Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Keesing, Roger M.
Antropologia Cultural: uma perspectiva
contemporânea / Roger M. Keesing, Andrew J.
Strathern ; tradução de Vera Joscelyne. -
Petrópolis, RJ : Vozes, 2014.

Título original inglês: Cultural anthropology : a

contemporary perspective
ISBN 978-85-326-4633-0

1. Antropologia 2. Etnologia I. Strathern,

Andrew J. 11.Título.

13-07476 CDD-306

Índices para catálogo sistemático:

1. Antropologia Cultural 306
I
! Capítulo I
A abordagem antropológica
Esta viagem pela antropologia nos levará a
cantos remotos do mundo - desertos africanos e
lagoas de corais no Sul do Pacífico - e depois nos
levará de volta às crises e complexidades dos anos
de 1990 e aos desafios do século que desperta. An-
te de embarcar, podemos bem fazer uma pausa
para perguntar por que vale a pena percorrer uma
rota assim tão tortuosa, que nos levará por modos
de vida já desaparecidos ou transformados.
A viagem até povos e locais remotos e ex-
traordinários e de volta ao presente é a rota que
os próprios antropólogos percorreram. Fazê-Ia
ainda agora tem uma importância fundamental
para que possamos compreender as atuais com-
plexidades e para que possamos encontrar cami-
nhos à frente para futuros humanos viáveis, pois
o material que os antropólogos dominam repre-
enta um acúmulo de experiência humana em
épocas e lugares diferentes: a sabedoria e a insen-
atez acumuladas da humanidade. Nesse acúmulo
de experiência, em suas várias formas culturais,
re ide a evidência crucial sobre as diferenças e se-
melhanças humanas que Ihes subjazem, sobre as
narureza humanas e as possibilidades institucio-
.lI. e no o futuro coletivo não for iluminado
o pa sados separados, ele será empobre-
uplamente perigoso.
E um determinado momento foi possível
a antropologia era o estudo de povos
'olraremo brevemente para essa
20 -
palavra com suas conotações infelizes - e adquiri-
remos outra melhor.) Mas os antropólogos já não
trabalham apenas, ou sequer primordialmente,
nessas sociedades: eles estudam aldeões campo-
neses, inclusive os da Europa; estudam cidades,
em nosso país ou no Terceiro Mundo; estudam
corporações multinacionais e tribunais bem assim
como linhagem. Isso faz com que seja muito mais
difícil do que era anos atrás, quando os estudos
clássicos por Margaret Mead, Ruth Benedict e
Bronislaw Malinowski chamaram a atenção po-
pular pela primeira vez para a antropologia de so-
ciedades remotas, definir o que é diferente sobre
a antropologia, o que a distingue da sociologia e
das outras ciências sociais. Além disso, a antro-
pologia é internamente diferente, cobrindo um
espectro que vai de estudos especializados de bio-
logia e evolução humana até estudos da vida so-
cial de povos contemporâneos, rurais e urbanos.
É preciso, portanto, um pouco de organização.
A antropologia como uma área de
conhecimento
Antropologia significa "ciência humana". Mas
obviamente os antropólogos não são os únicos es-
tudiosos interessados em seres humanos; o mes-
mo pode ser dito de especialistas em Beethoven,
Eurípides, o Complexo de Édipo, e a Guerra do
Vietnã. E os antropólogos tampouco estudam só

Aldeia cerimonial de longhouses construídas para um festival de matança de porcos perto de l.alibu, Papua-Nova Guiné.
res humanos; alguns passam o tempo correndo
elas matas africanas em busca de primatas. Os
rropólogos culturais, no entanto, têm o com-
romisso de se ocupar de idiomas e tradições que
e são originalmente estranhas.
Subcampos da Antropologia
Em um grande departamento de antropologia
ão seria estranho encontrar um biólogo humano
§ I A ANTROPOLOGIA COMO UMA ÀREA DE CO'N1-ti-õCL~IB-<-::n
especializando-se nos ossos fósseis dos primeiros
humanos; um arqueólogo escavando comunida-
des antigas no Oriente Médio; um linguista anali-
sando a estrutura das línguas da África Ocidental;
um folclorista estudando a mitologia dos inuítes;
um especialista em parentesco e matrimônios na
Nova Guiné; e um especialista em trabalhadores
rurais mexicano-americanos na Califórnia. Todos
eles provavelmente teriam um doutorado em an-
tropologia.
 ~l\Ot,GB1 ANTROPOLOGICA
o que é que esses tipos diferentes de antropó-
o têm em comum? O que é que os diferencia
e ociólogos, psicólogos, linguistas ou historia-
ore? ão é nada simples definir o que é a an-
tropologia, o que fazem os antropólogos e como
é que essas coisas se estabeleceram.
O fato de a antropologia incluir especialistas
em biologia humana - em evolução, em compor-
tamento de primatas - bem assim como especia-
li tas em várias facetas da sociedade e da cultura,
é parcialmente devido a uma reviravolta peculiar
na história acadêmica. O antropólogo físico, ou
biólogo humano, durante décadas esteve bastan-
te distante de seus colegas interessados no com-
portamento humano. No entanto o enorme abis-
mo entre a antropologia física e a Antropologia
Cultural foi recentemente atravessado em muitos
lugares.
Este texto estará principalmente voltado
para a Antropologia Cultural. Ao fazer o esboço
da área da Antropologia nos parágrafos que se
eguem, iremos focalizar estudiosos tais como o
arqueólogo do Oriente Médio, o linguista afri-
cano, o folclorista inuíte e o especialista em pa-
rentesco na Nova Guiné em nosso departamento
fictício. Ao diferenciá-Ios iremos descrever os
ubcampos da Antropologia Cultural e o terreno
omum que os une.
Um importante subcampo da Antropologia
Cultural é a arqueologia pré-histórica ou a pré-
-hi tória. Ao contrário dos arqueólogos clássicos,
em que e baseiam os estereótipos populares de
-ação de ruínas e templos antigos, os pré-his-
ro ore e tudam principalmente povos com
e e critos. Suas tentativas de reconstruir
e -ida antigos fazem com que eles passem
e com maior frequência entre antigos
e lixo do que entre templos. Hoje em
e e tendem até a emergência de
estados urbanos no Oriente Próximo, na América
Central e em outras regiões; mas sua preocupação
é com teorias de processo social, e não com civili-
zações clássicas. Cada vez mais suas investigações
são conectadas, na teoria e no método, com estu-
dos antropológicos de povos viventes.
A linguística antropológica focaliza as línguas
(antes apenas orais) de povos não ocidentais. Ela
testa teorias da linguagem baseadas principalmen-
te nas línguas europeias e examina as línguas em
todos os tipos de ambientes sociais e culturais.
Dois dos fundadores da antropologia americana
moderna, Franz Boas e Edward Sapir, foram espe-
cialistas nas línguas e nas culturas dos índios ame-
ricanos; como veremos, a maneira como a língua
e a cultura estão relacionadas sempre foi um tema
importante na antropologia americana.
A Antropologia Cultural é muitas vezes utili-
zada para qualificar uma área mais restrita volta-
da para o estudo de costumes humanos - isto é,
o estudo comparativo de culturas e sociedades.
No século XIX e no começo do XX, a antropolo-
gia estava voltada para a comparação dos povos
descobertos nas fronteiras da expansão europeia,
mas tinha em mente objetivos um tanto diferen-
tes daqueles que orientam os estudos modernos.
Essas comparações eram utilizadas para recons-
truir, especulativamente, as conexões históricas
entre povos no passado antigo (uma tarefa hoje
realizada, com evidência sólida, por linguistas
pré-históricos e históricos) e para reconstruir os
estágios da evolução das culturas humanas. Desde
1920, no entanto, a antropologia cultural nesse
sentido mais restrito vem adotando cada vez mais
como seu problema central a busca por genera-
lizações e teorias sobre o comportamento social
e as culturas humanas. Para essa área central da
antropologia cultur~l o termo Antropologia Social
é usado com maior propriedade e mais amplamen-
 § I A ANTROPOLOGIA COMO UMA ÁREA DE CONJ·ECl~.""O

ANTROPOLOGIA

'I-------Ir-I --------,1
ANTROPOLOGIA ANTROPOLOGIA ARQUEOLOGIA
FíSICA CULTURAL

I I
ANTROPOLOGIA LlNGuíSTICA
SOCIAL ANTROPOLÓGICA

/ \
VARIOS RAMOS

Figura 1.1 Os subcampos da antropologia

re. A Figura 1.1 diagrama esses relacionamentos
urre os principais subcampos da antropologia.
Por sua vez, como sugere o diagrama, a An-
opologia Social é informalmente dividida em um
úmero de áreas temáticas mais especializadas,
mbora o número exato delas e como são chama-
seja uma questão de debate entre os estudiosos
área. Elas são parcialmente definidas por áreas
- máticas: Antropologia Jurídica, antropologia
Econômica, Antropologia Política. E parcialmente
r tipos de foco teórico: Antropologia Psicológi-
Q Antropologia Simbólica, Antropologia Cogni-
ttua, Antropologia Ecológica. As áreas de folclore
etno-história (a história de povos e suas tradi-
cõe culturais, especialmente nos últimos séculos)
altrapassam as fronteiras de outras disciplinas. Um
bcampo emergente, a antropologia médica, co-
ecta aspectos biológicos de saúde e doença com
conceitualização cultural e seu tratamento.
A especificidade da Antropologia
Como observamos, em uma época os antro-
pólogos podiam ser distinguidos dos sociólogos e
o cientistas políticos porque seu papel especial
divisão acadêmica de trabalho era estudar po-
vos "primitivos" - ou, como irei me referir a eles
nos capítulos que se seguem, povos "tribais". (O
termo primitivo, embora no uso antropológico ti-
vesse a intenção de se referir apenas a tecnologias
relativamente simples, tem conotações pejorati-
vas infelizes. Uso o termo tribal em um sentido
amplo e relativamente informal para cobrir o es-
pectro de povos e culturas para os quais o termo
"primitivo" era usado, mas sem implicar que a
palavra "tribo" possa ser usada apropriadamente
para descrever qualquer um deles. Para mais dis-
cussões sobre o assunto, d., por favor, o Capítulo
5.) Hoje os antropólogos trabalham com campo-
neses e urbanitas, em ambientes ocidentais e em
outros locais. Os sociólogos, os cientistas políti-
cos e outros cientistas sociais voltaram sua aten-
ção cada vez mais para sociedades não ocidentais.
No entanto, as abordagens e perspectivas an-
tropológicas continuam a ser específicas. Os an-
tropólogos não só têm um conhecimento especia-
lizado da evidência acumulada sobre os povos ao
redor do mundo - em virtude da tradição de seu
trabalho em comunidades de pequena escala, com
base em sua participação íntima na vida cotidiana
das pessoas - mas têm também uma orientação
um conjunto de estilos e métodos de pe qui a
 z,ro•.DAGEH ANTROPOLOGICA
e diierencia a antropologia das outras ciências
- ciais. E a orientação antropológica, profunda-
ente humanista, preocupada com significados,
om a textura da vida cotidiana nas comunidades
e não com abstrações formais, continua a ser va-
lio a e até mesmo urgente em um mundo cada vez
mais dominado pela tecnocracia.
Se a tradição da pesquisa na antropologia
tende a restringir sua visão a comunidades lo-
cais, a amplitude do treinamento exigido dos
antropólogos também lhes dá o poder de gene-
ralistas, cujo conhecimento abrange as ciências
ociais e biológicas. Uma volta a nosso departa-
mento hipotético de antropologia ilustrará esse
ponto. Cada um dos antropólogos, no decorrer
do treinamento de seu doutorado provavelmente
terá estudado antropologia física, arqueologia e
linguística - e passado seus exames nessas maté-
rias - embora a maioria deles sejam especialistas
em Antropologia Cultural. Embora os antropólo-
go culturais talvez já não possam lembrar o que
aprenderam sobre dentes fósseis, a maioria de-
le sabe muito sobre biologia humana, evolução
humana e o comportamento de nossos parentes
primatas. O especialista em línguas africanas po-
deria provavelmente falar de forma inteligente
obre os sistemas matrimoniais na Nova Guiné e
ompartilharia com colegas que se especializam
em estudos chineses ou dos inuítes muitas ideias
obre como estudar antropologicamente lavra-
ore na Califórnia. Essa amplitude de treina-
ento em biologia humana bem assim como na
o ial humana, e em toda uma variedade de
r pas adas e presentes, equipa os antropó-
de uma maneira quase que única no rnun-
êmi o para generalizar sobre a condição
En ontrei pessoas que se consideram
na natureza humana" em todas
"ida e em ambientes tão diferentes
quanto lugarejos nas florestas das Ilhas Salomão
e em aldeias remotas do Himalaia. Mas se é que
existem especialistas profissionais sobre "a natu-
reza humana" (ou, talvez seja melhor dizermos,
sobre as "naturezas humanas") na variedade to-
tal de ambientes culturais, eles são antropólogos
ou estudantes de antropologia. A amplitude de
visão que a antropologia dá pode nos ajudar a
avaliar "a natureza humana" melhor que o filó-
sofo da esquina ou da floresta, e a compreender
com sabedoria as diferenças e as possibilidades
humanas.
2 Modos de compreensão
antropológica: teoria, interpretação
e ciência
Antropologia, ciência social e ciência natural
A inclusão da antropologia entre as ciências
sociais faz com que surjam perguntas sobre o di-
reito que antropólogos têm de usar o manto sa-
grado da "ciência". Aqui é difícil nos livrar de es-
tereótipos sobre a ciência relacionada com jalecos
brancos e laboratórios, e ideias sobre precisão,
predição e o "método científico" que se relacio-
na mais com o século XIX do que com a prática
científica moderna. Os astrônomos contemporâ-
neos produzem vastas teorias da evolução do uni-
verso; físicos trabalham em um território de par-
tículas subatômicas; biólogos modelam pequenos
segmentos de sistemas cuja complexidade é tão
vasta que chega a ser incompreensível. Cada do-
mínio da ciência natural se depara com mistérios
próprios, e opera por adivinhação e aproximação
tanto quanto por experimentos exatos.
Em algumas das ciências sociais imaginou-se
que o conhecimento sistemático que leva à teo-
ria pode ser obtido 'através de "desenhos expe-
 §2 MODOS
entais" cuidadosos que testam hipóteses esta-
camente em situações de laboratório ou por
io da coleta de dados de levantamentos. Essa
rdagem é adequada para alguns problemas,
ua consequência geral foi uma distorção da
rureza dos fenômenos sendo estudados que são
mplexos, sociais e entrelaçados (cf, HARRÉ &
ECORD, 1973). Ao procurar simplificar sirua-
a fim de isolar e medir uma variável de cada
z; os pesquisadores muitas vezes, inadvertida-
ente, mudaram radicalmente o contexto e, com
a natureza do comportamento sendo estuda-
. Ironicamente, em sua preocupação com rigor
erimental, inferência sistemática, laboratórios,
edição, medidas e assim por diante, essas aborda-
_ens muitas vezes emularam - e até parodiaram - a
~ ência natural do final do século XIX. Como diz
arre, o cientista social foi
O homem invisível desesperadamente ten-
tando não ser visto vendo outros homens
[...]. Tolamente, cientistas sociais mani-
puladores "experimentais" não tiveram
nem a humildade nem a sabedoria para
reconhecer que eles estão alimentando
[...] dados contaminados pelo homem em
suas "máquinas da verdade" (LaBARRE,
1967: viii).
Antropólogos estiveram menos preocupados
m ser científicos que muitos de seus colegas na
sicologia, na sociologia e na ciência política, e
e um modo geral isso provavelmente foi uma
ênção. Na medida em que operavam cruzando
.1 i mos de diferenças culturais, os antropólogos
iverarn de lutar com problemas de comunica-
~-o. Tendo dificuldade de usar testes, questioná-
'"IOS, pesquisas de opinião, experimentos e coisas
- melhantes em comunidades humanas em que
ram convidados e onde os instrumentos oci-
entais de "objetividade" eram inapropriados,
DE COMPREENSÃO ANTROPOLóGICA: TEORIA, INTERPRET. ÇÃO E
os antropólogos com frequência dependiam o
poderes humanos para aprender, compreender e
se comunicar.
De qualquer forma, antropólogos muita ve-
zes lidaram com fenômenos para os quais os mé-
todos científicos clássicos eram claramente inade-
quados. Tentar entender o simbolismo e o signifi-
cado de um mito ou de um ritual não é como pre-
dizer quem vai ganhar uma eleição ou testar ex-
perimentalmente como um rato aprende ou como
um aluno de psicologia pode ser enganado. Não
há nada para medir, contar ou predizer. A tarefa
é muito mais a de tentar interpretar Hamlet. Não
podemos escavar, medir e testar Shakespeare para
descobrir se nossa interpretação é "verdadeira" e
a de todos os demais é errônea. Grande parte da
Antropologia Cultural, orientada por uma busca
por significado foi honestamente interpretativa e,
portanto, de muitas maneiras, mais próxima das
humanidades do que das ciências naturais. A an-
tropologia, como a história, tem modos em que
explora e interpreta fenômenos como únicos e
busca interpretá-los - e modos em que procura
generalizar e teorizar a partir de formas que a in-
serem diretamente nas ciências sociais. As abor-
dagens que são postas em execução são aquelas
apropriadas para a tarefa, seja ela primordialmen-
te interpretativa ou primordialmente generalizan-
te e teórica. Mas no caso da antropologia, elas
estão moldadas muito diretamente pela natureza
dos encontros em que antropólogos observam e
aprendem, já que como observadores somos sem-
pre parte integral da situação.
Trabalho de campo
Para a maioria dos antropólogos, os proble-
mas imediatos da compreensão e das fontes de da-
dos vêm daquilo que passou a ser conhecido como
 " J""-' •.••••....,EM ANTROPOLÓGICA

era alho de campo: a participação íntima em uma pessoas passam a ser um microcosmo do total.
omunidade e a observação dos modos de com- Aprendemos seu idioma e tentamos aprender seu
portamento e da organização da vida social. O modo de vida. Aprendemos por observação par-
pro e o de registro e interpretação do modo de ticipativa, vivenciando e vendo os novos padrões
vida de outras pessoas é chamado de etnografia. de vida. O trabalho de campo bem-sucedido é
O que o trabalho de campo realmente envol- raramente possível em um período muito me-
ve depende em parte do local onde o antropólogo nor que um ano, especialmente quando um novo
ai estudar. Nas décadas de 1920 e 1930, quando idioma e uma nova cultura precisam ser aprendi-
povos pouco conhecidos eram encontrados em dos. Idealmente, o pesquisador permanece muito
quase todas as fronteiras coloniais e o número de mais tempo, às vezes em várias viagens sucessivas
antropólogos era reduzido, o trabalho de campo ao campo. O valor do trabalho de campo mantido
normalmente significava ir para uma sociedade durante um período longo começa a ser perce-
isolada armado com cadernos, uma máquina fo- bido claramente (COLSON et al., 1979). A pes-
tográfica e quinino e estabelecer residência em quisa contínua e profunda produz insights sobre
uma aldeia por um ano ou mais. Normalmente, uma cultura e sobre os processos de continuidade
quando o antropólogo chegava naquele cenário já e mudança praticamente impossíveis de obter de
havia administradores coloniais arrecadando im- qualquer outra forma. Uma parte central desse
postos e impondo a paz, bem assim como arma- processo é a necessidade de permanecer tempo
zéns comerciais e missionários. Mas o etnógrafo suficiente em uma comunidade para obter um do-
estabelecia seu domicílio entre as pessoas locais e mínio prático do uso linguístico cotidiano.
fazia todo o possível para ignorar aquelas influên- O etnógrafo traz para a tarefa técnicas de
cias intrusivas. Desde a Segunda Guerra Mundial, mapeamento e recenseamento e habilidades de
com novas nações surgindo nessas fronteiras e a entrevistar e observar. Mas, de um modo geral,
rápida transformação na vida das pessoas, o tra- nossa posição é radicalmente diferente da de
balho de campo é cada vez mais feito em ambien- cientistas políticos, economistas ou sociólogos
tes menos isolados. Uma aldeia na Anatólia ou no estudando eventos em sua própria sociedade. Na
• 1éxico, uma cidade portuária na África, uma ci- situação de trabalho de campo "clássica" em que
dade-mercado haitiana, ou um subúrbio america- não podemos aprender um idioma local a priori,
no podem ser cenário para o trabalho de campo. e pouco se sabe sobre a sociedade e sua cultura,
e o cenário é uma cidade grande, uma cidade o lugar e as tarefas do trabalhador de campo são,
equena, uma aldeia ou um lugarejo na floresta de muitas maneiras, parecidas com as de um bebê.
o ical a forma da pesquisa antropológica é, em Como um bebê, o antropólogo não entende os
ui o aspectos importantes, a mesma. Mais es- barulhos, as imagens visuais, os cheiros que con-
cialmente, ela envolve uma profunda imersão têm significados preciosos para o povo sendo es-
de um povo. Em vez de estudar grandes tudado. Nosso aprendizado deve ser da mesma
amostragen de pes oas, o antropólogo participa magnitude, e nosso envolvimento ter a profundi-
-- -.Ii>'n::l,memequanto possível na vida cotidia- dade correspondente. Tempo, envolvimento pro-
omunidade, bairro ou grupo. Essas fundo, muitas suposições, muita prática, e muitos
 §2 MODOS DE COMPREENSÃO
erros nos permitem começar a fazer sentido das
enas e dos eventos nesse novo mundo cultural.
Mas o antropólogo não é um bebê, e isso faz
om que a tarefa seja ao mesmo tempo mais difícil
e mais fácil. Ao contrário do bebê, o trabalhador
de campo tem a competência de um adulto (em-
ora apenas parcial em uma floresta ou em um
deserto) e pode muitas vezes usar um intérprete
ara descobrir algo sobre o que está ocorrendo. A
dificuldade é que o antropólogo, diferentemente
do bebê, já conhece um idioma e um conjunto de
padrões para pensar, perceber e agir. Em vez de
preencher um arcabouço aberto com o modelo de
nossa própria gente, como faz o bebê, o antropó-
logo precisa organizar o conhecimento em termos
de um modelo existente e interpretar novas ex-
periências em termos de experiências familiares.
Isso faz com que o aprendizado do trabalhador
de campo seja mais lento e mais difícil (considere
como é muito mais difícil para um adulto apren-
der um idioma novo) e isso inevitavelmente de-
turpa sua percepção.
Considere o encontro do ponto de vista do
outro lado. As vidas de um povo são interrompi-
das por um estranho e estrangeiro, muitas vezes
com uma família, que se muda para a comuni-
dade, trazendo todos os tipos de coisas novas e
estranhas. Essa pessoa raramente se enquadra aos
tipos de estrangeiros com que esse povo aprendeu
a lidar anteriormente - missionários, comercian-
tes, funcionários do governo, políticos ou outros
semelhantes. O recém-chegado é insaciavelmente
curioso sobre coisas privadas, sagradas e pessoais
por razões e motivos que são incompreensíveis.
A essa pessoa deve ser atribuído um papel de al-
gum tipo; esforços desajeitados para falar, maus
modos, e intrusões na vida diária devem ser to-
lerados. Toda essa atenção pode ser lisonjeira,
ANTROPOLÓGICA: TEORIA, INTERI'REl: ÇÃO E
mas pode gerar suspeita, hostilidade e ciúme. Em
uma comunidade menos isolada e mai ofisri-
cada, "ser estudada" pode ter um ar de condes-
cendência e pode ofender o orgulho em vez de
despertá-lo, (Veremos como o antropólogo, em
geral inadvertidamente, foi associado com forças
coloniais e agora neocoloniais; e como a política
da etnografia tornou-se um foco de debates.)
Por parte do antropólogo, problemas éticos
se avultam. Devemos tentar proteger a identida-
de da comunidade e de suas pessoas escondendo
nomes e lugares? Podemos intervir em questões
de costume e saúde? Podemos trair a confiança
de nossos informantes em alguma violação séria
da lei?
E com que profundidade podemos realmen-
te penetrar em outro modo de vida? Sentado em
um lugarejo montanhoso nas Ilhas Salomão mas-
tigando a folha do betel com meus amigos e brin-
cando em seu idioma, sinto uma unicidade com
eles, um elo de humanidade comum e experiência
compartilhada. Mas será que eles podem sentir
o mesmo com relação a minha pessoa? Será que
posso ser algo mais que uma curiosidade visitante
e uma celebridade, um homem branco rico que
logo voltará para seu próprio mundo?
No meio de tudo isso, o antropólogo passa
pelas rotinas de coletar dados - fazendo um re-
censeamento, registrando genealogias, aprenden-
do sobre o elenco local de personagens e ques-
tionando os informantes sobre questões de cos-
tume e crenças. O que entra nos cadernos vem
principalmente dessas rotinas. Nos últimos anos
houve bastante progresso na minimização do
efeito deturpador do próprio esquema conceitual
do etnógrafo e na análise de outro modo de vida
em termos das categorias e premissas das pessoas
sendo estudadas. Mas à medida que aprendemos
 OPOLÓGICA

- obre aprender, parece cada vez mais prová- que as coisas nunca foram assim tão simples. Pa-
-el que muito daquilo que o etnógrafo aprende drões ideias são mais uniformes do que padrões
nun a vá para os cadernos; fica naquele territó- do comportamento real. Quando investigados
rio por falta de um termo melhor, que podemos com profundidade, os mundos conceituais de
hamar de "inconsciente" - um conhecimento de indivíduos diferentes em uma determinada so-
ena e pessoas e sons e cheiros que não podem ciedade mostram uma ampla variação. A maio-
er captados pela palavra escrita. ria dos antropólogos durante muitos anos deu
mais atenção a homens adultos do que a mulhe-
O que os informantes podem dizer ao etnó-
res adultas ou crianças. (Um avanço importante
grafo sobre seus costumes pode ser uma interpre-
na antropologia moderna veio indiretamente em
tação igualmente imprecisa e parcial daquilo que
virtude do movimento feminista: uma revelação
eles veem, fazem, pensam e sentem. Às vezes seus
e uma compreensão crescente dos mundos femi-
relatórios são deturpados pela intenção de enga-
ninos nas sociedades não ocidentais.) Antropó-
nar ou por mal-entendidos linguísticos. De qual-
logos precisam ser treinados na observação com-
quer forma, o que as pessoas dizem ao etnógrafo
portamental detalhada e no estudo rigoroso do
obre seu modo de vida deve ser reexaminado,
comportamento real e dos estados emocionais
substanciado, e complementado com registros de-
das pessoas à medida que essas põem em prática
talhados de eventos e transações reais. Um estudo
seus costumes.
antropológico moderno está muito longe daquele
estilo antigo em que simplesmente dizíamos "a O problema de amostragem tornou-se mui-
descendência é patrilinear" e parávamos por aí. to mais intenso em sociedades de grande escala
Tabelas estatísticas detalhadas e muitas vezes ma- e mais complexas. A diversidade cultural, gran-
pas e genealogias permitem aos antropólogos re- des populações, estratificação social e mudanças
construírem a rede de pessoas e eventos dos quais rápidas fizeram do trabalho de campo em socie-
as generalizações são trabalhadas. dades modernas de grande escala, sejam elas no
Ocidente ou em outras partes do mundo, um ne-
o passado, o registro do modo de vida de
gócio complicado em que se torna necessária uma
uma sociedade em pequena escala e relativamen-
maior preocupação com amostragem, estatísticas
te autônoma parecia gerar poucos problemas
e precisão metodológica.
de amostragem. A comunidade em que o etnó-
rafo vivia - uma aldeia ou lugarejo - prometia
er uma amostra razoável do modo de vida da Limitações da perspectiva do trabalho de
o iedade e presumia-se que, dentro daquela so- campo
ciedade os costumes, as ideias e as crenças eram A tradição de trabalho de campo, e com ela
compartilhadas por todos ou pela maioria das um repertório conceitual resultante de uma pro-
sso . Ob ervações mais detalhadas, uma de- funda imersão em modos de vida locais, foi a
r -o mai cuidadosa de generalizações etno- fonte da força da antropologia. Mas está se tor-
::;.- .:1.0."'-<1:) a partir de eventos reais, mais preocu- nando evidente que ela também foi uma fonte da
om adrõe estatísticos e o uso de uma fraqueza da antropolo,gia. Primeiro, essa tradição
.•anedade aior de informantes deixaram claro de trabalho de campo em que estudamos uma al-
 §2 MODOS DE COMPREENSÃO
ia ou um aglomerado de comunidades locais
ara documentar "uma cultura" produziu um
- ereótipo muito enganoso de algumas culturas,
- tratando cada uma delas como um experimen-
-o integrado e único na possibilidade humana -
uma cultura que teria estado ali durante séculos
antes da chegada do antropólogo. Veremos nos
- pítulos que se seguem que essa visão estereo-
ada, em grande parte criada pelos próprios
.lIltropólogos, exagera a diversidade de cultu-
- exagerando sua integração como "sistemas
totais" coerentes e imutáveis e minimizando a Apesar dessas direções de desenvolvimento,
iversidade individual, o conflito e a mudança.
Ela exagera sua estabilidade e seu isolamento -
uando, na verdade, os povos locais estavam, em
uitas áreas, unidos em vastos sistemas regionais
e comércio e intercâmbio e, com frequência,
unidos em estados e impérios.
Essa inocência antropológica da história e
e sistemas regionais, que estava oculta em uma
deia local, levou a esquemas conceituais que
orporam uma ingenuidade sobre organização
regional e processos históricos. Os antropólogos
tinham a tendência de explicar fenômenos locais
m termos de outros fenômenos locais, para mos-
ar com um floreio como tudo se encaixa com
erfeição, e para explicar o global e o geral como
articularidades locais. A Antropologia foi uma
di ciplina boa para ver árvores locais, mas muitas
.ezes inadequada para ver as florestas que estão
mais além delas.
As direções em que as teorias e métodos an-
rropológicos caminharam - em meio a argumen-
os calorosos - vão a caminho de vistas melhores
da floresta, uma reviravolta que traz os antropó-
logos para mais perto de seus colegas na histó-
ria, na geografia, na economia, na sociologia e na
ciência política. Nos últimos capítulos deste livro,
ANTROPOLÓGICA: TEORIA, INTERPRET. ÇÃO E •
quando voltarmos nossa atenção de o ieda
em pequena escala para as complexidades ma i
do mundo moderno e a emergência dos i temas
econômicos mundiais, veremos tanto uma exten-
são do campo de visão da antropologia quanto
uma menor nitidez das linhas que separam a an-
tropologia de outras disciplinas. Encontraremos
antropólogos usando métodos de análise mais
parecidos com aqueles do historiador econômico
ou do sociólogo urbano do que com os do traba-
lhador de campo tradicional'.
a
antropologia manteve sua visão humanista. Nos
capítulos que se seguem iremos examinar mo-
dos de vida em uma perspectiva comparativa,
construindo bases de compreensão teórica. Nos
capítulos finais nos voltaremos para as transfor-
mações do mundo moderno. No decorrer dessa
jornada, as preocupações subjacentes serão tanto
humanistas quanto científicas - com as naturezas
e os potenciais da humanidade, com as estrutu-
ras de sociedades passadas e presentes na medida
em que elas iluminam a busca por futuros viáveis.
Para nossos futuros, para que possamos sobrevi-
ver às crises atuais e àquelas que assomam à nossa
frente, teremos de construir criativamente sobre
os pontos fortes do passado e ao mesmo tempo
aprender com as histórias de opressão e insensa-
tez e transcendê-Ias.
sUMÁRIO
O estudo de povos diferentes pelo mundo a
fora pode ser uma maneira de nos compreender-
mos melhor. Nos Estados Unidos o estudo da An-
I. Para outras leituras sobre questões de tradução e significado entre
culturas, d. Keesing, 1989. Para uma discussão sobre a integração de
estudos locais com análises mais amplas em nível regional ou nacio-
nal, d. Eriksen, 1993.
 EM ANTROPOLÓGICA
o ologia é convencionalmente dividido em An-
o ologia Cultural, Antropologia Física, Arqueo-
logia e Antropologia Linguística. Nos dias atuais
o antropólogos trabalham com todos os tipos de
ociedade e seus métodos variam dos mais huma-
ni tas até os mais científicos. Para os antropólo-
go culturais o trabalho de campo etnográfico é
importante, envolvendo o estudo detalhado de
iruações locais em seus contextos mais amplos.
O trabalho de campo deve levar em consideração
o fato de que sociedades locais não são entidades
isoladas, mas pertencem a contextos regionais e
transnacionais mais amplos.
SUGESTÕES PARA LEITURAS ADICIONAIS
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