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“(...) O mesmo que se tem com uma ‘moral do ressentimento’, que se apresenta como a única que
pode atender pelo nome de moral.” (PASCHOAL, 2011, p. 23).
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excelência], e que implicações esses conceitos tiveram sobre a vida do homem (GM,
prólogo, § 3).
O que interessava a Nietzsche não era apenas resolver hipóteses
próprias ou alheias, acerca da origem da moral, mas por em questão o valor mesmo
da moral vigente e dos valores por ela defendidos, tais como a compaixão, a
abnegação e o sacrifício pessoal, nos quais ele enxergava “o começo do fim, o
ponto morto, o cansaço que olha para trás, vontade que se volta contra a vida” (GM,
prólogo, § 5).
Assim, na primeira dissertação da obra Genealogia da Moral, Nietzsche,
partindo da análise da origem dos juízos de valor “bom” e “ruim”, “bom” e “mau”, vai
mostrar que essas tábuas de valores pertencem a dois tipos básicos de moral a que
se podem resumir as demais formas de moral encontradas ao longo da história: uma
moral própria dos senhores (fortes, nobres) e outra própria de homens escravos
(fracos, plebeus).
Nesse primeiro capítulo, buscar-se-á mostrar como, de acordo com
Nietzsche, ocorreu a revolta escrava na moral e que a moral cristã tornou-se
herdeira da moral dos escravos, sendo, portanto, uma moral do ressentimento, que
como tal nega a vida e impede o homem de alcançar seu máximo esplendor.
Ou seja, o juízo “bom” fora estabelecido por uma atitude ativa dos nobres
aristocráticos, dos homens fortes e saudáveis, que a partir de si mesmos e por meio
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de uma postura de afirmação de si mesmos e da vida, interpretam tudo o que lhes
diz respeito como sendo “bom” e o que lhes é oposto como “ruim”.
Por um sentimento de nobreza e distanciamento (ou na linguagem de
Nietzsche, “um pathos de nobreza e distanciamento”), isto é, um sentimento de
pertença a uma casta senhorial, em relação ao homem comum e plebeu, os nobres
se deram o direito de criar valores e dar nomes a esses valores, tornando-se com
isso senhores das coisas que nomeavam. Para Nietzsche, esse sentimento de
distanciamento é a verdadeira origem do conceito “bom” e de sua oposição “ruim”
(GM, I, § 2).
Com isso, se constata, segundo Nietzsche, que originalmente o juízo
“bom” não se dirige necessariamente às ações não egoístas, como afirmam os
moralistas ingleses, e nem mesmo havia uma preocupação de aplicá-lo aos atos
praticados, por não haver, por parte dos nobres, uma necessidade de classificar
suas ações.
O caminho, utilizado por Nietzsche (que de acordo com ele era o correto),
para responder à questão da origem do conceito “bom” foi buscar nas diversas
línguas as designações para esse termo. De acordo com ele, em todas as línguas
pesquisadas, “‘nobre’ foi o conceito básico a partir do qual necessariamente se
desenvolveu ‘bom’, no sentido de ‘espiritualmente privilegiado’ e de ‘espiritualmente
bem nascido’” (GM, I, § 4). Esse desenvolvimento conceitual de “bom” ocorreu
sempre em paralelo com outro que fez “plebeu” (comum, homem simples, escravo)
transmutar-se em “ruim”4.
Esse modo de valoração vigorou, por exemplo, na Grécia e na Roma
Clássicas, onde os nobres e senhores, por possuírem um modo de vida autêntico e
verdadeiro, dando vazão a seus instintos e desejos vitais, sentiam-se e designavam-
se como homens superiores, felizes, fortes, verdadeiros, saudáveis, poderosos,
corajosos, guerreiros, em oposição aos homens simples do povo, infelizes,
mentirosos, débeis, fracos, covardes. Por um movimento de afirmação de si mesmo,
o nobre se designava como “bom”, e o diferente dele (o escravo), “ruim”.
Por seu lado, o plebeu escravo, que por determinado tempo aceitou o
modo de valoração dos nobres, passa a estabelecer também seus próprios valores,
4
Essa classificação do plebeu como “ruim”, realizada pelo nobre, não tinha um sentido depreciativo;
era apenas uma diferenciação, uma distinção que ele fazia para distinguir de si o homem vilão
(GM, I, § 4).
todavia, não com base em si mesmo e no que lhe pertence, mas tendo como
referência o nobre senhorial, seus domínios e suas ações. Buscando diferenciar-se
do nobre senhorial e seu modo de vida violento, o plebeu escravo passa a
considerá-lo como inimigo, e, por um ato de revolta, ódio, inveja e cobiça, a designa-
lo como “mau” e a si mesmo, por ser vítima dos males causados pela nobreza, como
“bom”.
Esses dois modos de valoração, “bom e ruim” e “bom e mau”, referem-se
a duas posturas distintas em relação à vida, a dois tipos de comportamentos
diferentes, e revelam a existência de dois tipos básicos de homens 5: o homem forte
e saudável e o homem fraco e doente, respectivamente, e constituem as tábuas de
valores sobre as quais se edificam os dois tipos básicos a que se podem resumir as
várias manifestações morais reveladas pela investigação histórica da moral
empreendida por Nietzsche, por meio do procedimento genealógico: a moral dos
senhores e a moral dos escravos6. Estes dois tipos de moral não são apenas
diferentes, mas completamente opostos entre si.
A moral dos senhores é autêntica e afirmativa de si mesma e da vida;
“nasce de um triunfante Sim a si mesma” (GM, I, § 10); seu modo de valoração tem
como pressupostos a constituição física vigorosa, a boa saúde e a atividade física
(GM, I, § 7); “ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para
dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão” (GM, I, § 10); a referência
para a valoração do nobre-senhorial nunca é o outro, mas ele próprio. Desse modo,
ele “não necessita de aprovação e dispensa qualquer termo de comparação – sabe-
se criador de valores. Num primeiro momento, confere valores unicamente a
homens; só mais tarde, por extensão, vai atribuí-los aos atos” (MARTON, 1993, p.
54).
5
Embora Nietzsche postule a existência de dois tipos básicos de indivíduos a que se podem
imputar os modos de valoração nobre e escravo, Scarlett Marton (1993, p. 52), chama a atenção
para o fato de que o filósofo alemão, analisando o modo de proceder dos indivíduos, em
civilizações de épocas passadas, chega a depreender certos traços de comportamento que,
apesar de distintos, por vezes, aparecem mesclados ou justapostos, tanto nas diferentes
civilizações quanto nos diversos indivíduos.
6
“Numa perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora
dominavam e continuam dominando na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam
juntos e ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos, e uma diferença
fundamental sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos. Acrescento de
imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem tentativas de mediação
entre essas duas morais, e com maior frequência, confusão das mesmas e incompreensão mútua,
inclusive dura coexistência – até mesmo num homem, no interior de uma só alma” (ABM, IX, §
260). [grifo nosso]
A moral dos escravos, ao contrário, é reativa e negadora da vida, dos
instintos vitais do ser humano; seu modo de valoração não tem como referência a si
mesma, mas algo que lhe é exterior: o modo de vida do nobre-senhorial; seu ato
criador é um Não a um “outro”, um “não eu”, um “fora”; sua ação é na verdade
reação7 (GM, I, § 10); seu pressuposto para criação de valores é o ressentimento
(GM, I, § 10); sua lógica é a da negação e da oposição: restringe-se a negar e
inverter os valores da moral dos nobres (MARTON, 1993, p. 53); sua avaliação recai
primeiramente sobre as ações, em decorrência das quais julga os homens como
“bons” ou “maus” (MARTON, 1993, p. 54).
Estas duas formas de moral “travaram na terra uma luta terrível, milenar”
(GM, I, § 16), saindo vencedora a moral dos escravos, que, por meio de uma
engenhosa inversão de valores da moral nobre (GM, I, § 7), impulsionada pelo
ressentimento provocado pela incapacidade de uma vida autêntica perante a
realidade, tornara-se, através de sua máxima expressão, a moralidade cristã, a
moral dominante na cultura ocidental até os dias atuais. Essa inversão dos valores
da moral nobre, elaborada pela moral escrava, com seu consequente triunfo
temporário sobre aquela, é denominada por Nietzsche de “revolta escrava na moral”.
7
E nem propriamente isso, pois, segundo Nietzsche, a verdadeira reação é a dos atos, e a reação
dos escravos é passiva.
8
“Quando o modo de valoração nobre se equivoca e peca contra a realidade, isso ocorre em
relação à esfera que não lhe é familiar, que ele inclusive se recusa bruscamente a reconhecer: por
vezes não reconhece a esfera por ele desprezada, a do homem comum, do povo baixo...” (GM, I,
§ 10).
confiança plena em seus instintos reguladores (GM, I, § 10), uma preparação para
“aquilo que serve à sua conservação: guerra, aventura, caça, dança, torneios e tudo
que envolve atividade robusta e livre” (GM, I, § 7), os homens fortes e nobres
consideram seus inimigos e obstáculos apenas como um desafio para medir sua
força e nobreza, uma forma de extravasar sua sede de autossuperação e de mostrar
sua superioridade em suas relações sociais (GM, I, § 10).
Assim, com esse sentimento afirmativo de superioridade, o nobre
senhorial, tendo como referência ele mesmo, estabelece seu modo de valoração,
designando a si mesmo como “bom” e aquele que não fosse como ele, “ruim”. De
acordo com Nietzsche, o modo de valoração nobre
Por seu lado, os escravos plebeus (os fracos), que sofriam com as ações
praticadas pelos nobres, desejavam sair da condição em que se encontravam, mas,
por não possuírem a mesma vitalidade e a mesma disposição para a luta que os
senhores (os fortes), eram obrigados a se manter em sua condição de inferioridade
e inautenticidade em relação à vida, não tendo outra escolha a não ser aceitar e
obedecer ao que os nobres lhes determinavam.
Contudo, a classe dos homens comuns e escravos, que, por um longo
tempo, aceita as condições e os valores impostos pelos nobres senhoriais, se
revolta contra os fortes, acusando-os de lhes causarem sofrimentos. Na verdade, o
que os escravos desejam é ser fortes9, é exercer o poder de dominação sobre os
nobres, faltando-lhes, porém, a força física e a disposição psicológica para enfrentar
os nobres e poderosos10. E tomados, então, pelo ódio, pela inveja e pela cobiça,
passam a alimentar um sentimento de vingança contra os que consideram
responsáveis pelo sofrimento e pela condição de miséria em que se encontram: os
nobres e fortes.
9
“Esses fracos – também eles desejam ser fortes algum dia, não há dúvidas...” (GM, I, § 15).
10
“Inseridos na dinâmica da vontade de poder, como qualquer configuração de forças existentes,
desejam o poder, mas falta-lhes a força e a coragem para lutar por seu objetivo”. (BOGÉA, 2011,
p. 63).
A esse sentimento de vingança dos escravos, alimentado pelo ódio, pela
inveja e pela cobiça de poder, sem, contudo, se traduzir em uma reação 11
verdadeiramente ativa frente às adversidades da vida (em um combate contra os
que eles julgam culpados por seus sofrimentos), bem como pela incapacidade “de
digerir o veneno produzido pela sua vingança não realizada” (PASCHOAL, 2008, p.
20), contentando-se com a “busca de uma compensação imaginária” (WOTLING,
2011, p. 52), Nietzsche denomina de ressentimento12.
Movidos, então, pelo ressentimento contra os nobres senhoriais, os
escravos passam a estabelecer seu próprio modo de valoração, e a criar13 seus
próprios valores, totalmente opostos aos daqueles. E, segundo Nietzsche, é quando
o ressentimento se torna criador e gerador de valores, que começa a revolta escrava
na moral (GM, I, § 10).
Para Nietzsche, cronologicamente, o ressentimento se torna criador de
valores, quando a classe sacerdotal judaica se confronta ciumentamente com a
classe dos nobres guerreiros, e opõem seu modo de valoração sacerdotal ao modo
de valoração nobre, o qual, na verdade, se constitui apenas como uma inversão
deste (GM, I, § 7). Somente com a atuação da classe sacerdotal judaica é que esta
inversão dos valores da nobreza pôde ser posta em marcha. Ou seja, foi com o povo
judeu, “o povo sacerdotal do ressentimento par excellence” (GM, I, § 16); “o povo da
mais entranhada sede de vingança sacerdotal”, que teve início “a revolta dos
escravos na moral” (GM, I, § 7).
11
Segundo Wotling (2011, p. 52), a ação do ressentimento é sempre uma reação.
12
Obviamente o uso do termo ressentimento no pensamento de Nietzsche é bem mais abrangente
que o apresentado acima. Paschoal (2011, p. 20-25), analisando o uso do termo ressentimento na
Genealogia da Moral, destaca que nesse livro o termo assume dois significados precisos e claros:
“primeiro, o ressentimento é entendido como um problema do homem individual, fraco, incapaz de
reagir frente às adversidades da vida e de digerir o veneno produzido pela sua vingança não
realizada. (...). Segundo, o ressentimento com traços de um problema social, na medida em que
corresponde a uma moral, uma concepção de justiça e a um modo de intervenção social”. Para
ele, ora, o termo ressentimento aparece como fraqueza e incapacidade do homem do
ressentimento para a reação verdadeira, a dos atos, bem como para digerir o veneno que vem da
sua não reação (GM, I, § 10); ou como envenenamento que perpassa toda a humanidade (GM, I,
§ 9), ou ainda como princípio básico gerador de valores que impõe consequências para toda a
civilização ocidental (GM, I, § 10); ora, como concepção de justiça que “‘sacraliza a vingança sob o
nome de justiça’” [ressentimento como problema social] (segunda dissertação); ora, como uma
doença, sobre a qual o sacerdote ascético [que não corresponde mais à aristocracia sacerdotal,
cita na primeira dissertação], deve intervir para os efeitos devastadores do ressentimento sobre o
sofredor (terceira dissertação).
13
Na verdade, o homem comum, o escravo, não chegou propriamente a criar valores; ele apenas se
limitou a inverter os valores criados pelos homens nobres, pelos senhores. (GM, I, § 10).
Os sacerdotes judaicos são os legítimos representantes dos fracos e
impotentes. É com eles que o ódio e o desejo de vingança contra os fortes e
poderosos têm início14. Mesmo fazendo parte da aristocracia, a classe sacerdotal
também é oprimida pela classe nobre, desejando libertar-se e sobrepor-se a ela.
Contudo, consciente de sua fraqueza e impotência para reagir ativamente contra
seus opressores, evita o confronto direto com eles, sendo obrigados a interiorizar o
ódio, a inveja e o sentimento de vingança que alimentam. Assim, não podendo
vingar-se por meio do confronto direto com os fortes nobres senhoriais, os
sacerdotes judaicos elaboram premeditadamente uma intrincada e engenhosa
estratégia de vingança espiritual contra aqueles (GM, I, § 7).
Congregando os fracos e organizando-os em um rebanho, os sacerdotes
judaicos convencem-nos de que os que praticam ações egoístas, que são danosas à
conservação da sociedade, são moralmente “maus”, e os que praticam ações não
egoístas, úteis à organização gregária, são moralmente “bons”. Por esse modo de
interpretação, os sacerdotes concluem que o homem forte, o nobre, por praticar
ações egoístas é “mau”, e que o homem fraco, o escravo, por praticar ações não
egoístas, é “bom”. E como golpe final de sua vingança espiritual, os sacerdotes,
invertem a equação de valores da nobreza aristocrática15 e proclamam suas novas
verdades, segundo as quais,
14
“Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos — por quê? Porque são os mais
impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa
mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes,
também os mais ricos de espírito — comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito
restante empalidece.” (GM, I, § 7).
15
“Bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses”. (GM, I, § 7).
impondo, pelo costume, mais e mais à consciência humana (GM, I, § 2), até se
tornar dominante na cultura ocidental16.
Nietzsche, contudo, não se limita, em seu método genealógico, a mostrar
como a moral dos senhores e a moral dos escravos criaram seus modos de
valoração, e a relacionar os valores “bom” e “ruim” e “bom” e “mau” a estes modos
de valoração, respectivamente. Todavia, esse primeiro movimento do método
genealógico serve de base para o segundo17, ou seja, avaliar esses dois modos de
valoração morais a partir dos valores que eles partiram para criar suas tábuas de
valores, e, assim, justificar sua predileção pela moral dos senhores em relação à
moral dos escravos.
De acordo com Marton (1999, p. 61-62), Nietzsche entende que não pode
simplesmente avaliar a moral do senhor e a moral dos escravos do ponto de vista do
“bem” e do “mal”, porque esses valores foram criados por elas mesmas, e nem
afirmar que um moral é melhor ou pior que a outra, porque isso implicaria em um
círculo vicioso, carecendo adotar um critério de avaliação que não pudesse ser
avaliado. O critério adotado, por ele, para avaliar a moral dos nobres e a moral dos
escravos foi a vida18, e vida entendida como vontade de potência, como dito alhures.
Sobre a vida como critério escolhido por Nietzsche para avaliar as
avaliações morais, Marton (1990, p. 88) afirma que
E mais:
16
“Sujeitemo-nos aos fatos: o povo venceu — ou ‘os escravos’, ou ‘a plebe’, ou ‘o rebanho’, ou como
quiser chamá-lo (...). ‘Os senhores’ foram abolidos; a moral do homem comum venceu. (...). A
‘redenção’ do gênero humano (do jugo dos ‘senhores’) está bem encaminhada; tudo se judaíza,
cristianiza, plebeíza visivelmente (que importam as palavras!).” (GM, I, § 9)
17
Conforme Scarlett Marton (1999, p. 61), o procedimento genealógico de Nietzsche comporta dois
movimentos inseparáveis: “de um lado, relacionar os valores com avaliações e, de outro,
relacionar as avaliações com valores”.
18
“É necessário portanto estender a mão para se poder apreender essa finesse extraordinária de
que o valor da vida não pode ser apreciado. Não pode ser apreciado por um vivo, porque é parte e
até objeto de litígio, e não juiz; nem pode ser apreciado por um morto, por outras razões.” (CI, O
Problema de Sócrates, § 2) [grifo do autor]
[sic] ou atitudes ao exame genealógico é o mesmo que inquirir se são
signos de plenitude de vida ou da sua degeneração; avaliar uma
avaliação, enfim, significa questionar se é sintoma de vida ascendente
ou declinante. (MARTON, 1999, p. 62).
O valor “bom” que se encontra numa moral não é, pois, idêntico ao que está
presente na outra; é o seu oposto. Tanto é assim que o filósofo declara: “esse ‘‘ruim’
(schíecht) de origem aristocrática e esse ‘mau’ (böse) fermentado na cuba de um
ódio insaciável — o primeiro uma criação posterior, um acessório, uma cor
complementar; o segundo, ao contrário, o original, o começo, o ato verdadeiro na
concepção de uma moral de escravos — ‘ruim’ e ‘mau’, quão diferentes são essas
duas palavras, aparentemente opostas ao mesmo conceito ‘bom’! Mas não é o
mesmo conceito ‘bom’: que se pergunte, antes, quem é ‘mau’ propriamente dito no
sentido da moral do ressentimento.
Com todo rigor, cumpre responder é precisamente o ‘bom1 da outra moral,
precisamente o nobre, o poderoso, o senhor, apresentado sob outras cores,
reinterpre-tado c deformado pelo olhar intoxicado do ressentimento” (GMI § 11).
A maneira nobre de avaliar ressalta o sentimento de plenitude e excesso
da própria força: “nós nobres, nós bons, nós belos, nós felizes”.
A partir desse ponto de vista, Nietzsche avalia a moral dos nobres e a
moral dos escravos a partir dos valores dos quais cada uma partiu para estabelecer
suas tábuas de valores.
Definindo, pois, a vida como único critério por meio do qual podem ser
avaliadas as moralidades do senhor e do escravo, Nietzsche
[E mesmo então demora muito, até que esse instinto se torne senhor de maneira tal
que a valoração moral fique presa e imobilizada nessa oposição]
Ressentimento
Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos — por quê? Porque
são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e
sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal, os
grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito —
comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante empalidece.
A história humana seria uma tolice, sem o espírito que os impotentes lhe trouxeram
— tomemos logo o exemplo maior. Nada do que na terra se fez contra “os nobres”,
“os poderosos”, “os senhores”, “os donos do poder”, é remotamente comparável ao
que os judeus contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube
desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma radical
tresvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança.
Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus
malfeitos inclusive — eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um
excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do
esquecimento. Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que
em outros se enterrariam; apenas neste caso é possível, se for possível em
absoluto, o autêntico “amor aos inimigos”.
Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! — e tal reverência é já
uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como uma distinção, ele
não suporta inimigo que não aquele no qual nada existe a desprezar, e muito a
venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal como o concebe o homem do
ressentimento — e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu “o
inimigo mau”, “o mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora,
como imagem equivalente, um “bom” — ele mesmo!...
Precisamente o oposto que sucede com o nobre, que primeiro e espontaneamente,
de dentro de si, concebe a noção básica de “bom”, e a partir dela cria para si uma
representação de “ruim”. Este “ruim” de origem nobre e aquele “mau” que vem do
ódio do fraco (o primeiro uma criação posterior, secundária, complementar; o
segundo, o original, o começo, o autêntico feito na concepção da moral escrava) são
diferentes, embora aparentemente opostas ao mesmo sentido de “bom”.
“É necessário portanto estender a mão para se poder apreender essa finesse extraordinária de que o
valor da vida não pode ser apreciado. Não pode ser apreciado por um vivo, porque é parte e até
objeto de litígio, e não juiz; nem pode ser apreciado por um morto, por outras razões.” (CI, O
Problema de Sócrates, § 2) [grifo do autor]
19
Conforme Scarlett Marton (1999, p. 61), o procedimento genealógico de Nietzsche comporta dois
movimentos inseparáveis: “de um lado, relacionar os valores com avaliações e, de outro,
relacionar as avaliações com valores”.
“de um lado, relacionar os valores com avaliações e, de outro, relacionar as
avaliações com valores” (MARTON, 1999, p. 61).
No entanto, os valores opostos, tais como fraqueza e lentidão não são muito
admirável, como "Desprezo pela fraqueza não é um sentimento incomum, mesmo entre
20
“Nada do que na terra se fez contra ‘os nobres’, ‘os poderosos’, ‘os senhores’, ‘os donos do poder’,
é remotamente comparável ao que os judeus contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de
sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma
radical tresvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança. Assim
convinha a um povo sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de vingança sacerdotal.” (GM, I,
§
os mais fracos." 19 Portanto, o os sacerdotes devem transmutar esses valores em
virtudes mais louváveis: lentidão em prudência; impotência, que não podem retaliar, em
bondade;
De acordo com Nietzsche, a moral cristã desenvolveu-se a partir do modo
de valoração criado pelos sacerdotes judaicos, e longe de ser uma reação contra os
valores dessa moral do ressentimento por excelência, significou sua inevitável
consequência e continuação em todos os sentidos21. No § 8, da Genealogia da
Moral, ele afirma que
A
Para o tipo de homens que aspiram ao poder no judaísmo e no
cristianismo – em outras palavras, a classe sacerdotal – a decadência
não é senão um meio.
O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo e fracassado;
forjou seu ideal a partir da oposição a todos os instintos de preservação da vida
saudável; corrompeu até
21
“(...) o cristianismo deve ser compreendido apenas a partir da análise do solo em que se originou –
não é uma reação contra os instintos judaicos; é sua consequência inevitável...” (AC, § XXIV).
desprezando-o em prol de outro, suprassensível e perfeito, situado num além-mundo, e que só
se pode alcançar através da mortificação dos instintos vitais básicos, da renúncia de si mesmo
e do sacrifício material, ou seja, da ascese pessoal.
Esse Jesus de Nazaré, evangelho vivo do amor, esse “redentor” portador da vitória e
da bem-aventurança aos pobres, aos doentes e aos pecadores — não era ele a
sedução em sua forma mais inquietante e irresistível, a sedução e a via sinuosa para
justamente aqueles valores judeus e inovações judaicas do ideal?
Não teria Israel alcançado, por via desse “redentor”, desse aparente antagonista e
desintegrador de Israel, a derradeira meta de sua sublime ânsia de vingança?
Não seria próprio da ciência oculta de uma realmente grande política da vingança,
de uma vingança longividente, subterrânea, de passos lentos e premeditados, o fato
de que Israel mesmo tivesse de negar e pregar na cruz o autêntico instrumento de
sua vingança, ante o mundo inteiro, como um inimigo mortal, para que o “mundo
inteiro”, ou seja, todos os adversários de Israel, pudesse despreocupadamente
morder tal isca?
Certo é, quando menos, que sub hoc signo [sob este signo], com sua vingança e sua
tresvaloração dos valores, Israel até agora sempre triunfou sobre todos os outros
ideais, sobre todos os ideais mais nobres. —
asfsfa
Segundo Nietzsche a moral de escravo considera o juízo bom próprio do homem altruísta,
piedoso, temente a Deus, do indivíduo paciente.
Ao contrário, o homem baixo, o plebeu, o escravo não deixou a desejar na criação de seus
valores.
Por tempos a classe baixa se conformou em tentar imitar a classe superior considerando-os
como realmente superiores ou se conformando em viver como seres inferiores, mas em um
determinado momento o ódio, a inveja, a cobiça, a revolta, acomete os escravos e eles criam
para si uma moral.
De acordo com Nietzsche, impedido de ter uma vida autêntica, ativa e feliz, e
incapaz de dar vazão a seus instintos, o homem escravo se ressente com o modo
de vida do nobre senhorial,
22
“Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos — por quê? Porque são os mais
impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa
mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes,
também os mais ricos de espírito — comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito
restante empalidece.” (GM, I, § 7).
23
“Com os sacerdotes tudo se torna mais perigoso, não apenas meios de cura e artes médicas, mas
também altivez, vingança, perspicácia, dissolução, amor, sede de domínio, virtude, doença...”
(GM, I, § 6) [grifo nosso]
24
“O modo de valoração nobre-sacerdotal – já o vimos – tem outros pressupostos: para ele a guerra
é mau negócio!” (GM, I, § 7)
“Os judeus — ‘povo nascido da escravidão’ como disse Tácito em uníssono com toda a antiguidade,
‘povo eleito entre todos os povos’, como eles mesmos dizem e creem, levaram a cabo essa milagrosa
inversão de valores que deu à vida durante milênios um novo e perigoso atrativo. Os profetas judeus
fundiram numa só definição o ‘rico’, ‘ímpio’, ‘violento’, ‘sensual’ e pela primeira vez colocaram a pecha
da infâmia à palavra ‘mundo’. Nesta inversão de valores (que fez também da palavra ‘pobre’ sinônimo
de ‘santo’ e de ‘amigo’) é que se fundamenta a importância do povo judeu. Com ele, em moral,
começa a insurreição dos escravos.” (ABM, V, § 195) [grifo do autor].
Artigo de Periódico: