da


sobrevivência após os acidentes vasculares cerebrais, redução de
tendência para acidentes menos graves e declínio da incidência.

Quanto a esta última, muitos apontam como principal razão o


tratamento da hipertensão arterial, a redução de exposição a
factores de risco associados à hipertensão arterial, a redução da
exposição a outros factores de risco e a uma “competição” com o
risco de doença isquémica coronária.

É pouco provável que a responsabilidade seja só da hipertensão


arterial.

O declínio dos acidentes vasculares cerebrais começou em 1900 e


o tratamento “eficaz” da hipertensão arterial data apenas de
1960.

De facto alguns efeitos ocorreram, sobretudo a partir da década


de setenta.

460
Estratégias medidas preventivas

O tratamento da hipertensão arterial moderada e/ou grave


produz benefícios substanciais para alguns, mas poucos e não
afecta praticamente a mortalidade e a morbilidade em geral

Em contrapartida o tratamento da hipertensão ligeira oferece


importante benefícios comunitários, mas pouco benefícios a nível
individual.

Estamos perante duas estratégias: estratégia de alto risco e


estratégia de baixo risco. A segunda é a mais importante em
termos globais.

A meta-análise realizada por McCormick sobre ensaios de


intervenção em múltiplos factores de risco revela aspectos
positivos. Quase todos os estudos foram efectuados em homens
de meia-idade nos quais os riscos de doença coronária é pequeno
(embora maior do que nas mulheres).

Através da meta-análise sobre os ensaios de intervenção sobre o


colesterol, podemos observar que houve um ganho de oito óbitos
em 115.176 anos-pessoa, mas no total dos óbitos houve um
agravamento de mais 35 óbitos!

A ignorância a propósito dos meios de prevenção, aconselhados e


divulgados pela imprensa médica e não médica pode ser
perigosa, à excepção dos proventos económicos para as
diferentes indústrias: comunicação social alimentar, farmacêutica
e pseudo-tecnológica entre outras.

A disseminação da doença coronária como epidemia é de tal


ordem conhecida pela população em geral que gerou o conceito
de que morrer de doença coronária é fruto do pecado. Pecado de

461
Notas e Técnicas Epidemiológicas

fumar, pecado de comer gorduras, pecado de comer sal, pecado


de não ter uma vida saudável de acordo com certos princípios
comportamentais, ditados muitas vezes por interesses
puritanistas que merecem ser revistos.

Os prevenciologistas que banalizam certos conceitos, acabam por


ser mais prejudiciais do que benéficos à sociedade em que
estamos inseridos. Não podemos esquecer que aquilo que
fazemos no nosso dia a dia é adiar a morte, porque como todos
sabem esta não é prevenível!

Não morrer de doença coronária é aumentar a possibilidade de


morrermos por outras causas. E as alternativas não são muito
atraentes.

Geneticamente somos portadores de características com as quais


devemos viver e tirar partido da existência, numa perspectiva não
totalmente hedonista, mas num hedonismo modificado e
socialmente aceite, de forma a podermos apreciar a única vida
que cada um possui.

Medicina preditiva
A medicina preditiva cujo nascimento anunciado começa a dar os
primeiros passos irá possibilitar realçar e obter partido da
interacção entre o meio ambiente interno e externo, fornecendo a
cada um de nós, ou melhor a cada um dos indivíduos das
próximas gerações, a probabilidade de fugir ou não à doença e
invalidez prematura, deslocando para as últimas semanas de uma
longa e desejável existência, o espectro do sofrimento que
sempre caracterizou a humanidade.

462
Estratégias medidas preventivas

Mas o que é a Medicina Preditiva? Segundo Jacques Ruffié


“consiste em prever desde a nascença, ou mesmo antes, as
situações de risco que um indivíduo pode conhecer no decurso da
sua existência, segundo duas séries de factores: a constituição do
seu património hereditário, que pode estar mais ou menos apto a
responder a certas condições do ambiente e os tipos de
exigências e ou de agressões que ele sofrerá por parte do
ambiente e a possibilidade de fazer face segundo as suas aptidões
inatas”.

É preciso excluir todas as doenças já constituídas, quer sejam


detectáveis a nível molecular ou macroscópico.

Contêm sempre uma parte aleatória, porque ela está


condicionada por duas séries de factores: genéticos e ambientais
que se podem cruzar ou não.

No caso concreto das doenças cardiovasculares podemos


perguntar o que sabemos do genoma humano quanto à existência
de genes que regulam a relação entre o sal, o álcool, o tabaco, o
stress, os lípidos com a hipertensão arterial e a aterosclerose
entre outros? Muito pouco ainda!

A partir do momento em que se conheça o perfil genético de um


indivíduo, é possível evitar a exposição aos diferentes factores de
risco, evitando a expressão fenotípica desta interacção. Claro que
esta estratégia ajudar-nos-á a responder às seguintes perguntas:
devemos submeter a “ comunidade” às mesmas regras? ( não
comer sal?; não beber álcool?; não ser sedentário?; não fumar?;
não....?). A resposta será NÃO!

463
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Estratégias de prevenção
A prevenção exige estratégias correctas, baseadas em critérios
científicos, respeitadores da cultura e dos direitos dos cidadãos e
deverá insinuar-se de uma forma lenta e segura e não
imediatista, de modo a evitar histerismos colectivos, susceptíveis
de causar mais prejuízos do que benefícios.

A verdadeira prevenção deverá ser feita a longo prazo, sem


grandes sobressaltos, acabando por identificar-se com os hábitos
e estilos de vida de uma comunidade, sabendo de antemão da
impossibilidade de todos aderirem, já que a principal
característica das espécies é a sua diversidade biológica, que no
caso do homem é complicada pela diversidade cultural. Assim,
temos que fatalmente aceitar determinados tipos
comportamentais, com as inevitáveis consequências.

Os prevenciologistas deverão marcar certos limites como


objectivos a atingir e considerá-los como aceitáveis de forma a
evitar que se tornem sinónimo de fundamentalistas com todo o
descrédito e contra reacção que naturalmente desencadeiam.

464
Custo-efectividade

Custo-efectividade

O método de análise custo-efectividade permite-nos escolher


entre várias alternativas, quando não dispomos de recursos
suficientes para abrangê-las todas. O objectivo é maximizar em
termos de impacto de saúde, minimizando os custos. A tecnologia
nestes casos é determinante para a interpretação dos fenómenos.

Efectividade diz respeito ao conceito que procuramos ao examinar


benefícios e prejuízos. É a diferença entre aquele e este, ou seja
o saldo positivo. No entanto este conceito aplica-se não só a um
indivíduo particular, mas também aos indivíduos da sociedade em
geral.

Quando tivermos de escolher entre duas ou mais alternativas,


devemos calcular a razão custo-efectividade:

Razão custo-efectividade = Custo / Efectividade

Esta razão permite-nos calcular quanto temos de pagar em média


para obtermos uma unidade de efectividade, ou seja uma vida em
plena saúde.

Quando lidamos com grupos de indivíduos, calculamos a


efectividade da seguinte forma:

Efectividade = (Nº de casos de doença prevenível) x (Média


da utilidade ganha na prevenção da doença)
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Em que:

Nº de casos de doença prevenível = (probabilidade de


desenvolver a doença) x (Nº de indivíduos existentes)

Donde:

Efectividade = (probabilidade de desenvolver a doença) x


(nº de indivíduos existentes) x (média de utilidade ganha)

Em seguida ilustramos ficticiamente o cálculo de duas situações


clínicas A e B.

Doença A:

Probabilidade de ocorrência de doença = 0,001 (0,1%)

População = 9.500.000

Média de utilidade ganha:

Os que sofrerem da doença é-lhes atribuído numa escala


de 0 a 1 um coeficiente de saúde intermédio da ordem dos 0,5.
Se a recuperação fosse completa a utilidade seria igual a 1. Se
ocorresse a morte a utilidade seria igual a 0.

Assim, podemos atribuir numa escala de 0 a 1 a utilidade


observada para cada indivíduo.

Se um indivíduo é atingido pela doença e fica com um utilidade de


0,5 a utilidade média ganha com a prevenção será: 1 – 0,5 = 0,5.

Se o indivíduo ficasse apenas com uma utilidade de 0,2, a


prevenção da doença originaria um ganho de 1 –0,2 = 0,8.

Quanto mais baixa a utilidade na sequência do processo, maior


será naturalmente o ganho médio da prevenção da doença.

436
Custo-efectividade

Neste caso concreto, a utilidade média dos indivíduos com a


doença é da ordem dos 0,5. Logo a utilidade média ganha com a
prevenção é igual a 1 –0,5 = 0,5.

Cálculo da efectividade de A:

Efectividade = (0,001) x (9.500.000) x (1 - 0,5) = 4.750


(qualidade ajustada de vidas salvas)

Doença B:

Probabilidade de ocorrência de doença = 0,05 (5%)

População = 9.500.000

Utilidade média dos indivíduos com a doença = 0,8

Média da utilidade ganha com a prevenção = 1 – 0,8 = 0,2

Efectividade = (0,05) x (9.500.000) x (1 – 0,8) = 9.500


(qualidade ajustada de vidas salvas)

Quanto aos custos calculámos que a prevenção da doença A


oscila em média ao redor dos 5.000 contos, enquanto para a
doença B oscila em torno dos 100 contos.

Cálculo dos custos de prevenção:

Custo de prevenção = (Nº de casos de doença prevenida) x


(custo médio de prevenção em caso de doença)

Custo de prevenção = (probabilidade de desenvolver a


doença) x (nº de indivíduos existentes) x (custo médio de
prevenção de um caso de doença)

Custo de prevenção doença A = 0,001 x 9.500.000 x 5.000


= 47.500.000 contos

437
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Custo de prevenção doença B = 0,05 x 9.500.000 x 100 =


47.500.000 contos

Em termos práticos os custos de prevenção de ambas é igual.

A partir daqui é fácil calcular a razão custo-efectividade:

Custo-efectividade(A) = 47.500.000 / 4.750 = 10.000

A prevenção da doença A custa 10.000 contos por qualidade


ajustada de vidas salvas.

Custo-efectividade(B) = 47.500.000 / 9.500 = 5.000

No tocante à doença B a prevenção custa 5.000 contos por


qualidade ajustada de vidas salvas.

A análise da razão custo-efectividade sugere que a escolha da


prevenção da doença B comporta um custo inferior por qualidade
ajustada de vidas salvas.

Aparentemente tudo certo. No entanto, não podemos esquecer


que estamos a tratar com populações e é importante conhecer
não só quantas vidas são salvas, mas também quanto tempo irão
viver.

Desta forma importa calcular o número de anos de vidas salvos


com base na esperança de vida. A doença A apesar de ser pouco
frequente, ocorre predominantemente em crianças e a doença B
em velhos. A doença A ocorre em crianças com uma média de
idades de 4 anos e a doença B com uma média de idades de 60
anos.

438
Custo-efectividade

A esperança de vida das crianças aos 4 anos é de 70 anos,


enquanto aos 60 anos é de 15. É possível embora com algumas
limitações, incorporar a esperança de vida na nossa decisão.

Se a prevenção da doença A salva 4.750 qualidade ajustada de


vidas, a prevenção da doença B salva 9.500 qualidade ajustada
de vidas. Em média as vidas salvas no caso da doença A têm uma
esperança de vida de 70 anos contra 15 da doença B.

Se multiplicarmos o número de qualidade ajustada de vidas pela


esperança de vida obtemos os anos de qualidade ajustada de
vidas (QALYs – quality adjusted life years).

Um QALY é igual a um ano completo de saúde para um


indivíduo. Ou seja um ganho de um ano de vida em plena de
saúde num indivíduo que teria morrido.

Claro que pode resultar de melhorias parciais ou breves de vários


indivíduos.

Doença A = 4.750 x 70 = 332.500 QALYs

Doença B = 9.500 x 15 = 142.500 QALYs

Em termos práticos a prevenção origina mais QALYs para a


doença A do que para a doença B.

Em seguida calculamos a razão custo-efectividade, usando não a


qualidade ajustada de vidas mas os QALYs.

Deste modo teremos:

Doença A

Custo-efectividade(A) = 47.500.000 contos / 332.500 QALYs


= 142.857 contos por QALY

439
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Doença B

Custo-efectividade(B) = 47.500.000 contos / 142.500 QALYs


= 333,33 contos por QALY

E agora?

Prevenimos a doença A ou a doença B?

A prevenção da primeira apresenta um benefício superior à


segunda. É natural, é visível. Evidentemente que um decisor
político não pode equacionar radicalmente as coisas deste modo:
ou seja optar integralmente por uma das alternativas.

Através desta análise é possível avaliar os anos de vida ajustados


à qualidade de vida (QALYs) para as diferentes situações e
possibilitar aos decisores, de acordo com os orçamentos e
gravidade das situações, seleccionar prioridades e definir
estratégias.

Análise de terapêuticas

A análise custo-efectividade pode ser igualmente utilizada na


escolha da terapêutica.

Quando as terapêuticas têm os mesmos custos ou a mesma


efectividade, a aplicação do cálculo custo-efectividade pode ser
útil.

A aplicação das terapêuticas A e B caracterizam-se pelos mesmos


QALYS (1.000).

Comparativamente à terapêutica convencional a terapêutica A


despende 50.000 contos para produzir 1.000 QALYs.

440
Custo-efectividade

Por outro lado a terapêutica B é muito económica, não exige


internamento para tratamento das complicações que podem
ocorrer com a terapêutica convencional, pelo que economiza
relativamente a esta 10.000 contos por cada 1.000 QALYs.

Relativamente à terapêutica convencional as duas novas


terapêuticas apresentam-se da seguinte forma:

Terapêutica A: 50.000 contos / 1.000 QALYs = + 50 contos por


QALY

Terapêutica B: -10.000 contos / 1.000 QALYS = -10 contos por


QALY

Perante esta situação deveria ser escolhida a terapêutica B,


porque até poupa em relação à terapêutica convencional, para os
mesmos QALYs.

Uma terceira terapêutica (C) economiza igualmente em relação à


terapêutica convencional – 10.000 contos. No entanto as
complicações tardias observadas com esta terapêutica reduz o
número de QALYS em 200.

Donde:

Terapêutica C: -10.000 contos / - 200 QALYs = + 50 contos por


QALY

441
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Custos
70.000

Aumento Custos Aumento Custos


Diminuição Melhoria de vida Aumento Melhoria de vida
A

10.000

-1.000 -200 200 1.000


QALYs
C B
- 10.000

Diminuição Custos Aumento Custos


Diminuição Melhoria de vida Diminuição Melhoria de vida

- 70.000

Podemos observar através da figura que as terapêuticas A e C


têm o mesmo custo-efectividade.

As razões custo-efectividade são medidas pelo pendente das


linhas que unem determinada terapêutica e o ponto zero.

Com base no gráfico é possível analisar as quatro hipóteses


possíveis. Qualquer terapêutica que se localize no quadrante
superior esquerdo é para não ser utilizada, visto que corresponde
a diminuição de qualidade de vida.

As que se localizarem do lado direito são positivas, embora com


conceitos distintos. As do quadrante superior caracterizam-se por
aumento da qualidade de vida, embora com mais custos. As do

442
Custo-efectividade

quadrante inferior correspondem ao ideal, porque são efectivas


em termos de QALYs com menos custos.

No entanto se reportarmos à aplicação do custo-efectividade


podemos obter as mesmas cifras embora com conceitos
diferentes.

No exemplo citado, podemos verificar que as terapêuticas A e C


apresentam as mesmas razões, embora no caso de C haja
economia à custa da perda de QALYs.

Este exemplo tem como objectivo alertar para a necessidade de


interpretar correctamente o conceito custo-efectividade.

443
Estratégias das medidas preventivas

Introdução
A importância da epidemiologia está ligada à história da medicina
e da saúde pública. Sendo a medicina preventiva uma das quatro
formas de actuação médica, torna-se indispensável referir as
principais estratégias preventivas, a fim de evitar conflitos ou
fundamentalismos, ou má interpretações com todas as
consequências que daí podem advir para a comunidade.

A prevenção é uma disciplina que “exige” bastantes


conhecimentos epidemiológicos. Para ilustrar a sua importância,
socorremo-nos de um caso particular de prevenção: a prevenção
das doenças cardiovasculares.

Uma breve análise da história da medicina permite-nos apreciar


diferentes fases na sua evolução.

Durante muito tempo foi influenciada pelo pensamento de


Aristóteles e pelo escolasticismo da Idade Média, os quais com os
seus conceitos de hierarquia de ordem e de causalidade
impediram o progresso científico nesta área, mesmo na época em
que a astronomia e a física receberam um forte impacto,
motivado pela revolução científica do séc. XVII em que o espírito
newtoniano e galilaico se impuseram como determinantes do
futuro da humanidade.

Quando os princípios estruturalistas e de causalidade alcançaram


a medicina (um pouco tardiamente), foi possível a
Notas e Técnicas Epidemiológicas

individualização das doenças e a partida para a epopeia do estudo


das causas.

Há cerca de 125 anos foi introduzida nos EUA por Oliver Holmes
uma posição nihilística relativamente à actuação da medicina que
se caracterizava pela aplicação de terapêuticas perigosas que iam
desde as violentas sangrias às purgas e uso de substâncias
tóxicas, cujos efeitos eram mais perniciosos do que benéficos.
Não fazer nada era mais útil do que as tradicionais atitudes, que
foram objecto de chacota e de críticas literárias, passando o
médico a constituir o objecto central de ridículo e a medicina
sinónimo de charlatanice.

No princípio deste século os médicos disponham de limitadas


opções terapêuticas relativamente eficazes. Praticamente o
arsenal terapêutico resumia-se à digitalina e à morfina. Neste
período, foi dada prioridade ao reconhecimento e estudo das
doenças e à analise da história natural da doença.

Rapidamente apareceu uma nova classe de médicos com


capacidade de diagnosticar e interpretar o sofrimento humano,
mas sem grande possibilidades de intervenção. Curiosamente
este período colocou a profissão médica no auge do respeito e da
admiração.

Deste modo, deixou de ser considerado como charlatão e adquiriu


o estatuto do mais nobre e respeitado dos profissionais, não
obstante as limitadíssimas capacidades de intervir e modificar o
curso natural de muitas doenças. A literatura e a pintura
descrevem de uma forma sublime este quadro. Aceitava-se

446
Estratégias medidas preventivas

fatalmente o destino mas com a presença “tranquilizadora” do


médico.

As descobertas na área da farmacologia no período pós guerra,


foram tão súbitas e tão brutais que desde logo se pensou que
rapidamente se descobririam os meios para tratar todos os males.

O respeito naturalmente aumentou, mas mesmo assim não


deixou de ser acompanhado de um certo grau de desilusão.

Paradoxo da revolução médica


Estamos perante um paradoxo da revolução médica.

A medicina científica é cada vez mais poderosa e, no entanto,


podemos observar um relativo descrédito junto das comunidades,
o que determina um crescendo das medicinas ditas alternativas e
mesmo de seitas religiosas que num revivalismo dos princípios já
explorados por Mesmer no século XVIII - prometendo a cura
imediata para muitas doenças - permite-nos concluir que se
mantêm inalterável a proporção de pessoas pouco esclarecidas ao
longo dos séculos.

A razão de ser desta introdução, prende-se em certa medida


como uma tentativa de explicação do relativo insucesso da
medicina preventiva.

Prevenção
A prevenção utiliza basicamente dois tipos de medidas: colectivas
e individuais.

447
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Algumas medidas só podem ser implementadas à escala geral,


como é o caso da prevenção ambiental. Estas acções não
dependem da vontade individual.

Quando as medidas preventivas são aplicadas a nível individual,


tornam-se de um modo geral ineficazes, já que somente irão
beneficiar uma pequena minoria. Por outro lado a falta de
personalização das medidas preventivas, impede frequentemente
a mudança do curso de uma doença. As pessoas são de um
modo geral renitentes a adaptarem-se a novos comportamentos,
desde que não “sintam” na própria pele ou na dos familiares e
amigos as consequências de hábitos e estilos de vida perigosos.

Os seres humanos são geralmente motivados pelos benefícios


visíveis, frequentes e precoces. Os benefícios na saúde raramente
preenchem estes requisitos. Como grande parte da patologia
humana assenta em fenómenos sociais e psicológicos, não é difícil
descortinar o crescente desenvolvimento de actividades pseudo-
religiosas e pseudo-médicas que ofereçam curas certas e
imediatas.

As doenças cardiovasculares constituem uma das formas mais


eficaz e frequente de matar um indivíduo.

A história da epidemia das doenças cardiovasculares remonta aos


princípios deste século e constitui um paradigma dos distúrbios da
cultura humana, a par de outros tais como a Peste na Idade
Média ou a SIDA dos nossos dias.

As epidemias aparecem e, frequentemente desaparecem, sem


deixar traços, sempre que ocorre um novo período cultural.
Muitas vezes o esclarecimento das causas aparece tardiamente

448
Estratégias medidas preventivas

ou mesmo após o seu eventual “apagamento” ou


“desaparecimento”.

É interessante verificar actualmente um decréscimo das doenças


cardiovasculares, apesar da ignorância que ainda circula ao redor
da sua génese.

Prevenir constitui a forma mais elegante de lutar contra a doença.


Ser-se saudável e manter-se nesta situação o máximo de tempo
possível, constitui o denominador comum a qualquer habitante
deste planeta, independentemente das suas características
biológicas e culturais.

A prevenção socorre-se de dois argumentos: o económico e o


humanitário. O primeiro está bastante disseminado, ou seja a
doença motiva incapacidade e os custos dos cuidados médicos
são elevados, logo prevenção pode poupar dinheiro.
Aparentemente estamos perante um argumento interessante, só
que não é verdadeiro. Um sucesso implica frequentemente um
adiamento do problema.

Deixar de fumar reduz os riscos de doença isquémica coronária


em qualquer idade, mas os ex-fumadores irão viver mais e
muitos irão sofrer doença isquémica na velhice. Estamos perante
um paradoxo: embora o tabaco provoque enfartes do miocárdio,
os não-fumadores sofrerão eventualmente mais enfartes. Daqui
se pode inferir que os custos correspondentes são adiados e não
evitados.

O investimento na prevenção de determinadas situações tais


como acidentes de tráfico e SIDA é economicamente desejável

449
Notas e Técnicas Epidemiológicas

mas apenas até cerca dos 50 anos. “A partir desta idade o doente
mais barato é um doente morto” (Geoffrey Rose).

A noção economicista em termos de prevenção é válida quando


relacionada com as crianças e adultos. A partir dos 50 anos as
medidas preventivas são anti-económicas (porque aumentam a
sobrevivência).

O argumento humanitário de que ter saúde é melhor do que estar


doente ou morto é suficiente e constitui o único argumento real
da medicina preventiva.

Raciocínio dicotómico
Um dos grandes problemas que caracteriza o pensamento médico
baseia-se no facto de utilizar o raciocínio dicotómico; “ter ou não
ter a doença”.

George Pickering afirmou em 1954 que a distinção entre doença e


saúde é um artefacto médico.

As doenças e os seus factores de risco são fenómenos


quantitativos contínuos e não categoriais.

O fenómeno hipertensão arterial foi utilizado como paradigma


desta nova visão, extensível a todos os domínios da medicina.

A natureza confronta-nos com um processo continuum e não


como uma dicotomia. Claro que há excepções, mas são muito
poucas.

A definição de um caso é perfeitamente compreensível e


desejável. Só que aquilo a que muitas vezes chamamos

450
Estratégias medidas preventivas

diagnóstico é, pura e simplesmente a selecção de um caso para


tratamento e não propriamente uma doença.

Na comunidade o que não “se vê” é muito mais importante do


que aquilo que vemos.

É o caso da doença coronária: somente uma pequena proporção é


diagnosticada. O que não se vê não é necessariamente tratável,
mas pode ser prevenido.

O facto de a hipertensão ter sido definida com base em critérios


padronizados, originou que fossem salvas muitas vidas, mas
também provocou uma sensação de bem-estar e de segurança
entre os “não-hipertensos”. Conceito falso, porque existe uma
relação contínua entre as duas variáveis. Sendo assim as pessoas
“normotensas” acabarão por contribuir com mais acidentes
cardiovasculares do que os indivíduos de alto risco.

Este conceito aplicado à pressão arterial é igualmente extensível


ao colesterol e a outros factores de risco.

Paradoxo da prevenção
Todos já ouviram falar do paradoxo da prevenção.

O paradoxo da prevenção é uma realidade que merece ser


analisada.

Uma medida preventiva oferece grandes benefícios à


comunidade, mas oferece pouco a nível individual.

O facto de um fumador de meia-idade desistir ou não de fumar


influencia as possibilidades de estar vivo nos próximos 20 anos
em menos de 10%.

451
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Em epidemiologia damos muita atenção ao seguinte axioma: “


um grande número de pessoas expostas a um pequeno risco pode
originar mais casos do que um pequeno número exposto a um
risco elevado”.

De um modo geral o interesse colectivo sobrepõe-se aos


interesses individuais.

No caso da colesterolemia, o interesse é muito mais importante


nas pessoas que apresentam cifras pouco elevadas, do que nas
que apresentam valores altos.

Estratégias da prevenção
Sendo a doença um fenómeno pessoal e não colectivo, obriga-nos
a evitar o conjunto de infortúnios individuais e a acreditar que a
acção preventiva deverá atingir os indivíduos em risco. Estamos
perante a estratégia de alto risco.

A estratégia de alto risco permite a identificação dos que


necessitam cuidados especiais.

A prevenção pode revestir duas formas: controlo do nível de


exposição e providenciar medidas contra as agressões. A
motivação constitui um dos principais pilares da estratégia de alto
risco.

As medidas preventivas exigem um grande esforço de


actualização e de informação sobretudo o mais personalizado
possível.

Há exemplos na área da prevenção das doenças cardiovasculares


em que o afrouxamento da vigilância e aconselhamento dos
indivíduos (muitas vezes por motivos financeiros) resulta numa

452
Estratégias medidas preventivas

regressão aos “bons velhos hábitos”, acompanhado da natural


recrudescência da morbimortalidade cardiovascular.

Provas evidentes de efeitos positivos e de regressão, consoante


se actua ou não.

Relativamente aos principais factores de risco cardiovascular, não


há hoje grande discussão.

Ninguém contesta a natureza plurifactorial da doença coronária.


São conhecidos até à data cerca de 300 marcadores de risco.

Marcadores de risco
Esta expressão, “marcador de risco” foi utilizada pela primeira vez
por James McCormick em vez do tão propalado factor de risco.

Mas quais as diferenças entre os conceitos de “marcador” e


“factor” de risco?

Para nós epidemiologistas, um factor de risco é um factor que


está associado com uma alteração provável da doença.

Como muitos dos factores de risco não implicam uma associação


causal, e podem eventualmente induzir em erro os leitores é
aconselhável a designação de marcadores de risco.

A razão de ser desta breve descrição prende-se com o tamanho


actual da lista de marcadores de risco que aumenta de dia para
dia. Assim, além dos clássicos como: tabaco, hipercolesterolemia,
hipertensão, obesidade, diabetes, níveis baixos das HDL, níveis
elevados das LDL, citamos outros tais como diuréticos tiazídicos,
não beber bebidas alcoólicas, não fazer exercício, não fazer a
sesta, não comer peixe (sobretudo bacalhau), viver em países

453
Notas e Técnicas Epidemiológicas

anglo-saxónicos, ter o inglês como língua materna, sofrer de


ansiedade fóbica, ser escrupuloso quanto ao cumprimento de
horários, não beber óleo de fígado de bacalhau, ressonar, ser
careca, etc.. Não esquecer que a idade, a história familiar e o ser-
se pobre, são factores com associações muito importantes.

O elevado número de marcadores de risco que de ano para ano


vêm aumentando é fonte de indústrias muito lucrativas por um
lado, e de um real monumento à nossa ignorância, por outro.

Dizer que uma doença tem uma origem plurifactorial é muito útil,
mas não passa de uma ilusão. Todas as doenças são o resultado
da interacção de muitos factores.

A designação multifactorial ou plurifactorial quando aplicada à


etiologia de uma doença é uma tautologia e não é mais do que
um sinónimo de desconhecimento, constituindo o eufemismo
mais utilizado para descrever a nossa ignorância.

Como epidemiologistas, partilhamos da posição de McCormick


quando afirma que a epidemiologia das doenças crónicas atingiu o
fim da estrada. A epidemiologia nunca dará respostas etiológicas
acerca das doenças crónicas. A única coisa que pode fazer é
sugerir hipóteses, que deverão ser analisadas e aprofundadas a
nível da biologia molecular.

A abordagem epidemiológica é, de facto, ingenuamente simples.


Aquilo que faz é obrigar-nos a compreender o que é realmente
complexo e difícil.

454
Estratégias medidas preventivas

Por isso o futuro da compreensão da doença coronária não


dependerá dos estudos epidemiológicos, mas sim dos estudos
laboratoriais.

Estamos perante uma situação curiosa e até mesmo perigosa. O


conhecimento dos marcadores de risco providencia uma
estratégia para a prevenção, quando a causa da doença é
desconhecida.

Factores de risco das doenças cardiovasculares


A análise dos principais factores de risco: tabagismo, hipertensão
arterial e hipercolesterolemia permite-nos efectuar algumas
considerações sobre as estratégias de prevenção cardiovascular.

Tabaco
Quanto ao tabaco, hoje não temos dúvidas sobre os efeitos na
saúde humana.

Em 1964 o célebre relatório norte-americano determinou de uma


forma insofismável que o tabaco é prejudicial para a saúde.

Há estratégias e políticas destinadas a combater o tabagismo. Os


esforços para abolir o tabaco não são de hoje. Em 1963 o Sultão
Murad IV de Constantinopla decretou a pena de morte para os
fumadores: enforcamentos, esquartejamentos, esmagamentos
das mãos e pés, entrega dos fumadores aos inimigos. Apesar de
tudo, os seus súbditos continuaram a fumar.

Mas não foi só Murad IV o único a combater os fumadores. Talvez


tenha sido o mais violento de todos. MiKhail Feodorovich (o
primeiro dos Romanov) proibiu o consumo de tabaco, estabeleceu

455
Notas e Técnicas Epidemiológicas

a aplicação de diversos castigos e de elevados impostos. Mas


mesmo assim os moscovitas eram no final do século XVIII os que
fumavam mais e pagavam o tabaco mais caro da Europa.

Na Inglaterra civilizada de Jaime I foi decretado que o uso do


tabaco era imoral e não saudável.

Os americanos com as suas raízes puritanistas efectuaram


campanhas antitabágicas entre 1890 e 1920 e cada estado tinha
as suas leis. A legislação opressiva norte-americana foi abolida ou
não respeitada a partir da I Grande Guerra.

O que é certo é que em 400 anos de história, as pessoas


utilizaram o tabaco e continuarão a usá-lo no futuro.

O “Muradismo” é uma atitude que não beneficia a estratégia de


luta contra o tabaco, podendo mesmo ser perigosa.

Nas sociedades humanas há um esforço para informar as pessoas


sobre as consequências do tabagismo. Os que continuam a fumar
fazem-no por opção pessoal consciente. Tem que haver uma
filosofia em que o equilíbrio entre os riscos potenciais para a
saúde com a liberdade de escolha constitua o direito fundamental
do indivíduo à autodeterminação.

Parece-nos que transformar um fumador em marginal não será a


forma mais correcta de combater esta epidemia.

Como é do conhecimento público, verifica-se nalgumas


sociedades mais desenvolvidas, uma verdadeira marginalização,
nomeadamente no Serviço Nacional de Saúde da Grã-bretanha,
com ameaças de abandono de milhares de doentes fumadores e
bebedores que comprometam a sua saúde, assim como a recusa

456
Estratégias medidas preventivas

de intervenções cirúrgicas ( a favor dos não bebedores e não


fumadores).

Debates televisivos e comentários jornalísticos abordam esta


temática, em que o conceito moralista começa a dominar as
opiniões, inclusive a dos próprios médicos.

Os argumentos são vários: excesso de trabalho, doentes que


necessitam de serem tratados mais do que uma vez em
detrimento de outros, que podiam beneficiar de acções
terapêuticas.

Claro que estes conceitos puritanistas, acabam por transbordar


para a opinião pública e não é de admirar que começam a
organizar-se associações de não fumadores e de não bebedores a
exigirem prioridade nas terapêuticas e hospitalizações. E, como
os recursos humanos e os financiamentos são curtos, há um real
perigo de divisão social com os defensores dos direitos do
consumo de tabaco a saírem a terreiro e a extremarem posições.

A melhor estratégia consiste em conhecer o porquê e o como as


pessoas começam a fumar e adequar as medidas mais
convenientes para contrariar este fenómeno.

São precisos cerca de dois anos para que um indivíduo passe de


fumador ocasional a fumador dependente.

Toda a estratégia deverá incidir sobre os adolescentes. A


probabilidade de que um indivíduo se torne fumador a partir dos
18-20 anos é muito baixa, pelo que a estratégia passa
basicamente por um grupo etário bem definido (12-18 anos).

457
Notas e Técnicas Epidemiológicas

As medidas repressivas deverão ser evitadas, possibilitando aos


fumadores, locais em número e em qualidade, adequados ao seu
comportamento, na base de que por um lado é impossível a sua
erradicação e, por outro, deverão respeitar os direitos dos não
fumadores.

Quanto aos avisos de perigo nas embalagens de tabaco, podemos


afirmar que além de qualquer efeito positivo, poderão ter efeitos
paradoxais. Como se demonstra com a ideia de um fabricante de
cigarros, cuja marca passou a ser designada por “Death”,
utilizando como imagem de marca uma caveira com duas tíbias.
Atingem vendas muito significativas entre os adolescentes.

A estratégia dos impostos como limitação à venda do tabaco é


benéfica até um certo valor, sobretudo para os governos que no
caso português, chega a arrecadar 140 milhões de contos por
ano!.

Educar os jovens e aconselhar os indivíduos a deixarem de fumar


é muito importante.

Estudos norte-americanos descritos por Geoffrey Rose afirmam


que a principal razão para os americanos deixarem de fumar foi a
conselho do médico assistente.

O peso desta acção é muito importante e deveria ser incentivada.


O que é pena é que, proporcionalmente, os médicos portugueses
fumem mais do que a população em geral.

Colesterol
A hipercolesterolemia é um factor major. Atinge muitas pessoas e
com intensidade diferentes. A genética tem um “peso” bastante

458
Estratégias medidas preventivas

acentuado no perfil lipídico. O potencial genético aguarda


naturalmente as influências do meio ambiente para se exprimir.

A redução da colesterolemia acompanha-se da redução doença


coronária. Mas em que medida? Há necessidade de rastrear todas
as pessoas? Ou devemos seleccioná-las de acordo com o risco?
Os rastreios sistemáticos que são feitos trarão benefícios ou
prejuízos?

Se a percentagem de hipercolesterolemia for da ordem dos 20%


nos homens com idades compreendidas entre os 25-34 anos é
necessário rastrear 21.100 pessoas para prevenir uma morte em
cinco anos. Além disso, é necessário que as 4.200 pessoas
identificadas como hipercolesterolemiantes adiram ao tratamento.

No caso de estarmos perante o sexo feminino e para o mesmo


grupo etário, agora com uma prevalência de hipercolesterolemia
(>6,5 mmol/l) da ordem dos 15%, o universo a rastrear rondará
as 137.300 mulheres, das quais 20.600 deverão sujeitar-se a
tratamento para prevenir um óbito dentro de cinco anos.

São os grupos etários dos 45-54 e dos 55-64 anos os que


eventualmente beneficiam mais com as medidas de rastreio e
terapêuticas.

Os diferentes consensos apontam para cifras de colesterolemia


que não ultrapassem determinados limites. Tais atitudes
baseiam-se nos factos de que a valores baixos, corresponde um
risco menor. O problema coloca-se na fasquia para o início da
terapêutica farmacológica. Esta pode variar de consenso para
consenso e médico para médico.

459
Notas e Técnicas Epidemiológicas

O clínico na sua abordagem, deverá tomar em linha de conta


muitos factores e sobretudo não dar ao paciente, a confiança total
de que o facto de ter o colesterol normal, lhe permita continuar
com os mesmos hábitos.

Assim, perante uma cifra normal de colesterol, o médico deverá


dar a conhecer tal facto ao doente, não esquecendo no entanto,
que tal não significa que o doente possa comer à vontade tudo
aquilo que habitualmente faz parte dos seus hábitos alimentares.
Ao afirmar a “normalidade” deverá recomendar cuidados
especiais no sentido de moderar os seus hábitos, aconselhando
que coma menos gorduras, já que a tendência é o aumento
progressivo com a idade. O excesso de tranquilidade é perigoso,
assim como a rotulagem rápida e intempestiva. Afinal o senso
clínico deverá prevalecer em todos os actos, sobretudo quando se
trata de cuidados de medicina preventiva.

A genética e os hábitos alimentares influenciam de forma


significativa a colesterolemia.

Um dos grandes problemas relacionados com a terapêutica da


hipercolesterolemia prende-se com a definição de normalidade.
As numerosas reuniões de consenso tem tido a preocupação de
definir os limites. Limites baixos não significam necessariamente
tratamento. Os limites recomendados correspondem aos riscos
mais baixos de sofrer complicações cardiovasculares.

Paralelamente a esta observação, há que ter em conta as


variações dos lípidos e as consequências das terapêuticas a longo
prazo.

460
Estratégias medidas preventivas

Pressão arterial
A hipertensão arterial é um importante factor de risco
cardiovascular.

A associação entre a hipertensão arterial e o consumo de sal é


conhecido desde há muitos anos.

A pressão arterial é o resultado de influências multigénicas


(relação entre “nature” e “nurture”).

Na longa história do homem que se arrasta por alguns milhões de


anos, podemos afirmar que os primeiros homens não estavam
expostos a adicionar sal nos alimentos, nem a beber álcool ou
dados a excessos calóricos.

Tendo os primeiros homens surgido em África, e sendo este


continente pobre em sal, determinou uma curiosa adaptação, que
permanece, consistindo numa conservação fisiológica de
quantidades mínimas de sal e a sua retenção.

A indústria do sal é muito recente. Tem apenas seis a oito mil


anos. O aparecimento muito tardio na evolução humana, não
permitiu uma adaptação genética por selecção natural: ou seja a
hipertensão que habitualmente surge após o período reprodutivo
impossibilitou naturalmente a “eliminação” dos hipertensos por
selecção natural.

Desta forma, uma percentagem muito elevada da população é


sensível aos efeitos hipertensivos do sal alimentar e por tal
motivo, estão mais sujeitos às complicações.

A estratégia neste caso passaria por uma redução da ingestão do


cloreto de sódio. De toda a população?

461
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Somos de parecer que não devemos sujeitar todos às mesmas


regras. Mas antes de abordarmos as razões, não podemos deixar
de afirmar que uma das principais consequências da hipertensão
arterial são as doenças cerebrovasculares.

Tal como vem acontecendo para a doença coronária, tem sido


observado uma diminuição temporal em muitos países.

A taxa de declínio é sobretudo expressiva nos EUA desde 1900 a


1920, com aceleração a partir de 1974. Fenómeno idêntico tem
sido observado no Reino Unido, Japão, Finlândia e Suécia, embora
mais recentemente.

Quais as razões para o declínio temporal? Melhoria da


sobrevivência após os acidentes vasculares cerebrais, redução de
tendência para acidentes menos graves e declínio da incidência.

Quanto a esta última, muitos apontam como principal razão o


tratamento da hipertensão arterial, a redução de exposição a
factores de risco associados à hipertensão arterial, a redução da
exposição a outros factores de risco e a uma “competição” com o
risco de doença isquémica coronária.

É pouco provável que a responsabilidade seja só da hipertensão


arterial.

O declínio dos acidentes vasculares cerebrais começou em 1900 e


o tratamento “eficaz” da hipertensão arterial data apenas de
1960.

De facto alguns efeitos ocorreram, sobretudo a partir da década


de setenta.

462
Estratégias medidas preventivas

O tratamento da hipertensão arterial moderada e/ou grave


produz benefícios substanciais para alguns, mas poucos e não
afecta praticamente a mortalidade e a morbilidade em geral

Em contrapartida o tratamento da hipertensão ligeira oferece


importante benefícios comunitários, mas pouco benefícios a nível
individual.

Estamos perante duas estratégias: estratégia de alto risco e


estratégia de baixo risco. A segunda é a mais importante em
termos globais.

A meta-análise realizada por McCormick sobre ensaios de


intervenção em múltiplos factores de risco revela aspectos
positivos. Quase todos os estudos foram efectuados em homens
de meia-idade nos quais os riscos de doença coronária é pequeno
(embora maior do que nas mulheres).

Através da meta-análise sobre os ensaios de intervenção sobre o


colesterol, podemos observar que houve um ganho de oito óbitos
em 115.176 anos-pessoa, mas no total dos óbitos houve um
agravamento de mais 35 óbitos!

A ignorância a propósito dos meios de prevenção, aconselhados e


divulgados pela imprensa médica e não médica pode ser
perigosa, à excepção dos proventos económicos para as
diferentes indústrias: comunicação social alimentar, farmacêutica
e pseudo-tecnológica entre outras.

A disseminação da doença coronária como epidemia é de tal


ordem conhecida pela população em geral que gerou o conceito
de que morrer de doença coronária é fruto do pecado. Pecado de

463
Notas e Técnicas Epidemiológicas

fumar, pecado de comer gorduras, pecado de comer sal, pecado


de não ter uma vida saudável de acordo com certos princípios
comportamentais, ditados muitas vezes por interesses
puritanistas que merecem ser revistos.

Os prevenciologistas que banalizam certos conceitos, acabam por


ser mais prejudiciais do que benéficos à sociedade em que
estamos inseridos. Não podemos esquecer que aquilo que
fazemos no nosso dia a dia é adiar a morte, porque como todos
sabem esta não é prevenível!

Não morrer de doença coronária é aumentar a possibilidade de


morrermos por outras causas. E as alternativas não são muito
atraentes.

Geneticamente somos portadores de características com as quais


devemos viver e tirar partido da existência, numa perspectiva não
totalmente hedonista, mas num hedonismo modificado e
socialmente aceite, de forma a podermos apreciar a única vida
que cada um possui.

Medicina preditiva
A medicina preditiva cujo nascimento anunciado começa a dar os
primeiros passos irá possibilitar realçar e obter partido da
interacção entre o meio ambiente interno e externo, fornecendo a
cada um de nós, ou melhor a cada um dos indivíduos das
próximas gerações, a probabilidade de fugir ou não à doença e
invalidez prematura, deslocando para as últimas semanas de uma
longa e desejável existência, o espectro do sofrimento que
sempre caracterizou a humanidade.

464
Estratégias medidas preventivas

Mas o que é a Medicina Preditiva? Segundo Jacques Ruffié


“consiste em prever desde a nascença, ou mesmo antes, as
situações de risco que um indivíduo pode conhecer no decurso da
sua existência, segundo duas séries de factores: a constituição do
seu património hereditário, que pode estar mais ou menos apto a
responder a certas condições do ambiente e os tipos de
exigências e ou de agressões que ele sofrerá por parte do
ambiente e a possibilidade de fazer face segundo as suas aptidões
inatas”.

É preciso excluir todas as doenças já constituídas, quer sejam


detectáveis a nível molecular ou macroscópico.

Contêm sempre uma parte aleatória, porque ela está


condicionada por duas séries de factores: genéticos e ambientais
que se podem cruzar ou não.

No caso concreto das doenças cardiovasculares podemos


perguntar o que sabemos do genoma humano quanto à existência
de genes que regulam a relação entre o sal, o álcool, o tabaco, o
stress, os lípidos com a hipertensão arterial e a aterosclerose
entre outros? Muito pouco ainda!

A partir do momento em que se conheça o perfil genético de um


indivíduo, é possível evitar a exposição aos diferentes factores de
risco, evitando a expressão fenotípica desta interacção. Claro que
esta estratégia ajudar-nos-á a responder às seguintes perguntas:
devemos submeter a “ comunidade” às mesmas regras? ( não
comer sal?; não beber álcool?; não ser sedentário?; não fumar?;
não....?). A resposta será NÃO!

465
Notas e Técnicas Epidemiológicas

Estratégias de prevenção
A prevenção exige estratégias correctas, baseadas em critérios
científicos, respeitadores da cultura e dos direitos dos cidadãos e
deverá insinuar-se de uma forma lenta e segura e não
imediatista, de modo a evitar histerismos colectivos, susceptíveis
de causar mais prejuízos do que benefícios.

A verdadeira prevenção deverá ser feita a longo prazo, sem


grandes sobressaltos, acabando por identificar-se com os hábitos
e estilos de vida de uma comunidade, sabendo de antemão da
impossibilidade de todos aderirem, já que a principal
característica das espécies é a sua diversidade biológica, que no
caso do homem é complicada pela diversidade cultural. Assim,
temos que fatalmente aceitar determinados tipos
comportamentais, com as inevitáveis consequências.

Os prevenciologistas deverão marcar certos limites como


objectivos a atingir e considerá-los como aceitáveis de forma a
evitar que se tornem sinónimo de fundamentalistas com todo o
descrédito e contra reacção que naturalmente desencadeiam.

466
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471
Índice

Capítulos
1.Investigação 1

2.Análise histórica de alguns estudos 19

3.Epidemiologia 49

4.Saúde Comunitária 57

5.Saúde Pública – Da Filosofia à Prática 71

6.Maria Tifóide 81

7.Principais etapas da investigação 85

8.Relatório final 99

9.Ética da Investigação - Código de Nuremberga 107

10.Fraude científica 119

11.Epidemiologia: fonte de conhecimento e geradora


de confusões 131
12.Principais estudos epidemiológicos 143

13.Epidemiologia clínica 199

14.Epidemiologia social - novos conceitos da epidemiologia


da aterosclerose 213

15.Comunicação e saúde 233

16.Indicadores de saúde 251

17.Rastreios 269
Notas e Técnicas Epidemiológicas

18.Padronização 275

19.Testes de diagnóstico 289

20.Riscos 295

21.Risco aceitável 309

22.Intervalos de confiança 315

23.Significância médica e Significância estatística 321

24.Causalidade 325

25.Viés e variáveis de confundimento 333

26.Amostragem 345

27.Distribuição binomial 357

28.Probabilidades 365

29.Análise de sobrevivência 383

30.Meta-análise 391

31.Métodos quantitativos para identificar


agrupamentos temporo-espaciais 401
32.Discrepância nas medições (análise da concordância
entre dois métodos) 413
33.Custo-efectividade 431

34.Estratégias das medidas preventivas 443

35.Bibliografia 465

36.Índice 471

472

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