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QUE ESTATUTO PARA AS FAMÍLIAS?

Francisco Vitoriano da Silva Júnior

RESUMO

É inquestionável a importância da família na formação humana. Nesse


sentido, justifica-se o estudo do tema em face da tramitação de dois
projetos de lei – PLs a respeito do conceito de família no Congresso
Nacional. O primeiro deles, em curso na Câmara dos Deputados,
intitulado Estatuto da Família (PL n.º 6.583/2013), procura reduzir o
alcance do conceito de família aos casamentos e às uniões estáveis
entre homens e mulheres e seus filhos. O outro é o Estatuto das
Famílias (PL n.º 470/2013), que está em curso no Senado Federal, cuja
feitura foi de responsabilidade dos juristas do Instituto Brasileiro de
Direito de Família – IBDFAM, que traz uma definição ampla de
família. O principal objetivo desta pesquisa é verificar a
constitucionalidade de ambos os PLs no que concerne ao seu escopo,
qual seja, delimitar os arranjos familiares. Para tanto, empregou-se o
método de pesquisa bibliográfica para desenvolver explanações sobre
o Direito das Famílias, acentuando os modelos familiares
contemporâneos delineados pelas teorias publicadas na doutrina
pertinente ou em decisões judicias que já versaram acerca do assunto e
cujo lastro é a Carta Cidadã.

Palavras-chave: Direito das Famílias. Estatuto das Famílias.


Constitucionalidade.

“Toda a doutrina social que visa destruir a família é má, e para mais inaplicável. Quando se
decompõe uma sociedade, o que se acha como resíduo final não é o indivíduo, mas sim a
família.”
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(Victor Hugo)

1 INTRODUÇÃO

A existência de pais ou mães solteiras, filhos com duas mães e um pai, duas mulheres
mães de uma criança, famílias multiparentais, coabitação de avós e netos e irmãos unilaterais
patenteia a evolução que sobreveio às famílias brasileiras nas últimas décadas.
Nessa toada, são incontestáveis as alterações por que passaram as famílias. Essa série
de mudanças, todavia, em tempo anterior, foi bem vagarosa, mas, em anos recentes, propiciou
uma torrente de novas questões para o direito das famílias.
Desde certo tempo, lastreado pelo artigo 203, I, da Constituição da República
Federativa do Brasil – CRFB, o Poder Judiciário reconhece e protege as várias espécies de
família.
Fatos como ter um parente homossexual, criar um filho na ausência do pai ou ser
divorciado, antigamente tabus, nos dias atuais, já não são tão relevantes.
O enfoque dá-se, então, no afeto, na socioafetividade e na convivência.
Hodiernamente, o amor que fundamenta uma família sobrepõe-se a qualquer documento,
porque amor familiam facit.
Nesse sentido, justifica-se o estudo do tema em face da tramitação de dois projetos de
lei – PLs a respeito do conceito de família no Congresso Nacional.
O primeiro deles, em curso na Câmara dos Deputados, intitulado Estatuto da Família
(PL n.º 6.583/2013), no singular, procura reduzir o alcance do conceito de família aos
casamentos e às uniões estáveis entre homens e mulheres e seus filhos.
O outro é o Estatuto das Famílias (PL n.º 470/2013), no plural, no Senado Federal,
advindo de proposta encetada pelos juristas que fazem parte do Instituto Brasileiro de Direito
de Família – IBDFAM, que, em muitos dispositivos, traz uma definição ampla de família.
O principal objetivo desta pesquisa é verificar a constitucionalidade de ambos os PLs
no que concerne ao seu escopo, qual seja, delimitar os arranjos familiares. Para tanto,
empregou-se o método de pesquisa bibliográfica para desenvolver explanações sobre o
Direito das Famílias, acentuando os modelos familiares contemporâneos delineados pelas
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teorias publicadas na doutrina pertinente ou em decisões judicias que já versaram acerca do


assunto e cujo lastro é a Carta Cidadã.
É, nesse espírito, que o primeiro tópico se ocupa das espécies de família, da sua
evolução e da influência religiosa na sua formação, além do entendimento do Poder Judiciário
sobre o referido tema. Já o segundo tópico visa examinar o teor dos PLs e analisar a sua
constitucionalidade. Nas conclusões, procede-se às sugestões atinentes.

2 A HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA BRASILEIRA

A evolução da família brasileira deu-se lentamente. Em idos tempos, a homens e


mulheres cabiam papéis diferenciados no seio familiar. Assim, aqueles sustentavam a casa, e
estas cuidavam do lar e dos filhos.
Considerada relativamente incapaz, a mulher precisava da autorização do cônjuge para
exercer atos da vida civil, como, por exemplo, trabalhar (DIAS, 2017a, p. 1). Além do que, o
regime de bens obrigatório era o da comunhão universal (DIAS, 2013, p. 44).
Com o advento do Estatuto da Mulher Casada, em 1962, esta passou a ter, ainda que
timidamente, alguns direitos, como o de exercer atividade remunerada independentemente do
consentimento do marido (DIAS, 2017a, p. 2).
Em 1977, o divórcio substituiu o desquite. No entanto, só era permitido divorciar-se
uma única vez, e, no casamento, era obrigatório o regime da comunhão parcial de bens. Aí já
se percebe a incipiência, mesmo que vagarosa, da evolução no âmbito familiar, ficando clara a
diferenciação e principalmente a mudança nos modelos familiares desde essa época (DIAS,
2013, p. 44).
Vencida tal sucinta contextualização histórica das vicissitudes da família brasileira,
impende levantar o seu conceito na contemporaneidade.

2.1 O conceito atual de família


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Durante muito tempo, o conceito de família esteve atrelada ao patriarcalismo, e, desse


modo, o pai era o meio de sustento familiar e o seu orientador. A fotografia da família
tradicional era composta, então, por pai, mãe, filhos, genros e netos.
A mudança nos arranjos familiares teve início com o modelo monoparental, surgido ao
entrar em debate na sociedade a questão feminina.
Felizmente, é consabido que, na atualidade, o modelo de família está sendo
modificado. São comuns, verbi gratia, famílias compostas por marido, mulher e filhos
comuns e de casamentos anteriores. Em sendo assim, percebe-se que há entre eles um vínculo
socioafetivo (LÔBO, 2011, p. 37), cuja existência não pode ser ignorada pelo ordenamento
jurídico pátrio.
É inquestionável também o alto índice de mães e até mesmo pais solteiros. Nota-se
ainda a formação de famílias com dois pais e duas mães, duas mães e um pai ou dois pais e
uma mãe, que não são agasalhados a lege por não se adequarem às instâncias tradicionais.
Embora tenha havido toda essa evolução no espaço familiar, foi apenas com a Lei n.º
11.340/2006 (Lei Maria da Penha – LMP) que o legislador brasileiro se preocupou em definir
o conceito de família, deixando claro que família é qualquer relação de afeto.
Perante isso, fica evidente que a família moderna deve se basear tanto no afeto quanto
na boa relação. Não importam mais os componentes da sua formação, mas sim o nível de
relacionamento entre os familiares (VILLELA, 1994, p. 645).
Obviamente, nem todos lidam bem com o fato de a nova família brasileira ter uma
formação plural e moderna. Dessarte, há de se vislumbrar a razão de tanta resistência de
grupos de pressão aos novos modelos de família. Nesse diapasão, o tópico seguinte discutirá
sobre a influência da religião na formação da concepção que as pessoas têm sobre as famílias.

2.2 A influência da religião na concepção da família

Em que pese vivermos num Estado laico, os valores cristãos ainda têm muita
importância no meio social. É, portanto, predominante o entendimento, entre esses religiosos,
de que o modelo tradicional de família é aquele cuja composição conta com pai, mãe, filhos e
irmãos bilaterais.
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Para os cristãos, o âmbito familiar e doméstico é a primeira igreja, aquela na qual se


nasce, e se recebem os ensinamentos sobre a religião e acerca do certo e do errado segundo a
concepção de mundo dos sectários de Jesus de Nazaré. Isso se queda muito claro, exempli
gratia, no Catecismo da Igreja Católica – CIC (IGREJA CATÓLICA, 2000, p. 455),
atentando-se apenas para a organização cristã com o maior número de membros.
Em virtude da perspectiva religiosa, a sociedade contemporânea discrimina certas
entidades familiares, pois a doutrina cristã enxerga o matrimônio como um sacramento que
tem como objetivo a procriação e o caracterizam como união indissolúvel.
Conforme a Bíblia, o livro sagrado para os cristãos, o objetivo divino para o
casamento é a procriação (Gn 1.28). Desse modo, muitas famílias contemporâneas são vítimas
de tratamento desigual e injusto por parte de clérigos e fiéis.
No entanto, a separação entre o Estado e a Igreja ensejou uma profunda evolução
social, e, com as mudanças, vários tipos de famílias surgiram, ainda que não houvesse
nomenclatura adequada para elas. Lutando, entretanto, pela manutenção do status quo, a
reação da religião em face do novo panorama social é sinônimo de discriminação,
especialmente quando se trata de relações e famílias homoafetivas (DIAS, 2005, p. 40).
Entretanto, a Igreja Católica Apostólica Romana – ICAR vem paulatinamente
modificando o seu posicionamento em relação à evolução dos modelos familiares. E isso é
constatável em face dos novos modos de interpretação do CIC levados a termo pelo Papa
Francisco.
Apesar de a ICAR manter uma doutrina flagrantemente preconceituosa em relação a
muitas das famílias contemporâneas, a forma de interpretar o mundo e transmitir a sua versão
a respeito dele aos fiéis passou por alterações. Senão, confiram-se o discurso favorável do
Sumo Pontífice ao batismo dos filhos de mães solteiras (TERRA, 2017) ou a sua fala na qual
reprovou a discriminação contra fiéis homossexuais (BERLINCK, 2017).
Ainda que, para a ICAR (IGREJA CATÓLICA, 2000, p. 451), o casamento signifique
união indissolúvel, é notória a participação de pessoas divorciados no seu corpo,
reconhecendo a própria instituição o grande número de crentes que transgrediram essa regra
eclesiástica.
Com as claves Sancti Petri já abrindo as suas portas, mesmo que com vagar, é mister,
todavia, que a sociedade brasileira, independentemente de princípios religiosos antiquados,
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mantenha uma posição de respeito para com os novos arranjos familiares, porque se poderá,
finalmente, afirmar em alto e bom som “Ita Deo placuit!”
Desse modo, no subtópico abaixo, são conceituadas e caracterizadas as novas formas
de família.

2.3 As espécies de família

A lenta evolução familiar no Brasil tem uma grande dívida para com o preconceito. E,
este, na maior parte das vezes, é fruto do desconhecimento de muitos sobre o que seja uma
família.
Ainda pela influência já ultrapassada da formação tradicional da família, é visível o
julgamento prévio a que se procede quando se se depara com uma estrutura familiar diferente.
Em razão do novo conceito mais extenso de família, par conséquent, não se devem
utilizar qualificativos discriminatórios, como marginais, informais ou extramatrimoniais, ao
se tratar dessas novas famílias (DIAS, 2013, p. 39). Dans ce sens, essa sobreposição de
elementos na estrutura familiar consagra a igualdade entre os filhos havidos fora do
casamento, defenestrando a regra is pater est quem nuptiæ demonstrant e, em efeito,
transmudando a convivência familiar, mormente no que se refere à ligação entre pais e filhos
e irmãos unilaterais (DIAS, 2013, p. 40).
A Lex Legum estabeleceu um rol de entidades familiares que engloba o casamento, a
união estável e a família monoparental (art. 226, §§ 1.º-4.º). Obedecendo ao animus
constitucional, aos poucos, o ordenamento jurídico brasileiro vem aceitando outros descritores
para o termo família, como, inter alia, recomposta, reconstituída ou pluriparental, anaparental
ou homoafetiva (CARVALHO, 2013, p. 7967). Concebe-se, portanto, a afetividade como o
cerne das relações familiares.
Dessarte, há mister de conceituar alguns dos modelos de famílias, desde aqueles mais
tradicionais até os contemporâneos.

2.3.1 Casamento
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De um modo geral, as pessoas estão acostumadas com as formalidades impostas pelo


Estado desde os tempos imemoriais (DIAS, 2013, p. 44). Por causa disso, raras vezes,
associam a palavra casamento a dois homens ou duas mulheres que tenham o objetivo de
formar uma família.
É fácil perceber que, por força dos costumes, é incomum a associação da palavra
família com o liame afetivo entre uma mãe solteira e o seu filho. E, nesse ínterim, práticas
consuetudinárias antigas impedem de enxergar o casamento na sua forma mais moderna.
En effet, o Estado, pondo-se de joelhos diante do poder da religião, impingiu ao
casamento a indissolubilidade e a obrigação da identificação familiar por meio do nome do
pater familias (DIAS, 2013, p. 44).
Entretanto, grandes foram as mudanças por que passou essa instituição, principalmente
no que corresponde à formação familiar. No presente, o casamento, como diversas outras
formas de constituição familiar, baseia-se no afeto e não tão somente no interesse estatal
conspurcado de mofo religioso.

2.3.2 União estável

Apenas com a promulgação da CRFB é que esse tipo de convivência recebeu a


proteção do Estado brasileiro. Desse modo, o reconhecimento da união estável como entidade
familiar e o seu resguardo pelo Direito positivo têm menos de três décadas (art. 226, § 3.º).
No entanto, houve resistência em atender às demandas constitucionais no âmbito do
Direito das Famílias (DIAS, 2005, p. 42).
De fato, o tema só foi abordado pelo Código Civil Brasileiro – CCB de 2002, que se
prestou a acrescer-lhe alguns caracteres para a sua identificação. Deu-lhe, então, o novo
Codex a configuração de uma união pública e duradoura com o objetivo de constituir família
(art. 1.723).
Em razão disso, quando duas pessoas de qualquer gênero mantêm uma relação
duradora, já existe uma família. Ou seja, independentemente da geração ou adoção de filhos
ou da celebração de casamento, a união estável é tipo de relação afetiva em que vivem
milhares de casais no país (DIAS, 2005, p. 48).
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In fine, o que importa para que exista uma família é sobretudo a afetividade que a
cerca, sendo relegadas todas as imposições estatais para que ela se constitua.

2.3.3 Família monoparental

Desde as épocas mais remotas, é possível perceber a existência da família


monoparental na nossa sociedade. No entanto, nessas situações, a mulher, que geralmente
tinha o poder familiar, era alvo de discriminação por ser mãe solteira.
Hoje, entretanto, a Carta da República estabelece que esse tipo de entidade familiar
pode ser formado por qualquer um dos pais e seus filhos (art. 226, § 4.º).
Os fatos que podem dar existência a essa espécie de formação familiar são a morte de
um dos genitores, a separação ou o divórcio ou até mesmo adoção realizada por pessoa
solteira (DIAS, 2013, p. 220). En conséquence, são óbvios a maior fragilidade e os encargos
multiplicados com o lar das famílias monoparentais (DIAS, 2013, p. 224).

2.3.4 Família multiparental, composta, pluriparental ou mosaico

Esse tipo de família é formado por elementos originários de outras famílias já


constituídas.
É amostra dessa espécie familiar o casal que se separa de fato ou se divorcia e, depois
disso, forma uma nova família com um novo cônjuge. Após essa segunda união, o casal, em
regra, tem filhos comuns, reunindo, assim, na mesma família, filhos da primeira e da segunda
união, sendo todos os filhos irmãos bilaterais ou unilaterais: são evidentes a sua estrutura
complexa e a multiplicidade de vínculo (DIAS, 2013, p. 56). É o caso também da convivência
dos familiares em linha colateral como uma família pluriparental (DIAS, 2017b).
De qualquer forma, a pluriparentalidade é um fenômeno decorrente do aumento de
divórcios e de novos casamentos (ALVES; CAVENAGHI; BARROS, 2010). Dessa forma,
não são escassas aquelas grandes famílias com pais, padrastos, madrastas e irmãos bilaterais e
unilaterais. A latere, constata-se a convivência de tios com sobrinhos ou avós com netos se
tornando menos incomuns.
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Ainda que desconhecida a nomenclatura quase em unanimidade, muitos brasileiros


fazem parte de uma família-mosaico. Fulgura, portanto, nesse tipo de família, a união entre os
seus membros. E, sendo assim, embora, muitas vezes, nem todos possuam vínculo
consanguíneo, esse tipo de família tem respaldo e proteção legal, o que atesta um grande
progresso social brasileiro.

2.3.5 Família parental ou anaparental

Mesmo que tenha em comum com a família pluriparental a cumplicidade e a união, a


família parental ou anaparental, ao contrário, obrigatoriamente possui uma formação
específica, com parentes consanguíneos.
É o caso de duas irmãs que juntas combinam esforços para a formação do patrimônio,
ainda que sem nenhuma conotação sexual ou formação de casal, cuja relação claramente
constitui uma família (DIAS, 2013, p. 55).

2.3.6 Família eudemonista

Assevera-se que todas as famílias se encaixam nesse perfil, uma vez que o
eudemonismo se caracteriza como a busca da felicidade, objetivo primeiro do indivíduo
quando decide formar a sua família (DIAS, 2013, p. 58).

2.3.7 Família homoafetiva

A maior discriminação que ocorre no momento de constituir uma família é sobre as


pessoas que têm direito a casar-se e a sua orientação sexual.
De fato, a sexualidade é um direito fundamental que acompanha o ser humano desde o
nascimento, representando, portanto, a orientação sexual uma questão de liberdade e
autonomia individual (DIAS, 2005, p. 43).
Nesse diapasão, importa fazer referência ao artigo 5.º, caput e inciso I da CRFB, que
declara a igualdade entre todos. Assim sendo, homens e mulheres capazes podem e devem
exercer os seus direitos livremente, e, por essa razão, é permitido que pessoas de quaisquer
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dos sexos se casem e formem família. Além disso, toda discriminação em relação à orientação
sexual fere diretamente a Lei Maior (DIAS, 2017c, p. 5).
A responsabilização não alcança apenas os indivíduos comuns. É necessário que o
Poder Judiciário preserve os direitos e o reconhecimento de famílias homoafetivas sem levar e
consideração o sexo dos sujeitos que compõem essas entidades (DIAS, 2005, p. 47).
Ademais, apesar da diferenciação estatuída pela CRFB, nada justifica a distinção entre
a união estável formada por um homem e uma mulher daquela composta por pessoas
homoafetivas (DIAS, 2013, p. 46).

2.3.8 Homoparentalidade

Envolta também por polêmica é a homoparentalidade, pois, quando casais decidem


assumir a relação homoafetiva e desejam formar uma família, geralmente, adotam crianças
para que seja constituída a tão sonhada família. Desse modo, o preconceito que sofrem é
duplo: a uma, pela coragem de declarar a sua condição sexual e, a duas, pela decisão de terem
filhos.
Embora a verdade seja bem diferente, a resistência à homoparentalidade tem como
principal motivo o preconceito, pois se crê que se tratem relações promíscuas e prejudiciais
para a formação familiar (DIAS, 2005, p. 46), e se ignora o devido respeito a toda e qualquer
formação familiar independentemente da sua composição (DIAS, 2013, p. 46).
Pela necessidade de a Justiça atender às demandas da realidade social (DIAS, 2017b),
aborda-se, no próximo subtópico, algumas decisões judiciais recentes relativas às famílias
brasileiras.

2.4 O entendimento do Poder Judiciário sobre o reconhecimento dos vários tipos de


famílias

Em face das mudanças nos modelos familiares, o Judiciário não foi omisso ao
reconhecer a nova realidades. Dessa forma, os Tribunais Superiores se posicionam a favor dos
novos arranjos familiares.
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Assim o foi quando o Supremo Tribunal Federal – STF julgou em conjunto a ação
direta de inconstitucionalidade – ADI 4277/DF e a arguição de descumprimento de preceito
fundamental – ADPF 132/RJ1, ocasião em que igualou a união entre pessoas do mesmo sexo à
entidade familiar, prevista no artigo 1.723 do CCB, dando-lhe interpretação conforme a
CRFB e excluindo qualquer sentido que impedisse reconhecer a união contínua, pública e
duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, cuja relação afetiva se
caracteriza como verdadeira família.
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça – STJ ratificou o reconhecimento
das famílias homoafetivas, equiparando-as às famílias tradicionais quando do julgamento do
recurso especial – REsp 827.962/RS2.
Da mesma forma, no julgamento do REsp 1.183.378/RS 3, o Tribunal da Cidadania fez
avançar o seu entendimento e reconheceu outros arranjos familiares, encarecendo, no entanto,
a igualdade entre os sexos e a liberdade de casamento entre homossexuais
Fundamentando-se em julgados dos Tribunais Superiores, as câmaras cíveis dos
Tribunais de Justiça – TJs pelo país também decidiram pela analogia de igualar as uniões
homoafetivas às heterossexuais. Foi exemplo a apelação cível/reexame necessário n.°
1.0024.06.930324-6/0014, da Comarca de Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais.

3 O ESTATUTO DA FAMÍLIA (PL N.º 6.583/2013) E O ESTATUTO DAS FAMÍLIAS


(PL N.º 470/2013)

1
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. ADPF 132, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado
em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001.
2
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 827.962/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA,
QUARTA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 08/08/2011.
3
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.183.378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012.
4
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível/Reexame Necessário n.°
1.0024.06.930324-6/001 - Comarca De Belo Horizonte - Remetente: Jd 1 V Faz Comarca Belo Horizonte -
Apelante(S): Estado Minas Gerais - Apelado(A)(S): M C S A E Outro(A)(S) - Relatora: EXMª. SRª. DESª.
HELOISA COMBAT.
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De interesse também do legislador federal, o conceito de família é o tema de dois PLs


no Congresso Nacional.
Na Câmara dos Deputados, tramita o Estatuto da Família (PL n.º 6.583/2013), cuja
defesa é pela entidade familiar singular. Tem o escopo de restringir o conceito de família aos
casamentos e às uniões estáveis entre homens e mulheres e seus filhos (art. 2.º).
Já no Senado Federal, está em curso o Estatuto das Famílias (PL n.º 470/2013), que
tem o objetivo de proteger a pluralidade dos arranjos familiares. É uma proposta advinda das
mãos dos juristas do IBDFAM e que, em muitos dos seus dispositivos, transparece um
conceito mais amplo de família. Inter alia, alberga o conceito de união estável que faz
menção à união entre duas pessoas, não necessariamente entre um homem e uma mulher (art.
61).
Com a composição mais conservadora desde 1964, a aprovação do PL n.º 6.583/2013
pelos representantes do povo é plausível. Em ocorrendo, caso não haja o veto do Presidente da
República, apontam-se dois caminhos.
A primeira via é a da inconstitucionalidade. Já se afirmou que o STF entendeu que a
união homoafetiva é entidade familiar protegida pela CRFB, devendo ser aplicadas,
analogicamente, todas as normas previstas para a união estável entre homem e mulher (ADPF
132/RJ e ADI 4277/DF). Logo em seguida e em perfeita consonância, o STJ reconheceu a
possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, natural consequência da decisão da
Suprema Corte, porque, se todas as regras são aplicáveis por analogia, igualmente há de se
proceder no que se refere à conversão da união estável em casamento, vislumbrada no artigo
1.727 do CCB (REsp. 1.183.378/RS).
Diante dos posicionamentos dos Tribunais Superiores, o Conselho Nacional de Justiça
– CNJ editou a Resolução n.º 175/2013, que proíbe às autoridades competentes, verbi gratia,
os responsáveis pelos Cartórios de Registro Civil em todo o território nacional, a recusa de
habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento de
homossexuais. Dans l’ensemble, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é mais que
realidade para o ordenamento jurídico nacional.
O malfazejo Estatuto da Família ignora toda a evolução da família. Isso porque é
tendência, no lado ocidental do globo terrestre, a inclusão dos direitos civis de casais
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homoafetivos, sem que isso ameace ou ataque os direitos das pessoas que fazem parte de
famílias heteroafetivas.
Além do mais, o artigo 2.º do retrógrado PL é inconstitucional por não levar em conta
a existência de famílias monoparentais, cuja previsão se encontra no artigo 226, § 4.º, da Lei
Constitucional. Isso nem se fale que foram relegadas entidades como as famílias-mosaico e as
anaparentais.
É lugar-comum afirmar que a CRFB é inclusiva, e não exclusiva, o que requer especial
atenção quanto se trata do rol meramente exemplificativo das espécies de família (art. 226).
Nesse sentido, não cabe a uma lei infraconstitucional restringir norma que lhe é superior em
claro desrespeito inconstitucional a direitos civis.
Ressalte-se, por tudo, que a LMP já traz um conceito extensivo de família (art. 5.º, II),
ao estatuir que esta não precisa estar atrelada obrigatoriamente a laços parentais, mas por
afinidade ou simples vontade.

4 CONCLUSÃO

Os doutrinadores brasileiros estabeleceram um extenso rol para os arranjos familiares.


No entanto, o Direito Brasileiro, mesmo que iluminado pela CRFB, ainda está nos passos
incipientes e lentos para dispensar tratamento justo a gama dessas entidades.
O Texto Maior deu o status de cláusula pétrea à igualdade entre as pessoas. No
entanto, nem sempre tal determinação em relação à família foi respeitada no âmbito do
Direito Positivo.
Os princípios religiosos relativos à família ainda influenciam fortemente a população.
Entretanto, o Poder Judiciário tem estribado as suas decisões no princípio da igualdade,
relegando a discriminação de negros, índios, mães solteiras, pais homossexuais ou
socioafetivos, et cœtera, para que existam uma real valorização da família e uma efetiva
evolução no conceito de família.
Há de se considerar o amor que envolve as pessoas em razão da convivência. Amor
que deve contar nas relações jurídicas, principalmente no que se refere às uniões com pessoas
do mesmo sexo e ao reconhecimento de filhos com vínculo socioafetivo, para que exista,
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desse modo, uma clara valorização do novo direito de família no ordenamento jurídico
brasileiro.
No que diz respeito ao Estatuto da Família, vislumbra-se a possibilidade de que se
adapte à Carta Magna e a toda a evolução social. Por esse prisma, impende assumir que traga,
no seu bojo, apenas alguns exemplos de arranjos familiares. Se se confirma essa hipótese, a
Casa Bicameral desperdiça tempo e dinheiro público em trabalho vão, porquanto as famílias
que o PL visa tutelar já estão completamente protegidas, isso sem se mencionar que
representam a maioria dos arranjos familiares no país.
Devem os ocupantes de cargos eletivos empenhar-se em assegurar a existência digna e
feliz de todas as constituições familiares, que é o que busca o Estatuto das Famílias em
perfeita harmonia com a Carta Cidadã. A inclusão deve ser sobrepor à exclusão, pois essa a
ordem das coisas exigida pela CRFB. Há de sempre se lembrar que, conforme a Constituição
Federal, é defesa qualquer discriminação, e altamente valorizada a dignidade da pessoa
humana. Por tudo, fale-se de famílias, no plural.

REFERÊNCIAS

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Acesso em: 10 jun. 2017.

BERLINCK, Deborah. “Se a pessoa é gay, procura a Deus e tem boa vontade, quem sou eu
para julgá-la?”, disse o Papa Francisco. O Globo. Rio de Janeiro, 29 jul. 2013. Disponível
em: <http://oglobo.globo.com/rio/se-pessoa-gay-procura-deus-tem-boa-vontade-quem-sou-
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BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada: tradução na linguagem de hoje. São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1988.
15

CARVALHO, Adriana Pereira Dantas. RIDB, Ano 2, n. 8, 2013. Disponível em:


<http://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2013/08/2013_08_07963_07984.pdf>. Acesso
em: 09 jun. 2017.

DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. 3. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005.

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WHICH STATUTE OF FAMILY?

ABSTRACT

There is no doubt about the importance of the family before human


being. Hence, The present study is justified as there are two Statute of
Fanily bills under evaluation at the Brazilian Congress. The PL n.
6.583/2013 that has been processed in the Chamber of Deputies could
restrict the concept of family to weddings and to stable unions
between men and women and their children. The PL n. 470/2013,
which is under way in the Senate, seeks to extend the concept of
family. This project was developed by of the jurists of the Brazilian
Institute of Family Law (IBDFAM). The main objective of this
research is to check the constitutionality of both PLs regarding your
scope, that is, to limit the family arrangements. For this porpuse, the
method of bibliographical research was applied to develop
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explanations about the Family Law, accentuating the contemporary


family models outlined by the theories published in relevant doctrine
or judicial decisions that have focused on the subject and the will of
Constitution.

Keywords: Family Law. Statute of Family. Constitucionality.

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