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Boletim da Sociedade das

Ciências Antigas
Publicação da Sociedade das Ciências Antigas — Todos os Direitos Reservados

Volume 1I, edição X Fevereiro de 2011

Nesta edição:
Karl Von Eckartshausen

Karl Von
Eckartshausen 1 A utor de “A Nuvem sobre o
Santuário” e “Das Forças Mági-
cas da Natureza”, nasceu no castelo
mágico, pelo sobrenatural. Sabemos
que, a partir dos sete anos teve so-
nhos e experiências muito importan-
de Haimhausen (Baviera) em 28 de tes para sua vida interior, cuja inter-
Prometeu e Junho de 1752, e morreu em Muni- pretação lhe seria proporcionada
9 que em 13 de Maio de 1803. Filho por sonhos posteriores. Como es-
Pandora
ilegítimo do conde Karl Von creveria ele próprio a outro grande
Haimhausen e de Maria Anna Eckart, teósofo, Kirshberger, “a luz que bri-
O Cone de a filha de seu inten- lha nas trevas me pro-
21
Sombras dente, levaria o nome porciona o conheci-
de seu pai e um so- mento das coisas ocul-
O Processo de brenome inventado tas”. A luz foi precisa-
Regeneração que reúne os sobre- mente uma de suas
Segundo Louis 25 nomes paterno e ma- obsessões, à qual dedi-
Claude de Saint- terno: Eckartshausen. cou opúsculos inteiros.
Martin Em “A Nuvem Sobre o
Por conta de uma Santuário” nos explica
infância bastante de- que “assim com a luz
Contos safortunada e por exterior nos ilumina
Espirituais 31
causa de seu nasci- pelo caminho da nossa
mento pouco conven- peregrinação, a luz in-
cional, o jovem Karl terior nos ilumina pelo
Eckartshausen não caminho da salvação”.
receberia o título de Podemos, pois, falar de
nobreza até acabar uma “Teosofia da Luz”,
seus estudos universitários, podendo inclusive de uma “Filosofia da Luz”,
chamar-se então Karl Von baseadas em sua experiência e em
Eckartshausen. Recebeu uma educa- seu contato com a realidade trans-
ção esmerada e seguiu com proveito cendente. Nesta obra, “A Nuvem
seus estudos, tornando-se um dos Sobre o Santuário”, Eckartshausen
escritores mais fecundos de toda a f i r m a c a t e g o r i c am e n t e qu e
Alemanha e uma das figuras mais im- “mediante a luz o mago encontrará
portantes, da teosofia cristã. sabedoria e força” e que “a luz que
conhecemos neste mundo caído é só
Dotado de uma sensibilidade fora do um reflexo, um empréstimo dos sen-
comum, sua vida se viu influenciada tidos e pode conduzir ao conheci-
desde sua mais tenra infância pelo mento ou à ciência, mas nunca à sa-
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bedoria”. des o influenciaram profundamente; em vez


de endurecer seu coração, desenvolveram
Para Eckartshausen, a “luz física percebida sua piedade, fizeram dele um defensor dos
pelo homem não é a verdadeira luz, mas uni- fracos e dos oprimidos”. Sua produção literá-
camente um símbolo de nossa pátria celes- ria daquela época esteve estreitamente vin-
te”. culada com seu trabalho. Um dos muitos
opúsculos que por aquele tempo fez imprimir
Em 1770, Eckartshausen matriculou-se na levava por título “Das origens dos delitos e
Universidade de Ingolstadt, dirigida por jesuí- da possibilidade de evitá-los”.
tas, onde permaneceu por volta de três anos.
Em 1774, depois de alguns estudos particu- Em 1780, Eckartshausen ingressou no
larmente brilhantes, obteve o Absolutorium. “Colégio da Censura” e, a partir daí, traba-
lhando como censor, se encarregaria especi-
Em 1776, graças às influências da família pa- almente da revisão de obras sobre Direito e
terna (seu pai era conselheiro particular do Literatura.
Príncipe-Eleitor), obtém o posto honorário,
mas escassamente remunerado de Conse- Três anos depois, a Corte lhe ofereceu o
lheiro Palaciano, estreitamente relacionado posto de “Arquivista Secreto”, emprego bem
com as atividades do tipo jurídico às quais se remunerado que, enquanto lhe solucionaria
dedicaria a partir de 1779. seus problemas econômicos, lhe atrairia não
pouca inveja. Em 1786 publicou uma obra
Nesse mesmo ano casou-se com Genoveva intitulada “Da organização prática e sistemá-
Quiquérez, de origem obscura, que faleceria tica dos Arquivos Principescos em geral”. Seu
ao cabo de dois anos. Em 1781 casa-se de trabalho como censor e como arquivista, ao
novo, com Gabriela Von Wolter, filha de Jo- qual dedicaria a maior parte de seu tempo,
hann Anton Von Wolter, médico pessoal do lhe permitiu, entretanto, ler muito e enrique-
Príncipe-Eleitor, Karl Theodor e diretor da cer-se culturalmente.
faculdade de Medicina da Universidade de
Ingolstadt. Em breve nasce o fruto desse ma- A partir de 1788, ano em que publicou seus
trimônio, Sophia Teresia Gabriela. “Esclarecimentos sobre a Magia”, a produção
literária de Eckartshausen centrou-se, sobre-
Em 1777, Eckartshausen foi admitido na Aca- tudo em temas esotéricos. No entanto, o
demia das Ciências de Munique, da qual foi teatro ocuparia um lugar proeminente den-
membro assíduo até o ano de 1800, e onde tro de sua obra; escreveu, publicou e estreou
apresentou um grande número de conferên- com certo êxito várias obras neste gênero.
cias. O diretor da seção histórica da Acade-
mia, Ferdinand Von Sterzinger, se interessa- Ao mesmo tempo em que empreendeu uma
va, como Eckartshausen, pela magia e pelos busca do tipo filosófico, Eckartshausen se
fenômenos ocultos. Nesta mesma academia entrega também a experimentos de cunho
realizou toda uma série de experimentos físi- prático em campos como a física e a alquimia.
cos e alquímicos que influenciaram de modo Em 1798, por exemplo, publicou um tratado
decisivo suas obras. sobre “As descobertas mais recentes sobre o
Calor e o Fogo”, que lhe tomou dois anos de
Entre 1780 e 1783, se dedicou especialmente experiências práticas.
a seu trabalho como jurista, no qual tentou
plasmar seus ideais humanitários, especiali- Em 1799 publicou um artigo que não se atre-
zando-se em Criminologia. Como escreve veu assinar, no qual pretendia reduzir todas
seu biógrafo, Antoine Faivre: “Estas ativida- as ciências a um princípio universal “que per-
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mite descobrir em todas as artes e todas as encontraremos em suas obras.


ciências o que até então só havia sido consi-
derado como o efeito do acaso”. Neste es- E de reconhecer que é difícil, com os poucos
crito, Eckartshausen demonstra que o princí- dados disponíveis, fazer-se uma idéia da ex-
pio da matéria é indivisível e incorruptível. traordinária importância deste Místico Ale-
Para ele, todos os fenômenos da natureza se mão. Talvez se possa suprir esta falta repas-
produzem por síntese e análise da luz. A sando algumas das idéias principais que dei-
sombra também é matéria real, suscetível de xou em seus escritos.
ser concentrada até tornar-se palpável. No
seu livro “A Nuvem sobre o Santuário” ele Eckartshausen é um espírito inquieto, a quem
assegura que “a escuridão e a luz são verda- tudo interessa: escreveu poesias teatro, no-
deiras substâncias”. Alguns anos antes, havia velas e ensaios. Com toda certeza ele mesmo
construído uma máquina que permitia relaci- traduziu, ao menos parcialmente, muitos dos
onar os odores com as cores, graças à qual textos nos quais baseia suas exposições.
se descobriu que existia uma analogia entre
as cores, as idéias, os odores e as paixões. Em seus numerosos ensaios, desenvolve um
Tanto essa máquina como suas investigações completo sistema cosmogônico, escreve pá-
neste campo lhe atrairiam também proble- ginas admiráveis sobre Deus e o Homem, se
mas e inimizades, já que se levantou a temáti- interessa pelo mundo dos espíritos e não se
ca de que “queria introduzir na Academia envergonha de confessar que está em conta-
questões de Teosofia e de Cabala”. to com eles e que lhes deve não poucas ins-
pirações. Por outro lado, também avisa dos
perigos que comporta este tipo de intercâm-
Pouco depois, publicou outro polêmico arti-
bio. Contudo, o que realmente interessa a
go intitulado “Novas descobertas sobre a
Eckartshausen, sua grande preocupação, é a
incorruptibilidade das coisas, a conservação e
religião. Em “A Nuvem sobre o Santuário”
a perpetuação dos seres”, no qual afirma ser
escreve que “a religião está destinada a reu-
capaz de separar a matéria luminosa dos cor-
nir nele (o templo) o homem com Deus” e
pos. “a religião consiste neste único e grande mis-
tério da redenção, que se nos revela de uma
Contudo, a obra mais famosa de Karl Von
maneira meramente simbólica em todas as
Eckartshausen não aparecerá até uns poucos
anos antes de sua morte: “A Nuvem sobre o cerimônias e representações religiosas”.
Santuário ou algo que não suspeita a orgu-
A grande erudição do autor engloba todas as
lhosa filosofia de nosso século”, que alcança-
disciplinas, profanas esotéricas e sua pena
ria um grande êxito e logo seria reeditada e
toca brilhantemente quase todos os temas.
traduzida para vários idiomas. Em “Das Forças mágicas da Natureza” cita
profusamente as Sagradas Escrituras e se
Até aqui vimos de forma geral como era o
apóia nelas. Começa apresentando um tema
personagem exterior e pública de
apaixonante para muitos, como é a magia,
Eckartshausen. No entanto, o realmente im-
para acabar falando do que realmente lhe
portante é o Eckartshausen secreto, o mem-
interessa: a religião, como se a verdadeira
bro da Comunidade luminosa de Deus, da
finalidade deste livro fosse revelar os arcanos
“Escola da Via Interior” “dispersa por todo o
desta última. Eckartshausen cita Bacon de
mundo, mas governada por uma verdade e
Barulamio que afirmava que “só um filósofo
unida por um único espírito”. Dela, obvia-
superficial se permite desprezar a religião”.
mente, não se pode falar senão de dentro;
Ele escreveu este breve tratado para mostrar
mas o que quer que desejemos averiguar do
aos que buscam a verdade que existe uma
Eckartshausen secreto e da Via Interior o
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completa harmonia entre o espiritual e o físi- unir”.


co.
O mago trabalha sobre esta imaginação cria-
Karl Von Eckartshausen e a magia tiva através do desejo. Este é, de certo mo-
do, a semente do objeto desejado. Se esta
A linguagem do texto abaixo é uma lingua- semente é plantada na terra conveniente e é
gem técnica, dificilmente compreensível para oportunamente regada, o mago obterá o fru-
o não iniciado, mas que impacta por sua sim- to desejado. Mas, de maneira geral, o homem
plicidade e inspiração. Eckartshausen tem um comum só deseja de um modo inconsciente,
ponto de vista muito particular da magia, sem ter uma idéia clara e precisa daquilo que
uma visão que não parece pertencer a ne- aspira, e mais que desejo, seu querer deveria
nhuma escola em particular. Para ele, a magia chamar-se “capricho”. A Vontade pelas coi-
é, antes de tudo, uma força. Uma força que sas divinas é algo que o homem perdeu, ao
tem seu efeito no interior dos seres e que menos parcialmente, com a queda, mas que
funciona por atração, por afinidade, por res- pode ir recuperando pela prática constante
sonância, permitindo manifestar o interior no das virtudes, da oração e da fé.
mundo exterior. Mas, ao mesmo tempo, a
magia é “uma obra interior na qual se põe “O espírito astral está sujeito à Vontade do
em jogo o natural e o sobrenatural” e “a ca- ser humano e pode fazer-se ativo e tangível
da operação mágica corresponde um prévio mediante a Vontade humana”.
despertar do espírito”. A ação da magia é
possível graças ao mais fino e sutil dos ares, Eckartshausen explica que “existe uma faixa
o éter. Este é o maior mistério da magia na- ou âmbito no qual o ser humano pode entrar
tural: “O éter é como um espelho onde se em contato com o Espírito universal; neste
reflete tudo”. Contemplando-o o mago tem âmbito, o espírito humano e o Espírito uni-
acesso à onisciência. Este “Ser dos Seres”, versal formam um “Continuum”. Quando se
como o chama Eckartshausen, é “uma força conhece esta “faixa” e se permanece em con-
circular que atua em sete facetas cada uma tato com o Espírito universal, o desejo pelo
das quais remete à outra..”.. Poderíamos di- divino do mago se realiza”.
zer que o éter é a força que move as forças,
o espírito astral que está por cima e em situ- Macrocosmos e Microcosmos
ação de analogia com as sete forças astrais,
as forças invisíveis da Natureza. Para Eckartshausen, todo o visível está inti-
mamente ligado com o invisível por leis eter-
nas, pois ambos constituem uma cadeia única,
Estas forças astrais dependem de uma capaci-
pela qual, na pura inteligência suprema não há
dade humana que é a imaginação criativa, ca-
nem “encima” nem “embaixo”, nem “dentro”
pacidade de ordem transcendente que não se
nem “fora”. Ele coincide com outros teóso-
deve confundir com a fantasia ou a alucina-
fos cristãos como Boehme e Louis Claude de
ção. Esta capacidade não se pode desenvol-
Saint Martin para quem “os seres vivos imi-
ver mediante a ingestão de drogas ou narcó-
tam, em sua estrutura, o mundo astral em
ticos; antes ao contrário, eles podem influen-
sua totalidade: o que está encima é como o
ciá-la de maneira nociva senão que pela práti-
que está embaixo”.
ca da mais alta espiritualidade.
Todas as coisas estão ligadas entre si por la-
A imaginação criativa é uma Einbildungskraft,
ços invisíveis e não evidentes. Inclusive a me-
ou seja “uma faculdade capaz de criar uma
nor coisa tem sua importância, já que está
imagem a partir de outras, de assimilar, de
em relação com o todo. A menor mudança
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pode produzir os maiores transtornos: nisto nho do coração” e um das portas de entrada
radica a efetividade e o perigo da operativida- para a Via Interior.
de dentro da espiritualidade.
Adão: O homem
“O mundo visível, com todas suas criaturas,
não é mais que a figura do mundo invisível; o Uma parte importantíssima do pensamento
exterior é a assinatura do interior... O interi- de Eckartshausen parece centrar-se num te-
or trabalha constantemente para manifestar- ma que se repete em praticamente todos
se no exterior”. Os espíritos da Natureza seus ensaios: o homem. De fato, Adão era o
obedecem à Vontade do mago porque ponto central, o rei da Criação. O homem
“Macrocosmos e Microcosmos estão uni- atual, caído e exilado, embora tenha perdido
dos”. “Tudo o que está no interior, assim as prerrogativas adâmicas, conserva a neces-
como a maneira como atua, se manifesta no sidade do estado luminoso do primeiro pai.
exterior”. Eckartshausen sabe ver mais além das apa-
rências e intui o singular destino do homem,
A humildade e os símbolos sua ignorada grandeza.

O estudo dos símbolos é indispensável na “O primeiro homem era um grande mago


Espiritualidade dada à harmonia existente que caiu e perdeu sua sabedoria”, escreve.
entre os seres e as coisas Divinas. Segundo Por isso a magia, entendida como ele a en-
Eckartshausen, o estudo dos símbolos permi- tende é antes de tudo é o meio de reunir
te compreender com o coração o que pode- religiosamente o homem com seu Criador.
ria estar vedado à inteligência. “O corpo hu-
mano nos proporciona exemplos preciosos Criado à imagem e semelhança de Deus, o
de uma analogia não só poética, senão real e homem está destinado a uma felicidade se-
fundada sobre fatos: o homem que sobe por melhante à de seu Criador. No paraíso, o
uma encosta, inclina a cabeça, aquele que homem tinha um Corpo de Luz, um corpo
desce, pelo contrário, a levanta. Isto significa “constituído por energia concentrada da luz
que a humildade é necessária para aquele que e dos elementos, antes que estes elementos
quer subir e que o orgulhoso realiza o con- fossem destroçados pela queda”. Segundo
trário de um progresso”. Eckartshausen, esse corpo estava composto
por três partes de luz e uma de matéria. Por
outro lado, o homem era livre: sua liberdade
O homem pode alcançar o conhecimento das
consistia em permanecer ligado ao Criador
verdades superiores graças aos símbolos des-
ou afastar-se Dele. Ao se afastar por causa
te mundo, pois o corpo visível é o símbolo
da concupiscência, o ser primordial, o ho-
ou a sombra do invisível. O homem é um
mem de luz, cai no mundo imperfeito da ma-
Microcosmo que está em relação exata com
téria. Este estado é comparado por
o espírito do Macrocosmo. Eckartshausen a um envenenamento: “A do-
ença dos homens é um verdadeiro envenena-
“Toda forma é a letra viva de um alfabeto; na
mento; o homem comeu do fruto da árvore
natureza podemos ler como em um livro
em que dominava o princípio corruptível e
aberto o amor, a verdade e a sabedoria de
Deus”. A leitura dos símbolos nos elevará material e se envenenou ao desfrutá-lo”.
até as formas primordiais desta escritura. Seu corpo, constituído por energia luminosa
concentrada, não tinha que alimentar-se mais
Mas o acesso à compreensão dos símbolos,
que de alimentos incorruptíveis, de alimentos
vedado à inteligência, é, sobretudo “um cami-
luminosos, mas provou o alimento perecível,
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com o que se tornou perecível e mortal. O tuais, Adão, dispondo da liberdade que Deus
homem está na terra para alcançar o mais lhe havia dado, quis gozar dos bens materiais
alto grau de felicidade, mas não no tempo, que lhe estavam submetidos, para isso ele
senão na eternidade. No entanto, neste mun- necessitava de um corpo mais grosseiro.
do, pode encontrar “o ponto a partir do qual
se extraviou”. Isto nos indica que tudo, inclusive a queda,
tem um sentido providencial. Como assinala
As imagens que Eckartshausen utiliza para Louis Cattiaux em sua “Mensagem Reencon-
explicar este mistério da queda e da regene- trada” (XXV-44): “A queda do homem tem
ração são, às vezes, comovedoras: “O ho- uma finalidade divinamente elevada, que é a
mem é semelhante a um fogo concentrado e aquisição de um corpo baixo e sua glorifica-
encerrado em um invólucro grosseiro; está ção em Deus”.
separado do fogo primordial ao qual aspira
unir-se”. “Temos que queimar o invólucro No jardim do Éden, Adão era feliz. Sua felici-
que nos recobre de modo que este fogo não dade consistia em contemplar as energias da
se reduza a uma simples faísca. Então consu- Unidade e em gozar, participando delas, da
mirá tudo o que é impuro, modificará o cor- energia divina original. Esta idéia de “gozar”
po, o fará receptivo a Deus..”.. “Esta alquimia que está totalmente de acordo com a etimo-
é facilitada pelo fato de que existe, no mais logia hebraica do Éden, que significa
secreto da natureza física, uma substância “voluptuosidade”, merece talvez um breve
pura que pode ajudar-nos a liberar a alma comentário. No latim, „gozar‟ é fruor (daí vem
divina encerrada em nós: esta substância é a a palavra „fruição‟). De fruor provém fructus,
essência paradisíaca que a queda do homem „gozo, prazer, deleite, usufruto‟, e também
encerrou na matéria grosseira e que desde „fruto‟.
então enlanguesce sob suas cadeias”.
Na simbologia cristã, o fruto representa a
Para Eckartshausen, o homem “é o objeto palavra. Em um antigo texto cristão, a
mais importante do mundo. As duas ordens “Epístola a Diogneto” é possível ler:
de conhecimento nas quais participa fazem “Aqueles que amam verdadeiramente a Deus
dele como uma árvore cuja raiz é o espírito: se tornam um paraíso de delícias. Uma árvo-
o tronco e os galhos as faculdades; a folha- re carregada de frutos, de vigorosa seiva,
gem, as palavras; as flores, a Vontade; o fru- cresce neles e são ornados com os frutos
to, a virtude. Ai da árvore que não dá fru- mais ricos”. E em outro texto, esta vez um
tos!” delicioso fragmento de um discreto autor do
Século de Ouro espanhol, a “Visión Delecta-
A queda e a redenção ble” de Alfonso de la Torre, referindo-se aos
profetas: “Aqueles que têm em sua vida a
O tema da queda é um dos que trata mais visão de Deus em sua fruição, na qual são a
prolificamente, sobretudo nas obras relacio- alegria e o gozo tão grandes, que exceto
nadas com a magia e o esoterismo. Vejamos, aquela (visão de Deus), todas as coisas do
por alto, quais eram suas idéias a este respei- mundo lhes parecem um pouco de lodo”.
to.
Lembremos que, precisamente falando de
Antes da queda, o homem era sábio, pois profetas, o Evangelho segundo Mateus (VII-
estava unido à sabedoria: depois deste funes- 16) diz “por seus frutos os conhecereis”.
to acontecimento foi separado dela.
Sacerdote da divindade, mago verdadeiro,
Criado para a contemplação e o gozo espiri- Adão tinha recebido o conhecimento da or-
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dem das coisas e sua missão era colocá-las tato com ele, possui o poder sobre a nature-
no lugar que lhes correspondia. Deste modo, za inteira”. “Deus expressa um sol espiritual
o primeiro homem fazia a ponte entre a ma- que religa o finito ao infinito. Este sol é o ór-
téria e o espírito; era o coadjuvante de Deus. gão da onipotência; os persas o chamavam
Era “uma criatura intermediária que religava Ormuz, os judeus Jehová, os gregos Logos”.
o mundo espiritual com o mundo sensível”. “Este órgão é a natureza imortal e pura, a
substância indestrutível que vivifica tudo e
A queda é, para Eckartshausen, “um envene- leva a mais alta perfeição e felicidade; o pri-
namento”. O primeiro efeito deste envene- meiro homem foi criado a partir desta subs-
namento foi que “o princípio incorruptível (o tância que é o elemento puro”. Este parágra-
que se pode chamar corpo de vida, assim co- fo impressionante, que alude ao mistério eu-
mo a matéria do pecado é corpo de morte) carístico (a Sagrada Forma é redonda, como
cuja expansão constituía a perfeição de Adão, o disco solar), é sem dúvida reveladora de
se concentrou no interior e uma liberdade espiritual que
abandonou o exterior ao do- situa Eckartshausen acima
mínio dos elementos”. das formas e acima dos dog-
matismos.
Deste modo, o homem caído
perdeu a capacidade mágica Eckartshausen fala também
ficando o mundo exterior fora de “um azeite de unção que
de seu domínio. As conse- renova o homem”. Este azei-
qüências naturais desta perda te, que reside no mais pro-
de luz, diz Eckartshausen, fundo da matéria física, é
“foram a ignorância, as pai- chamado “Electrum, o ele-
xões, a dor, a miséria e a mento divino, o órgão ou
morte”. Revestido de um cor- vehiculum do espírito de
po imortal, Adão não tinha Deus, o vestido de ouro da
porque ter conhecido a mor- filha do rei”. Este “Electrum
te. Mas nosso primeiro pai charmal aetherum é o Verbo
pecou, sendo o pecado antes físico e glorioso, o corpo de
de tudo “um pecado de egoís- Nosso Senhor Jesus Cristo”.
mo”. “O egoísmo é obra de
Lúcifer e a causa da queda de Ele o descreve como “um
Adão”. azeite verdadeiro, luminoso e incombustível:
aquele que é ungido com ele depois de uma
Apesar da queda adâmica, o jardim do Éden preparação suficiente, se converte em um
não desapareceu, mas “está cheio de cardos verdadeiro rei e em um sacerdote de Deus;
e espinhos”. Apesar de que nossos sentidos o Espírito Santo atuará através dele e lhe
afastarem-se dela, existe uma força luminosa mostrará tudo”.
que imanta nosso centro até a Unidade. To-
do o segredo consiste em saber despertá-la Este princípio vivifica o que está morto e de-
de um modo harmonioso e equilibrado. senvolve a luz que está enterrada em nós,
dissolvendo o “glúten” do sangue.
O Sensorium
A regeneração
As forças divinas operam num órgão concre-
to. “Quem conhece esse órgão e sabe a ma- O homem é um ser caído em um mundo te-
neira de apropriar-se dele ou entrar em con- nebroso, separado da luz original, e a aceita-
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ção inteligente e humilde desta realidade é a A oração


base para vencer o orgulho que nos cega e
para voltar a reencontrar nosso estado glori- A característica principal do estado caído do
oso. ser humano é a separação. Neste mundo es-
tamos separados da unidade, do centro, de
Mas, como fazê-lo? Como começar? Deus. Como escreve Eckartshausen, “Um
Eckartshausen se revela como um grande espaço intermediário se interpõe entre nós e
mestre quando diz que “A oração é o primei- o objeto de nossa busca; a oração elimina
ro passo que nos conduz à regeneração”. este espaço”. Vimos que a oração era o pri-
meiro passo que conduz à regeneração. Mas,
“A regeneração é um renascimento, uma o que é a oração? De onde procede? “A ver-
transfiguração que nos assegura a paz com dadeira oração, não provém da sinagoga nem
nós mesmos e com a natureza inteira”. do magnífico templo cristão, mas do coração
do homem”. Uma vez purificado, este é sem
“A possibilidade de recuperar nosso corpo dúvida o lugar onde se produz a fecundação
luminoso reside sempre em nós como uma de que fala o grande cabalista cristão Pico
semente pronta para germinar”. della Mirandola.

Existe, na natureza física “uma substância pu- Em uma oração dirigida à “luz eterna”, aquela
ra que pode ajudar-nos a liberar a centelha que brilha nas trevas, mas que elas não per-
divina encerrada em nós, esta substância é a cebem, Eckartshausen pede “que sua própria
essência paradisíaca que a queda do homem Vontade abdique a fim de que seu coração se
encerrou na matéria grosseira e que desde converta num lugar santo e que a divindade
então enlanguesce sob suas cadeias”. se expresse de novo nele, como em todos os
demais homens separados de Deus em razão
O segredo da regeneração consiste em fazer da queda”.
desaparecer a casca que mantém prisioneiro
o coração divino: esta é a construção do Desta forma, a oração, o diálogo na intimida-
templo no qual Deus, a natureza e o homem de do coração entre a centelha divina do ho-
estarão unidos para sempre. mem e Deus, deve ser começado através do
estudo das Sagradas Escrituras, que é o meio
“A verdadeira ciência real e sacerdotal é a mais eficaz para que possa realizar-se em
ciência da regeneração, quer dizer, a reunião nós, a Vontade de Deus, como sugere a mais
de Deus com o homem caído”. famosa e também a mais mágica das orações
“O Pai Nosso”.
“Construir o verdadeiro templo é destruir a
miserável cabana adâmica e substituí-la pelo Verifica-se como é bela a Criação e ainda
templo de verdade; é desenvolver em nós o mais seu Retorno, dali que os grandes Mes-
sentido interior a fim de que o princípio me- tres Iluminados, Santos e Homens de Deus,
tafísico incorruptível supere o princípio ter- passavam horas bebendo o néctar da Sabe-
restre”. doria Divina. Porque a Glória e Sabedoria do
Pai Eterno são infinitas.
A regeneração não se refere só ao homem:
abarca a natureza inteira, que ele arrastou As Sagradas Escrituras dizem: “a Fé move
em sua queda. “A natureza aspira à sua res- montanhas”. Portanto, se o homem trabalhar
tauração: espera com nostalgia o momento convicto do que está realizando, poderá ter a
no qual a humanidade alcançará a mais alta certeza de que a “obra será realizada”.
perfeição”.
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Prometeu e Pandora

P ossuidoras de defeitos e virtudes, as


divindades primordiais tinham no Olim-
po o remanso. Procriavam deuses e deusas
batalha entre eles e os olímpicos foi instaura-
da.

gerados de suas próprias paixões; paixões Céu e terra já estavam criados. A parte íg-
que dariam forma à personalidade de cada nea, mais leve, havia se espalhado e formado
um, transformados em mitos e colocados, o firmamento. O ar colocou-se em seguida.
assim, acima do bem e do mal. Eram deuses, A terra, sendo a mais pesada, ficou para bai-
enfim. xo e a água ocupou o ponto inferior, fazendo
Prometeu flutuar a terra. E neste mundo assim criado,
habitavam as plantas e os animais. Mas faltava
a criatura na qual pudesse habitar o espírito
Júpiter diz a Prometeu: "Filho de Iápeto, reju-
divino. Foi então que
bilas-te por haveres rou-
chegou à terra o titã Pro-
bado o fogo divino e iludi-
meteu, descendente da
do a minha sabedoria; mas
antiga raça de deuses,
esse ato será fatal a ti e
destronada por Zeus.
aos homens que hão de
vir. Para vingar-me, enviar-
Prometeu, "aquele que
lhes-ei um funesto presen-
pensa antes" ou "aquele
te que os enfeitiçará e fará
que prevê" (o nome Pro-
com que amem o seu pró-
meteu, segundo a etimo-
prio flagelo." (Hesíodo). logia popular, teria vindo
da conjunção das pala-
vras gregas pró (antes) e
Por serem concebidos sob manthánein (saber, ver),
os auspícios dos espasmos ou seja, Prometeu equi-
de Gaia, os imortais des- valeria a prudente ou
frutavam de privilégios. previdente), filho de
Donos de matéria sutil, Iápeto (ou Jápeto), um
metamorfoseavam-se e se titã, permanecera neutro
multiplicavam. No Olimpo e vira sua raça ser dizi-
não havia a idéia de perfei- mada pelos olímpicos.
ção conforme a concebe- Era, entretanto, admira-
mos a partir do Cristianis- do por Zeus, que gostava
mo, pois segundo o pensa- de seus dons premonitó-
mento clássico, no Univer- rios; fora recebido entre
so, tudo, absolutamente os imortais, participando
tudo, está em processo de evolução, portan- dos banquetes e assembléias das divindades.
to, da ameba aos deuses todos evoluem todo Enviado à Terra a fim de criar um ser dife-
o tempo. Assim, Hera andava infeliz porque rente dos animais, decidira vingar-se de Zeus,
seus filhos gerados com Zeus, do qual era que destruíra sua raça. O gigante sabia que
irmã, eram criaturas grotescas, eventualmen- na terra estava adormecida a semente dos
te deformadas, a exemplo dos cíclopes, trí- céus. Por isso apanhou um bocado de argila e
clopes e depois os titãs. E o deus do Olimpo, molhou com um pouco de água de um rio.
compadecido pela dor de sua mulher, man- Com essa matéria prima fez o homem, à se-
dou que exterminassem os titânicos, e uma melhança dos deuses, para que fosse o se-
Página 10 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

nhor da terra e soprou-lhe as narinas com a não havia luz entre as criaturas de Prometeu.
essência de que seriam feitos, apanhou das Andavam à esmo... errando, até que, indigna-
almas dos animais características boas e más, do e movido por um gesto de profundo in-
animando sua criatura: a fidelidade dos cava- conformismo, Prometeu apanhou um caule
los, a força do touro, a esperteza da raposa, do nártex, aproximou-se da carruagem do
a avidez do lobo. Minerva dera néctar às no- Sol e incendiou-o. Roubara o fogo dos céus.
vas criaturas e elas ganharam espírito divino. Com esta tocha, Prometeu entregou o fogo
Foi assim que surgiram os primeiros seres para a humanidade, o que dava a ela a possi-
humanos, que logo povoaram a terra. bilidade de dominar o mundo e seus habitan-
tes.
Mas faltavam-lhes os conhecimentos sobre os
assuntos da terra e do céu. Vagavam sem sa- Ah, os belos e orgulhos homens de Prome-
ber a arte da construção, da agricultura, da teu dançavam em torno do fogo e conheciam
filosofia. Não sabiam o movimento, a luz, a
caçar ou pescar e nada cor... Mas os céus tre-
sabiam da sua origem miam. Como tivera,
divina. Prometeu se Prometeu, a coragem
aproximou e ensinou às de colocar seus homens
suas criaturas todos e os deuses no mesmo
esses segredos. Inven- plano de existência? Tal
tou o arado para que o soberba lhe reservaria a
homem plantasse, a cu- ira de Zeus, o deus dos
nhagem das moedas deuses que por isso
para que houvesse o tramou a sua vingança.
comércio, a escrita e a Convocando os deuses
mineração. Ensinou-lhes do Olimpo, decide dar
a arte da profecia e da a Prometeu e aos tolos
astronomia, enfim todas homens um castigo.
as artes necessárias ao Que Prometeu fosse
desenvolvimento da acorrentado a um ro-
humanidade. Os orgu- chedo por trinta sécu-
lhosos homens de Pro- los, à disposição dos
meteu eram belos co- abutres que deveriam
mo deuses, entretanto, a condição de huma- mordiscar-lhe quase todo o fígado ao longo
nos, reles mortais, faria com que pagassem do dia. Não havia perdão no coração endure-
pelo status adquirido, transformados assim cido de Zeus, personificado na figura do ro-
no alvo da ira dos deuses. chedo. Durante a noite o órgão se recompo-
ria para ser novamente semi-devorado quan-
Então houve um banquete. Prometeu, encar- do o dia amanhecesse. Estava lançado o suplí-
regado da partilha do boi, o fizera de modo a cio de Prometeu. Mas era pouco ainda. A
humilhar os imortais, oferecendo a eles as tentativa de comparar grosseiras criaturas
entranhas, enquanto que aos humanos reser- feitas do barro com os deuses era um evento
vou a carne saborosa. Encolerizado, Zeus tal que merecia do Olimpo uma vingança
esconde daquelas criaturas o privilégio da luz maior.
e do movimento, simbolicamente, da luz na
alma, da inteligência: o fogo, último privilégio Assim, com a ajuda dos olímpicos e ninfas,
para que se constituísse e se consumasse a Zeus manda criar um ser oposto aos ho-
civilização. E não havia movimento na Terra, mens: uma mulher, única naquele universo
Volume 1I, edição X Página 11

masculino. Deveria ser belíssima, e dela se les. Porque a esperança pode também ter
encarregariam primeiramente Minerva e Vul- uma conotação negativa, já que ela pode mi-
cano. Dotada de beleza inigualável, sagacida- nar as nossas ações nos paralisando diante de
de, graça, audácia, força, persuasão, habilida- coisas que deveríamos confrontar.
de manual e sensualidade delicada, receberia
de Mercúrio gotas de sedutora dissimulação. Pandora
Deveria seduzir todos os homens e tirar-lhes
o rumo. Esta mulher foi batizada por Hermes
A maior dificuldade de relatar um mito não
como Pandora, (pan = todos, dora = presen-
está em traduzir as suas múltiplas conexões e
te), pois cada um dos deuses deu à donzela
desdobramentos, mas em resolver onde pa-
um dom. Afrodite deu-lhe a beleza, Hermes
rar, onde recortar este mito do todo da mi-
o dom da fala, Apolo, a música. Ainda vários
tologia. Por isso, a história de Pandora come-
outros encantos foram colocados na criatura
ça antes da própria Pandora. Divindade cria-
pelos deuses. Zeus pediu ainda que cada
da pelos deuses do Olimpo sob as ordens de
imortal reservasse um malefício para a huma-
Zeus para a vingança contra a humanidade
nidade. por esta ter recebido de Prometeu o segre-
do do fogo, o que dava a ela a possibilidade
Esses presentes maléficos foram guardados
de dominar o mundo e seus habitantes. Zeus
numa caixa, que a donzela levava nas mãos.
tramou a sua vingança mandando que Hefes-
Pandora, desceu à terra, conduzida por Her-
tos moldasse uma estátua de uma linda don-
mes, e foi dada como esposa a Epimeteu, "o
zela. Chamou-a de Pandora, “a que possui to-
que pensa depois" ou "o que reflete tardia-
dos os dons”, e ordenou a cada um dos deu-
mente", o irmão de Prometeu; que, deslum-
ses que desse à donzela um dom. Vários en-
brado com sua beleza perfeita, aceitou apesar
cantos foram colocados na criatura, por
dos avisos do irmão, para que não aceitasse
exemplo: Afrodite deu-lhe a beleza, Hermes
nada dos deuses. Pandora, então, diante dele
o dom da fala, Apolo, a música, etc. Em se-
abriu a tampa do presente de núpcias de
guida Zeus pediu ainda que cada imortal es-
Zeus, e de dentro, como nuvem negra, esca-
colhesse um malefício para a humanidade e
param todas as maldições e pragas que asso-
os depositasse em uma caixa, que a donzela
laram todo o planeta. Desgraças que até hoje
levava nas mãos, como presente de núpcias a
atormentam a humanidade. Pandora ainda
tenta fechar a caixa divina, mas era tarde de- Epimeteu; a caixa de Pandora.
mais: ela estava vazia, com exceção da
Então ela desceu à terra, conduzida por Her-
"esperança", que permaneceu presa junto à
mes, aproximou-se de Epimeteu, o irmão de
borda da caixa. A única forma do homem
Prometeu, e diante dele abriu a tampa do
não sucumbir às dores e aos sofrimentos da
presente de Zeus. E da Caixa de Pandora
vida. escaparam a dor, as doenças, a inveja, a mor-
te, a hipocrisia, a peste, a desunião, o desa-
Deste mito ficou a expressão caixa de Pan-
mor, a guerra, o ódio, a loucura... Pandora,
dora, que se usa, em sentido figurado, quan-
percebendo a intenção dos deuses e tudo o
do se quer dizer que alguma coisa, sob uma
que se espalhara sobre os homens, fechou a
aparente inocência ou beleza, é na verdade
caixa rapidamente, entretanto, era tarde de-
uma fonte de calamidades. Abrir a Caixa de
mais, os males haviam sido despejados sobre
Pandora significa que uma ação pequena po-
a raça de Prometeu. Havia lágrimas nos desa-
de liberar uma avalanche de repercussões
visados olhos de Pandora, a primeira mulher,
negativas. Há ainda um detalhe intrigante que
ingenuamente, usada como ferramenta para a
poderíamos levantar: do por quê a esperança
vingança Olímpica. No fundo de sua Caixa
estava guardada na caixa entre todos os ma-
havia sobrado, a despeito dos males, um úni-
Página 12 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

co elemento bom: a Esperança. Foi então que -se imediatamente. Depois de um estremeci-
a humanidade, que até aquele momento havia mento, uma fenda abriu-se no topo do mor-
habitado um mundo sem doenças ou sofri- ro, e dela emergiu a deusa com suas serpen-
mentos, se viu assaltada por inúmeros males, tes terrenas. Os mortais estavam paralisados
e somente a Esperança lhe dá forças e alento de medo, mas a deusa acalmou-os dizendo: -
para sobreviver aos problemas. Eu sou Pandora, a Doadora de todos os Presen-
tes - e retirou a tampa de sua grande caixa.
Outra versão do mito, diz que Pandora é a Dela tirou uma romã, que tornou-se uma
deusa da ressurreição. Ela, por não nascer maçã, que tornou-se um limão, que tornou-
como divindade, é conhecida como uma semi se uma pera. - Eu trago árvores cheias de flores
-deusa. Sua ambição em se tornar deusa do que dão muitos frutos, árvores retorcidas com
Olimpo e esposa de Zeus, fez com que ela olivas penduradas e essa videira que irá susten-
abrisse a caixa divina. Zeus para castigá-la tar vocês -. A deusa pegou da caixa uma por-
tirou a sua vida. Hades com interesse nas ção de sementes as quais espalhou pela coli-
ambições de Pandora, procurou as pacas na e continuou seu discurso. - Eu trago a vo-
(dominadoras do tempo) e pediu para que o cês plantas para matar a fome e para curar a
tempo voltasse, mas sem a permissão de doença, para tecelagem e tinturaria. Sob a su-
Zeus elas não puderam fazer nada. Hades perfície da terra vocês encontrarão minerais e
convenceu o irmão a ressuscitar Pandora, e argila de inúmeras formas. Eu trago maravilhas,
devido aos argumentos do irmão, Zeus a res- curiosidades e memória. Eu trago sabedoria. Eu
suscitou dando-lhe a divindade que ela dese- trago justiça com misericórdia. Eu trago laços de
java. Assim, Pandora tornou-se a deusa da cuidado e de comunhão. Eu trago coragem, força
ressurreição. Para um espírito ressuscitar e persistência. Eu trago amabilidade para todos
Pandora entrega-lhe uma tarefa, se o espírito os seres. Eu trago as sementes da paz.”
cumprir ele é ressuscitado. Pandora, com
ódio de Zeus por ele tê-la tornado uma deu- Pandora e Eva
sa sem importância, entrega aos espíritos so-
mente tarefas impossíveis. Assim nenhum
Os mitos ocidentais relacionados com a ori-
espírito conseguiu e nem conseguirá ressus-
gem humana, por vezes, tratam da perda de
citar. uma condição feliz jamais alcançada depois,
na história. Tanto os assírios, babilônios, ju-
O mito mais conhecido sobre Pandora é o
deus e helenos, como os índios do Brasil,
que conta a história da sua criação pelos deu-
concordam que a matéria prima para feitura
ses, e de seu maléfico presente para a huma-
dos primeiros homens seria o barro. O ter-
nidade, escondido em uma caixa. Esse mito é
mo hebraico adam vem de adama, terra, e
o descrito acima. Há, porém, outra versão
quer dizer “aquele que surgiu da terra”.
que remonta aos povos pré-helênicos, que
Quanto à mulher, entretanto, há divergên-
tinham de Pandora, uma idéia diametralmen-
cias. No Antigo Testamento, Eva seria uma
te oposta da conhecida. Esta é a mitologia de
parte retirada do próprio homem, por Deus,
um povo agrícola, com seu culto à deusa-
a fim de lhe fazer companhia. Por outro lado,
mãe...
na Teogonia e em Trabalhos e os Dias, de Hesí-
odo (sécs. VIII ou VII a.C.), Pandora seria um
“Assim o novo mito tornou-se a doadora de
“presente” que Zeus mandara fazer para pre-
talentos divinos e de todos os males da hu-
judicar os homens, criaturas de Prometeu.
manidade. Certa manhã os homens descobri-
Em ambos casos, a desatenção da mulher
ram uma colina coberta de arbustos com fru-
acaba por levar à perda do paraíso para a hu-
tos vermelhos. Eles começaram a banquetear
Volume 1I, edição X Página 13

manidade, que passa a conviver com os males perderam.


do mundo, sendo obrigada a sobreviver com
o suor do rosto. O nome Prometeu, segundo a etimologia po-
pular, teria vindo da conjunção das palavras
“Antes vivia sobre a terra a grei dos humanos gregas pró (antes) e manthánein (saber, ver).
a recato dos males, dos difíceis trabalhos, Ou seja, Prometeu equivaleria a prudente ou
das terríveis doenças que ao homem põem fim; previdente. Embora, como afirma Ésquilo,
mas a mulher, a grande tampa do jarro alçado, Prometeu não supusesse o teor do castigo
dispersou-os e para os homens de Zeus ao desafiá-lo, ainda assim lhe é atri-
tramou tristes pesares. buído um caráter oracular, por ter proferido
Sozinha, ali, a Expectativa em um vaticínio sobre a queda de Zeus, o gover-
indestrutível morada nador. A profecia diz que o filho da nereida
abaixo das bordas restou e para fora não Tétis e de Zeus destronaria o pai. Por causa
voou, pois antes repôs ela a tampa do jarro, disso, Zeus desiste de seduzir a nereida e se
por desígnios de Zeus porta-égide, apressa a lhe dar um esposo mortal, que aca-
o agrega nuvens” bou sendo Peleu. Este cuidado de Zeus tam-
bém se verifica quando ele engole a mãe de
(HESIODO, Trabalhos e os Dias, v. 90 a 99). Atena, Métis (sabedoria, astúcia), sua primei-
ra esposa, para que não nascesse dela um
A comparação de Eva com Pandora é muito segundo filho mais poderoso que o pai. Zeus
óbvia para ter escapado a Milton, que a apre- engole Métis ainda grávida, e Atena, deusa da
senta no Livro IV do Paraíso Perdido: sabedoria, nasce da cabeça do pai.

“Mais bela que Pandora a quem os deuses Prometeu, que parece detestar Zeus - como
Cumularam de todos os seus bens se observa na tragédia esquiliana pelo des-
E, ah! bem semelhante na desgraça, prezo a seu mensageiro Hermes ou quando
Quando ao insensato filho de Jápeto critica a arrogância de Zeus e diz abominar
Por Hermes conduzido, a humanidade os demais deuses - era filho do titã Iápeto e
Tomou, com sua esplêndida beleza, da oceânide Clímene. Apenas em Ésquilo a
E caiu a vingança sobre aquele mãe de Prometeu é Têmis, a deusa da justiça.
Que de Júpiter furtou o sacro fogo." Tinha como irmãos Atlas, Menécio e Epime-
teu, sendo que todos eles foram castigados
O Mito por Hesíodo e Ésquilo por Zeus. Iápeto era irmão de Crono
(Prometeu era, portanto, primo de Zeus) e
de Oceano, que em Ésquilo sai do seu reino
O mito de Prometeu é descrito na literatura e avança sobre a Terra para tentar dissuadir
clássica principalmente em Hesíodo. Aparece o sobrinho Prometeu de sua revolta e dizer a
nas duas obras do poeta, Teogonia e Os traba- ele que intercederia junto a Zeus, uma prova
lhos e os Dias, sendo que na segunda ele é
recontado e complementado. Afora Hesíodo, ferrenha de sua amizade.
outra obra importante, a tragédia Prometeu
Nos versos 510 a 516 da Teogonia, estes
Acorrentado, é dedicada a ele. Porém nesta
contam a história de Prometeu segundo He-
tragédia o mito não está completo, pois co-
síodo. Consta ali que a primeira falta de Pro-
meça no instante em que Hefesto e Cratos
meteu para com Zeus em favor dos homens
castigam o titã, a mando de Zeus pai. Prome-
foi quando dividiu um boi em duas partes,
teu, em diversas partes da tragédia, se refere
uma cabendo a Zeus e outra aos mortais. Na
aos motivos que o levaram a ser acorrenta-
primeira estavam as carnes e as vísceras, co-
do. A tragédia fazia parte de uma trilogia so-
bertas com o couro. Na segunda, apenas os-
bre Prometeu, mas as outras duas partes se
Página 14 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

sos, cobertos com a banha do animal. Zeus, esperança.


atraído pela banha, escolhe a segunda, e en-
tão a raiva, o rancor, e a cólera lhe subiram a Quanto a Prometeu, foi castigado sendo pre-
cabeça e ao coração. Por conta disso, Zeus so pelas inquebráveis correntes de Hefesto
castiga os homens, negando a eles a força do no meio de uma coluna, e uma águia de lon-
fogo infatigável. O fogo representa simbolica- gas asas enviada por Zeus comia-lhe o fígado
mente a inteligência do homem. A afronta imortal. Ao cabo do dia, chegava a negra noi-
definitiva de Prometeu, porém, ocorre quan- te por Prometeu ansiada, e seu fígado torna-
do este rouba “o brilho longevisível do infati- va a crescer. Teria sido assim eternamente se
gável fogo em oca Férula” (Teogonia, 566). não fosse por intervenção de Hércules, que
Com isto, Prometeu reanimou a inteligência matou a águia como consentimento de Zeus.
do homem, que antes era semelhante aos
fantasmas dos sonhos. O Mito por Platão

A fala de Prometeu na tragédia de Ésquilo


No Protágoras de Platão, todas as criaturas
remete para ele a dívida dos mortais por te-
vivas aparecem como obra de vários deuses,
rem a habilidade de, por exemplo, construir
que as plasmaram inicialmente com terra,
casas de tijolos e madeira. Os mortais, diz o
limo e fogo. A palavra latina homem está liga-
titã, tudo faziam sem tino até que este lhes
da a humus (terra) e os gregos acreditavam
ensinasse “as intricadas saídas e portas dos
que uma centelha divina de imortalidade per-
astros. Por elas inventei os números (...) a
corria toda a Terra. São os outros deuses
composição das letras e a memória (...), ma-
que incumbem Prometeu e Epimeteu de dar
triz universal.” Prometeu diz, enfim, que os
aos seres as qualidades necessárias para se
homens devem a ele todas as artes, inclusive
sustentarem quando viessem à luz. Epimeteu,
a de domesticar animais selvagens e fazê-los
por ser atrapalhado, torna-se um reversor
trabalhar para si. dos benefícios de Prometeu aos homens, tan-
to em Hesíodo quanto em Platão. Protágoras
Por conta dos mortais terem o fogo, Zeus
continua a narrativa dizendo que Epimeteu
armou uma armadilha: mandou o filho de He-
pediu a seu irmão para que deixasse por sua
ra, o deus coxo e ferreiro Hefesto, plasmar
conta a distribuição das qualidades, cabendo
uma mulher ideal, fascinante, ao qual os deu-
ses presentearam com alguns atributos de a Prometeu apenas uma revisão final.
forma a torná-la irresistível. Esta mulher foi
Começa então a divisão compensatória de
batizada por Hermes como Pandora, (pan =
Epimeteu: a alguns dá força sem velocidade, a
todos, dora = presente) e ela recebeu de
outros dá apenas velocidade. Para algumas
Atena a arte da tecelagem, de Afrodite o po-
criaturas, Epimeteu deu armas. Aos que não
der de sedução, de Hermes as artimanhas e
a tinham, achou diferentes soluções, como
assim por diante. Pandora foi dada de pre-
asas para fugir aos pequenos e tamanho a
sente para o atrapalhado Epimeteu, que inge-
outros. É certo que asas são um meio de
nuamente aceitou, a despeito da advertência
transporte ideal para as fugas, mas também o
de seu irmão Prometeu. A vingança planejada
são para a caça. As qualidades foram assim
por Zeus estava contida numa caixa, que foi
distribuídas para que houvesse um equilíbrio,
levada como presente de núpcias para Epi-
e não viessem as espécies destruir umas às
meteu e Pandora. Quando esta, por curiosi-
outras. Depois Epimeteu provê os seres com
dade feminina, abriu a caixa e rapidamente a
o necessário para sobreviverem no frio, os
fechou, escaparam todas as desgraças e cala-
pêlos. Por último determinou o que cada um
midades da humanidade, restando apenas a
Volume 1I, edição X Página 15

deveria comer, de acordo com a sua consti- Ésquilo, o homem vive por séculos sem con-
tuição: ervas, frutos, raízes e carne. Os que seguir a aptidão necessária, antes de receber
comiam carne, de acordo com o mito, se re- o fogo como presente. Isto representa a difi-
produziriam menos do que os herbívoros. culdade de sobrevivência do homem nas eras
primitivas, ou a miséria do homem na Idade
Epimeteu, por não refletir, termina a sua dis- do Ferro.
tribuição das qualidades, mas deixa de lado
um ser: o homem. O que sobrou para o ho- Em Platão o homem já obtém a capacidade
mem? Nada, permanecera nu e sem defesa. de trabalhar o fogo desde a sua criação. A
Estava se aproximando a hora determinada miséria em Platão consiste na falta da arte
para que o homem chegasse à luz e Prome- política, indispensável para a fortificação dos
teu aparece para fazer sua parte. Não encon- homens em cidades e a instituição de um go-
trando outra solução, Prometeu é obrigado a verno virtuoso baseado na justiça.
roubar o fogo de Hefesto
e a sabedoria de Atena, Diz Platão que não demo-
deusa de olhos verde- rou aos homens usarem a
mar. De posse dessas du- sabedoria herdada de
as qualidades, o homem Atena para desenvolve-
estava apto a trabalhar o rem uma linguagem, cons-
fogo nas suas diversas truir casas e roupas e
utilidades, e assim garan- procurar alimentos. Po-
tir a sobrevivência. Po- rém, não tendo política,
rém, a qualidade necessá- não conseguia vencer as
ria para os homens se feras nem guerrear, pois
relacionarem entre si se não tinham a arte militar,
encontrava nas mãos de parte da política. E, ao
Zeus: a política. E era tentar se reunirem em
proibido a Prometeu pe- grupos, a anarquia reinan-
netrar na Acrópole de te fazia de todos, inimigos
Zeus, vigiada por temíveis e vítimas de querelas mili-
sentinelas. tares. Os homens então
passaram a se destruir,
Protágoras termina o mi- vítimas das feras e deles
to dizendo que consta ter próprios.
sido Prometeu morto por
este crime, o que não é Zeus, preocupado com o
possível, pois Prometeu iminente desaparecimen-
era imortal. As diferenças to do homem, mandou
entre as narrativas de Platão e Hesíodo são seu filho e mensageiro Hermes distribuir pu-
mais visíveis que as semelhanças. Por exem- dor e justiça, para que pudessem se relacio-
plo, em Hesíodo o trabalho é um castigo do nar e subsistir. O pudor e a justiça deveriam,
Crônida aos mortais, o mito platônico nos ao contrário das demais artes, serem distri-
leva a crer que o trabalho é uma dádiva. buídos igualmente a todos os homens, e
aqueles que não a tivessem deveriam morrer,
O nascimento dos mortais em Hesíodo é por estarem contra o princípio unificador da
bem anterior a Platão, se tomarmos como sociedade.
referência o roubo do fogo, que em Hesíodo
se dá depois do nascimento dos homens. Em Sócrates apresentara a Protágoras, como
Página 16 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

principal objeção à impossibilidade do ensino O Mito Interpretado


da virtude o fato de homens virtuosos, como
Péricles, não terem tido filhos virtuosos. Co-
"Essas coisas não aconteceram nunca,
mo ficaria o mito de Protágoras então, se ele
diz que a virtude é necessária e comum a to- mas existiram sempre"
dos? Protágoras não pretendia o seu mito Salústio, Degli Dei e del mondo
verdadeiro, ele é um instrumento escolhido,
Foi descrito que da união de Urano (Céu)
dentre outros, para expor a sua teoria. Para
com a Terra (Gaia), teriam se originado Cro-
Protágoras todos os homens são capazes de
nos (Saturno) e Iápeto. Cronos daria origem
alcançar a virtude, mas somente pelo estudo
a Zeus (Júpiter). Por sua vez Iápeto se uniria
e aplicação. Ninguém puniria as pessoas que
a Clímene, dando origem a linhagem dos Ti-
tem algum defeito sem ter culpa, como a fei-
tãs: Menécio, Atlas, Epimeteu e Prometeu.
úra ou a baixa estatura, mas alguém que se
Epimeteu se uniria a Pandora, Prometeu se
apresenta injusto é punido. Para ser justo, o
uniria a Celeno (ou a Clímene?), da primeira
cidadão grego era ensinado desde pequeno a
união surgiu Pirra, e da segunda, Deucalião.
ser racional e a caminhar para a virtude, pe-
Como veremos adiante, após o "dilúvio", Pir-
los pais, que procuram a cada ato demons-
ra e Deucalião se uniram dando origem a to-
trar as virtudes como justiça, temperança e
da a humanidade atual. Verificamos a iniciati-
santidade. Na formação das crianças, também
va dos antigos gregos em descrever a genea-
é usado o exemplo de heróis virtuosos do
passado, cantado em poemas como os de logia de uma "família" divina.
Homero. Se a criança aprende, tudo bem,
A palavra grega para Prometeu teria paren-
senão, ela é levada a se corrigir através da
tesco, também com o sânscrito, dando a
ameaça de castigos violentos. Isto é explica-
idéia de pensar, premeditar, prevenir, relaci-
do por Protágoras com o exemplo dos toca-
onada ainda com a "produção do fogo por
dores de flauta. A virtude é generalizada,
perfuração". Prometeu em grego, significa na
imaginemos que tocar flauta também o fosse:
acepção do termo, "pré-pensador" e pode
é de se esperar que os filhos dos melhores
ser interpretado como aquele que pensa an-
tocadores de flauta fossem melhores tam-
tes de agir. Epimeteu é o "pós-pensador", ou
bém? Não necessariamente. Todos saberiam
aquele que age antes de pensar. Enquanto o
tocar flauta minimamente, mas os grandes
primeiro calcula, delibera, buscando prever e
talentos nasceriam em famílias diferentes.
domar o futuro, Epimeteu se entrega ao im-
Fica assim respondida a questão de Sócrates,
pulso, desfruta, buscando tirar do momento
que ficou muito impressionado com a sabe-
tudo o que ele oferece de melhor. Portanto,
doria de Protágoras: todos teriam virtude em
Prometeu e Epimeteu, primos de Zeus, re-
potência, mas somente os mais aplicados
presentam pólos extremos e simétricos da
conseguirão. A virtude, portanto, é a razão,
mas exercida por favor divino. A base é o relação entre o pensar e o agir.
mito, é necessário receber um bom quinhão
Antes da criação da terra, do mar e do céu,
das moiras para poder agir retamente, con-
todas as coisas tinham aspecto de uma massa
forme a razão e o raciocínio ditam. Platão
confusa e disforme denominada Caos. Poste-
nos leva a crer que quem age com virtude -
riormente, as divindades primitivas separa-
elevando assim o seu espírito- é recompensa-
ram a água da terra e o céu de ambas. Mais
do. No mito de Protágoras, a virtude é pre-
adiante, criaram as plantas e os animais. Mas
sente divino, mantenedor da coesão social,
era preciso um animal mais nobre, então, as
mas só alcançável pela prática e estudo apli-
divindades incumbiram os dois titãs da tarefa
cado. de criar o homem. Não se sabe se ele foi cri-
Volume 1I, edição X Página 17

ado a partir de matérias divinas ou da terra, oferta, além de alertar Epimeteu dizendo que
recentemente separada do céu, e onde ainda "nunca devemos aceitar um presente dos
restavam algumas sementes celestes. A cria- deuses". Epimeteu cedeu aos encantos e ca-
tura humana altamente contraditória que re- sou-se com Pandora. Em seguida, num ato
sultou reflete a grandeza e as fraquezas pecu- intempestivo, talvez de Pandora, ou de Epi-
liares a cada um dos criadores. meteu, a caixa nupcial foi aberta. Da caixa de
Pandora emergiram toda forma de males e
Aparentemente, ao completar a tarefa, Pro- sofrimentos que assolam a humanidade: a
meteu troca de lado e se alia aos mortais na velhice, o trabalho, as doenças, os vícios e as
luta contra a opressão e a avareza dos deu- paixões. Ou, no dizer de Pandora: "Eu trago
ses. Durante a criação dos animais e do ho- amor mas também loucura e todo tipo de
mem, coube a Epimeteu, supervisionado por sofrimento". Há uma outra versão, na qual
Prometeu, a tarefa de providenciar os meios Pandora foi enviada de boa fé por Zeus, para
necessários para a sobrevivência e o cresci- abençoar o homem. Nessa versão, os deuses
mento deles. Epimeteu começou a distribuir dão-lhe a caixa, dentro da qual colocaram
as diversas qualidades aos vários animais: co- suas várias bênçãos. Pandora teria aberto
ragem, força, velocidade, sagacidade; as asas a esta caixa sem o devido cuidado e todas as
uns, garras a outros, uma cobertura de con- bênçãos escaparam, permanecendo apenas a
cha a outros, etc. esperança. Essa história parece ser mais pro-
vável que a anterior, pois como poderia a
Quando chegou a vez do homem, Epimeteu esperança, jóia tão preciosa, ter sido guarda-
que fora liberal na distribuição das várias qua- da num recipiente cheio de toda a sorte de
lidades, nada mais tinha para conceder. Pro- males, como se diz na primeira versão?
meteu percebendo a situação, com a ajuda
de Minerva, subiu ao céu, acendeu sua tocha Paralelamente, devemos recordar a relação
no carro do sol e trouxe o fogo à terra para do mito de Hércules com o de Prometeu.
o homem. O fogo permitiu-lhe fabricar ar- Sabemos que Hércules para se purificar de
mas, com as quais submeteu os outros ani- um crime foi incumbido de desenvolver doze
mais; criar ferramentas, com as quais cultivou trabalhos, nos quais foi auxiliado e orientado
a terra; aquecer a sua moradia, ficando de por vários mestres, dentre eles o centauro
certo modo independente do clima; e final- Chíron (ou Quíron) que habitava uma gruta.
mente, promover as artes e cunhar moedas, Por sua sabedoria, inteligência e virtude,
com as quais pôde comerciar. Chíron diferenciava-se dos outros centauros
e recebeu de seu pai, Saturno, conhecimen-
Zeus não gostou da insubordinação de Pro- tos de medicina, magia, arte de adivinhar o
meteu e ordenou que se moldasse um ser futuro, astronomia e música.
esplêndido e irresistível, Pandora, que pode-
ria ser entendida como "todos os encantos, Um dos trabalhos de Hércules foi destruir
todas as virtudes". Zeus incumbiu Hermes, o um monstro, que tinha o corpo aparente-
mensageiro dos deuses, para que, disfarçado mente feminino e deformado, apresentando
como um velho brincalhão, conduzisse Pan- múltiplas cabeças semelhantes a serpentes
dora, juntamente com um porta-jóias, até a que aterrorizava a região de Lerna, que fica
terra. A intenção era que ela seduzisse Pro- próxima a Argos, a chamada Hidra de Lerna.
meteu e oferecesse a ele uma caixa nupcial O herói conseguiu vencê-la ao usar toda sua
contendo as mais valiosas prendas do Olim- habilidade para decepar as múltiplas cabeças.
po. Hércules sabia que o sangue do monstro era
extremamente venenoso, assim, embebeu
Prometeu, espertamente esquivou-se da nele suas flechas, tornando-as mortíferas pa-
Página 18 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

ra sempre. da da Idade de Prata, inferior a anterior, em-


bora melhor que a de Bronze, que deu ao
Um personagem que freqüentemente agredia homem um temperamento mais violento,
e ameaçava esse herói era o centauro Nes- obrigando-o a recorrer às armas. A pior e
sos. Certa vez, Hércules encontrava-se no mais dura foi a Idade do Ferro, época que os
interior de uma gruta e percebeu contra a crimes aumentaram e a modéstia, a verdade
luz da saída da cavidade, um centauro. Rapi- e a honra desapareceram.
damente, ele se armou com seu arco e lan-
çou a flecha envenenada, achando que se tra- Zeus, vendo o estado das coisas na terra,
tava de Nessos. Para seu espanto, era Chíron encheu-se de ira e convocou os deuses para
quem ali estava a sua procura. Embora com um concílio. A estrada onde estão os palá-
um ferimento gravíssimo na pata o centauro cios dos deuses, percorrida por eles até o
não morrera, já que era imortal, mas estava palácio do céu pode ser vista até hoje como
sofrendo de dores lancinantes em uma lesão a Via Láctea. Quando os deuses estavam reu-
que não cicatrizava. Devido ao sofrimento, nidos, Zeus descreveu-lhes os acontecimen-
Chíron solicitou a Plutão que lhe fosse per- tos e terminou dizendo que era sua intenção
mitido abandonar o reino dos vivos. O cen- destruir a população inteira e criar uma nova
tauro foi alertado que raça terrestre diferen-
esta passagem do rei- te da primeira, que
no dos vivos para o fosse mais digna de
dos mortos, somente viver e mais devota
seria permitida se en- dos deuses. Ao termi-
contrasse alguém que nar o discurso, pegou
aceitasse e recebesse um raio e preparou-se
a sua imortalidade. para lançá-lo contra a
Hércules tratou de terra, a fim de destruí
rumar ao Cáucaso, -la por meio do fogo.
onde matou a águia e Mas foi alertado, a
arrebentou as corren- tempo pelos deuses,
tes libertando Prome- que uma conflagração
teu que havia aceito a troca proposta por dessa poderia incendiar o próprio céu e o
Chíron. Desta forma, Prometeu retorna de Olimpo. Então ele mudou de idéia e resolveu
seu castigo, reconcilia-se com Zeus e volta afogá-la com um grande dilúvio.
para o Olimpo; mas já que Zeus afirmara que
o suplício duraria milhares de anos e que um Desta catástrofe, que encobriu todas as mon-
deus não deve mentir, excogitou-se um sub- tanhas, somente o Parnaso ficou mais alto
terfúgio. De um dos elos da cadeia que agri- que as águas, onde se refugiaram apenas Pirra
lhoava o Titã se fez um anel, no qual se intro- e Deucalião. Ele, um homem justo e ela, uma
duziu um pedacinho do rochedo; desse mo- devota fiel dos deuses. Com o abaixamento
do, Prometeu continuava, simbolicamente, do nível das águas e o reaparecimento da
sempre preso ao Cáucaso. terra, cabe a este casal o repovoamento da
terra. Eles consultaram um oráculo em um
O Dilúvio templo ainda cheio de lodo e receberam co-
mo resposta:
A humanidade anteriormente criada, passou
"- Saí do templo com as cabeças cobertas e
por várias fases, a primeira chamada Idade
as vestimentas soltas, e atirai para trás de vós
Áurea, era da inocência e da felicidade, segui-
os ossos de vossa mãe".
Volume 1I, edição X Página 19

imortalidade. Sua dor não foi vã: a humanida-


Depois de muita reflexão, eles entenderam de sobreviveu graças a seu gesto heróico de
que a terra é a grande mãe e as pedras são roubar o fogo do céu.
seus ossos. Dessa forma, obedeceram lan-
çando pedras para trás por sobre as cabeças. O Mito na Astrologia
Quando as pedras caíam, começavam a amo-
lecer e aos poucos tomavam uma aparência
Estamos na Idade do Bronze. Muita coisa es-
tosca humana. Aos poucos, como se estives-
tava acontecendo: guerras, injustiças e toda
sem na mão de um escultor, as pedras lança-
sorte de crimes comuns e hediondos. A vida
das pela mão de Pirra transformavam-se em
humana era considerada miserável e doloro-
mulheres, enquanto que as lançadas por
sa de ser vivida. Zeus então resolveu acabar
Deucalião, em homens.
com tudo julgando que nenhum homem era
merecedor da proteção de quaisquer dos
Prometeu desafia os deuses e quer ultrapassá
-los. Amarrado ao pilar da necessidade, ele deuses do Olimpo.
encontra alívio no sono, mas segue aterrado
Pensando assim, Zeus determinou que se
por ansiedades e pensamentos céleres como
fizesse o dilúvio. Sabendo do que estava para
a águia, que ferem e dilaceram o seu espírito
acontecer, Prometeu avisou a seu filho Deu-
desperto e fazem do seu corpo uma fonte de
calião e o orientou para construir uma gran-
tormento. de arca. Nela seriam colocadas a esposa, os
familiares e as provisões necessárias. Choveu
Epimeteu é o servo inconseqüente dos im-
intensamente durante nove dias e nove noi-
pulsos e que o arrastam pela vida. Jovial, ex-
tes. O planeta todo transbordava em água e
trovertido e como que embriagado dos so-
a arca de Deucalião foi até o Monte Parnaso,
nhos generosos e esperanças que alimenta,
um dos locais não invadido pelas águas. De-
ele tropeça pela existência em meio a apuros
sembarcaram em terra firme e imediatamen-
e prazeres efêmeros. Toda opção tem cus-
te ofereceram um sacrifício a Zeus em agra-
tos. O conflito entre Prometeu e Epimeteu é
decimento por suas vidas, aparentemente as
de todas as épocas e povoa cada peito huma-
únicas que restaram no planeta Terra. Porém
no. Na fábula dos dois irmãos mitológicos,
a medida que as águas foram descendo, o
está a lenda de todo um povo que aspira aos
casal entristecido via animais e pessoas mor-
poderes e confortos da racionalidade de Pro-
tas. Desesperados, pediram a Zeus que a ra-
meteu, mas se nega obstinadamente a abrir
ça humana fosse reconstituída. Assim, foram
mão dos gozos e delícias da imprevidência de
orientados a jogarem pedras para trás. A
Epimeteu. Terra foi então repovoada, porém pouco
depois o homem voltou a apresentar os mes-
A lição do mito de Prometeu, é que pode-
mos padrões de comportamento e nunca
mos transcender as nossas limitações, desde
que isso não seja um gesto gratuito. Perde- mais houve paz.
mos alguma coisa e, às vezes, é a que mais
Prometeu, como aquariano, faz a escolha pe-
queremos. No caso de Prometeu, perdeu a
lo grupo com o qual se identifica. Como sig-
liberdade, a integridade física, seu contato
no fixo, os aquarianos se preocupam profun-
com os humanos. Porém o que ganhou no
damente com a lealdade, a fidelidade, a confi-
final, depois de suportar o castigo de Zeus,
ança. Neste signo encontra-se o arquétipo da
foi a integração com o coletivo, seu sacrifício
amizade, portanto eles se identificam com o
sublimou a sua existência e ele superou o
grupo que partilha seus ideais e nem sempre
estágio do egoísmo da individualidade. Atra-
com sua família de sangue. Sua opção é pelos
vés desse sofrimento pessoal alcançou a
Página 20 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

amigos e pela “tribo” que compartilhe suas mo o Aguadeiro, que rega o mundo com o
idéias sobre a vida e sua visão a respeito do seu saber, há uma ânsia nos aquarianos de
mundo. expandir e divulgar suas idéias para todos.

A lenda de Prometeu é a que melhor repre- Signo de vanguarda, nem sempre as pessoas
senta o padrão mítico do Aquário. Sendo o conseguem compreender e nem assimilar a
grande “trabalhador social cósmico”, rouba o mensagem que ele traz. Radical, original, in-
fogo sagrado para doá-lo à humanidade, para tempestivo, se fixa em idéias ou em uma ide-
que todos tenham acesso a seus benefícios, ologia, gostam de olhar o céu e contemplar o
mesmo tendo que pagar um alto preço por firmamento, são utópicos e podem apresen-
sua ousadia. O aquariano usa sua rebeldia em tar grande dificuldade em lidar com a rotina
obras que favorecem a coletividade. Isto, do dia-a-dia, devem aprender a contempori-
muitas vezes, é encarado como sua missão na zar, suas vidas estão sempre se remodelando
Terra. e estruturas obsoletas são substituídas pelas
novas, normalmente repudiam o animalesco,
Prometeu pode ser considerado um herói o primitivo, tem grande instinto civilizador
porque trouxe o fogo divino aos homens. num sentido gregário pois os aquarianos sen-
Porém, do ponto de vista dos deuses, ele tem-se confortáveis na criação de grupos.
cometeu uma transgressão, pela qual foi se-
veramente punido. Primeiro, com a caixa de Porém, apesar de estar sempre voltado para
Pandora, que traz a consciência da limitada a comunidade, para os grupos, é extrema-
condição humana, e depois com o castigo do mente individualista. Muitas vezes são subtra-
Cáucaso. Essa situação chama a atenção: o ídos de seus cargos ou do seio de uma co-
senso de pecado que surge quando se faz munidade em que representam um papel im-
qualquer esforço no sentido da realização portante, mas é porque lhes está destinada
individual. O isolamento de seus semelhantes uma nova função, com novas oportunidades,
é um paradoxo para a mente social do aqua- novos caminhos. Seus atos extremos, que
riano. Não por acaso, todos os campos de muitas vezes, lhes dão a sua fama de exótico,
atividades consideradas, classicamente, aqua- na verdade são apenas tentativas de compar-
rianas: a ciência, invenção, assistência social, tilhar as sementes do fogo, para que todos
psicologia e mesmo a astrologia, são mescla- tenham acesso à sabedoria.
das pela solidão. Embora todo o trabalho seja
feito para os outros, o profissional dessas Como detém em si a mudança do status-quo,
áreas costuma ser, essencialmente, solitário. são tidos como rebeldes, revolucionários e
É como se precisasse desse tipo de tarefa, de anarquistas. Muitos inventores e artistas es-
promoção social e humana, para poder aliviar tão em grande número entre os aquarianos.
um pouco dessa intensa falta de compreen- Rompem fronteiras, não aceitam limites, bus-
são, por se sentir um ser de outra dimensão. cam a verdade, são científicos e intelectuais.
Tem muitas vezes uma criatividade compulsi-
Este mito marca a separação entre os ho- va. Preocupam-se com a fidelidade, lealdade e
mens que se tornaram conscientes de sua confiança. A amizade lhes é importante pois
condição humana, e os deuses que passaram é com os amigos que compartilham suas
a viver nas alturas olímpicas, não mais dividin- idéias. As vezes, os aquarianos tem a sensa-
do seus poderes divinos com os mortais. ção de não pertencerem ao planeta terra ou
Prometeu representava a ameaça constante a esta dimensão. Acham que tem uma missão
de que esse poder fosse restituído aos ho- mas nem sempre tem consciência de qual
mens e, por isso, mesmo depois de sua liber- seja, são extremamente apegados a liberdade
tação, passou a viver entre os homens. Co- e defendem com tenacidade suas idéias.
Volume 1I, edição X Página 21

O Cone de Sombras
A alma é constituída da mesma substância porta de Capricórnio (Meio do Céu), chama-
que os astros, o éter, animada de um movi- da "Porta dos Deuses", se faz o retorno das
mento circular perpétuo, ao contrário dos almas ao plano divino.
elementos terrestres que se movem retiline-
amente. O movimento circular, assegurador
da imortalidade, é próprio da alma porque é
próprio do éter. Sendo as almas da mesma
essência que os astros, seu desejo inconsci-
ente é o de voltar a eles, daqui a vontade pe-
las coisas do alto, pelas coisas divinas. As al-
mas e os astros têm no éter um parentesco
comum, que se pode deduzir da semelhança
de seus movimentos. Este é o princípio que
impulsiona as almas durante os Equinócios e
os Solstícios.

A subida e a descida das almas do céu para o


mundo sublunar e vice-versa se faz através Atraída pelo ciclo reencarnatório, a alma,
das portas do céu. Estas são os dois pólos desce pelo Trópico de Câncer para a conste-
opostos pelos quais a Via Láctea corta o zo- lação de Leão. Entre Câncer e Leão ela bebe
díaco e que são igualmente os dois pontos da Taça do Esquecimento, e depois corre ao
extremos que limitam o curso do sol: o Tró- longo do Zodíaco até as esferas planetárias
pico de Inverno sob o signo de Capricór- inferiores.
nio e o Trópico de Verão sob o signo de
Câncer. De cada uma das órbitas planetárias ela em-
presta uma vestimenta etérea e as faculdades
correspondentes, tanto positivas como nega-
tivas para atender as experiências da próxima
encarnação:

Influências Planetárias na Gestação

A alma tem sua origem no éter, mesma subs-


tância da qual são formados os planetas, mas
a medida que elas descem nas camadas mais
densas da natureza elas são governadas pelo
elemento ar, e como o elemento ar contém
o bem e o mal, a alma esta sob os influxos da
ira que domina a natureza.

A alma se nutre com alimento espiritual, de


acordo com seu temperamento, é a maneira
que tem de acender seu próprio fogo, cujo
Pela porta de Câncer (Fundo do Céu), cha-
combustível deve ser seu próprio tempera-
mada "Porta dos Homens", se faz o descenso
mento ou alguma substância que lhe advenha
das almas sobre a terra, enquanto que pela
Página 22 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

MÊS PLANETA INFLUÊNCIA


1º Saturno  constituição da estrutura geral do ser humano
2º Júpiter  age sobre os temperamentos
3º Marte  age sobre o sangue, a criança começa a se movimentar
4º Sol  ilumina com seu calor e sua vida o ser em formação
5º Vênus  dá a beleza da forma exterior
6º Mercúrio  age sobre todos os movimentos e o sistema nervoso
7º Lua  aperfeiçoa, com sua influência, a obra realizada (a criança pode nascer)
8º Saturno  aperfeiçoa todos os ossos e todas as fibras
9º Júpiter  dá a força a todos os elementos vitais, o ser está completo para nascer

de Deus. do Cone de Sombras, não possui movimento


e isto pode levá-la à sua extinção.
A alma será dirigida e governada de acordo
com aquilo que a nutrir. Se ela se evade de O Cone de Sombras é, conforme o caso,
seu próprio temperamento para as coisas o inferno ou purgatório verdadeiro. As al-
divinas, ela se nutre da substância celestial; mas, prisioneiras do corpo astral e de sua
então, a alma obtém uma vontade divina e atmosfera fluídica, ali sofrem martírio, presas
obriga o corpo a fazer aquilo que não faria, ao assalto das larvas dolorosamente expulsas
de acordo com sua natural inclinação ou do cadáver e que, tendo feito na auréola seu
temperamento. domicílio, pro-
Neste estado, curam prolon-
não é o tempe- gar sua existên-
ramento que cia parasitária,
governa a alma, devorando in-
mas sim a alma teiramente viva
que exerce do- a Psique.
mínio sobre o
corpo exterior. A Psique deve
dissolver esses
Quando a alma coágulos, um
trava uma luta após o outro,
com o tempe- pela força de
ramento para ver quem exerce o maior do- sua vontade, renunciando inteiramente aos
mínio, a pessoa sente-se perturbada e se vícios que são os fantasmas e os símbolos. É
atormenta porque não consegue abrir, com uma guerra de morte, porque o Perispírito é
seus desejos, as virtudes que possui em seu um obstáculo poderoso, com toda sua vonta-
interior, lamenta-se e teme que Deus a tenha de. Se perder a batalha e deixar-se invadir (e
abandonado à sua própria sorte. é suficiente para isso um instante de fraqueza
ou de consentimento tácito), os esforços de
Em essência toda alma é imortal, sendo imor- desassimilação dilacerante recomeçarão.
tal tudo aquilo que está sempre em movi-
mento. Sendo assim, toda alma que é aprisio- A maior parte das almas contaminadas, pres-
nada numa existência de penalidade dentro sentindo bem o que lhes reserva a suprema
alternativa (ser ou não ser), lutam com cora-
Volume 1I, edição X Página 23

gem e conseguem dissolver rapidamente suas Para se manifestar sobre o plano objetivo, os
larvas. E, se qualquer fraqueza as condena à elementares têm necessidade, como todas as
recaída após o doloroso esforço, essas almas outras lemúrias, da força psíquica que nor-
nada fazem senão passar pelo estado elemen- malmente lhes falta. Também se saciam, o
tar. máximo possível, na fonte equívoca e fre-
quentemente lodosa da mediunidade.
Outras almas, em número menor, não rea-
gem mas aceitam, sem nenhum esforço para O “ciclo” reencarnatório, isto é, o processo
sair, a miserável condição que lhes foi dada. de transmigração das almas, é chamado pela
Elas perpetuam sua prova passageira e não Kabalah de Gilgul. Geralmente é representa-
aspiram nada senão nutrir-se de exalações do como uma sucessão natural na vida da
terrestres, saciar com fluido humano esse alma, que necessita ocupar vários corpos pa-
corpo astral que elas deixam, em geral, ser ra aprender as muitas lições. Isso é necessá-
invadido prontamente pelas lemúrias do nim- rio para que ela possa, algum dia, se unir a
bo. As lemúrias são os elementares que se Deus. A alma entra no corpo com o nasci-
manifestam algumas vezes nas sessões espíri- mento e não com a concepção. Assim, a cri-
tas. Essas almas frequentam, de bom grado, ança que está a ponto de deixar o corpo da
os lugares onde traçaram sua existência ma- mãe, está preparada para viver um período
terial e saciaram suas paixões dominantes. de vida normal, devido à experiência adquiri-
da pela alma.

Com a degradação das almas e seu apego à


matéria, surgem suas distorções: Dybbuk e
Ibbur.

O Dybbuk – uma alma desencarnada se


“apossa” de um corpo vivo que pertence a
uma outra alma. Há várias origens atribuídas
a esses espíritos. No início, eram considera-
dos “demônios nãohumanos”, depois se re-
conheceu que eles eram pessoas falecidas. O
Dybbuk pode ser a alma de um pecador que
deseja escapar ao justo castigo, seja aquele
infligido pelos anjos, seja uma outra forma de
castigo, como por exemplo vagar sobre a
terra. Um Dybbuk pode procurar se vingar
Página 24 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

de um mal que lhe foi feito enquanto viveu. que lhes era assinalado como purgatório, há
Alternativamente, pode ser alguém seres que podem, como vimos acima, trocar
“perdido”, que entrará em um corpo sim- sua herança imortal por um feudo de iniqüi-
plesmente para buscar ajuda. A pessoa viva dade no reino do “satélite obscuro”, e se
pode ou não saber que um Dybbuk está ocu- tornarem os legionários da sombra, os maus
pando seu corpo. Também pode ser ator- demônios do mundo magnético inferior
mentado, sem saber o que se passa. Isso de- (ministros dos maus espíritos).
pende da intenção da alma alienígena.
Os elementares resignados e os demônios
O Ibbur - A tradução literal do hebraico perversos se comprazem nas baixas regiões
desta palavra é "impregnação". Ibbur é a for- do Cone de Sombras. Mas as almas penadas,
ma mais positiva de posse, e a mais comple- que lutam bravamente e se esforçam para
xa. Acontece quando uma alma íntegra deci- sair dali, se elevam à medida em que perdem
de ocupar o corpo de uma pessoa viva du- seu peso terrestre. Quando nada mais têm
rante algum tempo, e se une a do que se despojar, a não ser
ela ou, espiritualmente falan- sua forma astral, então lhes é
do, "satura" a alma encarnada. permitido manter-se na pe-
O Ibbur é sempre temporá- numbra, aonde algum claro de
rio, e a pessoa viva pode ou esperança lhes chega.
não saber o que aconteceu.
Freqüentemente a pessoa viva Dissolvidas todas as larvas que
“consente” com o Ibbur. A foram eliminadas do corpo
razão para o Ibbur é sempre astral, eis o fim da prova à
benevolente, isto é, a alma qual a alma foi submetida, con-
desencarnada deseja comple- sumando-se então a segunda
tar uma tarefa importante, morte: o despojo de sua for-
uma promessa, ou executar ma astral, cuja substância, em-
um Mitzvá (dever religioso) e isso só pode prestada ou assimilada da atmosfera oculta
ser realizado na carne. do planeta, deve a ela retornar.

Se, apesar dos auxílios que lhes chegam da É pela virtude do Cristo, tipo e síntese da
parte da humanidade celeste, esses miserá- humanidade, que se regeneram as almas, po-
veis elementares persistem indefinidamente luídas durante sua estada nos corpos.
em uma existência degradante, arriscam-se a
chegar, após séculos desse lento suicídio, ao Cristo é Amor e Sabedoria. A Sabedoria do
embrutecimento, à obscuridade total da cen- Cristo concentra-se na Lua, e sua virtude, ou
telha divina. Arriscam mesmo, acreditam al- seu Amor, no Sol. Esses astros maiores, de
guns, reencarnarem sob forma animal. nosso ponto de vista, são duas naves vagando
pelo éter sem limites: a Lua é plena de uma
Em princípio, o Cone de Sombras não é nada água sutil e translúcida; do Sol se irradia um
além de uma estadia passageira, um purgató- fogo muito puro.
rio. Somente para aqueles que ali se demo-
ram voluntariamente, ele se torna um abismo São como dois banhos onde as almas se des-
de torturas sem fim, um inferno. pojarão, alternativamente, das máculas ter-
restres. Elas habitarão primeiramente na Lua,
Em muitos casos, quando uma excepcional para ali serem purificadas pela água e pela
vontade acrescida de um grande vigor aními- sabedoria. Depois habitarão no Sol, onde se-
co, pouco comum, não lhes serviu para liber- rão purificadas pelo fogo e pelo amor, virtu-
tar-se desse “vale de sombras da morte”, des essenciais do Cristo.
Volume 1I, edição X Página 25

O Processo de Regeneração Segundo Louis Claude de Saint-Martin


Ou A Alquimia Interior pos não prova por si mesma que Saint Martin
serviu-se de uma via alquímica, mas quando
por Jean-Louis Ricard nos fixamos nos estudos destas quatro obras,
os elementos tornam-se claros.
Os Três Tempos da Grande Obra Assim, a primeira etapa em alquimia é chama-
da Obra em Negro.

A ntes de se afastar da teurgia operativa


de seu mestre Martinez de Pasqually,
Saint Martin praticou-a insistentemente até
A Obra Em Negro

obter resultados convincentes. Corresponde à “primeira coloração apareci-


Robert Amadou não foi injusto ao afirmar da no Solve alquímico”.
que Saint Martin teria conservado a teurgia,
Esta primeira etapa possui vários nomes na
“interiorizando-a”. Ciência Hermética: “calcinação”, “trevas”,
“Ao pregar e celebrar uma teurgia intracardí- “morte”, “putrefação” ou “noite”.
aca, não cerimonial” o Filósofo Desconheci-
Saint Martin consagrou Ecce Homo à expia-
do sem dúvida transcendeu o Martinezismo
ção da falta original, e este estado de espírito
abrindo uma via que Papus posteriormente
engendra um processo de mortificação e de
chamou de Martinismo. putrefação simbólico. Certamente, esta expi-
ação encontra-se nas três obras principais,
O processo de regeneração do homem pode
mas é nesta que a encontramos mais clara-
ser incluído nas quatro obras que são objeto
deste estudo; este processo é o mesmo do mente definida.
Hermetismo que Saint Martin rejeitava tão
O sentimento de culpa primitiva deve preva-
explicitamente. O Filósofo Desconhecido
lecer por toda reabilitação ulterior, tudo co-
abdicava de toda “operação” externa assim
mo nas operações dos Elu Cohens onde as
como de toda prática alquímica de laborató-
práticas são abertas pelas “preces de arre-
rio, preteridas pelo oratório interno.
pendimento e expiação”.
Esta via da interioridade apóia-se, entretanto
De fato, o Elu Cohen reconhece o crime do
sobre os mesmos princípios das quatro vias
primeiro homem, Adão e também o de sua
do Hermetismo ou da Alquimia dita
posteridade.
“externa”:
Saint Martin, também, o anuncia muito clara-
“Purificai-vos, pedi, recebei e agi. Toda a
mente: “teus padecimentos interiores... eis a
Obra esta nesses quatros tempos”.
obra; eis o primeiro degrau da obra”.
Purificai-vos, Ecce Homo A expiação pelos “padecimentos interiores”,
Pedi, O Homem de Desejo a mortificação, os choros chamados
Recebei O Novo Homem “lágrimas de miséria”, continuação da
E Agi, O Ministério do
“degradação” devido ao crime primordial,
Homem Espírito “estado de enfermidade apático e tenebro-
so”, o horror no qual o homem decaído está
Certamente, esta progressão em quatro tem-
Página 26 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

situado; quantas vezes não temos distinguido devido à sua brancura, é simbolicamente de-
nestas obras a palavra “crime”: “tu pagas, in- dicada à “Ísis”, deusa lunar e à prata.
feliz homem, as noites do crime com juros”.
Mas esta segunda fase é, sem dúvida, uma das
Saint Martin revive este crime cósmico com mais complexas, porque se o lado feminino e
tal intensidade que, ao interiorizá-lo, tem lunar prevalecem na primeira parte desta eta-
consciência de experimentar a própria agonia pa, dita fase do branco, a segunda parte é
de Deus: “assim não deveríamos fugir da ago- chamada “hermafrodita”, porque “o enxofre
nia interna, igualmente são as palavras de e o mercúrio dos filósofos”, chamados “rei”
agonia, que semeiam e que engendrarão, por- e “rainha” equilibram-se e unem-se. Esta fase
que elas somente são a expressão da vida e tão importante é a do reencontro, da união
do amor”. mística ou “núpcias alquímicas”.

Esta “santa ferida”, que deve se alargar, não “O casamento indissolúvel” que apregoa
prefigura a agonia romântica? Saint Martin toma seu verdadeiro sentido
nesta etapa da regeneração.
Mas a mortificação em Saint Martin somente
é um estado passageiro, e uma etapa neces- Certamente, a descrição do processo é ex-
sária, porque o homem, desde que se torna presso por variantes devido às técnicas dife-
culpado, torna-se também capaz, e seu renas- renciadas, figuradas pela via externa ou a via
cimento deve ser precedido por sua morte, interna. De fato, esta Segunda fase em Saint
segundo a ilustração da divisa alquímica da Martin corresponde à comunicação com o
Fênix: “Perit ut vivat”. Se o desejo tem sido Santo Anjo Guardião, que o autor chama de
essencial ao renascimento, tem sido também “reconciliação”.
essencial para a morte, porque a “libertação
começou desde o instante da punição” e este De fato a “reconciliação” é o segundo ato do
desejo mortífero de aspiração para a morte é processo de regeneração cuja finalidade so-
antes de tudo no autor um desejo de renas- mente pode ser a “reintegração dos seres”;
cimento. “o termo final, e a destinação do novo ho-
mem, não deveria prevalecer sobre os de-
Assim, a obra que simboliza mais precisa- graus obscuros e sofridos de sua reconcilia-
mente a Segunda Etapa da Obra alquímica ção?”.
não é “O Homem de Desejo”, mas sim “O
Novo Homem”. Este casamento intimista do coração em
Saint Martin, não é mais do que uma etapa da
A Obra em Branco ou obra e não uma conclusão, “o termo final”
está ainda por vir.
O Casamento Alquímico
Mas “a estrela dos magos” que os alquimistas
O Dicionário Alquímico fornece poucos ele- simbolizam pelo planeta Vênus e que se ma-
mentos concernentes à obra em branco, nifesta nesta fase, sobre a “pedra branca”,
“segunda cor da Obra, que corresponde ao anuncia que a operação está em um bom ca-
segundo grau do fogo”. minho. “A estrela dos magos” é também cha-
mada de “estrela da esperança”.
A “pedra dos filósofos”, após ter passado
pelo primeiro estágio de “putrefação”, em- Esta esperança Saint Martin deixa pressentir
branquece e perde seus odores nauseantes. porque, logo após “os degraus obscuros e
sofridos da reconciliação”, branda “santificai-
Esta Segunda Etapa, dita “estágio da Lua”, vos (disse Josué ao povo), porque o Senhor
Volume 1I, edição X Página 27

fará amanhã entre vós coisas maravilhosas”.


Estas “coisas maravilhosas” são anunciadas Esta aliança é selada por preces evocatórias,
pelo Anjo Guardião. e uma unção sobre a cabeça do impetrante
lembra a “primitiva aliança do homem com o
O Anjo Guardião é chamado “o amigo” ou eterno” e, sobretudo o caráter sacerdotal
“o amigo fiel” pelo autor ao longo de sua desta união.
obra; “é este amigo fiel que nos acompanha
aqui embaixo em nossa miséria, como se es- Esta segunda fase da obra interior ou alquími-
tivesse aprisionado conosco na região ele- ca é concluída com a etapa da união do “rei”
mentar”. e da “rainha” ou do Anjo que é espírito divi-
no com o coração do Homem de Desejo, a
É somente pelo “coração do homem” que o terceira fase pode então ocorrer.
Anjo poderá entrar em contato com seu
protegido. E é ainda na obra O Novo Homem onde se-
rá descrita toda a progressão e desenvolvi-
“O Anjo” é a Sabedoria de Deus, “o cora- mento da Obra em Vermelho. A Obra em
ção do homem é o amor”; “eles somente vermelho, ou o nascimento da criança rei.
podem ser unidos no nome
do Senhor que é, ao mesmo “Ao fim do magistério, a pe-
tempo, o amor e a sabedoria dra é vermelha e fixa e como
que os liga na sua unidade. é perfeita, é chamada de Pe-
Nenhum casamento é compa- dra Filosofal”. Possuirá o dom
rável a este, e nenhum adulté- de transmutar certos metais
rio é comparável ao que alte- em ouro, mas servirá igual-
ra um semelhante casamen- mente de medicamento para
to”. o corpo e a alma. Este estado
equivale também para os al-
Semelhante àquela estrela que quimistas ao “nascimento da
guia o peregrino com a qual “o artista se liga” criança rei”.
à aparição do “anjo terrestre”, unido em seu
coração deve “preservar, dirigir e vigiar, ser Na Franco-Maçonaria, a pedra cúbica expos-
o guardião e o mentor” do artista, do Ho- ta no centro da Loja encontra-se ao lado do
mem de Desejo. Sol, é chamada a pedra perfeita, do mesmo
modo que a pedra filosofal.
Esta presença instalada no Homem de Dese-
jo deve, portanto guiar, por esta aliança ou Saint Martin fará uso igualmente do léxico
união sagrada, o eleito na direção do “Novo maçônico para ilustrar um certo estado de
Homem”, que toma assim o caminho da re- consciência ou de iluminação interior: “esta
generação. pedra fundamental é realmente a raiz das se-
tes fontes sacramentais que o Novo Homem
É necessário ressaltar, que esta comunicação descobre nele, quando passa pelas provas
com o “Santo Anjo Guardião”, existia no indispensáveis, como é nesse lugar onde des-
sexto grau da Ordem dos Elu Cohens do cobre este divino instrutor do qual falamos
Universo de vocação teúrgica, de Martinez anteriormente”.
de Pasqually: “nós te invocamos, oh Santo
Anjo, para ser o guardião de (sobrenome e As núpcias da etapa precedente, entre o Es-
nome do impetrante)..., e respondia sempre pírito de Deus e a alma do homem, semea-
a seu apelo”. rão aquilo que será o Novo Homem; assim
Página 28 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

“a anunciação se faz em nós, e não tardamos as etapas que a conduzirão à sua maturidade
em perceber que a santa concepção se fez e a sua liberdade em Deus.
desta maneira”, “devemos observar com
atenção todos os movimentos que ocorrem O mesmo ocorre na Alquimia, “a criança rei”
em nós..., para não danificar o crescimento é alimentada do leite de sua “mãe provedo-
de nosso filho”. ra” que é um composto em negro e em ver-
de. É neste “composto” que se fortifica e se
O hermafrodita da etapa anterior engendra desenvolve a “criança rei” ou “granulação”.
seu próprio filho, até o nascimento da
“criança rei”, segundo a tradição alquímica
que resgatou a tradição cristã do Cristo Rei. Somente mais tarde a “criança rei” será ali-
“O nascimento” constitui a etapa suprema da mentada do “sangue” da própria pedra em
Obra em vermelho, “por este filho querido vermelho. Este crescimento da criança nasci-
que acaba de receber o dia”. da, na idade adulta, comportará três tempos.

O nascimento do Novo Homem é um nasci- Os tempos de criança onde Saint Martin pro-
mento espiritual, engendrado pelo espírito; digaliza toda a atenção a “este filho querido
no Tratado da Reintegração dos Seres Cria- que é ele mesmo”, “este novo filho que será
dos, Martinez de Pasqually descreve bem a o objeto dos cuidados mais assíduos”; mas
diferença entre a posteridade de Caim e de por sua vez o Filosofo Desconhecido tratará
Abel. de ser, “o filho, o pai, e a mãe”, tanto quanto
dure a etapa da infância, etapa de descoberta
De fato, segundo o Tratado, Caim teria nas- e de fragilidade. Assim, “desconfia-te, portan-
cido de uma relação carnal entre Adão e Eva, to, homem, destas luzes precoces que te
e sua posteridade portaria as características chegam sobre a natureza do ser que acaba de
desta ignomínia lembrando o pecado original. governar a tua ignorância”.

Abel, seu irmão, seria igualmente filho de A segunda etapa é caracterizada pela
Adão, mas saído e concebido pelo espírito e “aproximação do segundo ano”, e Saint Mar-
não pela carne. tin compara o episódio de Jesus deixando
seus pais se distanciarem quando da festa de
O Novo Homem seria, portanto a geração Jerusalém, para „assombrar‟ os doutores do
espiritual de Abel, bendito por Deus, vindo templo que “o escutarão em silêncio, e estes
resgatar e opor-se à posterioridade de Caim, doutores seriam as dúvidas que a matéria e
saído do pecado e concebido pela carne e “o as trevas dos falsos educadores teriam exal-
entusiasmo animal”. É por isto que Saint Mar- tado em teu seio”.
tin afirma: “este Novo Homem, no lugar de
ter nascido da dor, da justiça e da condena- O Novo Homem se afirma, portanto em sua
ção, é nascido da consolidação do amor, da segunda idade como um instrutor, mas não
misericórdia e da graça, recebida de seu pai”. “abriu a entrada do reino divino, porque ele
está ainda em crescimento, e não atingiu a
Caberá a nós no curso desta tese, aprofun- idade de sua virilidade”.
dar estes elementos relativos ao Tratado da
Reintegração de Martinez de Pasqually. No terceiro tempo, na idade de sua maturi-
dade, o “Novo Homem” recebe o “batismo
O ponto essencial que ressalta Saint Martin corporal” da “mão de seu guia”, isto é de seu
reside no fato de que a Obra em vermelho Anjo Guardião.
não é concluída com o nascimento da criança
rei, porque esta deve agora crescer e vencer Pela última vez, o Novo Homem se submete
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ao seu “Anjo” para receber “este batismo


corporal regenerador”, que lhe permite Certamente, a missão do Novo Homem não
acender à “plenitude da divindade”. está acabada, porque deverá ainda passar pe-
las mesmas provas que o próprio Cristo pas-
O Novo Homem restabelecido e regenerado sou para poder encetar seu ministério que é
em seus direitos primitivos será superior aos o do Homem Espírito.
anjos por ter saído diretamente do quaterná-
rio que é Deus do qual ele é “a imagem e a O Quarto Tempo -
semelhança”.
O Ministério do Homem Espírito
“Esta entrada de Deus em nós”, manifesta-se ou A Realização da Obra
“fisicamente” a partir do momento em que o
Novo Homem pode “sentir que a divindade
Se a manifestação de Deus é “trina”, segundo
circula continuamente em torno dele, para
uma expressão cara a Martinez, seu espírito
encontrar um sentido por onde possa se in-
desperta do “quaternário”.
troduzir até seu coração”.
Assim, as três primeiras etapas da Grande-
Esta sensação da Presença de Deus é seme-
Obra Alquímica simbolizam a manifestação
lhante a circulação do fogo, que “o batismo
de Deus, mas a quarta revela o ministério do
corporal do anjo” teria ateado. Homem Espírito acima de todas as suas for-
Este fogo interior reanimará os “setes canais mas e aparências.
espirituais que aguardam toda a ordenação
O mesmo ocorre para o alquimista, “a verda-
sacramental, para reconduzir os órgãos da
deira viagem começa quando „o adepto‟ al-
fonte suprema”. cança a obra em vermelho”, ou seja a Pedra
“Os setes canais”, mencionados por Saint Filosofal.
Martin, representam os sete “centros espiri-
Assim a filosofia alquímica deve utilizar a pe-
tuais” que os Elu Cohens devem tornar a
dra para curar as mazelas da humanidade,
despertar no curso de suas cerimônias teúr-
porque “ela cura todas as doenças como a
gicas, exatamente como estipulam as instru-
hidropisia, paralisia, apoplexia, a lepra, abre-
ções Cohen: “os trabalhos que seguimos, não
possuem outro objetivo; nas sete classes, ou via todas as doenças em geral”.
nos sete graus devem ser abertos cada um
O Novo Homem recebe, portanto um minis-
dos sete selos, ou portas da inteligência”. tério divino e torna-se um tipo de funcioná-
No sistema Cohen de Martinez, a última clas- rio “da administração da coisa divina”.
se correspondia ao título supremo de Réau-
De fato, torna-se um mestre da natureza,
Croix. Este último grau, que Martinez não
mestre em ciência e sabedoria para seus se-
conferiu mais que a um pequeno número,
melhantes, e por sua vez mestre e servidor
significa que o Eleito estaria pronto para ser
reintegrado aos seus direitos divinos primiti- do Verbo.
vos. Servidor, porque foi regenerado por esta pa-
lavra divina que continua a receber e mestre
Ora, o Novo Homem ou Homem Regenera-
porque a seu turno pode pronunciar o Verbo
do de Saint Martin, corresponde estranha-
mente ao Rosa-Cruz de Martinez de Pas- da própria divindade.
qually. A regeneração do Novo Homem é feita pela
Página 30 Boletim da Sociedade das Ciências Antigas

palavra: “Sim, Senhor, é pronunciando teu O Novo Homem “ainda que saia do mundo
nome sobre o Homem de Desejo que tu re- em espírito, ocupa-se com os seus que estão
novas todo seu ser, e é pronunciando Teu ainda no mundo, até que a Obra esteja intei-
nome sobre ele que nos tornamos de novo ramente cumprida neles”.
Vossa imagem e Vossa semelhança”.
O ministério do Homem Espírito é um minis-
O Novo Homem somente poderá cumprir tério de “caridade espiritual”, porque o ho-
seu ministério na idade da maturidade, por- mem regenerado deve tender a exercer seu
que a “criança” é aquela que não fala. A cri- sacerdócio, para o bem do outro no que
ança para Saint Martin “somente é afetada no concerne a obra caritativa, e pela instrução
princípio pelos sentidos mais grosseiros” e o da palavra para o que concerne ao espírito.
uso da palavra somente lhe é atribuída no Assim, para exercer e defender este ministé-
fim. rio, o Novo Homem deve se incluir em seu
mundo para professar:
A comparação com a Franco-Maçonaria é
evidente, porque o aprendiz com a idade “Purificai-vos, pedi, recebei e agi, toda
simbólica de “três anos” não possui o direito a obra está nesses quatros tempos”.
à palavra. Pelo contrário, a classe secreta da
Franco-Maçonaria do Regime Escocês Retifi- A Grande Obra explicada por Saint Martin,
cado, se divide em dois grandes finais: notadamente na introdução do Tableau Na-
“Professo e Grande-Professo”. Ora, o Pro- turel (Quadro Natural), nada mais é do que a
fesso como todo professor é o que anuncia Grande Obra Hermética. E, mesmo que o
pela voz. Filósofo Desconhecido se preserve de esta-
belecer ligações com a Ciência dos alquimis-
O Grande-Professo pode igualmente, na tas que julga “muito material”, todos os prin-
perspectiva Martinista, ser o Novo Homem, cípios reais desta Ciência bem existem em
o homem regenerado pela palavra, e que po- suas obras.
de desde então cumprir seu ministério.
Além disso, sua grande originalidade consiste
O juramento maçônico faz parte integrante
na organização de um verdadeiro paralelo
deste aprendizado do fenômeno sagrado que
entre a Ciência Teúrgica de Martinez de Pas-
representa a palavra. Tudo que pode ser dito
em Loja deve ser anunciado “forte e franca- qually e a Ciência Alquímica dita Hermética.
mente”. Pelo contrário, todo maçom elevado
A segunda etapa desta originalidade ergue-se
ao grau de Cavaleiro Benfeitor da Cidade
da interioridade no qual estas duas ciências
Santa (C.B.C.S), estaria “desobrigado de seus
se fazem uma única, operando.
juramentos maçônicos”.
Robert Amadou fala da “internalização” da
Concluímos que todo C.B.C.S. iniciado na
Teurgia martinezista por Saint Martin e pode-
classe secreta deveria ser isento de todo ju-
mos facilmente acrescentar que o Filósofo
ramento, assim como entrave da palavra,
Desconhecido internaliza as diferentes etapas
porque é a palavra mesma que deve regene-
do processo alquímico conduzindo à Grande
rar o Professo, e é também a palavra que de-
Obra.
ve ser o instrumento de seu ministério.
Teurgia e Alquimia não são mais ciências dis-
O ministério do Homem Espírito é o de
tintas, mas uma só e única ciência cujo gênio
“instruir” seu semelhante e seu irmão, o
do autor soube romper os segredos, encon-
“Homem de Desejo”.
trados nos Arcano Arcanorum.
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Contos Espirituais

O Buscador pedra, era uma lápide. Sentiu pena ao pensar


em uma criança tão nova enterrada naquele
Um dia um buscador da verdade sentiu em lugar.
seu interior que devia ir à cidade da Felicida-
Olhando ao redor, o homem se deu conta de
de. Ele tinha aprendido a obedecer rigorosa-
que a pedra seguinte também tinha uma ins-
mente a estas sensações que surgiam de al-
crição. Aproximou-se e viu que estava es-
gum lugar desconhecido de si mesmo, de ma-
crito: "N. P., viveu 5 anos, 8 meses e 3 sema-
neira que abandonou tudo e partiu.
nas."
Após dois dias de marcha em empoeirados
O buscador sentiu-se terrivelmente transtor-
caminhos, lá longe divisou a cidade da Felici-
nado e angustiado. Esse belo lugar era um
dade. cemitério e cada pedra era uma tumba. Uma
por uma começou a ler as lápides. Todas ti-
Um pouco antes de chegar à cidade, chamou-
nham inscrições simila-
lhe poderosamente a
res: um nome e o exa-
atenção uma colina
to tempo de vida do
que se encontrava à
morto. Porém, o que
direita do caminho. Ela
lhe causou maior es-
estava coberta de um
panto foi comprovar
verde maravilhoso,
que quem mais tinha
com numerosas árvo-
vivido, apenas ultrapas-
res, pássaros e flores
encantadoras; tudo sava os 11 anos...
estava rodeado por
Invadido por uma dor
uma pequena cerca
muito grande, sentou-
envernizada. Uma pe-
se e começou a chorar.
quena porta de bronze o convidava a entrar.
A pessoa que tomava conta do cemitério,
De repente sentiu que esquecia da cidade e
que nesse momento por ali passava, aproxi-
não resistiu à tentação de descansar um mo-
mou-se. Permaneceu em silêncio enquanto
mento naquele lugar maravilhoso. O busca-
olhava o buscador chorar e, após algum tem-
dor atravessou o portal e começou a cami-
po, perguntou-lhe se chorava por alguma
nhar lentamente entre as brancas pedras dis-
tribuídas como que aleatoriamente entre as pessoa da família.
árvores. - Não, ninguém da família. - respondeu o bus-
cador - O que se passa nesta cidade? Que
Permitiu que seus olhos pousassem como
coisa tão terrível acontece aqui? Por que tan-
borboletas em cada detalhe desse paraíso
tas crianças mortas enterradas neste lugar?
multicolor. Seus olhos eram olhos de um
Qual a horrível maldição que pesa sobre es-
buscador e, talvez por isso, descobriu sobre
sas pessoas que as obrigou a construir um
uma daquelas pedras aquela inscrição: "C. T.
cemitério de crianças?
viveu 8 anos, 6 meses, 2 semanas e 3 dias."

Sentiu-se um pouco angustiado ao perceber O velho sorriu e falou:


que essa pedra não era simplesmente uma
- Pode acalmar-se. Não existe nenhuma mal-
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dição. O que acontece é que aqui temos um Um dia, o sacristão lhe perguntou o que fazia
antigo costume: Quando um jovem completa (pois havia objetos de valor na Igreja).
seus quinze anos, ganha de seus pais uma ca-
derneta, como esta que eu mesmo levo aqui, - Venho rezar, respondeu o velho.
pendurada no pescoço. É uma tradição entre - Mas é estranho que você consiga rezar tão
a gente, que a partir desse momento, cada depressa, disse o sacristão.
vez que você desfruta intensamente de algu- - Bem, retrucou o velho, não sei recitar
ma coisa, abre sua caderneta e escreve nela à aquelas orações compridas. Mas todo o dia,
esquerda o que foi desfrutado... à direita, o ao meio-dia, eu entro na Igreja e só falo:- "Oi
tempo que durou o prazer. Jesus, eu sou o José, e vim te visitar". Num
minuto estou de saída. É só uma pequena
Conheceu uma moça e se apaixonou por ela. oração, mas tenho certeza que ele me ouve.
Quanto tempo durou essa
enorme paixão e o prazer Alguns dias depois, o José
de conhecê-la? Uma sema- sofreu um acidente e foi
na? Duas? Três semanas e internado num hospital, e
meia?... E depois..., a emo- na enfermaria, passou a
ção do primeiro beijo, exercer uma influência so-
quanto durou? O minuto e bre todos; os doentes mais
meio do beijo? Dois dias? tristes se tornaram alegres,
Uma semana?... E a vontade muitas risadas passaram a
de se comunicar com a ser ouvidas.
pessoa amada...? E o casa-
mento dos amigos? E a tão - José, disse-lhe um dia a
desejada viagem? E o en- Irmã, os outros doentes
contro com o irmão que dizem que você está sem-
retorna de um longínquo pre tão alegre...
país? Quanto tempo des-
frutou dessas situações...? - É verdade Irmã, estou
Horas? Dias...? sempre tão alegre por cau-
sa daquela visita que rece-
Assim, vamos anotando na caderneta cada bo todo dia. Faz-me feliz.
momento que desfrutamos..., cada momento.
Quando alguém morre, é nosso costume A Irmã atônita já tinha notado que a cadeira
abrir a caderneta e somar o tempo desfruta- encostada na cama de José estava sempre
do para gravá-lo sobre a pedra, porque este vazia. O José era um velho solitário, sem
é, para nós, o único tempo VIVIDO. ninguém. Quem o visitava? A que horas? e
todos os dias? Respondeu José com um bri-
Oi Jesus, eu sou o José! lho nos olhos:

- Todos os dias, ao meio-dia, Ele vem ficar no


Cada dia, ao meio-dia, um pobre velho entra-
pé da cama. Quando olho pra Ele, Ele sorri e
va na Igreja, e poucos minutos depois saia.
diz : "Oi José, eu sou Jesus e vim te visitar".

Publicação da Sociedade das Ciências Antigas


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