Professional Documents
Culture Documents
O Feminino
Resumo
A autora estabelece o percurso de Lacan em torno da Histeria, ao longo de muitos anos de seu
ensino. A partir de casos clínicos de Freud, especialmente Dora, com referências a Elisabeth von
R. e ao sonho da Bela Açougueira, enfatiza a concepção lacaniana do eu, em oposição àquela
defendida pela ego psychology, e estabelece o desenho do jogo das identificações no caso Dora e
da dualidade desejo/demanda no sonho da Bela Açougueira. Além disso, trata da questão da
mascarada como recurso de acesso à feminilidade e estabelece especial atenção ao conceito de
mais-de-gozar.
Palavras-Chave
Histeria em Freud e Lacan Eu ideal Ideal do eu Caso Dora Elisabeth von R. O sonho da
Bela Açougueira Identificação Desejo Gozo Mais-de-gozar Feminilidade Histeria
masculina Mascarada
Freud: E quanto a isso, o que o senhor quer É a uma lembrança da primeira infân-
mudar? Como primeira reversão dialética, cia que ele vai atribuir uma significativa
Freud lhe propõe que verifique a partici- importância: Dora suga seu dedo, retiran-
pação que ela toma nos transtornos de que do-o da orelha de seu irmão caçula de 18
se queixa. meses. Isto significaria que sua imagem es-
Segundo desdobramento: Dora reco- pecular proveniente do estágio do espe-
nhece que sua cumplicidade permitiu que lho, imagem alienante por excelência, mas
prosseguisse a relação entre os dois aman- indispensável como alicerce da imagem do
tes, e ela descreve a troca dos presentes. corpo constitui-se sobre este pequeno
Quanto à relação edipiana, ela se revela outro, que é seu irmão. Desde então, é esta
constituída em Dora por uma identifica- imagem masculina que lhe servirá de eu
ção ao seu pai, da qual Lacan se questio- ideal (moi), ou seja, de eu na acepção la-
na, desde seu primeiro texto, se não seria caniana do eu como imagem alienante6.
favorecida pela sua impotência sexual. Dora terá então uma imagem mascu-
Acrescenta até que essa impotência seria lina como eu (moi), o que não quer dizer
experimentada por Dora como idêntica à que o ser de seu sujeito será masculino7.
prevalência de sua posição de riqueza (for- Uma das riquezas da contribuição lacani-
tuna) e sublinha uma alusão inconsciente ana se estabelece nesta distinção elabo-
possibilitada pela semântica da palavra for- rada nos anos imediatamente seguintes a
tuna em alemão: Vermögen5. Essa identifi- este texto entre o moi e o je, sujeito do
cação ao pai se traduz pelos sintomas de inconsciente 8, a verdadeira revolução do
conversão e sua interpretação desperta o pensamento moderno não embasado na
surgimento de um grande número deles. substituição da terra pelo sol no centro do
Mas, então, o que significaria o ciúme re- sistema planetário, mas na introdução do
pentino de Dora em relação a seu pai? Se- teorema de Kepler que permite saber que
gunda reversão dialética: Freud assinala que não havia um espaço central, mas dois. Para
esse ciúme mascara um outro, pelo sujeito o sujeito humano também é assim: há o
rival. moi e o je, sujeito do inconsciente.
Terceiro desdobramento: o apego fas- Entretanto, que Dora resgate o sujei-
cinado de Dora a Sra. K (de quem ela exal- to masculino como imagem de seu pai co-
ta a brancura encantadora do corpo) e suas loca uma questão: como assumir um corpo
confidências recíprocas. Então, Freud per- próprio como mulher? É aí que entraria o
ceberia um problema: como é possível que valor da Sra. K para ela. Valor ainda maior
Dora não pareça ressentida com a Sra. K em razão de não ter um acesso à sua ima-
que, no entanto, traiu-a, denunciando gem corporal feminina no estágio do es-
suas leituras? Terceira reversão dialética: é pelho, deixando-a exposta à fragmentação
nesse momento que seria revelado o valor funcional, da qual os sintomas de conver-
real do objeto Sra. K, que, para Dora, são seriam a tradução.
encarnaria o mistério da feminilidade cor-
poral. Para sustentar esta hipótese, Lacan 6
É preciso não esquecer a situação do debate psicanalíti-
faz uma breve alusão ao sonho de Dora. co da época: a ascensão da psicologia do ego, contra a
qual Lacan vai insurgir-se. É nesse propósito que, três
anos depois, vai consagrar todo seu seminário à ques-
tão do eu na teoria de Freud.
5
Vermögen significa, em princípio, capacidade, poder e 7
Lacan só voltará a essa identificação ao irmão dezoito
pode ser empregado em uma forma negativa como Es anos mais tarde. Enquanto isso, ela será substituída por
ist nicht in meine Vermögen, não está em meu poder. A uma identificação às insígnias do pai, anteriores à sua
mesma palavra significa também fortuna, bens, rique- própria feminilidade. A divisão então será mantida.
za. Mas, quanto a isso, a observação de Lacan não nos 8
Para clareza de propósito, adiantamos aqui conceitos
parece clara. que serão expostos somente dois anos depois.
Mas, para ter acesso ao objeto Sra. K, este ponto exato... vinte anos mais tarde9.
figura do mistério de sua própria feminili- Mas é surpreendente ver que estes reparos
dade, Dora deve tomar emprestada uma ele os faz desde esta primeira intervenção.
identificação imaginária: seu moi, sua ima- Na cena do lago, mesmo vivenciando
gem especular, que é o Sr K. Essa imagem uma situação estável, o que faz adoecer
sucede àquela de seu irmão, na primeira Dora são as palavras ditas pelo Sr. K: Mi-
infância. Toda a agressividade de Dora nha mulher não é nada para mim. Mas, a
contra o Sr. K é típica da relação narcísica partir daí, o que ele será para ela? É o que
com a imagem do pequeno semelhante, pergunta Lacan em 1951. Será preciso es-
relação necessária, mas alienante. Vê-se perar alguns anos ainda, e seu trabalho
bem, desde então, como as interpretações sobre o além do amor, para que ele possa
normatizantes de Freud concernentes a seu articular que é o próprio lugar de Dora no
desejo pelo Sr. K não podem encontrar amor de seu pai que oscila de maneira ca-
nenhuma ressonância em Dora. tastrófica.
Nesse tratamento, Freud faz a experi- Pode-se observar, desde então, a revi-
ência, ainda nova, da transferência; é a ravolta que sua leitura opera sobre o texto
primeira na qual ele reconhece que o ana- de Freud. Este último interrogava-se sobre
lista tem aí sua participação. Lacan fala da o objeto de desejo de Dora. Estaria enga-
transferência dita negativa de Dora como nado? De início, deveria interpretar seu
sendo a operação do analista que interpre- desejo homossexual pela Sra. K?10 Lacan
ta, mas nada mais diz, então, a esse respei- se questiona sobre qual é o valor estrutural
to. Nos anos seguintes, desenvolverá a idéia da Sra. K para Dora, em função das diver-
de que a resistência na transferência deve sas identificações nas quais ela se inclui.
situar-se do lado do analista e denunciará Seus sintomas são, sobretudo, tentativas de
a psicanálise da época que, bem esquecida trazer uma resposta aos impasses nos quais
de Freud, tendia a reduzir-se a uma análise ela se encontra. Ele aposta que, se Freud
das resistências. tivesse apresentado as coisas dessa manei-
Freud pensou que as manifestações sin- ra a Dora, teria sido prestigiado por ela e já
ceras de desejo do Sr. K por ela poderiam garantido uma transferência positiva11.
lhe ser benéficas. Seria preciso ainda que A posteriori, tem-se, às vezes, o senti-
Dora pudesse considerar-se no lugar de mento de que, na ocasião da primeira en-
objeto de desejo para um homem, o que a trevista visando uma psicanálise, o sujeito
leva de volta ao lugar de objeto na ordem expôs todos os elementos essenciais em
das trocas (já descrito por Lévi-Strauss em torno dos quais vai operar seu trabalho
As Estruturas Elementares de Parentesco). analítico durante os anos seguintes. Assim
Dora pressente algo dessa ordem no acor- também encontramos, em estado germinal,
do tácito entre seu pai e o Sr. K e se rebela. nesta intervenção, um grande número de
Para toda mulher, ocupar esse lugar de
objeto de desejo não é simples. Como não
se sentir um dejeto? Eis um dos segredos
9
Em seu Séminaire, livre XX: Encore (1972-1973). Paris:
Le Seuil, 1975.
da feminilidade que a Sra. K parece pos- 10
Da mesma forma que estamos numa tomada retroativa
suir. Daí a fascinação que exerce sobre da obra de Lacan, ele também assim procedeu em rela-
Dora. A Madona da Sixtina, que tanto a ção a Freud. Conhece todas suas descobertas a respeito
do lugar da mãe como objeto de amor da menina no
atrai, traz consigo a solução preconizada período pré-edipiano e as mudanças, não somente de
pelo cristianismo para esse impasse subje- objeto, mas, ainda, de identificação.
tivo: fazer da mulher o objeto de um dese-
11
Transferência positiva que Lacan não deixava de susci-
tar em seus analisantes, o que lhe fazia, às vezes, ser
jo divino ou um objeto que transcende o tomado como sedutor. Ele iria teorizar essa questão,
desejo. Lacan retomará extensivamente anos depois, em seu seminário sobre a transferência.
pontos que Lacan desenvolverá ao longo tenta, sobretudo, a idéia de que o centro
dos anos: o da divisão inerente ao ser hu- de gravidade do sujeito13 é essa síntese
mano entre o moi e o sujeito do inconsci- presente do passado que se chama histó-
ente (je), o do desejo histérico e do desejo ria14. O que se passa quando Freud repete
em geral, o da diferença entre os registros a uma paciente histérica uma história con-
das identificações imaginárias e da identi- tada por sua mãe? A paciente responde
ficação a um traço do pai, suporte do Ideal com uma pequena crise de histeria, é uma
do eu, e tempo lógico anterior ao acesso de resposta pelo sintoma. Freud (em seus Es-
uma menina à sua feminilidade. Encon- tudos sobre a Histeria) afirma que o que é
tramos aí até aquele ponto, da difícil divi- buscado é o núcleo patogênico, e que esse
são para uma mulher, entre sua identifica- último rejeita o discurso. O que é então a
ção ao pai como Ideal e o fato de ter de resistência? É esta inflexão que impede o
prestar-se ao papel de objeto, causa de de- discurso de se aproximar do núcleo; seu
sejo para um homem. Vemos, de início, sentido é histórico. Na hipnose, também,
que as questões do desejo, das identifica- o sujeito porta esse discurso histórico, ain-
ções de uma mulher, de sua feminilidade da que, ao sair do transe, não se lembre
vão tornar-se indissociáveis da clínica da mais.
histeria e do caso Dora. É lá que estão os É ai, diz Lacan, que começa a técnica
esboços de futuras reflexões que engendra- analítica porque a rememoração do trau-
rão novos conceitos de que Lacan não dis- ma se mostra terapêutica. E, já para come-
punha ainda. Entretanto, poderíamos di- çar, toma partido: É ambíguo falar do ca-
zer que contrariamente à idéia admitida ráter vivido, revivido do traumatismo no
que dá a seu estudo sobre a psicose um estado secundário histérico. Não é porque
papel mais importante é a clínica da his- o discurso seja dramatizado, representado
teria que guia suas interrogações, seus re- sob um aspecto patético que a palavra re-
manejamentos, suas releituras da obra de vivida pode nos satisfazer.
Freud e suas próprias invenções nos anos E de se insurgir: O que isso quer di-
seguintes12. É o que vamos tentar demons- zer: a assunção pelo sujeito de sua própria
trar. experiência de vida?15.
Para ele, a questão é saber quem é o
II A questão da histeria para Lacan sujeito do discurso. Exatamente sobre isso
durante os dez anos da SFP é que ele se deterá, dois anos depois, afir-
mando que, na neurose, o elemento de-
1953-1954: seu seminário sobre terminante é o Outro da linguagem, no
os escritos técnicos de Freud qual o sujeito se reconhece e se faz reco-
Lacan só faz breves alusões à questão nhecer.
que nos interessa. O debate central desse
seminário é impedir que toda a psicanálise 1955-1956: a questão da histeria no
não se reduza a uma análise das resistên- seminário sobre as psicoses
cias. Ele assinala que não há em Freud, nos Lacan abre um parêntese em seu estu-
seus Estudos sobre a Histeria, onde se possa do sobre a psicose para compará-la à ques-
afirmar que a resistência vem do eu. Sus- tão da histeria, dedicando a isso duas li-
ções.
12
Infelizmente, não dispomos de anotações do seminário
do ano 1952-1953, o último que ele realizou na SPP, 13
Não nos esqueçamos de que ele opõe o sujeito ao moi.
antes da cisão que resultou na sua saída. Porém, pelas 14
LACAN, J. Le Séminaire, livre I: Les écrits techniques
alusões que fez mais tarde, pensamos que tratou do de Freud (1953-1954). Paris: Le Seuil, 1975, p.46.
caso Dora. 15
LACAN, J. Idem, p.47.
16
LACAN, J. Le Séminaire, livre III: Les Psychoses (1955-
1956). Paris: Le Seuil, 1981, p.189 e seg. 17
LACAN, J. Idem, p. 201.
valência do objeto materno que força a cionar. Lacan, em seu seminário sobre a
menina a seguir durante certo tempo o identificação (1961-1962), dirá que ela é
mesmo caminho que o menino. válida para todo sujeito, menino ou meni-
Vemos aí surgir o início de sua teoria na. É verdade que só num segundo tem-
do falo. Por esta prevalência do falo ele po, no momento da descoberta de sua cas-
estabelece uma identificação imaginária ao tração e a de sua mãe, que a menina muda
pai, na menina e no menino. Este falo é de objeto. Freud, aí toma partido contra
colocado aí no seu valor significante, sim- uma concepção mais naturalista da iden-
bólico. No nível da experiência vivida, da tificação, tal como Jones vai defender e que
simpatia dos ego (iguais?), a menina deve- preconiza um conhecimento inato da va-
ria ter um acesso direto à sua feminilidade. gina pela menina e, então, sua primeira
O caso não é assim. Para Dora, é sua iden- identificação à mãe. Freud afirma a superi-
tificação ao homem portador de pênis que oridade do falo para os dois sexos e Lacan
lhe serve de instrumento imaginário para também. Não é menos verdade que esta
apreender o que ela não chega a simboli- primeira identificação, mítica, ao pai não
zar, o que seria uma mulher. seja evidente e não deva se confundir com
Esta lição do seminário leva a diversas a identificação imaginária, ao pai, na his-
observações. Primeiramente, a mais sim- teria, que Lacan insiste em assinalar21. A
ples: Lacan diz que Freud sempre assina- este ponto de sua elaboração a questão das
lou a dissimetria entre menino e menina identificações permanece ainda obscura. O
no Édipo; o que é falso. Em seu capítulo que é evidente, é que há todo interesse em
sobre a Identificação, em Psicologia das abordar este caso pelo viés, mesmo com-
Massas (1921), depois de ter descrito a pri- plexo, das identificações que o de tomá-lo
meira identificação ao pai, concomitante pelo viés da relação de objeto. Viés com-
ao primeiro investimento de objeto libidi- pletamente enganador e é a isso que será
nal sobre a mãe, Freud escreve: A mesma direcionado o seminário seguinte, onde ele
coisa vale para as substituições correspon- retoma ainda o caso Dora.
dentes para a menina20. Nessas substitui-
ções correspondentes é necessário colocar 1956-1957: Dora no seminário
a mãe no lugar do pai e vice-versa. Sabe- da relação de objeto
mos que só a partir de seu texto Algumas (terceira abordagem)
Conseqüências Psíquicas das Diferenças Ana- Assinalando já ter feito uma primeira
tômicas entre os Sexos (1925) é que esta dis- avaliação desta observação, cinco anos
simetria é estudada. Lacan salva então o antes22, ele então sublinha ter indicado que:
pai, operação que ele qualificará, mais tar- A histérica ama por procuração; ela é
de, de histérica e à qual estamos submeti- alguém cujo objeto é homossexual; ela
dos, diante de um autor que é o pai funda- aborda este objeto homossexual, por iden-
dor de um campo do saber. Seguramente, tificação a alguém do outro sexo. Traba-
não estamos isentos em relação a Lacan. lhando sobre a relação narcísica como fun-
Aliás, em seu texto sobre a diferença dadora do eu, Urbild da constituição dessa
anatômica, Freud precisa que o pai não é
o primeiro objeto de investimento libidi-
nal da menina; também como para o me-
21
Como veremos no seminário sobre as formações do
inconsciente, dois anos depois, ele falará de uma iden-
nino, é sua mãe. Quanto a esta primeira tificação a um traço do pai. Esta identificação será,
identificação ao pai, ele não volta a men- para Lacan, fundadora do Ideal do eu (moi), identifica-
ção simbólica e permanente.
22
Essa indicação faz alusão a um seminário na SPP, de que
não temos registro, ou trata-se, simplesmente, de sua
20
FREUD, S. Oeuvres Complètes, v. XVI, p. 43. intervenção no Congresso de língua românica em 1951?
função imaginária que se chama moi, La- que é demandado na relação de amor, o
can tinha mostrado que havia vestígios que vale como sinal de amor e que só vale
nessa observação: o eu (moi) de Dora fez como sinal, é o que não se tem. Não exis-
uma identificação a um personagem viril, te maior doação possível do que daquilo
Sr. K, e os homens são para ela outras tan- que não se tem.
tas cristalizações possíveis de seu eu (moi). A doação implica a lei, e Lacan reto-
Por que a Sra. K é tão importante? Não ma a questão no plano sociológico: o dom
somente porque é objeto de uma escolha é algo que circula, o dom que se dá é o
dentre outros objetos, não somente por- dom que se recebeu. Então, ao nível do
que ela está investida da função narcísica, sujeito o ciclo da doação vem de outra
base de todo enamoramento (Verliebtheit), parte. A relação de amor se estabelece por-
mas como os sonhos o indicam: a Sra. K é que o dom é doado em troca de nada. Por
a questão de Dora23. trás do que o sujeito doa, há tudo aquilo
Como Dora situa-se em relação ao que lhe falta; ele sacrifica além do que tem.
Édipo? Toda a observação repousa sobre a Se um sujeito é cumulado de bens, um dom
noção central da impotência do pai, e é o proveniente dele não é sinal de amor. Só
que teria feito com que Dora não pudesse se pode amar o outro por aquilo que lhe
ultrapassar o Édipo. Segundo Lacan, a frus- falta. Mesmo o Outro, o grande Deus, só
tração primitiva na qual a menina se en- pode ser amado pela única coisa que lhe
contra em relação à sua mãe provém do falta: a existência. O que é amado em um
objeto do qual a menina é frustrada; po- ser está para além daquilo que ele é, do
rém o desejo desse objeto subsiste nela e que lhe falta.
vai tornar-se signo de amor. A menina vai
demandá-lo ao pai, que pode lhe dar sim- Como Dora se crê amada por seu pai
bolicamente. Mas, a Dora, ele não doa Dora ama seu pai, e ela o ama por aqui-
porque ele não o tem. lo que ele não lhe dá. Diante de Dora, o
pai se empenha em algo de que ela não
A doação de amor está isenta de haver induzido: sua relação
Pergunta-se Lacan, o que é doar? No com a Sra. K que viria então constituir um
grau simbólico da relação de objeto, este além de Dora, que seria justamente o que
pode ou não ser doado. Dora permanece faltaria a ela e pelo qual ela seria amada
muito presa a este pai de quem não pode por seu pai. A Sra. K encarna a função fe-
receber o dom viril. Tão presa, lembra La- minina, e Dora situa-se então entre seu pai
can, que sua história começa por uma sé- e a Sra. K. Como seu pai ama a Sra. K,
rie de episódios histéricos na idade de saí- Dora sente-se satisfeita. Esta posição é sim-
da do Édipo24, ligados a manifestações de
amor a esse pai combalido, doente, aco-
metido em suas potências vitais. O amor Diferenças Anatômicas (1925) e A Sexualidade Femi-
que ela tem por esse pai é correlativo e pro- nina (1931), parece não ter observado uma mudança
de nomenclatura em Freud. De fato, se Freud fala de
porcional à depreciação dele25. Então, o saída do complexo de Édipo pela menina no primeiro
de seus textos, não fala mais assim a partir do segundo.
Para a menina, trata-se, então, de entrar no Édipo e,
23
LACAN, J. Le Séminaire, livre IV: La relation dobjet não mais, de sair. Não é fácil reparar um mestre, às
(1956-1957). Paris: Le Seuil, 1994, p.138 e seg. voltas com suas tergiversações, suas contradições, seus
24
Não é a primeira vez neste seminário, e isto se repetirá recuos, que originam todos os avanços. Entretanto,
no início do seguinte, que Lacan fala de travessia, de mesmo a Lacan que tentou fazê-lo com Freud, isso
saída do Édipo pela menina. Apesar de já ter citado pode escapar. Para um leitor de Lacan a tarefa é difícil:
distintamente os três trabalhos de Freud sobre a ques- fazer o mesmo com sua obra, quer dizer, fixar-se ao
tão do Édipo na menina O Declínio do Complexo de espírito de Lacan e não ao seu texto.
Édipo (1924), Algumas Conseqüências Psíquicas das
25
LACAN, J. Idem, p. 140.
bolizada de mil maneiras: o pai impotente tal modo o falo que este deve ser recebido
que supre por todos os meios possíveis de como doação, e é como objeto doado que
doação simbólica inclusive por doações ele faz o sujeito entrar na dialética da tro-
materiais aquilo que não efetua como ca. É no interior desta que a necessidade
presença viril. Ele consegue, aliás, benefi- real de que Freud nunca pretendeu ne-
ciar Dora com generosidades, igualmente gar a existência , ligada ao órgão femini-
repartidas entre a filha e a amante, o que a no, encontrará seu lugar e poderá satisfa-
faz participar de certa posição simbólica. zer-se de quebra. Mas ele jamais é posicio-
Como se tudo isso não bastasse, Dora nado simbolicamente como algo que te-
tenta restabelecer esta mesma relação, mas nha um sentido, permanece sempre pro-
num sentido inverso. É diante da Sra. K blemático27. Está aí introduzida, a propósi-
que ela estabelece uma situação triangular to da histérica, a questão do desejo.
com o Sr. K. A Sra. K, como a Madona de
Dresden, seria objeto de adoração e, além 1957-1958: o desejo e a histérica no
da adorada Sra. K, haveria Dora. A Sra. K seminário das formações do inconsciente
ocuparia assim, nesse novo triângulo, o
lugar que Dora ocupa naquele formado Lacan escuta o sintoma histérico: Elisa-
com seu pai. beth von R.28
Representa-se, então, a catástrofe para Elisabeth von R. foi a primeira análise
Dora quando ela ouve o Sr. K lhe dizer completa de um caso de histeria, nos lem-
que sua mulher nada é para ele (Ich habe bra Lacan. O que interessa é a maneira
nichts an meiner Frau). Isso queria dizer que como Freud considera aí o sintoma como
ela, Dora, nada é para seu pai. uma máscara: Essa pequena máscara que
O que Lacan teoriza assim sobre a do- faz prever um sentido oculto29. O sinto-
ação de amor lhe permitirá, mais tarde, ma apresenta-se sob uma máscara, sob uma
estabelecer a importância fundamental da forma paradoxal e Lacan decide chamar
noção de falta no Outro, que pode permitir sintoma tudo aquilo que é analisável. Esta
que apenas o Outro parental, o Outro real noção de máscara representa a forma am-
esteja à altura de investir libidinalmente o bígua sob a qual se apresenta o desejo na
bebê, de falicizá-lo. Quando não há esta histérica, que não permite poder orientá-
falta o resultado pode ser catastrófico para la em relação a esse ou àquele objeto. As-
a criança26. Mas, logo Lacan é levado a sim, Freud engana-se, não somente com
avançar sobre suas primeiras hipóteses a Dora, mas também com a jovem homos-
respeito do que vai denominar objeto fáli- sexual.
co.
está fechado. Quero telefonar a alguns for- rio que possa desejar outra coisa que não
necedores, mas o telefone está com defei- aquela que lhe é oferecida pelo Outro. O
to. Devo então renunciar ao desejo de dar desejo, para Lacan, é o que resta da de-
um jantar. manda, após a satisfação da necessidade.
Esta paciente desejaria comer sanduí- Se um objeto capaz de satisfazer uma ne-
che de caviar todas as manhãs, o que seu cessidade alimentar viesse responder à de-
marido lhe ofereceria de bom grado, mas manda, não ficaria além da satisfação des-
ela lhe implora para não fazê-lo. Freud fala sa necessidade. Assim, o desejo da histéri-
então de desejo insatisfeito e se pergunta ca se constitui quase totalmente a partir
qual é a função de tal desejo. Ela associa a do desejo do Outro. Mais tarde, Lacan es-
partir de um pedido de convite para jan- tende essa referência ao desejo em geral, a
tar, que lhe faz uma amiga que até agrada a estrutura própria do desejo, guardando cer-
seu marido, mas essa amiga é um pouco ta afinidade com o desejo histérico.
magra e seu marido prefere as mais cheias Mas há uma outra pista: em uma mu-
de corpo. Freud interpreta seu sonho como lher histérica um desejo insatisfeito lhe
desejo de não ajudar engordar a amiga que permitiria imitar um Outro incompleto,
poderia, então, agradar ainda mais a seu não provido de tudo, em suma, incapaz de
marido. Mas ele, Freud, está sempre intri- satisfazê-la. Um Outro não barrado seria
gado: A que se refere salmão defumado terrível para ela, pois devido à sua sugesti-
nesse sonho? Ela responde que é o prato onabilidade ela desapareceria diante dele
predileto da amiga. Por acaso, Freud co- como sujeito. Assim, é abordada a questão
nhecia essa amiga e sabia que, pelo salmão da necessidade da castração, da falta no
defumado, ela tinha o mesmo apreço que Outro. Logo, Lacan vai perceber que essa
a paciente pelo caviar. incompletude do Outro real é sempre ne-
A primeira interpretação de Freud visa cessária para que um objeto possa consti-
à identificação: é porque se identifica a esta tuir-se, e é na condição de faltante que o
amiga que ela se permite um desejo não Outro poderá ser desejante de algo. Esta
realizado; ele distingue então a identifica- incompletude do Outro, ele escreve S ( A ).
ção histérica de um simples contágio, de
uma imitação. Lacan sublinha, a esse pro- A Bela Açougueira nos Escritos31:
pósito, que o desejo, desde sua primeira o desejo e a linguagem
aparição, surge como desejo insatisfeito. Em julho desse mesmo ano, 1958, La-
Qual é sua função? can retomará o essencial de suas conside-
rações sobre a histeria num texto sobre a
Distinguir a demanda do desejo
direção da cura32, onde faz notar que o so-
Continuando, Lacan vai nos dizer que nho da histérica resume o que Freud, na
a histeria é a estrada real pela qual se pode Interpretação de Sonhos, explica sobre os
compreender algo de fundamental para o mecanismos inconscientes de condensa-
homem em geral. Trata-se da distinção a ção e de deslocamento, comprovando a
se fazer entre a questão do desejo e a da
demanda. Essa distinção, capital para o
prosseguimento da teoria lacaniana, será
introduzida pelo viés da clínica da Bela
31
LACAN, J. La direction de la cure et les principes de son
pouvoir. Inicialmente publicado em La Psychanalyse,
Açougueira. O que ela queria? Queria o vol. 6, PUF, 1961; republicado depois nos Écrits. Paris:
amor de seu marido. O que ela deseja? Le Seuil, 1966, p. 620 et s.
Caviar. E o que ela quer? Que não se dê a
32
Suas considerações sobre a histeria lhe servem também
para criticar, com vigor, as proposições feitas em um
ela caviar. Para que uma histérica possa livro recém-publicado: La Psychanalyse daujourdhui,
suportar uma relação amorosa, é necessá- obra coletiva de membros da SPP.
Lacan vai interessar-se por esta frase como manifesta-se pelo gesto dessa mão levada
a constatação de uma falta de objeto. E ao botão, acompanhada da frase Não vale
acrescenta que não se trata de uma expe- a pena. Não vale a pena, pois não impor-
riência frustrante, mas de uma significação ta que se olhe por trás, o que importa é
como tal36. O que ele quer destacar é o falo que o falo aí esteja. Mas, afinal, não vale a
como significante daquilo que o Outro não pena ir até lá olhar porque, justamente, aí
tem. É justamente porque falta ao Outro é que não o encontrará. Há uma provoca-
que pode ser significante do desejo deste ção histérica: algo que é apresentado ao
Outro37. desejo, apresentado por trás de um véu, mas
Um segundo sonho da mesma pacien- que, por outro lado, não poderia ser en-
te: Seu marido lhe pergunta se não é pre- contrado aí. Lacan resume essa provoca-
ciso afinar o piano. Ela responde que não ção assim: Não vale a pena você abrir meu
vale a pena. (Es lhont nicht). Esta frase, corpete, porque não encontrará aí o falo,
ela disse na véspera, durante a visita a uma mas se eu levo a mão ao corpete, é para
amiga. Pediam-lhe para tirar seu casaco e lhe apontar, por trás dela, o falo, isto é, o
ela respondia que não valia mesmo a pena, significante do desejo38.
ela já estava de saída. Freud pensa então O corpete da histérica torna-se a condi-
que, nesse mesmo dia, durante a sessão, ela ção fundamental da mulher em relação ao
havia levado a mão bruscamente até o ca- homem, referente ao desejo. Por trás da
saco, onde um botão acabava de abrir-se. combinação, aí você nada vai ver, justa-
É como se ela dissesse: Eu lhe peço para mente porque não há nada, nada além do
não olhar desse lado, não vale a pena. significante. Nada além do significante do
Houve substituição no sonho entre a cai- desejo39.
xa do piano Kasten e a caixa torácica, Brus- Depois de ter lembrado que era assim
tkasten; Freud observa aí o vestígio das di- o desvelamento do falo nos Ritos antigos,
ficuldades experimentadas pela paciente Lacan faz associação a propósito do pudor.
no momento da constituição de seu corpo Se no homem é o falo que deve estar co-
de moça. Lacan não recusa este aspecto berto, na mulher é a totalidade de seu cor-
da leitura, mas vai mais além. po que deve permanecer velado, condição
Se o falo é o significante do desejo, e para que possa estar, inteiramente, no lu-
do desejo do Outro, então outra vertente gar do falo. O desvelamento, que nada
do problema vai colocar-se para o sujeito: mostrava a não ser a ausência, é o que Freud
ser ou não ser esse falo. Mas o sujeito mu- denominou de pavor: lAbscheu, o horror
lher não pode reduzir-se a ser o falo. En- que responde à ausência como tal, a cabe-
tão, vai rejeitar o que ela é na aparência. ça de medusa: Acedendo ao lugar do de-
Lacan disse em 1958 que esta é exatamente sejo, o outro não se torna, de modo algum,
a posição da mulher na histeria. Na con- o objeto total, mas ao contrário, ele se tor-
dição de mulher ela se mascara. Ela se na totalmente objeto, na condição de ins-
mascara para ser, por trás desta máscara, o trumento do desejo.
falo.: todo o comportamento da histérica Pretendo fazer aqui algumas observa-
ções a respeito desse lugar da mulher como
objeto do desejo. Vimos, desde as primei-
36
Neste seminário, Lacan articula o que elabora sobre a ras intervenções sobre Dora, que esse era
histeria com o que tenta abordar sobre a sexualidade
feminina, temas sempre intricados em sua obra. Discu- o lugar mais problemático. Nossa clínica
te, particularmente, conceitos de Jones a respeito das
relações da moça com o falo.
37
LACAN, J.Le Séminaire, livre V: Les formations de
linconscient (1957-1958). Paris: Le Seuil, 1988, p. 38
LACAN, J. Idem, p. 380.
379. 39
LACAN, J. Idem, p. 383-384.
psicanalítica quotidiana não ouviu o dis- Não é pelo fato de que a menina possa
curso feminista para saber como este lugar apoiar-se nessa identificação às insígnias de
pode ser totalmente intolerável para alguns seu pai, base do seu Ideal do eu, que ela
sujeitos femininos. Essa possibilidade de poderá, em seguida, arvorar-se em masca-
divisão do sujeito feminino, que se refugi- rada da feminilidade sem temer, com essa
aria na mascarada para portar, por trás, um semelhança, a perda de seu ser, ao fazer-
lugar fálico, é certamente, não apenas uma se objeto do desejo de um Outro. Vemos
solução elegante, mas talvez a única possí- aí que essa Spalltung, essa clivagem, longe
vel para lhe permitir ter acesso à feminili- de ser um elemento patológico, torna-se
dade. A feminilidade como mascarada é o então a estrutura própria de acesso de uma
sujeito de um texto de Joan Rivière40 que mulher à feminilidade. Lacan faz da Ich
Lacan cita no início desse seminário e Spalltung de Freud uma condição estrutu-
muito trabalhado nas lições seguintes, ain- ral do sujeito neurótico, ou seja, daquele
da que não o faça explicitamente. J. Riviè- não psicótico.
re descreve, em certas mulheres, uma apa- Mas o sujeito só pode sustentar-se
rente fragilidade feminina e a correlativa como dividido porque terá passado pela
capacidade de seduzir. Seria uma mascara- experiência da falta no Outro primordial,
da que ocultaria uma posição fálica, viril, de sua divisão, marca de sua incompletu-
com êxitos socioprofissionais que ela só de. Como o falo aí está barrado, ele pode
pode interpretar em termos de inveja do inscrever-se S( A ). Já se deparou com a
pênis e inquietudes referentes a represálias Spalltung: é estruturado por ela porque já
que, segundo a teoria a que ela se refere, sofreu seus efeito42.
só poderiam ser decorrentes disso41. Para
ela, trata-se aí de uma situação de cliva- Dora, quarta abordagem: é a histérica
gem, necessariamente patológica. Entre- quem sustenta o desejo do Outro
tanto, ela designa esta mascarada pelo nome Nos seminários anteriores, Lacan con-
de feminilidade. siderava a Sra. K encarnando a questão da
Não pudemos trabalhar aqui a manei- feminilidade para Dora. Agora, ele dispõe
ra pela qual Lacan, em seu seminário, che- o conceito de desejo como desejo do Ou-
ga a considerar que toda menina deve fa- tro... A Sra. K será o desejo de Dora, na
zer uma identificação a um traço do pai. medida em que ela é o desejo do pai e, por
Trata-se de identificação ao objeto de amor, outro lado, desejo barrado. Dora nunca
descrito por Freud em Psicologia das Mas- ignorou a impotência de seu pai, o que
sas e Análise do Eu, que ele denomina de permite a Sra. K ocupar esse lugar de obje-
regressiva, por desapontamento amoroso. to de desejo insatisfeito43.
Lacan possui agora outros instrumen-
tos de leitura; reconhece vários tipos de
40
RIVIÈRE, Joan. La femininité en tant que mascarade, identificações: aquela a um traço do pai,
Int. Jour. of Psycho-analysis, X, p. 303-313, 1929; tra- constituinte do Ideal do Eu e, também, a
dução francesa do original inglês realizada em 1964 por
Victor Smirnoff para a revista La Psychanalyse, vol. identificação histérica. Enfim, há uma ter-
VII. Paris: PUF. ceira44, propriamente especular; a identifi-
41
É uma aluna de Jones para quem a inveja do pênis não
é um elemento de toda feminilidade, mas uma regres-
são patológica acompanhada de um ódio destrutivo
dirigido ao portador. A coloração pejorativa que a in- 42
LACAN, J. Idem, p. 394. Essa falta fálica será, três anos
veja do pênis carrega ainda em nosso meio vem, prova- depois, o objeto a, objeto causa de desejo.
velmente, das influências da escola inglesa, porque, para 43
LACAN, J. Idem, p. 368 e seg.
Freud, em seu texto sobre a feminilidade, trata-se de 44
Essas três identificações são secundárias. Não conside-
um fenômeno de estrutura, sem o qual nenhuma mu- rei, nesta enumeração, a identificação primária ao pai,
lher pode se constituir. por incorporação.
cação ao pequeno semelhante, base da Outro. Como o desejo do sujeito pode sus-
constituição do eu, bem próxima de sua tentar-se diante do desejo do Outro? Não
noção de Eu Ideal. Para Dora, é o Sr. K se aproximando demais dele. Para isso,
quem desempenha esse papel, razão de seu podem-se considerar algumas soluções. A
interesse por ele o que Freud considerou histérica, por exemplo, apóia-se no desejo
como amor. Identificando-se a ele, Dora insatisfeito. A Bela Açougueira deseja co-
deseja a Sra. K; desejo que nada tem de mer caviar, mas não quer que seu marido
impotente porque o Sr. K porta as insígni- lhe compre, é preciso que esse desejo per-
as de virilidade e potência. Sob esse aspec- maneça insatisfeito. A histérica atribui a
to, há sentido em se dizer que Dora é ho- ela mesma a função de ser obstáculo, aquela
mossexual, mas histérica como outra qual- que não quer. Nas situações tramadas por
quer. Como seu pequeno arranjo mantém ela, seu gozo consiste em impedir a reali-
Dora nessa posição, pode supor que, as- zação do desejo. Na relação do sujeito ao
sim, sustenta o desejo enfraquecido do objeto da fantasia que Lacan escreve:
Outro: no caso, seu pai45. É ela o seu & a a histérica vem ocupar esse lugar
apoio46. Mas para manter esse pequeno ar- mediano, terceiro, que impede o encon-
ranjo, é indispensável que o Sr. K deseje a tro entre o sujeito ( ) e o objeto (a). Nes-
Sra. K. Quando ele diz a Dora que sua ta relação desdobrada, a histérica institui-
mulher nada é para ele, desperta em Dora, se como o motor da máquina que os man-
sem saber, questões sobre sua própria exis- teria suspensos, um ao outro, como espé-
tência: o fato de que ela vive para susten- cie de marionetes; é ela quem está como
tar o desejo enfraquecido do pai. A bofe- aposta, em jogo48.
tada mostra a dimensão da violência de-
sencadeada pela queda de sua construção. 1969-1961: o seminário sobre
Lacan também diferenciou a deman- a transferência (quinta abordagem
da do desejo. A Sra. K é o desejo de Dora, do caso Dora)
mas o que Dora demanda é o amor de seu
pai. Como ela não pode mais sustentar o Como Lacan é levado a modificar
desejo do Outro, só pode recorrer à de- sua concepção de objeto a da fantasia
manda pura e simples: a reivindicação do Para Dora, o semelhante, o pequeno
amor do pai. outro da identificação especular havia sido
o irmãozinho, objeto de desejo da mãe,
1958-1959: o seminário sobre
tendo um valor libidinal, fálico para ela.
o desejo e sua interpretação
Sendo assim, esse irmão havia ocupado o
lugar de Eu Ideal, objeto de identificação
Na fantasia, a histérica faz imaginário para Dora, lugar depois herda-
o papel de obstáculo do pelo Sr. K.
Lacan apresenta uma primeira elabo- O conceito de objeto a surgido pela
ração de seu conceito de objeto a, objeto primeira vez no seminário sobre o desejo
da fantasia do sujeito47. Este objeto da fan- designaria então o objeto do eu, o peque-
tasia, objeto de desejo, leva ao desejo do no outro. O Sr. K seria o objeto pequeno a
da fantasia de Dora. Assim, a fantasia se
encontraria tributária deste pequeno ou-
45
LACAN, J. Idem, p. 397. tro.
46
Esta idéia de que o papel da histérica é o de sustentar o
desejo enfraquecido do Outro permanecerá presente
até o fim da obra de Lacan.
47
Nesta primeira elaboração, o objeto a representa ainda o 48
LACAN, J. Seminário Le désir et son interprétation,
pequeno outro. seminário inédito, lição de 10 de junho de 1959.
Dora não quer contentar-se com uma ela se esforça para reanimá-lo, garanti-lo,
fantasia que visaria o pequeno outro, quer completá-lo, repará-lo50.
algo muito melhor; ela visa o grande Ou- Lacan vai então retomar a fórmula da
tro, o Outro absoluto. De início, Lacan fantasia para integrar aí a relação ao grande
pensa que pelo fato de ser histérica Dora Outro enquanto marcado pela castração ( A )
não terá a mesma relação, na fantasia, ao e o falo imaginário, oculto em sua dimen-
pequeno a... Depois, num segundo tempo são faltante (-j). Em seguida, esses elemen-
(num procedimento que lhe é habitual), tos serão integrados na nova conceituação
são os conceitos de objeto pequeno a e de do objeto pequeno a que, desde então, su-
fantasia que ele será levado a remanejar, portará a falta-a-ser do sujeito do desejo,
após testar seus limites. bem como a falta no Outro e implicará a
questão do falo em sua forma negativa. No
A histérica pretende ser dotada do falo ano seguinte, o formulará assim: O objeto
imaginário; aceder ao Outro pequeno a, nós o vemos surgir no ponto de
Para Dora, a Sra. K é a encarnação enfraquecimento do Outro. O que o fará
da questão: o que é uma mulher? Este associar ao membro jamais reencontrado do
quem sou eu? tem pra ela um sentido ple- deus Hórus e, certamente, à impotência do
no e absoluto. E, a cada vez, responde de pai de Dora51. Esse objeto a vai tornar-se,
modo restrito e velado à questão do falo então, o objeto causa de desejo.
simbólico. É por isso que ela tenta esca-
motear a situação, aliás, como toda e qual- III Lacan fala da histeria na escola
quer histérica, deslizando para aí a ques- freudiana de Paris
tão do falo imaginário. Vejamos como. Uma vez consumada a ruptura defini-
Dora se vê no grande Outro. Seu pai tiva com a IPA, Lacan imprime uma ace-
é impotente com a Sra. K? O que impor- leração importante às suas conceituações.
ta? É ela quem fará a cópula, quem susten- Se ele permanece um leitor assíduo de
tará essa relação, pagando com sua própria Freud, torna-se ainda mais inovador e, com
pessoa, fazendo intervir a imagem, substi- isso, mais difícil de ser seguido por aqueles
tuída a ela, do Sr. K. É ele que ela atira ao que não realizaram todo o trajeto anterior.
abismo, que ela lança às trevas exteriores, Alguns psicanalistas lacanianos chegarão
no momento em que esse animal lhe dirá até a detectar aí uma ruptura epistemoló-
a única coisa que não deveria dizer: minha gica com a obra de Freud52, mas tal opi-
mulher nada é para mim. Ou seja, não me nião está longe de um consenso e, certa-
excita. Se ela não te excita, para que en- mente, não é a nossa.
tão tu serves?49. Trata-se então, para Dora,
como para toda histérica, de ser dotada do 1969-1970: a histeria no seminário
falo imaginário. Se, nos dramas sentimen- XVII o avesso da psicanálise
tais, ela está sempre lá, devotada, susten-
tando nos bastidores tudo que se apresen- O impossível do gozo fálico:
ta de apaixonante e que, entretanto, não a reivindicação peniana
é de seu interesse, é que há algo que prefe- Aqui, Lacan começa colocando a im-
re em lugar de seu desejo: que o Outro possibilidade do gozo fálico como um fato
guarde a chave de seu mistério. E, para isso,
50
Lacan aproveita para chamar a atenção sobre o perigo
desta mesma inclinação histérica reparadora no analis-
ta, em seus anseios terapêuticos.
51
Seminário LIdentification, inédito, lição de 27 de junho
49
LACAN, J. Le Séminaire, livre VIII: Le Transfert (1960- de 1962.
1961). Paris: Le Seuil, 1991, p. 289. 52
Esta posição foi defendida pela revista Littoral.
A Sra. K, que Dora contempla na fi- O segundo sonho assinala que o pai
gura da Madona de Dresden, é aquela que simbólico é o pai morto; que só se alcança
é capaz de sustentar o desejo de seu pai e a partir de um lugar vazio e sem comuni-
também de acolher o desejo do Sr. K. Des- cação. Sua mãe lhe diz: Venha se quiser,
ses gozos, Dora é duplamente excluída. Se seu pai morreu e está sendo enterrado.
ela o suporta tão bem, provavelmente é Esse venha se quiser faz ressonância à frase
em identificação a um outro tipo de gozo, da Sra. K, convidando-a à casa do lago.
próprio do mestre: o mais-de-gozar. Lacan Dora vai encontrar-se então no vazio do
lembra então a ligação entre enurese e apartamento deixado pelos que foram ao
ambição. Do Sr. K. ela só quer receber o cemitério. Aí, ela encontra facilmente um
estojo, porque sua jóia, importuna para ele, substituto do pai: o dicionário, esse grosso
que vá amoitá-la em outro lugar. Por con- livro, onde se ensinam coisas relacionadas
seguinte, como poderia ela tirar vantagem ao sexo. O que lhe importa até mais que
na oferta feita no enunciado: Minha mu- a morte do pai é o que ele produz de
lher nada é para mim? Dora não quer o saber. Não um saber qualquer, é um saber
gozo que se oferece aí; vai preferir o saber sobre a verdade, essa verdade com a qual
como meio de gozo para fazê-lo servir à Freud a ajuda na experiência analítica.
verdade do mestre que ela, Dora, encar- Quando ela obtiver a satisfação de fazer
na64. E a verdade é que o mestre é castra- com que todo mundo saiba da verdade das
do. Lacan lembra então que, se quer do- relações entre seu pai e a Sra. K e das suas
minar o escravo, o mestre deve excluir o com o Sr. K, poderá então concluir sua
gozo fálico para si mesmo. É a condição análise, mesmo que Freud não pareça sa-
para obter disso o benefício do mais-de- tisfeito com a solução quanto a seu desti-
gozar. no de mulher.
Freud diz que é preciso não esquecer Freud constatou que tudo o que pôde
de que, para que se constitua um sonho, fazer pelas histéricas, só conduziu-o até o
não basta que ele represente um desejo vivo Penisneid, ou seja, à censura da menina à
do sujeito em relação ao presente; é ne- sua mãe por não tê-la criado menino. O
cessário que um desejo da infância lhe for- que é relatado sobre a mãe, sob forma de
neça suas bases. E aí, toma a referência frustração, poderia, no discurso da histéri-
habitualmente considerado um recurso ele- ca, desdobrar-se assim: de um lado, a cas-
gante do empresário em sua relação com tração do pai idealizado e, de outro, a as-
o capitalista cujos recursos acumulados, o sunção ou não, pelo sujeito feminino, do
capital da libido, permitirão a decisão de gozo de ser privado disso66.
passar ao ato65. Simples metáfora? Seja Como de costume, Lacan vai genera-
como for, ela agradou a Lacan que traba- lizar o que acaba de enunciar a respeito de
lhou as relações entre o capitalismo e a Dora. Terminará sua lição dizendo que o
função do mestre e extrai seu conceito de fato de o pai ser castrado é o que se trata
mais-de-gozar do conceito de mais-valia. de dissimular. E fará crítica a Freud por não
O desejo da criança ganharia sua força no ter escutado bem o discurso das histéricas.
mais-de-gozar; ou seja, aquilo que se acu- De fato, é nesse seminário que Lacan in-
mula como capital de libido, a partir do troduz os quatro discursos: do universitário,
fato de que a criança é excluída do gozo do mestre, do analista e, também, o da his-
da cópula dos adultos. térica. Seria interessante tratar aqui do dis-
64
LACAN, J. Idem, p. 110. 66
Registramos aí a referência de Jacqueline Schaeffer em
65
LACAN, J. Idem, p. 111. seu livro Le refus du féminin. Paris: PUF, 1997.
Keywords
Hysteria in Freud and Lacan Ideal ego
Ego ideal The case of Dora Elisabeth von
R the Beautiful Butchers dream Identifi-
cation Wish Enjoyment (juissance)
Beyond enjoyment Femininity Masculi-
ne hysteria Masqueraded
RECEBIDO EM 02/05/2008
APROVADO EM 07/05/2008
67
É em relação ao discurso do mestre que o pai aparece
como castrado. Essa questão é muito atual porque se
encontram, cada vez mais, pequenos mestres prontos a
se abrigarem na falência da questão paterna e as histé-
ricas não hesitam em acreditar que devem promover
esses novos pais para ocultar suas faltas. Até a psicaná-
lise conhece essas fãs.