You are on page 1of 3

LÍNGUA PORTUGUESA

As pragas do ensino
de
por CARLOS ALBERTO FARACO*

O
título deste artigo é bastante generoso. Há bem mais É claro que, em termos gerais, a problemática do ensino
que sete pragas, mas cremos que, com aquelas colo- de português se insere na crise global da Educação brasilei-
cadas aqui, é possível demonstrar que muita coisa vai ra. Particularmente, contudo, há que se considerar os fato de
mal no ensino de Língua Portuguesa em nossas escolas de 1º os professores desconhecerem totalmente os resultados dos
e 2º graus, com graves consequências para a vida do indiví- estudos linguísticos e suas inevitáveis consequências para o
duo e da nação. magistério de língua materna. Imaginar, hoje, um ensino de
Chamamos de pragas certas atividades rotineiras que língua materna sem adequá-lo ao que se conhece de lingua-
constituem a essência de um determinado tipo de ensino de gem, é estar atrasado no tempo, além de ser prejudicial aos
português, qualificável de tradicional, cujos resultados têm interesses individuais e nacionais. Talvez, nenhum outro
sido os mais negativos possíveis, como procuraremos demons- trabalho didático esteja potencialmente tão bem fundamen-
trar abaixo. Opomo-nos a isso, tomando posição em favor de tado como o ensino de língua. Infelizmente, os progressos
um ensino que resulte positivo, possível apenas se fundamen- da linguística e das duas ciências interdisciplinares (a psico-
tado na Linguística. linguística e a sociolinguística) não chegaram ainda às salas
Tomando por base os alunos de nossas universidades (o de aula.
exemplo é bem apropriado, porque são eles que constituem Nos cursos de formação, em nível de 2º grau, para o ma-
o topo da famosa pirâmide educacional brasileira e foram, gistério (antigos cursos normais), nem se sonhou ainda com
portanto, submetidos a onze anos de ensino), verificamos, um embasamento linguístico das futuras professoras. Nos
desolados, que a grande maioria tem acentuadas dificulda- cursos de Letras, apesar de a Linguística constar, obrigato-
des de expressão oral e escrita, pouca ou nenhuma leitura, riamente, dos currículos, pouco se tem feito em termos de
incapacidade de interpretação de textos, completo desprezo linguística aplicada. E, quando alguma coisa se faz, o traba-
pela linguagem. Ainda há pouco, a revista Veja, como acon- lho se perde devido à desarticulação do ensino superior: os
tece periodicamente na imprensa brasileira, dizia: “O que professores da área pedagógica (em especial os de Prática
antes parecia ser apenas incômoda suspeita, emerge agora de Ensino), geralmente desinformados dos estudos linguís-
como brutal realidade: os universitários brasileiros, ressalvo ticos (louvem-se as exceções), pouco contribuem para uma
as exceções, têm dificuldades de expressão oral e escrita, vi- combinação de esforços que leve a um preparo mais comple-
vem num mundo quase sem palavras, esvaziado de ideias, e to do professor de língua.
perdem aos poucos a capacidade de pensar. Mais: submeti- Neste trabalho, pretendemos analisar alguns dos males
dos a provas em que lhes seja exigido um mínimo de refle- do ensino de português, com a intenção de despertar em
xão e de esforço, revelam um completo despreparo intelec- todos os que estão direta ou indiretamente relacionados com
tual, praticam grosseiros atentados contra o vernáculo e con- este ensino, uma reflexão crítica que conduza à urgente tare-
tra a cultura universa.” fa de revolucioná-lo, por meio da extensão dos resultados da
Ora, essa “brutal realidade” é alarmante, pesadas as con- Linguística à Educação, assunto de que nos ocuparemos em
sequências. O ensino de português tem se mostrado inútil trabalhos futuros.
(os resultados negativos nos autorizam tal classificação). Re-
cursos humanos e materiais têm sido criminosamente des-
perdiçados numa vazia de significado: onze anos de escola e LEITURA NÃO-COMPREENSIVA
o indivíduo está menos instrumentalizado linguisticamente Grande tem sido a preocupação dos professores (em
que ao entrar na escola. especial no início do 1º grau) com o aprimoramen-
to da mecânica da leitura. Indiscutível o valor dessa mecâni-
ca, no sentido de desenvolver a leitura clara e fluente. Esta
habilidade, porém, é mero passo em direção a objetivos qua-
litativamente superiores (que devem começar a ser atingidos
desde os primeiros anos da escola), ou seja, a penetração na
mensagem e a apreciação crítica desta, atividades relegadas,
atualmente, a um plano secundário, quando não esquecidas
de todo. O aluno brasileiro lê, como diz conhecido educador,
“como agulha na vitrola: vai passando pela trila e produzin-
do som.”
Consequência: O resultado desta falta de hábito de leitu-
ra compreensiva e crítica é a incapacidade dos universitá-
rios (e do cidadão comum) de entender um texto e de anali-

As Sete Pragas do Ensino do Português | Carlos Alberto Faraco |1


sá-lo criticamente (observe se a situação dos próprios profes-
sores que se mostram, por exemplo, incapazes de uma análi-
se crítica da gramática tradicional!).

TEXTOS “CHATOS”
Chato está aqui para representar todo aquele con-
junto de textos desligados da realidade e da cultu-
ra nacionais, afastados dos interesses e das necessidades das
crianças e adolescentes e que inundam as nossas escolas, via
livros didáticos.
Consequência: Ninguém toma gosto pela leitura (como
cativar os alunos para a leitura se lhes oferecemos textos in-
tragáveis?) e pouco de conteúdo se tira das aulas de portu-
guês, justamente nessas faixas etárias em que mais quere-
mos saber das coisas da vida e do mundo! (Como lhes ser úteis
com textos que nada lhes dizem?).

REDAÇÕES-TORTURA
Queremos que nossos alunos escrevam, mas não lhes
CONTEÚDOS PROGRAMÁTICOS
criamos as condições para tal. O processo rotineiro
de orientar a redação tem sido mais ou menos assim: damos INÚTEIS
um título (silencioso por excelência porque coisa alguma lhes 1º fato: No ensino de português, a seleção do con-
sugere!) ou aumentamos o sofrimento deles, deixando o te- teúdo tem sido feita, tomando por base as gramáticas tradi-
ma livre e esperamos tranquilos o fim da aula para recolher cionais.
o produto suado daqueles angustiados minutos. Todos sabe-
mos o quanto nos custava atingir os limites mínimos de linhas Problema 1: Os professores, incapazes de interpretar os pro-
(estes limites são indispensáveis neste processo, do contrário gramas (não compreendem que não é a nomenclatura nem a
ninguém escreve nada!). Mas, assim mesmo, continuamos a teoria que devem ser ensinadas; não compreendem que a n-
submeter nossos alunos a essa tortura que é escrever sem ter omenclatura está apenas a representar o fato da língua, este
ideias. sim, verdadeiro objeto do ensino! ) passam a ensinar a codifi-
cação gramatical em lugar de ensinar a língua. Citemos, como
Consequência: Os alunos deixam a escola sem saber redi- exemplo, o caso das preposições. Os alunos são obrigados a
gir, sem ter desenvolvida a capacidade de escrever (escrever decorá-las (a, antes, após, até...). Não há função nenhuma
é muito mais que desenhar letras no papel...), incapazes de nisso; mas, por que ocorre? Porque os professores não sa-
preencher, de modo inteligível, algumas poucas linhas. bem ensinar preposições sem falar em preposição! Portanto,
o ensino da língua foi desviado para o ensino da teoria gra-
GRAMÁTICA-CONFUSÃO matical, donde surge novo problema:
O ponto nevrálgico do ensino de português tem si- Problema 2: Como o que tem sido ensinado é o conteúdo
do o estudo da teoria gramatical. Vale dizer, o alu- das referidas gramáticas e este não resiste a uma crítica, o con-
no é capaz de passar onze anos sem manter contato direto teúdo programático da disciplina está totalmente defasado.
com a língua em si. O que lhe oferecemos é apenas a meta-
língua (conceitos, regras, exceções...), na ilusória certeza de
estarmos ensinando a língua. Ocupamos a maior parte do
2º fato: A distribuição do conteúdo pelas diversas séries é
tempo com falatórios sobre a língua (em vez de ensiná-la) e
arbitrária.
com exercícios de aplicação dessa teoria toda (em vez de exer-
cícios de domínio de língua). Problema 1: Não existe adequação do conteúdo à capaci-
Estamos assumindo aqui (e voltaremos à carga em ou- dade dos alunos. Chega-se ao cúmulo de se ensinar assun-
tras oportunidades) uma posição contrária ao ensino da teo- tos altamente especializados (próprios para o estudioso de
ria gramatical (isto é, o domínio da teoria gramatical NÃO Letras, mas completamente fora de propósito na escola de 1º
deve ser objetivo do ensino de português) por dois motivos. e 2º graus). Exemplo típico disso é o estudo da classificação
Primeiro, porque é possível dominar uma língua sem conhe- das vogais e consoantes.
cer um pingo sequer da teoria gramatical. Segundo, porque
Problema 2: Assuntos que deveriam constar de manuais
a teoria que corre por aí, é incompleta (não dá conta da lín-
apenas como ponto de referência para uma eventual consul-
gua portuguesa como um todo); é absurda (os coitados de
ta (eventual, em razão da raridade da ocorrência), passam
nossos alunos têm de aprender, por exemplo, que o sujeito é
para os programas escolares, para os livros didáticos e os alu-
elemento essencial da oração; logo adiante, porém, essencial
nos são obrigados a retê-los, num evidente desperdício de
já não significa mais essencial, porque há orações sem sujei-
energia mental, sobrecarregando a memória com uma carga
to); é confusa (os conceitos são inadequados).
inútil de informações desnecessárias. Estão incluídas, aqui,
É um crime, portanto, encher a cabeça de nossos alunos
coisas como as vozes dos animais (alguém poderia justificar
com algo inútil (o conhecimento, da teoria não contribui sig-
a presença deste assunto nos livros didáticos e no ensino?),
nificativamente para o domínio da língua), confuso, incom-
certos coletivos (atilho, cainçalha, choldra, chorrilho...), cer-
pleto e absurdo.
tos “femininos” (deão, felá, grou...), a grande maioria dos “ad-
Consequência: Os alunos não aprendem nem a teoria, nem jetivos pátrios” (que o indivíduo que nasceu na Província do
a língua, estabelecendo se, em suas mentes, tremenda confu- Entre Douro e Minho, Portugal, saiba que ele é um interam-
são a lhes inibir, para o resto da vida, a expressão e a comuni- nense, vá lá; mas que um nascido em Pinhais, Paraná, deva
cação. necessariamente saber, tenha dó!), certos “numerais” (septin-

As Sete Pragas do Ensino do Português | Carlos Alberto Faraco |2


gentésimo, nongentésimo...), “aumentativos e diminutivos” Esta estratégia é de tal modo viciada que os estudantes
(naviarra, fogacho, homúnculo, diabrete...), certos “adjetivos decoram as formas sem aprender seu respectivo significado
eruditos” (cinegético, beduíno, lígneo, equídeo, porcino...). (justamente, porque fora de contexto)!
Problema 3: Insiste-se no domínio ativo de formas arcai- Consequência: O ensino de português inibe o falante, con-
cas (“vós”, algumas regências, mesóclises esdrúxulas...) funde-o no uso das formas linguísticas e dá-lhe insegurança
Consequência: Cria-se no indivíduo uma falsa ideia sobre no uso da língua (o medo de errar, causador frequente da hi-
a língua (quantas coisas realmente importantes ficam de fo- percorreção ou da inibição). Este tipo de ensino incentiva,
ra!) e sobre o estudo da língua (pensa se que estudar a língua pelo Brasil afora, aquelas ridículas e irritantes brigas por ques-
é só aprender essa matalotagem de coisas inúteis!). Daí, de- tiúnculas de gramatiquice ou as famosas brigas ortográficas.
corre o desprezo pela língua e a incapacidade de aprimorar
o domínio do instrumento linguístico. Decorrem daí, tam-
bém, essas monstruosidades que são as provas de português LITERATURA-BIOGRAFIA
dos concursos para ingresso em organizações públicas e par- Há todo um sistema de se “ensinar” literatura que
ticulares, dos exames supletivos e dos vestibulares (sem es- consiste em coletar dados biográficos dos autores e
quecer, é claro, das provas nas escolas...)! arrolar suas obras. Saiu de um desses professores a brilhan-
te expressão “literatura é decoreba”! Tornou se possível ensi-
nar literatura em nossas escolas, sem que os alunos entrem
em contato com textos!!!

CONCLUSÃO
Não houve propósito, neste artigo, de se oferecer alter-
nativas para o ensino de português. Pretendeu-se apenas
contribuir para uma análise crítica que nos conduza à neces-
sidade de repensar e reorganizar este tipo de ensino. Como
conclusão, ficam estas palavras:
Sabemos que grau de abnegação é necessário para que o
professor, primário ou secundário, recoloque em causa aqui-
lo que ensina, em certos casos depois de muitos anos. Mas
sabemos que não hesitará se estiver convencido de que o fu-
turo de seus alunos está em jogo.

ESTRATÉGIAS INADEQUADAS
Parece-nos evidente que, dentro do tipo de ensino O AUTOR
que vimos analisando, as estratégias só poderiam
ser inadequadas. Afora as já comentadas (orientação da lei- CARLOS ALBERTO FARACO é um lin-
tura e da redação), destacaremos apenas algumas para efei- guista brasileiro, graduado em letras por-
to de comprovação: tuguês/inglês pela Pontifícia Universida-
a) Correção de textos: É comum se ouvir dos professo- de Católica do Paraná (1972), mestre em
res a máxima que proíbe mostrar o erro ao aluno, atividade linguística pela Universidade Estadual de
taxada de antipedagógica. Contudo, estes mesmos professo- Campinas (1978) e doutor em Lin-
res, inexplicavelmente, nas aulas de português, se deliciam guística pela University of Salford
em apresentar textos cheios de erro, para que seus alunos cor- (1982). Fez pós-doutorado em
rijam. Chegou se a inventar a famigerada “aula do erro”; as linguística na University of Ca-
redações são devolvidas, pintadas de vermelho: a violência lifornia (1995-96). É professor
da cor a destacar o erro! titular (aposentado) da Uni-
versidade Federal do Paraná.
b) Ortografia por regras ou por lacuna: O domínio Tem experiência na área de Lin-
da ortografia é tipicamente uma habilidade motora, impos- guística, com ênfase em Lin-
sível de ser adquirida pela memorização de regras (de que me guística Aplicada, estando a
adiante saber as palavras de origem ameríndia, africana ou atuar principalmente nos se-
popular se grafam com J? Ou que o W inicial é obrigatório guintes temas: Bakhtin, discurso,
sempre que etimológico?), ou pelo simples preenchimento dialogismo, ensino de português
de lacunas em palavras soltas (quando escrevemos, não o fa- e linguística.
zemos por meio de preenchimento de espaços em branco ou Algumas obras do autor são:
por meio de palavras soltas, isoladas de contexto!).  Escrita e alfabetização (1992)
c) Estudo através de listas: Há listas enormes de femi-  Linguagem e diálogo (2003)
ninos, plurais, plurais de compostos (obriga se o aluno a de-  Oficina de texto (2003)
corar as regras desse tipo de pluralização, coisa totalmente  Prática de texto (2001)
destituída de significado, já que, no ato da fala, não temos  Diálogos com Bakhtin (1996)
tempo para classificar os elementos do composto, lembrar-se  Uma introdução a Bakhtin (1988)
da regra e aplica-la!), diminutivos, aumentativos, radicais,  Estrangeirismos: guerras em
prefixos, sufixos, sinônimos e antônimos, conjugação verbal, torno da língua (2004)
conjunções...  Trabalhando Com Narrativa (1992)
Será que nunca ninguém percebeu que não falamos reu-
nindo listas? Que os elementos linguísticos só funcionam * O texto original foi publicado, sob o mesmo título, na revista
em contexto (e, portanto, só aí é que podem ser adquiridos)? Construtora, ano III, nº 1, p. 5-12, 1975.

As Sete Pragas do Ensino do Português | Carlos Alberto Faraco |3

You might also like