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A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NO SUS


Eugênio Vilaça Mendes

I – ORIGEM E CONSOLIDAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE E SUAS


INTERPRETAÇÕES NA PRÁTICA SOCIAL
A moderna concepção de atenção primária à saúde surgiu no Reino Unido, em 1920, no
Relatório Dawson (Lord Dawson of Penn, 1920) que preconizou a organização do sistema
de serviços de saúde em três níveis: os centros primários de atenção à saúde, os centros
secundários de atenção à saúde e os hospitais de ensino.

Esse clássico documento descreveu as funções de cada nível de atenção e as relações que
deveriam existir entre eles e constituiu a base da regionalização dos serviços de saúde e dos
sistemas de serviços de saúde organizados em bases populacionais, tendo influenciado a
organização desses sistemas em vários países do mundo.

A catalogação da atenção primária à saúde como doutrina universal, veio a dar-se na


Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada em Alma-Ata, em
1978, sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde e do Fundo das Nações Unidas
para a Infância (OMS/UNICEF, 1979).

Essa conferência definiu como elementos essenciais da atenção primária à saúde, a


educação sanitária; o saneamento básico; o programa materno-infantil, incluindo
imunização e planejamento familiar; a prevenção de endemias; o tratamento apropriado das
doenças e danos mais comuns; a provisão de medicamentos essenciais; a promoção de
alimentação saudável e de micronutrientes; e a valorização da medicina tradicional.

Em 1979, a Assembléia Mundial da Saúde instou todos os países membros a definir e pôr
em prática estratégias nacionais, regionais e globais, tendentes a alcançar a meta de “Saúde
para Todos no ano 2000” (SPT 2000).

Em 1980, o Conselho Diretivo da Organização Pan-Americana da Saúde aprovou, para as


Américas, as estratégias para alcançar a SPT 2000.

Quando a Organização Mundial da Saúde propôs sua agenda para operacionalização das
metas acordadas em Alma-Ata, os países industrializados já as haviam alcançado em
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grande parte, enquanto a maioria dos países em desenvolvimento ainda estava longe de
atingi-las. Isso gerou problemas de conceituação e, por conseqüência, de implementação
(Vuori, 1984).

As variações na interpretação da atenção primária à saúde se explicam, ademais, pela


história mesma de como se gestou e evoluiu este conceito e pela ambigüidade de algumas
de suas definições formais estabelecidas nos foros internacionais, pelo uso diferenciado que
fazem do termo atenção básica à saúde algumas escolas do pensamento sanitário e pela
tentativa de se instituir uma concepção positiva de processo saúde/doença em momento de
nítida hegemonia de uma concepção negativa da saúde.

Por isso, há três interpretações principais da atenção primária à saúde (Mendes, 1999): a
atenção primária à saúde como atenção primária seletiva, a atenção primária à saúde como
o nível primário do sistema de serviços de saúde e a atenção primária à saúde como
estratégia de organização do sistema de serviços de saúde. Essas três decodificações da
atenção são encontradas, em vários países e, até mesmo, convivem dentro de um mesmo
país.

A interpretação atenção primária à saúde como atenção primária seletiva entende-a como
um programa específico destinado a populações e regiões pobres a quem se oferecem,
exclusivamente, um conjunto de tecnologias simples e de baixo custo, providas por pessoal
de baixa qualificação profissional e sem a possibilidade de referência a níveis de atenção de
maior densidade tecnológica (Unger e Killingsworth, 1986).

A interpretação da atenção primária à saúde como o nível primário do sistema de serviços


de saúde entende-a como o modo de organizar e fazer funcionar a porta de entrada do
sistema, enfatizando a função resolutiva desses serviços sobre os problemas mais comuns
de saúde, para o que os orienta de forma a minimizar os custos econômicos e a satisfazer as
demandas da população, restritas, porém, às ações de atenção de primeiro nível.

A interpretação da atenção primária à saúde como estratégia de organização do sistema de


serviços de saúde entende-a como uma forma singular de apropriar, recombinar,
reorganizar e reordenar todos os recursos do sistema para satisfazer às necessidades,
demandas e representações da população, o que implica a articulação da atenção básica à
saúde dentro de um sistema integrado de serviços de saúde (Mendes, 2001b).
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No primeiro caso, está-se diante da atenção primária como um programa focalizado em


pessoas e regiões pobres; no segundo, como o primeiro nível de atenção do sistema de
serviços de saúde; no terceiro, como uma estratégia de organização de todo o sistema de
serviços de saúde.

A decodificação da atenção primária à saúde como estratégia de organização do sistema de


serviços de saúde é a que se utiliza neste documento. São várias as razões: é a interpretação
mais correta do ponto de vista técnico; é a mais ampla podendo conter, dentro de sua
significação estratégica, as duas outras concepções mais restritas; e é perfeitamente factível
e viável no estágio de desenvolvimento do Brasil e com o volume de gasto público em
serviços de saúde que se despende.

Agregue-se, a isso, o fato de que o Ministério da Saúde propõe como política nacional de
atenção primária à saúde, a estratégia da saúde da família, denominada de Programa de
Saúde da Família (PSF).

II – O QUE É E POR QUÊ A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE?


Há muitas definições de atenção primária à saúde sendo uma das mais conhecidas e
abrangentes, a formulada pela Organização Mundial da Saúde: “A atenção essencial à
saúde, baseada em métodos práticos, cientificamente evidentes e socialmente aceitos e em
tecnologias tornadas acessíveis a indivíduos e famílias na comunidade por meios aceitáveis
e a um custo que as comunidades e os países possam suportar, independentemente de seu
estágio de desenvolvimento, num espírito de auto-confiança e auto-determinação. Ela
forma parte integral do sistema de serviços de saúde do qual representa sua função central e
o principal foco de desenvolvimento econômico e social da comunidade. Constitui o
primeiro contacto de indivíduos, famílias e comunidades com o sistema nacional de saúde,
trazendo os serviços de saúde o mais próximo possível aos lugares de vida e trabalho das
pessoas e constitui o primeiro elemento de um processo contínuo de atenção” (World
Health Organization, 1978).

O correto entendimento do conceito da atenção primária à saúde vai dar-se pelo


conhecimento e operacionalização de seus princípios ordenadores: o primeiro contacto, a
longitudinalidade, a integralidade, a coordenação, a focalização na família e a orientação
comunitária (Starfield, 1992). Só haverá uma atenção primária de qualidade quando esses
seis princípios estiverem sendo obedecidos, em sua totalidade.
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O primeiro contacto implica a acessibilidade e o uso de serviços para cada novo problema
ou novo episódio de um problema para os quais se procura atenção à saúde.

A longitudinalidade implica a existência do aporte regular de cuidados pela equipe de saúde


e seu uso consistente ao longo do tempo, num ambiente de relação mútua e humanizada
entre equipe de saúde, indivíduos e famílias.

A integralidade implica a prestação, pela equipe de saúde, de um conjunto de serviços que


atendam às necessidades mais comuns da população adscrita, a responsabilização pela
oferta de serviços em outros pontos de atenção à saúde e o reconhecimento adequado dos
problemas biológicos, psicológicos e sociais que causam as doenças.

A coordenação implica a capacidade de garantir a continuidade da atenção, através da


equipe de saúde, com o reconhecimento dos problemas que requerem seguimento
constante.

A focalização na família implica considerar a família como o sujeito da atenção o que exige
uma interação da equipe de saúde com esta unidade social e o conhecimento integral de
seus problemas de saúde.

A orientação comunitária implica o reconhecimento das necessidades familiares em função


do contexto físico, econômico, social e cultural em que vivem, o que exige uma análise
situacional das necessidades de saúde das famílias na perspectiva da saúde coletiva.

Desde muito, há evidências de que os sistemas de serviços de saúde que se organizam a


partir de uma atenção básica à saúde, estruturada em conformidade com os seis princípios
ordenadores, são mais eficazes, eficientes e de maior qualidade.

Um rigoroso trabalho de comparação internacional entre sistemas de serviços de saúde,


realizado em onze países desenvolvidos, realizado por Starfield (1994), demonstrou que os
sistemas orientados pela atenção primária à saúde estão associados com menores custos,
maior satisfação da população, melhores níveis de saúde e menor uso de medicamentos.
Neste estudo, definiu-se um escore para a atenção primária à saúde, o qual deriva de onze
características: universalidade do acesso garantida por recursos públicos; redistributividade
dos recursos; existência de médicos generalistas; salários dos médicos generalistas em
relação com os especialistas; porcentual da força de trabalho médica envolvida na atenção
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primária à saúde; e disponibilidade do primeiro contacto, longitudinalidade do cuidado,


integralidade do cuidado, coordenação do cuidado, focalização na família e orientação
comunitária. Os indicadores de níveis de saúde utilizados foram: taxa de baixo peso ao
nascer; mortalidade pós-neonatal; taxa de mortalidade infantil; expectativa de vida para
homens e mulheres em diferentes idades; e anos potenciais de vida perdidos. Este estudo,
não apenas mostrou que os sistemas de serviços de saúde organizados pela atenção primária
à saúde são superiores àqueles que não dão grande importância aos serviços básicos, como
aponta no sentido de que os modelos de saúde da família são superiores aos modelos do
tipo convencional.

A mesma autora, Starfield (2000), estudando o sistema de serviços de saúde dos Estados
Unidos, onde, ainda, não predomina a organização pela atenção primária à saúde, mostrou
que, apesar de ser o país que mais gasta recursos no setor, seus resultados sanitários são
pobres em relação a outros doze países ricos: é o último colocado em baixo peso ao nascer,
em mortalidade infantil e em anos de vida potencial perdidos; e é o 11º no ranking de
mortalidade pós-neonatal. E que, a terceira causa de morte no país é por causas
iatrogênicas, assim distribuídas: 106.000 mortes/ano por efeitos adversos de medicamentos;
80.000 mortes/ano por infecções hospitalares; 27.000 mortes/ano por erros em hospitais; e
12.000 mortes/ano por cirurgias desnecessárias.

Ainda que a introdução do PSF no Brasil seja muito recente, começa a tornar evidente a
eficácia desse modelo de atenção primária à saúde.

É o que constatou estudo sobre a experiência do PSF no estado do Ceará, onde os principais
benefícios do programa foram a melhoria do acesso aos serviços de atenção básica à saúde,
da relação das pessoas com a equipe do PSF e de alguns indicadores de saúde (Andrade e
outros, 1998).

Além dessas evidências, a estruturação de sistemas de serviços de saúde com base atenção
primária à saúde é uma das exigências das concepções modernas dos sistemas integrados de
serviços de saúde.

Há várias formas para a organização dos sistemas de serviços de saúde, no âmbito


microeconômico. Mas, contemporaneamente, elas agregam-se em duas opções alternativas:
os sistemas fragmentados ou os sistemas integrados de serviços de saúde (Mendes, 2001b).
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Os sistemas fragmentados de serviços de saúde, ainda fortemente hegemônicos, são aqueles


que se (des)organizam através de um conjunto de pontos de atenção à saúde isolados e
incomunicados uns dos outros, com débil atenção primária à saúde, e que, por
conseqüência, são incapazes de prestar uma atenção contínua às pessoas e de se
responsabilizar por uma população determinada.

Contrariamente, os sistemas integrados de serviços de saúde são aqueles organizados


através de uma rede integrada de pontos de atenção à saúde, organizada pela atenção
primária à saúde, que presta uma assistência contínua a uma população definida – no lugar
certo, no tempo certo, na qualidade certa e com o custo certo – e que se responsabiliza
pelos resultados econômicos e sanitários relativos a esta população.

Além da organização por componentes isolados ou por uma rede contínua – o que
caracteriza mais fortemente os nomes de fragmentação e integração – essas formas
alternativas de organização dos sistemas de serviços de saúde, apresentam outra diferença
marcante, dada pelos fundamentos conceituais que sustentam a organização dos sistemas de
serviços de saúde (Mendes, 2002a).

Nos sistemas fragmentados de serviços de saúde, vige uma visão de uma estrutura
piramidal, onde os pontos de atenção à saúde devem ser organizados por níveis
hierárquicos de atenção à saúde, segundo uma complexidade crescente que vai de um nível
de baixa complexidade, o nível primário, até um nível de maior complexidade, o nível
quaternário.

Esta concepção de sistema hierarquizado, organizado por níveis de atenção segundo uma
complexidade crescente, apresenta sérios problemas.

A proposta de níveis hierárquicos fundamenta-se num conceito de complexidade


equivocado, ao estabelecer que a atenção primária à saúde é menos complexa do que os
níveis secundários, terciários e quaternários1.

Será mesmo que prestar serviços de qualidade na atenção básica à saúde, buscando
promover a saúde de indivíduos, famílias e grupos sociais – o que envolve um amplo

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Este trabalho mantém a expressão atenção primária à saúde por considerá-la mais adequada às normas
internacionais, mas reconhece que atenção básica à saúde poderia expressar melhor uma estratégia de atenção
não baseada nos níveis de complexidade.
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conjunto de conhecimentos interdisciplinares, além de atitudes e habilidades altamente


especializadas –, é menos complexo do que realizar certos procedimentos de maior
densidade tecnológica em hospitais quaternários? Será mesmo que os procedimentos da
atenção básica à saúde, intensivos em cognição, são menos complexos que os
procedimentos dos níveis de atenção secundário, terciário e quaternário, mais intensivos em
tecnologias de produto?

Essa visão distorcida de complexidade leva, consciente ou inconscientemente, a uma


banalização da atenção básica à saúde e a uma sobrevalorização, seja material, seja
simbólica, das práticas que exigem maior densidade tecnológica e que são exercitadas nos
níveis de “maior complexidade”.

Uma comparação dos valores da tabela SUS com valores de procedimentos médicos pagos
nos Estados Unidos, sugere que há, no sistema SUS, uma sobrevalorização de
procedimentos de alta densidade tecnológica em relação aos procedimentos cognitivos
característicos da atenção básica à saúde (Janett, 2002).

Nos sistemas integrados de serviços de saúde a concepção de sistema piramidal


hierarquizado é substituída por uma outra, de uma rede horizontal integrada. Aqui, não há
uma hierarquia entre os diferentes pontos de atenção à saúde, mas a conformação de uma
rede horizontal de pontos de atenção á saúde de distintas densidades tecnológicas, sem
hierarquia entre eles.

Numa rede, conforme entende Castells (2000), o espaço dos fluxos está constituído por
alguns lugares intercambiadores que desempenham o papel coordenador para a perfeita
interação de todos os elementos integrados na rede e que são os centros de comunicação e
por outros lugares onde se localizam funções estrategicamente importantes que constróem
uma série de atividades em torno da função-chave da rede e que são os nós da rede.

Nos sistemas integrados de serviços de saúde, os distintos pontos de atenção à saúde


constituem os nós da rede, mas o seu centro de comunicação está localizado na atenção
básica à saúde. Nesses casos, contudo, não há uma hierarquização entre os distintos nós,
nem entre eles e o centro de comunicação, apenas uma diferenciação dada por suas funções
de produção específicas e por suas densidades tecnológicas respectivas.
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Para desempenhar seu papel de centro de comunicação da rede horizontal de um sistema


integrado de serviços de saúde, a atenção básica à saúde deve cumprir três funções
essenciais: o papel resolutivo, intrínseco à sua instrumentalidade como ponto de atenção à
saúde, o de resolver a grande maioria dos problemas de saúde da população; o papel
organizador, relacionado com sua natureza de centro de comunicação, o de organizar os
fluxos e contra-fluxos das pessoas pelos diversos pontos de atenção à saúde; e o de
responsabilização, o de co-responsabilizar-se pela saúde dos cidadãos em quaisquer pontos
de atenção à saúde em que estejam.

A Figura 1 procura ilustrar essa mudança de um sistema piramidal hierarquizado, nos


níveis de atenção primária, secundária, terciária e quaternária à saúde, para uma rede
horizontal integrada, organizada a partir de um centro de comunicação, o ponto da atenção
primária á saúde, representado pelo círculo central.

Figura 1. Do sistema piramidal hierárquico para a rede horizontal integrada de


serviços de saúde.

A Figura 1 aponta para mudança radical da organização dos sistemas de serviços de saúde
no âmbito microeconômico que não se pode limitar a uma inversão do modelo de atenção,
como é proposto freqüentemente. Porque não se trata, apenas, de inverter a forma
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piramidal, mas de subvertê-la, substituindo-a por uma outra forma organizacional, de


qualidade inteiramente distinta, a rede horizontal integrada de pontos de atenção à saúde,
organizada partir da atenção primária à saúde.

Por fim, o dilema entre sistemas fragmentados e sistemas integrados contém dois modos
alternativos de organizar os serviços de saúde: sistemas voltados para a atenção a condições
agudas, inerentes à fragmentação, ou sistemas voltados para a atenção a eventos crônicos,
próprios da integração (World Health Organization, 2001).

Para entender a diferença entre essas duas formas de organizar os sistemas de serviços de
saúde deve-se, primeiro, marcar as significações de condições agudas e condições crônicas.

As condições agudas caracterizam-se por: a duração da condição é limitada; a manifestação


é abrupta; a causa é usualmente simples; o diagnóstico e o prognóstico são usualmente
precisos; as intervenções tecnológicas são usualmente efetivas; e o resultado das
intervenções leva normalmente à cura.

Diferentemente, as condições crônicas caracterizam-se por: o início da manifestação é


usualmente gradual; a duração da doença ou condição é longa ou indefinida; as causas são
múltiplas e mudam ao longo do tempo; o diagnóstico e o prognóstico são usualmente
incertos; as intervenções tecnológicas são usualmente não decisivas e, muitas vezes, com
efeitos adversos; o resultado não é a cura mas o cuidado; as incertezas são muito presentes;
e o conhecimento deve ser compartilhado por profissionais e usuários de forma
complementar.

As condições crônicas, contudo, não devem ser confundidas com as doenças crônicas,
ainda que possa haver uma certa relação entre elas, porque o que define uma condição
crônica é, fundamentalmente, o seu ciclo de vida que deve ser superior a três semanas
(World Health Organization, 2001); assim, muitas doenças infecciosas, como a
tuberculose, a hanseníase e a AIDS, pelo seu tempo de duração, devem ser consideradas
como condições crônicas e enfrentadas como tais.

Dadas as características singulares dessas condições agudas e crônicas, seus manejos, pelos
sistemas de serviços de saúde, são inteiramente diversos.
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Um dos problemas centrais da crise dos sistemas de serviços de saúde modernos consiste
no enfrentamento das condições crônicas na mesma lógica das condições agudas, ou seja,
através de tecnologias destinadas a responder aos momentos agudos dos agravos -
normalmente autopercebidos pelas pessoas –, através da atenção à demanda espontânea,
principalmente, em unidades ambulatoriais de pronto atendimento ou hospitalares. E
desconhecendo a necessidade imperiosa de uma atenção contínua nos momentos
silenciosos dos agravos quando as condições crônicas insidiosamente evoluem.

O mais dramático é que as pessoas comuns e correntes valorizam e desejam este sistema
voltado para a atenção às condições agudas do qual são as grandes vítimas. Os resultados
dessa forma de atenção das condições crônicas através de sistemas de serviços de saúde
voltados para a atenção a eventos agudos são desastrosos.

Tome-se o exemplo do diabetes nos Estados Unidos: há 8 milhões de diabéticos com


diagnóstico da doença e outros tantos sem diagnóstico; 35% dos diabéticos desenvolvem
nefropatias, 58% doenças cardiovasculares e 30% a 70% neuropatias; os diabéticos têm 5
vezes mais chances que os não diabéticos de apresentar um acidente vascular cerebral;
aproximadamente 15% dos diabéticos sofrem algum tipo de amputação de extremidade; há
144.000 mortes prematuras de diabéticos, uma perda de 1.445.000 anos de vida produtiva e
uma incapacitação total de 951.000 pessoas; a produtividade anual é 7 mil dólares menor
nos diabéticos em relação aos não diabéticos; um portador de diabetes tem o dobro de
possibilidade de aposentar-se precocemente que um não diabético; a carga econômica anual
do diabetes foi estimada em torno de 90 bilhões de dólares; e um diabético custa
anualmente, ao sistema de serviços de saúde, 11.157 dólares comparado com 2.604 dólares
para não diabéticos (Barr, Bouwman e Lobeck, 1996).

Outro dado que mostra a irracionalidade da atenção aos diabéticos na lógica de uma
condição aguda, está no fato de que o custo de um único episódio de internação por
diabetes corresponde a uma atenção contínua ambulatorial de 10 a 20 diabéticos durante
um ano (England, Ken e Sancho, 1997).

Por tudo isso, impõe-se a superação da forma de organização de sistemas de serviços de


saúde orientados para eventos agudos por sistemas voltados para a atenção a condições
crônicas, com exceção, evidentemente, da atenção às urgências e emergências.
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Os sistemas de serviços de saúde voltados para a atenção às condições crônicas são aqueles
que desenvolvem um enfoque sistemático e planejado para atender às necessidades dos
eventos agudos e crônicos que se manifestam ao longo da evolução de uma condição ou
doença, provendo intervenções de promoção da saúde, de prevenção das doenças ou danos,
de contenção do risco evolutivo, de tratamento, de reabilitação, de manutenção e de
suporte individual e familiar para o autocuidado, através de uma rede integrada de pontos
de atenção à saúde que presta uma atenção contínua.

Para se estruturar sistemas de serviços de saúde voltados para a atenção às condições


crônicas, desenvolveram-se instrumentos de gestão da clínica, especialmente, a gestão de
patologias (Todd e Nash, 1996).

Nos sistemas voltados para a atenção às condições crônicas, o conceito de autocuidado


adquire uma posição de centralidade sendo, mesmo, um dos quatro componentes da sua
gestão; ao contrário, nos sistemas voltados para a atenção às condições agudas, o
autocuidado não é valorizado (Von Korff et alii, 1997).

O que vai marcar, fundamentalmente, a diferença entre sistemas de serviços de saúde


voltados para condições agudas e crônicas é a qualidade da atenção primária à saúde.
Portanto, há evidências inquestionáveis da superioridade dos sistemas de serviços de saúde
organizados a partir de uma atenção primária à saúde eficaz e conformando um sistema
integrado de serviços de saúde.

Disponível em:
http://psico2008.wch.com.br/file.php?file=/1/Saude_Coletiva/recorte_APS_SUS_Mendes.doc
Acesso em:
05/Set/2008

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