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1 A MORAL CRISTÃ COMO HERDEIRA DA MORAL DO RESSENTIMENTO

Os defensores da moral cristã pretendem que esta seja a única forma de


moral válida1, uma vez que a mesma é expressão da vontade de Deus em relação
aos homens, estando inscrita nos “corações” dos homens, por meio de uma lei
natural que a legitima. Dessa forma, os valores defendidos pela moralidade cristã
sempre foram entendidos como inquestionáveis e imutáveis, uma vez que possuem
um fundamento transcendente, constituindo-se em valores em si mesmos e
superiores a quaisquer outros valores provenientes de outras formas de avaliações
morais, devendo, pois, apenas ser acatados, defendidos, disseminados e postos em
prática pelos homens, a fim de que a humanidade se torne cada vez melhor.
Nietzsche discorda que o ser humano possua naturalmente uma moral.
Para ele, a moralidade cristã é apenas uma entre as várias formas de moral
existentes nas mais diversas épocas e sociedades2; e mais: que ela é herdeira de
um tipo de moral que, ao contrário de defender e valorizar a vida, conduz os homens
a uma negação de seus instintos básicos em prol de uma felicidade em um mundo
sobrenatural, impedindo-os de alcançarem neste mundo (o único existente), seu
“supremo brilho e potência” (GM, prólogo, § 6). E ainda: que os valores por ela
defendidos não possuem um fundamento sobrenatural, nem são valores eternos,
mas são criações humanas e surgiram em um determinado momento histórico, como
frutos de uma determinada perspectiva avaliadora e de uma determinada vontade de
poder, devendo ser postos em questão, a fim de que se revelem os interesses a
partir dos quais foram criados.
A proposta de Nietzsche era não mais buscar a origem do que se
considerava como “bem” e como “mal”, em um plano metafísico, mas percorrer a
história da moral efetivamente vivida para nela encontrar a origem e o
desenvolvimento, e, sobretudo, o próprio valor dos valores morais defendidos pela
moralidade vigente há mais de dois mil anos na cultura ocidental: a moral cristã.
Nietzsche então transformou o antigo problema sobre a origem do “bem” e do “mal”,
em outro mais realista: a busca das condições nas quais foram inventados, se
desenvolveram e se modificaram os juízos de valor “bom” e “mau” [juízos morais por

1
“(...) O mesmo que se tem com uma ‘moral do ressentimento’, que se apresenta como a única que
pode atender pelo nome de moral.” (PASCHOAL, 2011, p. 23).
2
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excelência], e que implicações esses conceitos tiveram sobre a vida do homem (GM,
prólogo, § 3).
O que interessava a Nietzsche não era apenas resolver hipóteses
próprias ou alheias, acerca da origem da moral, mas por em questão o valor mesmo
da moral vigente e dos valores por ela defendidos, tais como a compaixão, a
abnegação e o sacrifício pessoal, nos quais ele enxergava “o começo do fim, o
ponto morto, o cansaço que olha para trás, vontade que se volta contra a vida” (GM,
prólogo, § 5).
Assim, na primeira dissertação da obra Genealogia da Moral, Nietzsche,
partindo da análise da origem dos juízos de valor “bom” e “ruim”, “bom” e “mau”, vai
mostrar que essas tábuas de valores pertencem a dois tipos básicos de moral a que
se podem resumir as demais formas de moral encontradas ao longo da história: uma
moral própria dos senhores (fortes, nobres) e outra própria de homens escravos
(fracos, plebeus).
Nesse primeiro capítulo, buscar-se-á mostrar como, de acordo com
Nietzsche, ocorreu a revolta escrava na moral e que a moral cristã tornou-se
herdeira da moral dos escravos, sendo, portanto, uma moral do ressentimento, que
como tal nega a vida e impede o homem de alcançar seu máximo esplendor.

1.1 A Moral dos Nobres e a Moral dos Escravos

Diante da questão da origem do juízo de valor “bom”, Nietzsche questiona


a solução dada pelos psicólogos ingleses3 de que o “bom” teria sido considerado
como tal por aqueles a quem as ações não egoístas eram dirigidas, e aos quais
essas ações eram úteis. Segundo ele,

“essa teoria busca e estabelece a fonte do conceito “bom” no lugar


errado: o juízo ‘bom’ não provém daqueles aos quais se fez o ‘bem’!
Foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em
posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos
como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era
baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu.” (GM, I, § 2).

Ou seja, o juízo “bom” fora estabelecido por uma atitude ativa dos nobres
aristocráticos, dos homens fortes e saudáveis, que a partir de si mesmos e por meio

3
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de uma postura de afirmação de si mesmos e da vida, interpretam tudo o que lhes
diz respeito como sendo “bom” e o que lhes é oposto como “ruim”.
Por um sentimento de nobreza e distanciamento (ou na linguagem de
Nietzsche, “um pathos de nobreza e distanciamento”), isto é, um sentimento de
pertença a uma casta senhorial, em relação ao homem comum e plebeu, os nobres
se deram o direito de criar valores e dar nomes a esses valores, tornando-se com
isso senhores das coisas que nomeavam. Para Nietzsche, esse sentimento de
distanciamento é a verdadeira origem do conceito “bom” e de sua oposição “ruim”
(GM, I, § 2).
Com isso, se constata, segundo Nietzsche, que originalmente o juízo
“bom” não se dirige necessariamente às ações não egoístas, como afirmam os
moralistas ingleses, e nem mesmo havia uma preocupação de aplicá-lo aos atos
praticados, por não haver, por parte dos nobres, uma necessidade de classificar
suas ações.
O caminho, utilizado por Nietzsche (que de acordo com ele era o correto),
para responder à questão da origem do conceito “bom” foi buscar nas diversas
línguas as designações para esse termo. De acordo com ele, em todas as línguas
pesquisadas, “‘nobre’ foi o conceito básico a partir do qual necessariamente se
desenvolveu ‘bom’, no sentido de ‘espiritualmente privilegiado’ e de ‘espiritualmente
bem nascido’” (GM, I, § 4). Esse desenvolvimento conceitual de “bom” ocorreu
sempre em paralelo com outro que fez “plebeu” (comum, homem simples, escravo)
transmutar-se em “ruim”4.
Esse modo de valoração vigorou, por exemplo, na Grécia e na Roma
Clássicas, onde os nobres e senhores, por possuírem um modo de vida autêntico e
verdadeiro, dando vazão a seus instintos e desejos vitais, sentiam-se e designavam-
se como homens superiores, felizes, fortes, verdadeiros, saudáveis, poderosos,
corajosos, guerreiros, em oposição aos homens simples do povo, infelizes,
mentirosos, débeis, fracos, covardes. Por um movimento de afirmação de si mesmo,
o nobre se designava como “bom”, e o diferente dele (o escravo), “ruim”.
Por seu lado, o plebeu escravo, que por determinado tempo aceitou o
modo de valoração dos nobres, passa a estabelecer também seus próprios valores,

4
Essa classificação do plebeu como “ruim”, realizada pelo nobre, não tinha um sentido depreciativo;
era apenas uma diferenciação, uma distinção que ele fazia para distinguir de si o homem vilão
(GM, I, § 4).
todavia, não com base em si mesmo e no que lhe pertence, mas tendo como
referência o nobre senhorial, seus domínios e suas ações. Buscando diferenciar-se
do nobre senhorial e seu modo de vida violento, o plebeu escravo passa a
considerá-lo como inimigo, e, por um ato de revolta, ódio, inveja e cobiça, a designa-
lo como “mau” e a si mesmo, por ser vítima dos males causados pela nobreza, como
“bom”.
Esses dois modos de valoração, “bom e ruim” e “bom e mau”, referem-se
a duas posturas distintas em relação à vida, a dois tipos de comportamentos
diferentes, e revelam a existência de dois tipos básicos de homens 5: o homem forte
e saudável e o homem fraco e doente, respectivamente, e constituem as tábuas de
valores sobre as quais se edificam os dois tipos básicos a que se podem resumir as
várias manifestações morais reveladas pela investigação histórica da moral
empreendida por Nietzsche, por meio do procedimento genealógico: a moral dos
senhores e a moral dos escravos6. Estes dois tipos de moral não são apenas
diferentes, mas completamente opostos entre si.
A moral dos senhores é autêntica e afirmativa de si mesma e da vida;
“nasce de um triunfante Sim a si mesma” (GM, I, § 10); seu modo de valoração tem
como pressupostos a constituição física vigorosa, a boa saúde e a atividade física
(GM, I, § 7); “ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para
dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão” (GM, I, § 10); a referência
para a valoração do nobre-senhorial nunca é o outro, mas ele próprio. Desse modo,
ele “não necessita de aprovação e dispensa qualquer termo de comparação – sabe-
se criador de valores. Num primeiro momento, confere valores unicamente a
homens; só mais tarde, por extensão, vai atribuí-los aos atos” (MARTON, 1993, p.
54).

5
Embora Nietzsche postule a existência de dois tipos básicos de indivíduos a que se podem
imputar os modos de valoração nobre e escravo, Scarlett Marton (1993, p. 52), chama a atenção
para o fato de que o filósofo alemão, analisando o modo de proceder dos indivíduos, em
civilizações de épocas passadas, chega a depreender certos traços de comportamento que,
apesar de distintos, por vezes, aparecem mesclados ou justapostos, tanto nas diferentes
civilizações quanto nos diversos indivíduos.
6
“Numa perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora
dominavam e continuam dominando na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam
juntos e ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos, e uma diferença
fundamental sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos. Acrescento de
imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem tentativas de mediação
entre essas duas morais, e com maior frequência, confusão das mesmas e incompreensão mútua,
inclusive dura coexistência – até mesmo num homem, no interior de uma só alma” (ABM, IX, §
260). [grifo nosso]
A moral dos escravos, ao contrário, é reativa e negadora da vida, dos
instintos vitais do ser humano; seu modo de valoração não tem como referência a si
mesma, mas algo que lhe é exterior: o modo de vida do nobre-senhorial; seu ato
criador é um Não a um “outro”, um “não eu”, um “fora”; sua ação é na verdade
reação7 (GM, I, § 10); seu pressuposto para criação de valores é o ressentimento
(GM, I, § 10); sua lógica é a da negação e da oposição: restringe-se a negar e
inverter os valores da moral dos nobres (MARTON, 1993, p. 53); sua avaliação recai
primeiramente sobre as ações, em decorrência das quais julga os homens como
“bons” ou “maus” (MARTON, 1993, p. 54).
Estas duas formas de moral “travaram na terra uma luta terrível, milenar”
(GM, I, § 16), saindo vencedora a moral dos escravos, que, por meio de uma
engenhosa inversão de valores da moral nobre (GM, I, § 7), impulsionada pelo
ressentimento provocado pela incapacidade de uma vida autêntica perante a
realidade, tornara-se, através de sua máxima expressão, a moralidade cristã, a
moral dominante na cultura ocidental até os dias atuais. Essa inversão dos valores
da moral nobre, elaborada pela moral escrava, com seu consequente triunfo
temporário sobre aquela, é denominada por Nietzsche de “revolta escrava na moral”.

1.2 O Ressentimento e a Revolta Escrava na Moral

De acordo com Nietzsche, o homem nobre só considera a esfera de vida


que lhe é familiar, ou seja, a sua própria e a dos que lhe são semelhantes (os outros
nobres, senhores, fortes), desprezando aqueles que pertencem à classe inferior a
deles. Assim, eles não se preocupam com as consequências que seu modo de vida
e suas ações trarão para os homens comuns, do povo baixo8. Eles não pensam em
termos de igualdade de condições, porque se sentem e sabem que são superiores.
Por possuírem um estilo de vida autêntico, ativo e vigoroso, os nobres
criam valores que exaltem e reforcem seu modo de se relacionar com a vida e com a
realidade. Com uma constituição física vigorosa, uma saúde rica (GM, I, § 7), uma

7
E nem propriamente isso, pois, segundo Nietzsche, a verdadeira reação é a dos atos, e a reação
dos escravos é passiva.
8
“Quando o modo de valoração nobre se equivoca e peca contra a realidade, isso ocorre em
relação à esfera que não lhe é familiar, que ele inclusive se recusa bruscamente a reconhecer: por
vezes não reconhece a esfera por ele desprezada, a do homem comum, do povo baixo...” (GM, I,
§ 10).
confiança plena em seus instintos reguladores (GM, I, § 10), uma preparação para
“aquilo que serve à sua conservação: guerra, aventura, caça, dança, torneios e tudo
que envolve atividade robusta e livre” (GM, I, § 7), os homens fortes e nobres
consideram seus inimigos e obstáculos apenas como um desafio para medir sua
força e nobreza, uma forma de extravasar sua sede de autossuperação e de mostrar
sua superioridade em suas relações sociais (GM, I, § 10).
Assim, com esse sentimento afirmativo de superioridade, o nobre
senhorial, tendo como referência ele mesmo, estabelece seu modo de valoração,
designando a si mesmo como “bom” e aquele que não fosse como ele, “ruim”. De
acordo com Nietzsche, o modo de valoração nobre

(...) age e cresce espontaneamente, [buscando] seu oposto apenas para


dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão – seu conceito
negativo, o “baixo”, o “comum”, o “ruim”, é apenas uma imagem de
contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico, positivo,
inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os
bons, os belos, os felizes!”. (GM, I, § 10)

Por seu lado, os escravos plebeus (os fracos), que sofriam com as ações
praticadas pelos nobres, desejavam sair da condição em que se encontravam, mas,
por não possuírem a mesma vitalidade e a mesma disposição para a luta que os
senhores (os fortes), eram obrigados a se manter em sua condição de inferioridade
e inautenticidade em relação à vida, não tendo outra escolha a não ser aceitar e
obedecer ao que os nobres lhes determinavam.
Contudo, a classe dos homens comuns e escravos, que, por um longo
tempo, aceita as condições e os valores impostos pelos nobres senhoriais, se
revolta contra os fortes, acusando-os de lhes causarem sofrimentos. Na verdade, o
que os escravos desejam é ser fortes9, é exercer o poder de dominação sobre os
nobres, faltando-lhes, porém, a força física e a disposição psicológica para enfrentar
os nobres e poderosos10. E tomados, então, pelo ódio, pela inveja e pela cobiça,
passam a alimentar um sentimento de vingança contra os que consideram
responsáveis pelo sofrimento e pela condição de miséria em que se encontram: os
nobres e fortes.

9
“Esses fracos – também eles desejam ser fortes algum dia, não há dúvidas...” (GM, I, § 15).
10
“Inseridos na dinâmica da vontade de poder, como qualquer configuração de forças existentes,
desejam o poder, mas falta-lhes a força e a coragem para lutar por seu objetivo”. (BOGÉA, 2011,
p. 63).
A esse sentimento de vingança dos escravos, alimentado pelo ódio, pela
inveja e pela cobiça de poder, sem, contudo, se traduzir em uma reação 11
verdadeiramente ativa frente às adversidades da vida (em um combate contra os
que eles julgam culpados por seus sofrimentos), bem como pela incapacidade “de
digerir o veneno produzido pela sua vingança não realizada” (PASCHOAL, 2008, p.
20), contentando-se com a “busca de uma compensação imaginária” (WOTLING,
2011, p. 52), Nietzsche denomina de ressentimento12.
Movidos, então, pelo ressentimento contra os nobres senhoriais, os
escravos passam a estabelecer seu próprio modo de valoração, e a criar13 seus
próprios valores, totalmente opostos aos daqueles. E, segundo Nietzsche, é quando
o ressentimento se torna criador e gerador de valores, que começa a revolta escrava
na moral (GM, I, § 10).
Para Nietzsche, cronologicamente, o ressentimento se torna criador de
valores, quando a classe sacerdotal judaica se confronta ciumentamente com a
classe dos nobres guerreiros, e opõem seu modo de valoração sacerdotal ao modo
de valoração nobre, o qual, na verdade, se constitui apenas como uma inversão
deste (GM, I, § 7). Somente com a atuação da classe sacerdotal judaica é que esta
inversão dos valores da nobreza pôde ser posta em marcha. Ou seja, foi com o povo
judeu, “o povo sacerdotal do ressentimento par excellence” (GM, I, § 16); “o povo da
mais entranhada sede de vingança sacerdotal”, que teve início “a revolta dos
escravos na moral” (GM, I, § 7).

11
Segundo Wotling (2011, p. 52), a ação do ressentimento é sempre uma reação.
12
Obviamente o uso do termo ressentimento no pensamento de Nietzsche é bem mais abrangente
que o apresentado acima. Paschoal (2011, p. 20-25), analisando o uso do termo ressentimento na
Genealogia da Moral, destaca que nesse livro o termo assume dois significados precisos e claros:
“primeiro, o ressentimento é entendido como um problema do homem individual, fraco, incapaz de
reagir frente às adversidades da vida e de digerir o veneno produzido pela sua vingança não
realizada. (...). Segundo, o ressentimento com traços de um problema social, na medida em que
corresponde a uma moral, uma concepção de justiça e a um modo de intervenção social”. Para
ele, ora, o termo ressentimento aparece como fraqueza e incapacidade do homem do
ressentimento para a reação verdadeira, a dos atos, bem como para digerir o veneno que vem da
sua não reação (GM, I, § 10); ou como envenenamento que perpassa toda a humanidade (GM, I,
§ 9), ou ainda como princípio básico gerador de valores que impõe consequências para toda a
civilização ocidental (GM, I, § 10); ora, como concepção de justiça que “‘sacraliza a vingança sob o
nome de justiça’” [ressentimento como problema social] (segunda dissertação); ora, como uma
doença, sobre a qual o sacerdote ascético [que não corresponde mais à aristocracia sacerdotal,
cita na primeira dissertação], deve intervir para os efeitos devastadores do ressentimento sobre o
sofredor (terceira dissertação).
13
Na verdade, o homem comum, o escravo, não chegou propriamente a criar valores; ele apenas se
limitou a inverter os valores criados pelos homens nobres, pelos senhores. (GM, I, § 10).
Os sacerdotes judaicos são os legítimos representantes dos fracos e
impotentes. É com eles que o ódio e o desejo de vingança contra os fortes e
poderosos têm início14. Mesmo fazendo parte da aristocracia, a classe sacerdotal
também é oprimida pela classe nobre, desejando libertar-se e sobrepor-se a ela.
Contudo, consciente de sua fraqueza e impotência para reagir ativamente contra
seus opressores, evita o confronto direto com eles, sendo obrigados a interiorizar o
ódio, a inveja e o sentimento de vingança que alimentam. Assim, não podendo
vingar-se por meio do confronto direto com os fortes nobres senhoriais, os
sacerdotes judaicos elaboram premeditadamente uma intrincada e engenhosa
estratégia de vingança espiritual contra aqueles (GM, I, § 7).
Congregando os fracos e organizando-os em um rebanho, os sacerdotes
judaicos convencem-nos de que os que praticam ações egoístas, que são danosas à
conservação da sociedade, são moralmente “maus”, e os que praticam ações não
egoístas, úteis à organização gregária, são moralmente “bons”. Por esse modo de
interpretação, os sacerdotes concluem que o homem forte, o nobre, por praticar
ações egoístas é “mau”, e que o homem fraco, o escravo, por praticar ações não
egoístas, é “bom”. E como golpe final de sua vingança espiritual, os sacerdotes,
invertem a equação de valores da nobreza aristocrática15 e proclamam suas novas
verdades, segundo as quais,

“os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes,


baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os
únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-
aventurança — mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a
eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios,
serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!...”.
(GM, I, § 7).

A partir da revolta escrava na moral, conforme o pensamento


nietzschiano, o modo de valoração da nobreza aristocrática entrou em declínio, e,
mesmo tendo sido necessário muito tempo para que ocorresse, (GM, I, § 2), fora
substituído pelo modo de valoração escravo, que vai, através dos séculos, se

14
“Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos — por quê? Porque são os mais
impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa
mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes,
também os mais ricos de espírito — comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito
restante empalidece.” (GM, I, § 7).
15
“Bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses”. (GM, I, § 7).
impondo, pelo costume, mais e mais à consciência humana (GM, I, § 2), até se
tornar dominante na cultura ocidental16.
Nietzsche, contudo, não se limita, em seu método genealógico, a mostrar
como a moral dos senhores e a moral dos escravos criaram seus modos de
valoração, e a relacionar os valores “bom” e “ruim” e “bom” e “mau” a estes modos
de valoração, respectivamente. Todavia, esse primeiro movimento do método
genealógico serve de base para o segundo17, ou seja, avaliar esses dois modos de
valoração morais a partir dos valores que eles partiram para criar suas tábuas de
valores, e, assim, justificar sua predileção pela moral dos senhores em relação à
moral dos escravos.
De acordo com Marton (1999, p. 61-62), Nietzsche entende que não pode
simplesmente avaliar a moral do senhor e a moral dos escravos do ponto de vista do
“bem” e do “mal”, porque esses valores foram criados por elas mesmas, e nem
afirmar que um moral é melhor ou pior que a outra, porque isso implicaria em um
círculo vicioso, carecendo adotar um critério de avaliação que não pudesse ser
avaliado. O critério adotado, por ele, para avaliar a moral dos nobres e a moral dos
escravos foi a vida18, e vida entendida como vontade de potência, como dito alhures.
Sobre a vida como critério escolhido por Nietzsche para avaliar as
avaliações morais, Marton (1990, p. 88) afirma que

Em Nietzsche, os conceitos de vida e valor estão intimamente ligados.


“Viver”, define ele, “é essencialmente apropriação, violação, dominação
do que é estrangeiro e mais fraco, opressão, dureza, imposição da
própria forma, incorporação e pelo menos, no mais clemente dos casos,
exploração” (BM § 259).

E mais:

Fazer qualquer apreciação passar pelo crivo da vida equivale a


perguntar se ela contribui para favorecê-la o obstruí-la; submeter idéias

16
“Sujeitemo-nos aos fatos: o povo venceu — ou ‘os escravos’, ou ‘a plebe’, ou ‘o rebanho’, ou como
quiser chamá-lo (...). ‘Os senhores’ foram abolidos; a moral do homem comum venceu. (...). A
‘redenção’ do gênero humano (do jugo dos ‘senhores’) está bem encaminhada; tudo se judaíza,
cristianiza, plebeíza visivelmente (que importam as palavras!).” (GM, I, § 9)
17
Conforme Scarlett Marton (1999, p. 61), o procedimento genealógico de Nietzsche comporta dois
movimentos inseparáveis: “de um lado, relacionar os valores com avaliações e, de outro,
relacionar as avaliações com valores”.
18
“É necessário portanto estender a mão para se poder apreender essa finesse extraordinária de
que o valor da vida não pode ser apreciado. Não pode ser apreciado por um vivo, porque é parte e
até objeto de litígio, e não juiz; nem pode ser apreciado por um morto, por outras razões.” (CI, O
Problema de Sócrates, § 2) [grifo do autor]
[sic] ou atitudes ao exame genealógico é o mesmo que inquirir se são
signos de plenitude de vida ou da sua degeneração; avaliar uma
avaliação, enfim, significa questionar se é sintoma de vida ascendente
ou declinante. (MARTON, 1999, p. 62).

O valor “bom” que se encontra numa moral não é, pois, idêntico ao que está
presente na outra; é o seu oposto. Tanto é assim que o filósofo declara: “esse ‘‘ruim’
(schíecht) de origem aristocrática e esse ‘mau’ (böse) fermentado na cuba de um
ódio insaciável — o primeiro uma criação posterior, um acessório, uma cor
complementar; o segundo, ao contrário, o original, o começo, o ato verdadeiro na
concepção de uma moral de escravos — ‘ruim’ e ‘mau’, quão diferentes são essas
duas palavras, aparentemente opostas ao mesmo conceito ‘bom’! Mas não é o
mesmo conceito ‘bom’: que se pergunte, antes, quem é ‘mau’ propriamente dito no
sentido da moral do ressentimento.
Com todo rigor, cumpre responder é precisamente o ‘bom1 da outra moral,
precisamente o nobre, o poderoso, o senhor, apresentado sob outras cores,
reinterpre-tado c deformado pelo olhar intoxicado do ressentimento” (GMI § 11).
A maneira nobre de avaliar ressalta o sentimento de plenitude e excesso
da própria força: “nós nobres, nós bons, nós belos, nós felizes”.
A partir desse ponto de vista, Nietzsche avalia a moral dos nobres e a
moral dos escravos a partir dos valores dos quais cada uma partiu para estabelecer
suas tábuas de valores.

Em outras palavras, a moral dos nobres nasce da verdade e a dos


escravos, da mentira, da farsa, da enganação, da deturpação da realidade.

Para ele, a moral dos senhores nasce espontaneamente como forma de


autoafirmação de si mesma, concebendo o valor “bom” a si mesmo e a tudo o que
concorre para a preservação da vida saudável e ativa. De modo oposto,
A partir desse ponto de vista, para Nietzsche, a moral dos escravos
constitui uma negação da vida e da própria vontade de viver, uma vez que o
pressuposto para o estabelecimento dos seus valores

Desse modo, tendo, pois, como referência a vida, entendida como


vontade de potência, Nietzsche compara a

Aqui convém aprofundar o pensamento e pôr de parte todo


sentimentalismo: a vida é essencialmente uma apropriação,
uma violação, uma sujeição de tudo aquilo que é estranho e
fraco, significa opressão, rigor, imposição das próprias formas,
assimilação, ou pelo menos, na sua forma mais suave, um
aproveitamento mas porque depois sempre deveremos usar tais
palavras, em que de tempos mais remotos está inserida uma
intenção caluniosa?
Compreende-se também que ataque o altruísmo, a renúncia de si, o amor ao
próximo e todas as chamadas virtudes cristãs, por um lado, e considere a crueldade,
o egoísmo, o ódio, a inveja, a cupidez como impulsos vitais, por outro.

Os conceitos “mau” e “ruim” parecem opostos ao significado de “bom”. Porem, o “ruim” e de


origem nobre, designando o oposto de “bom”, uma concepcao nascida espontaneamente,
diferentemente de “mau”, concepção oriunda do odio insatisfeito. O primeiro uma criacao
posterior; o segundo uma criacao original, anterior e feita a partir de uma concepção de uma
moral escrava. E o que e propriamente mau no sentido da moral escrava? Com certeza sera o
“bom” da moral nobre, o poderoso visto de outra forma pela moral dos ressentidos. Portanto,
qualquer um que tivesse os “bons” como inimigos os reconheceria somente como homens
“maus”. Maus por sua ousadia, por suas vitorias. “Na raiz de todas as racas nobres e dificil
nao conhecer o animal de rapina, a magnifica besta loura que vagueia avida de espolias e
vitorias”. (NIETZSCHE,
2006, p. 32).

Definido seu critério...


Comparação ruim e mau não se equivalem
Bom e bom Tb não
Afirmativo da vida
Negação da vida

Definindo, pois, a vida como único critério por meio do qual podem ser
avaliadas as moralidades do senhor e do escravo, Nietzsche

Portanto, diferentemente da moral dos nobres, “que primeiro e


espontaneamente, de dentro de si, concebe a noção básica de ‘bom’, e partir dela
cria para si uma representação de ‘ruim’”, a moral dos escravos

Assim, relacionando os valores “bom” e “ruim” e “bom” e “mau”, à morais


que os criaram, ou seja, à moral nobre e à moral dos escravos, respectivamente
Desse modo, ao relacionar a revolta escrava na moral com o
ressentimento, Nietzsche mostra como surgiu a perspectiva avaliadora dos escravos

Contudo, como fruto do ressentimento, a revolta escrava na moral jamais


pode ser entendida como uma reação imediata dos escravos em relação ao modo
de vida e valoração dos nobres. Na verdade, o ressentimento se caracteriza por
impedir justamente que a verdadeira reação, a dos atos, seja posta em pratica (GM,
I, § 10).
Contudo, relacionar os valores “bom” e “ruim” e “bom” e “mau”, às morais
que os criaram, ou seja, à moral nobre e à moral dos escravos, respectivamente,
Nietzsche cumpre apenas uma parte do seu método genealógico. Falta-lhe ainda,
avaliar esses dois modos de valoração morais a partir dos valores que elas partiram
para criar suas tábuas de valores.
De acordo com Marton (1999, p. 61-62), Nietzsche entende que não pode
simplesmente avaliá-las do ponto de vista do “bem” e do “mal”, porque esses valores
foram criados por elas mesmas, e nem afirmar que a moral dos nobres é melhor ou
pior do que a moral dos escravos, e vice-versa, porque isso implicaria em um círculo
vicioso, carecendo adotar um critério de avaliação que não pudesse ser avaliado. O
critério adotado, por ele, para avaliar a moral dos nobres e a moral dos escravos foi
a vida, e vida, em Nietzsche, é vontade de potência, como dito alhures.

Contudo, como fruto do ressentimento, a revolta escrava na moral jamais


pode ser entendida como uma reação imediata dos escravos em relação ao modo
de vida e valoração dos nobres. Na verdade, o ressentimento se caracteriza por
impedir justamente que a verdadeira reação, a dos atos, seja posta em pratica (GM,
I, § 10).

Essa “revolta” foi, segundo Deleuze (1976, p. 55), o próprio ressentimento


como revolta e triunfo dessa revolta; “o triunfo do fraco enquanto fraco, a revolta dos
escrav

[E mesmo então demora muito, até que esse instinto se torne senhor de maneira tal
que a valoração moral fique presa e imobilizada nessa oposição]

Nietzsche, na verdade, chama a atenção para o fato de que a

o procedimento do homem do ressentimento ser algo executado


ocultamente, às escondidas, silenciosamente (GM, I, § 10).

O homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e


reto consigo. Sua alma olha de través; ele ama os refúgios, os subterfúgios, os
caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu
bálsamo; ele entende do silêncio, do não-esquecimento, da espera, do
momentâneo apequenamento e da humilhação própria. Uma raça de tais homens
do ressentimento resultará necessariamente mais inteligente10

Portanto, a revolta escrava na moral não pode ser entendida como um


levante, como uma reação imediat

Ressentimento

Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos — por quê? Porque
são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e
sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal, os
grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito —
comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante empalidece.
A história humana seria uma tolice, sem o espírito que os impotentes lhe trouxeram
— tomemos logo o exemplo maior. Nada do que na terra se fez contra “os nobres”,
“os poderosos”, “os senhores”, “os donos do poder”, é remotamente comparável ao
que os judeus contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube
desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma radical
tresvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança.

A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna


criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira
reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação.

Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a


moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” — e este Não é seu ato
criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores — este necessário dirigir-se
para fora, em vez de voltar-se para si — é algo próprio do ressentimento: a moral
escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir
em absoluto — sua ação é no fundo reação.

O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce


espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda
maior júbilo e gratidão — seu conceito negativo, o “baixo”, “comum”, “ruim”, é
apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico,
positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os bons,
os belos, os felizes!”.
Quando o modo de valoração nobre se equivoca e peca contra a realidade, isso
ocorre com relação à esfera que não lhe é familiar, que ele inclusive se recusa
bruscamente a conhecer: por vezes não reconhece a esfera por ele desprezada, a
do homem comum, do povo baixo; por outro lado, considere-se que o afeto do
desprezo, do olhar de cima para baixo, do olhar superiormente, a supor que falseie a
imagem do desprezado, em todo caso estará muito longe do falseamento com que o
ódio entranhado, a vingança do impotente, atacará — in effigie, naturalmente — o
seu adversário.
Os “bem-nascidos” se sentiam mesmo como os “felizes”; eles não tinham de
construir artificialmente a sua felicidade, de persuadir-se dela, menti-la para si, por
meio de um olhar aos seus inimigos (como costumam fazer os homens do
ressentimento); e do mesmo modo, sendo homens plenos, repletos de força e
portanto necessariamente ativos, não sabiam separar a felicidade da ação — para
eles, ser ativo é parte necessária da felicidade (nisso tem origem εὖπράττειν [fazer
bem: estar bem]) — tudo isso o oposto da felicidade no nível dos impotentes,
opressos, achacados por sentimentos hostis e venenosos, nos quais ela aparece
essencialmente como narcose, entorpecimento, sossego, paz, “sabbat”, distensão
do ânimo e relaxamento dos membros, ou, numa palavra, passivamente.

Enquanto o homem nobre vive com confiança e franqueza diante de si mesmo


(γενναῖος, “nobre de nascimento”, sublinha a nuance de “sincero”, e talvez também
“ingênuo”), o homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e
reto consigo. Sua alma olha de través; ele ama os refúgios, os subterfúgios, os
caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu
bálsamo; ele entende do silêncio, do não-esquecimento, da espera, do momentâneo
apequenamento e da humilhação própria.

Uma raça de tais homens do ressentimento resultará necessariamente mais


inteligente que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência numa medida muito
maior: a saber, como uma condição de existência de primeira ordem, enquanto para
os homens nobres ela facilmente adquire um gosto sutil de luxo e refinamento —
pois neles ela está longe de ser tão essencial quanto a completa certeza de
funcionamento dos instintos reguladores inconscientes, ou mesmo uma certa
imprudência, como a valente precipitação, seja ao perigo, seja ao inimigo, ou aquela
exaltada impulsividade na cólera, no amor, na veneração, gratidão, vingança, na
qual se têm reconhecido os homens nobres de todos os tempos.

Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se


exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer
aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos.

Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus
malfeitos inclusive — eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um
excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do
esquecimento. Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que
em outros se enterrariam; apenas neste caso é possível, se for possível em
absoluto, o autêntico “amor aos inimigos”.

Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! — e tal reverência é já
uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como uma distinção, ele
não suporta inimigo que não aquele no qual nada existe a desprezar, e muito a
venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal como o concebe o homem do
ressentimento — e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu “o
inimigo mau”, “o mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora,
como imagem equivalente, um “bom” — ele mesmo!...
Precisamente o oposto que sucede com o nobre, que primeiro e espontaneamente,
de dentro de si, concebe a noção básica de “bom”, e a partir dela cria para si uma
representação de “ruim”. Este “ruim” de origem nobre e aquele “mau” que vem do
ódio do fraco (o primeiro uma criação posterior, secundária, complementar; o
segundo, o original, o começo, o autêntico feito na concepção da moral escrava) são
diferentes, embora aparentemente opostas ao mesmo sentido de “bom”.

O “mau”, no sentido da moral do ressentimento corresponde ao “bom” da moral


nobre.
O “bom” para o fraco é aquele de quem nada se tem a temer; aquele que não faz
Contudo, ao relacionar os valores “bom” e “ruim” e “bom” e “mau”, às
morais que os criaram, ou seja, à moral nobre e à moral dos escravos,
respectivamente, Nietzsche cumpre apenas uma parte do seu método
genealógico19. Falta-lhe ainda, avaliar esses dois modos de valoração morais a partir
dos valores que elas partiram para criar suas tábuas de valores.
De acordo com Marton (1999, p. 61-62), Nietzsche entende que não pode
simplesmente avaliá-las do ponto de vista do “bem” e do “mal”, porque esses valores
foram criados por elas mesmas, e nem afirmar que a moral dos nobres é melhor ou
pior do que a moral dos escravos, e vice-versa, porque isso implicaria em um círculo
vicioso, carecendo adotar um critério de avaliação que não pudesse ser avaliado. O
critério adotado, por ele, para avaliar a moral dos nobres e a moral dos escravos foi
a vida, e vida, em Nietzsche, é vontade de potência, como dito alhures.

Valores positivos em relação à vida...

sendo, pois, ainda necessário, remeter estas duas perspectivas morais


aos valores dos quais elas partiram para criar seus valores; é preciso ainda avaliar
essas duas avaliações morais. Todavia,

“É necessário portanto estender a mão para se poder apreender essa finesse extraordinária de que o
valor da vida não pode ser apreciado. Não pode ser apreciado por um vivo, porque é parte e até
objeto de litígio, e não juiz; nem pode ser apreciado por um morto, por outras razões.” (CI, O
Problema de Sócrates, § 2) [grifo do autor]

Nietzsche, porém, conforme Scarlett Marton (1999, p. 60-62), não se


limita a relacionar os modos de valoração, os valores, “com as perspectivas
avaliadoras que os engendraram”; ele investiga ainda “de que valor estas partiram
para criá-los”, isto é, ele relaciona “as avaliações com valores”. Para ela, o
procedimento genealógico de Nietzsche comporta dois movimentos inseparáveis:

19
Conforme Scarlett Marton (1999, p. 61), o procedimento genealógico de Nietzsche comporta dois
movimentos inseparáveis: “de um lado, relacionar os valores com avaliações e, de outro,
relacionar as avaliações com valores”.
“de um lado, relacionar os valores com avaliações e, de outro, relacionar as
avaliações com valores” (MARTON, 1999, p. 61).

Ao relacionar os valores “bom” e “ruim” e “bom” e “mau”, às morais que os


criaram, ou seja, à moral nobre e à moral dos escravos, respectivamente, Nietzsche
cumpre apenas uma parte do seu método genealógico, no entender de Marton,
sendo, pois, ainda necessário, remeter estas duas perspectivas morais aos valores
dos quais elas partiram para criar seus valores; é preciso ainda avaliar essas duas
avaliações morais. Todavia,

Mas para ela, Nietzsche considera necessário ainda cumprir o segundo


movimento do seu método: “remeter a moral dos nobres e a moral dos escravos a
valores, avaliar essas duas avaliações”.

Nietzsche, porém, conforme Scarllet Marton (1999, p. 60-62), não exaure


o procedimento genealógico ao relacionar os valores “com as perspectivas
avaliadoras que os engendraram”; ele investiga ainda “de que valor estas partiram
para criá-los”, isto é, ele relaciona “as avaliações com valores”.

Na ótica nietzschiana, o valor apresenta duplo caráter: os valores supõem


avaliações, que lhes dão origem e conferem valor; as avaliações, por sua vez, ao
criá-los, supõem valores a partir dos quais avaliam.

na ótica nietzschiana, o valor apresenta duplo caráter: os valores


supõem avaliações, que lhes dão origem e conferem valor; as
avaliações, por sua vez, ao criá-los, supõem valores a partir dos quais
avaliam. (MARTON, 1999, p. 61).

1.3 O Ressentimento e a Questão dos Valores


Como os valores do homem baixo puderam vencer se mesmo entre os
mais fracos a fraqueza não é vista com bons olhos?

Somente com o declínio do modo de valorar dos nobres aristocráticos, é


que, paulatinamente, ao longo de séculos, a oposição “egoísta” e “não egoísta” irá
se estabelecer na consciência humana e consagrar o modo de valoração própria de
um instinto de rebanho e que desloca os valores das pessoas para suas ações, de
modo que uma pessoa passa a ser considerada boa ou má, não em si mesma, por
sua constituição física e saúde, mas por meio das ações que pratica20.

1.4 A Moral Cristã como Herdeira da Moral dos Escravos

Mas como os valores estabelecidos pela moral dos nobres,

No entanto, os valores opostos, tais como fraqueza e lentidão não são muito
admirável, como "Desprezo pela fraqueza não é um sentimento incomum, mesmo entre

20
“Nada do que na terra se fez contra ‘os nobres’, ‘os poderosos’, ‘os senhores’, ‘os donos do poder’,
é remotamente comparável ao que os judeus contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de
sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma
radical tresvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança. Assim
convinha a um povo sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de vingança sacerdotal.” (GM, I,
§
os mais fracos." 19 Portanto, o os sacerdotes devem transmutar esses valores em
virtudes mais louváveis: lentidão em prudência; impotência, que não podem retaliar, em
bondade;
De acordo com Nietzsche, a moral cristã desenvolveu-se a partir do modo
de valoração criado pelos sacerdotes judaicos, e longe de ser uma reação contra os
valores dessa moral do ressentimento por excelência, significou sua inevitável
consequência e continuação em todos os sentidos21. No § 8, da Genealogia da
Moral, ele afirma que

do tronco daquela árvore da vingança e do ódio, do ódio judeu — o mais


profundo e sublime, o ódio criador de ideais e recriador de valores, como
jamais existiu sobre a terra —, dele brotou algo igualmente
incomparável, um novo amor, o mais profundo e sublime de todos os
tipos de amor — e de que outro tronco poderia ele ter brotado?... Mas
não se pense que tenha surgido como a negação daquela avidez de
vingança, como a antítese do ódio judeu! Não, o contrário é a verdade!
O amor brotou dele como sua coroa, triunfante, estendendo-se sempre
mais na mais pura claridade e plenitude solar, uma coroa que no reino
da luz e das alturas buscava as mesmas metas daquele ódio, vitória,
espólio, sedução, com o mesmo impulso com que as raízes daquele
ódio mergulhavam, sempre mais profundas e ávidas, em tudo que
possuía profundidade e era mau. (GM, I, § 8).

A
Para o tipo de homens que aspiram ao poder no judaísmo e no
cristianismo – em outras palavras, a classe sacerdotal – a decadência
não é senão um meio.
O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo e fracassado;
forjou seu ideal a partir da oposição a todos os instintos de preservação da vida
saudável; corrompeu até

Herdeira de um tipo de moral própria de homens ressentidos (a moral dos


escravos), que, através de uma astuciosa inversão dos valores defendidos por homens nobres e
ativos, estabeleceu-se como a moral dominante na cultura ocidental, a moral cristã exacerbou
o desprezo em relação à vida, entendida, por Nietzsche, como vontade de poder*, conduzindo
o homem a um estado de decadência*, passividade, submissão e domesticação, e tornando-o
cansado em relação à vida, doente e incapaz de realizar suas potencialidades nesse mundo,

21
“(...) o cristianismo deve ser compreendido apenas a partir da análise do solo em que se originou –
não é uma reação contra os instintos judaicos; é sua consequência inevitável...” (AC, § XXIV).
desprezando-o em prol de outro, suprassensível e perfeito, situado num além-mundo, e que só
se pode alcançar através da mortificação dos instintos vitais básicos, da renúncia de si mesmo
e do sacrifício material, ou seja, da ascese pessoal.

Esse Jesus de Nazaré, evangelho vivo do amor, esse “redentor” portador da vitória e
da bem-aventurança aos pobres, aos doentes e aos pecadores — não era ele a
sedução em sua forma mais inquietante e irresistível, a sedução e a via sinuosa para
justamente aqueles valores judeus e inovações judaicas do ideal?

Não teria Israel alcançado, por via desse “redentor”, desse aparente antagonista e
desintegrador de Israel, a derradeira meta de sua sublime ânsia de vingança?

Não seria próprio da ciência oculta de uma realmente grande política da vingança,
de uma vingança longividente, subterrânea, de passos lentos e premeditados, o fato
de que Israel mesmo tivesse de negar e pregar na cruz o autêntico instrumento de
sua vingança, ante o mundo inteiro, como um inimigo mortal, para que o “mundo
inteiro”, ou seja, todos os adversários de Israel, pudesse despreocupadamente
morder tal isca?

E porventura seria possível, usando-se todo o refinamento do espírito, conceber


uma isca mais perigosa? Algo que em força atrativa, inebriante, estonteante,
corruptora, igualasse aquele símbolo da “cruz sagrada”, aquele aterrador paradoxo
de um “Deus na cruz”, aquele mistério de uma inimaginável, última, extrema
crueldade e autocrucificação de Deus para salvação do homem?...

Certo é, quando menos, que sub hoc signo [sob este signo], com sua vingança e sua
tresvaloração dos valores, Israel até agora sempre triunfou sobre todos os outros
ideais, sobre todos os ideais mais nobres. —
asfsfa

O nobre parte em busca de aventura e risco, desprezando a segurança, a vida, o


corpo, o bem-estar; ele tem prazer no destruir, nas volúpias da vitória e da
crueldade. Para aqueles que sofriam com isso, tudo se juntava na imagem do
“inimigo mau”.

Ao contrário, o homem baixo, o Plebeu, o escravo não deixou a desejar na criação de


seus valores. Toda classe, por mais tardio que seja, institui os seus valores, mesmo que de
forma obscura ou espelhada nos valores de outra classe. Por tempos a classe baixa se
conformou em tentar imitar a classe superior considerando-os como realmente superiores ou
se conformando em viver como seres inferiores, mas em um determinado momento o ódio, a
inveja, a cobiça, a revolta, acomete os escravos e eles criam para si uma Moral. A questão da
moral dos escravos é circunstancialmente uma fundamentação de uma moral da negação. Os
escravos não têm bens materiais para amar, venerar e chamar de seus, nem mesmo as suas
vidas são suas, pertencem aos seus senhores. Enquanto a moral aristocrata nasce de uma
triunfante afirmação de si mesmo e de tudo que lhe pertence, a moral dos escravos opõe um
não a tudo o que não é seu, a um “de outro modo”, a um “não ele mesmo”. O não do escravo é
seu ato criador.
Para o escravo, o um homem bom é um homem inofensivo, de boa índole, fácil de enganar.
A tipologia “escrava”, por sua vez, representaria a disposição psicológica de um indivíduo
que deixa prevalecer na sua vida os afetos decadentes, que impedem uma compreensão
positiva da existência, pautada na afirmação da potência criativa intrínseca.
Dessa maneira, a valoração “escrava” motiva a repressão da vitalidade fisiológica, fato este
que mitiga a capacidade do indivíduo que se encontra nesse estado de forças agir
criativamente ao longo de sua existência, vilipendiando então tudo aquilo que coadune com os
aspectos da saúde e da força como estados deploráveis do ponto de vista da consciência
moral.

Na moral escrava, o termo “mau” surge em correspondência à idéia de “o inimigo mau”,


numa referência a uma imagem invertida do “bom” da outra moral.

Segundo Nietzsche a moral de escravo considera o juízo bom próprio do homem altruísta,
piedoso, temente a Deus, do indivíduo paciente.

Concebe o juízo mau como sinônimo de agressividade, de egoísmo, de individualismo, de


arrogância, etc. Nessa moral, bom é o sujeito inclinado à humildade nas ações e no espírito,
mau é o sujeito que expressa orgulho nas suas ações e no seu modo vida. Esse segundo modo
de valorar será dito por Nietzsche como expressão de decadência, como produção surgida da
inversão, da incapacidade de criar, em suma, expressões que não
correspondem àquilo que seus termos propõem expressar.
Para o escravo é com o ódio que se começa a produzir valores. A ação é própria do senhor, a
reação é característica do escravo. Para Nietzsche os escravos transformaram a fraqueza em
virtude. Seu instinto que reclama conservação impede o crescimento e o avanço de si. Sua
passividade e memória depõem contra a vida. Para Nietzsche a inversão da fraqueza como
virtude – obra das forças reativas - produziu valorações inimagináveis.
A partir da Genealogia destacamos o programa da moral dos escravos baseado na calúnia
contra a vida, na inveja e no ódio contra a saúde e a beleza do homem superior. Tal calúnia é
traduzida por Nietzsche como uma inversão realizada pela moral de escravos, que alterou os
juízos de valor bom-ruim conforme sua avaliação depreciativa da vida. Assim temos: Faltava
inverter todos os valores! Enfraquecer os fortes, diminuir as grandes esperanças, tornar
suspeito a felicidade que reside na beleza, transmutar tudo aquilo que há de independente, de
viril, de conquistador, de dominador no homem, todos os instintos que no homem, o tipo mais
elevado e melhor sucedido, estão incertos, aviltação, destruição de si mesmos (...)
(NIETZCHE, s/d, §62).
Os dois valores contrapostos, “bom e ruim”, “bom e mau”, travaram na terra uma luta
terrível, milenar. Isso ocorreu quando a casta dos sacerdotes e a dos guerreiros se confrontam
ciumentamente e não entram em acordo quanto às suas estimativas.
Com a proeminência do modo de valoração sacerdotal sobre o modo de valoração
aristocrático, isto é, com os judeus principia a revolta dos escravos na moral (Cf. GM, I, 7).
Esse novo modo de valoração, por um ato da mais espiritual vingança, opera uma inversão
radical dos valores, invertendo as premissas vigentes – o bom passa a ser o pobre; o
miserável, em contrapartida, o ruim, o mau, o impuro, é aquele materialmente rico. Com a
revolta escrava na moral, “„os senhores‟ foram abolidos; a moral do homem comum venceu
(...) tudo se judaíza, cristianiza, plebeíza visivelmente” (GM, I, 9).

Ao contrário, o homem baixo, o plebeu, o escravo não deixou a desejar na criação de seus
valores.
Por tempos a classe baixa se conformou em tentar imitar a classe superior considerando-os
como realmente superiores ou se conformando em viver como seres inferiores, mas em um
determinado momento o ódio, a inveja, a cobiça, a revolta, acomete os escravos e eles criam
para si uma moral.

De acordo com Nietzsche, impedido de ter uma vida autêntica, ativa e feliz, e
incapaz de dar vazão a seus instintos, o homem escravo se ressente com o modo
de vida do nobre senhorial,

O nobre parte em busca de aventura e risco, desprezando a segurança, a vida, o


corpo, o bem-estar; ele tem prazer no destruir, nas volúpias da vitória e da
crueldade. Para aqueles que sofriam com isso, tudo se juntava na imagem do
“inimigo mau”.

De acordo com Nietzsche, a moral dos escravos fora construída a partir e


como inversão dos valores da moral dos nobres. Isso ocorreu quando a casta dos
sacerdotes
Os “bem-nascidos” [sic] se sentiam como os “felizes”; eles não
tinham de construir artificialmente a sua felicidade, de persuadir-se
dela, menti-la para si, por meio de um olhar aos seus inimigos (...); e
do mesmo modo, sendo homens plenos, repletos de força e portanto
necessariamente ativos, não sabiam separar a felicidade da ação –
para eles ser ativo é parte necessária da felicidade... (GM, I, § 10)

Na primeira dissertação – em que a descrição do ressentimento tem lugar como uma


peça na história da emergência e na caracterização de uma determinada forma de
valoração, a do rebanho – ele aparece tanto como um problema fisiológico quanto
como um problema social. Por exemplo, no parágrafo 10, em que o “homem do
ressentimento” é descrito em oposição ao homem que esquece, Mirabeau, a tônica
é colocada na fraqueza, na incapacidade do homem do ressentimento para uma
autêntica reação, a dos atos, e também para digerir o veneno advindo da sua não
reação. Esse homem não responde com atos às adversidades da vida, acumulando
em si o veneno que deveria descarregar para fora por meio da ação, também não
possui um “estômago” forte o suficiente para digerir aquele veneno, que permanece
acumulado nele hipertrofiando o seu mundo interior.
O ressentimento como um fenômeno social não é propriamente fraco – embora
tenha sua origem na fraqueza fisiológica e na rancorosa sede de vingança diante do
“inimigo mal” –, como Nietzsche descreve na primeira dissertação da Genealogia,
em especial na seção nove, que é aberta com a seguinte assertiva: “–‘Mas o que
falam vocês de ideais mais nobres! Sujeitemo-nos aos fatos: o povo venceu – ou ‘os
escravos’, ou ‘a plebe’, ou ‘o rebanho’, ou como você preferir chamá-lo...”
(NIETZSCHE, 1988 [GM I 9], v. V, p. 269).
No caso, está em questão que “a moral do homem comum venceu”, e também que o
“envenenamento” colocado em marcha a partir dessa vitória, de forma irresistível,
não diz respeito apenas ao homem individual, mas ele perpassa o “copo inteiro da
humanidade” (NIETZSCHE, 1988 [GM I 9], v. V, p. 269).
Mais adiante, na seção 10, o filósofo esclarece que aquela “rebelião escrava na
moral” tem início “quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o
ressentimento daqueles seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos,
e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação” (NIETZSCHE, 1988
[GM I 10], v. V, p. 270). Diferentemente daqueles que são “necessariamente ativos”,
os nobres, tais seres são associados a termos como “passividade”, “impotência”,
“entorpecimento”, contudo, um tal homem do ressentimento “não é franco, ingênuo,
nem honesto”, ele “ama os subterfúgios (...), entende do não esquecimento e da
espera”, sabe lançar mão do “momentâneo apequenamento”, e o faz de tal forma
que, segundo Nietzsche, “uma raça de tais homens do ressentimento tornar-se-á
necessariamente, por fim, mais inteligente (klüger) que qualquer raça nobre...”
(NIETZSCHE, 1988 [GM I 10], v. V, p. 272-273). Nesse ponto, contudo, a
passividade descrita no texto de Nietzsche já não remete à idéia de não ação, mas
passa a caracterizar o princípio básico de um modo de agir que impõe
conseqüências para toda a civilização ocidental e é vitorioso em relação àquela
moral nobre, operando uma transvaloração dos seus valores.

A idéia da transposição para o campo social daquele desejo de vingança é retomada


na segunda dissertação da Genealogia, em especial na seção 11, quando o tema do
ressentimento, extrapolando os limites de uma caracterização fisiopsicológica, passa
a correlacionar-se com uma determinada concepção de justiça que “sacraliza a
vingança sob o nome da justiça” (NIETZSCHE, 1988 [GM II 11], v. V, p. 309-310).
Nesse momento, em que coloca em relevo a sede de vingança do fraco, Nietzsche
faz uma crítica direta a Dühring e à sua afirmação de que o anseio por justiça e,
porquanto, a justiça mesma, teria sua origem no desejo de vingança, em um
sentimento reativo, próprio daquele que foi lesado e que espera por ressarcimento
(DÜHRING, 1865, p. 222).20 Nessa passagem, o ressentimento não é uma
descrição do homem que não reage, mas da própria ação daquela sede de vingança
atuando como uma vontade de poder operante que busca dominar e impor-se sobre
as demais por meio de uma estratégia que consiste em apresentar-se como a
própria justiça.21 O mesmo que se tem com uma “moral do ressentimento”, que se
apresenta como a única que pode atender pelo nome de moral.
Na terceira dissertação, o ressentimento é retomado como um problema fisiológico,
como uma doença, porém, com a ênfase voltada para a intervenção do sacerdote
ascético sobre o homem do ressentimento. O sacerdote defende o ideal proposto
pela moral do ressentimento como o único ideal e propõe o homem do
ressentimento como o modelo de homem. Particularmente, contudo, a figura do
sacerdote ascético não corresponde àquelas antigas aristocracias sacerdotais que
operam uma transvaloração dos valores nobres, descrita na primeira dissertação,
mas ao modo próprio de agir do ressentimento enquanto um pastor que visa
preservar e expandir seu rebanho.
Ainda que o sacerdote ascético se apresente como um médico interessado em curar
o homem do ressentimento, seu objetivo é desviar a atenção do homem que sofre,
impedindo que aquele sentimento de obstrução fisiológica tenha efeitos
devastadores sobre o sofredor.

De acordo com Nietzsche, os legítimos representantes dos fracos e


impotentes são os sacerdotes. É com eles que o ódio e o desejo de vingança contra
os fortes e poderosos têm início22. Mesmo fazendo parte da aristocracia, a classe
sacerdotal também é oprimida pela classe nobre, desejando libertar-se e sobrepor-
se a ela23. Contudo, consciente de sua fraqueza e impotência para reagir ativamente
contra seus opressores, evita o confronto direto com eles24, sendo obrigados a
interiorizar o ódio, a inveja e o sentimento de vingança que alimentam. Assim, não
podendo vingar-se por meio do confronto direto com os fortes nobres senhoriais, os
sacerdotes, plenos de ressentimento, passam a elaborar uma forma de vingança
mais apropriada ao seu estilo de vida: uma vingança pela inversão do modo vigente
de interpretação e valoração da realidade, o modo nobre, por outro que convença
todos de que os homens fortes são “maus”, porque são egoístas, e os fracos são
“bons” porque não são egoístas (FERREIRA, 2009, p. xx).
Dessa forma, conduzidos pelos sacerdotes, os escravos

Portanto, se o forte é “mau”, ele, o escravo, o fraco, é “bom” (GM, I, § 10).

cujo prazer está no destruir, nas alegrias da vitória, em praticar ações


cruéis (GM, I, § 10) e em exercer o poder de dominação sobre eles, os escravos,

22
“Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos — por quê? Porque são os mais
impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa
mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes,
também os mais ricos de espírito — comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito
restante empalidece.” (GM, I, § 7).
23
“Com os sacerdotes tudo se torna mais perigoso, não apenas meios de cura e artes médicas, mas
também altivez, vingança, perspicácia, dissolução, amor, sede de domínio, virtude, doença...”
(GM, I, § 6) [grifo nosso]
24
“O modo de valoração nobre-sacerdotal – já o vimos – tem outros pressupostos: para ele a guerra
é mau negócio!” (GM, I, § 7)
“Os judeus — ‘povo nascido da escravidão’ como disse Tácito em uníssono com toda a antiguidade,
‘povo eleito entre todos os povos’, como eles mesmos dizem e creem, levaram a cabo essa milagrosa
inversão de valores que deu à vida durante milênios um novo e perigoso atrativo. Os profetas judeus
fundiram numa só definição o ‘rico’, ‘ímpio’, ‘violento’, ‘sensual’ e pela primeira vez colocaram a pecha
da infâmia à palavra ‘mundo’. Nesta inversão de valores (que fez também da palavra ‘pobre’ sinônimo
de ‘santo’ e de ‘amigo’) é que se fundamenta a importância do povo judeu. Com ele, em moral,
começa a insurreição dos escravos.” (ABM, V, § 195) [grifo do autor].

Artigo de Periódico:

AUTOR. Título do artigo. Título do periódico, local de publicação (cidade), nº do


volume, nº do fascículo, páginas inicial-final, mês (abreviado), ano.

CARDOSO, Adauto Lucio. Visões da natureza no processo de constituição do


urbanismo moderno. Cadernos IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 119-
150, jan./jul., 2000.
Dissertações e Teses:

AUTOR. Título: subtítulo. Ano de apresentação. Número de folhas ou volumes.


Categoria (grau e área de concentração) – Instituição, local.

ROBEIRO, Ana Clara Torres. Rio-metrópole: a produção social da imagem urbana.


1988. 2 v. Tese (Doutorada em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo.

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