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15, no 1, 85 – 90
Resumo
Este texto relata duas experiências de estágios de alunos do curso de Psicologia da Universidade
de São Paulo na área de Psicologia Escolar: uma atividade denominada “Parte Prática”, e a
outra, “Estágio de Intervenção”. Os estágios revelam a necessidade das ações dos estagiários de
psicologia, nas instituições educativas públicas, terem como objetivo fortalecer os educadores
para o enfrentamento de questões presentes no cotidiano escolar relacionadas à produção de
subjetivação no processo de ensino-aprendizagem. Para isto é importante a análise das
demandas que se estabelecem desde o contrato do estágio – demanda da instituição educativa e
demanda dos alunos de psicologia –, efeitos da história da relação da psicologia com a
educação. Os sentidos produzidos pelos estágios, o percurso deles e as reflexões a partir destas
experiências precisam ser problematizados com os profissionais da instituição educativa com os
quais entramos em contato. Afirmam-se, neste artigo, os cuidados que os estágios em
instituições educativas públicas devem ter quando eles visam intervir na produção de um
cotidiano cujos problemas têm relação com funcionamentos de ordem político/institucional.
Palavras-chave: Escola pública, Estágio, Psicólogo, Intervenção, Demanda.
Abstract
This study describes two interships experiences of Psychology under-graduation students at
University of São Paulo on the field of School Psychology: one called “Practical Study”, and the
other called “Intervention Intership”. These interships had revealed how important is that the
actions, performed by Psychology interns in public educational institutions, have the focus on
the strengthen of educators when facing current issues of academic routines, related to the
subjectivity present in the teaching-learning process. Towards this, it is important that the
demand – brought by the educational institution and by the Psychology students –, set upon
since training agreements, must be evaluated as background effects of this relation of
psychology and education. Discussions with professionals from institutions involved in the
study should be held to analyze the suggested directions, how to reach them, and their effects to
the research raised by these interships. Also, some cautions were mentioned here, that the
interships should have while dealing with public educational institutions, that took aim at
intervene in the routines of these institutions which their problems are political and institutional
matter.
Keywords: Public school, Practical professional training, Psychologist, Intervening, Demand.
aprendam quando, durante sua formação, não vou deixar a criança ir ao recreio”).
vão às escolas e, como desenvolver um Enfim, mostram-se presentes discursos
modo de conhecer que possibilite a submetidos à tirania do EU, inclusive nas
percepção do processo de constituição falas de alguns alunos de nossas escolas
daquilo que foi observado e vivido. As cenas públicas, quando dizem “eu não quero
e acontecimentos no interior de uma sala de estudar essa matéria”.
aula e de outros espaços da escola são O contexto no qual se produziram os
efeitos de um campo de forças que processos de individualização e de
precisamos habitar de uma maneira não- culpabilização foi discutida por Foucault
ingênua. (1987) ao apresentar as estratégias de
Focamos, em nosso trabalho, as controle do poder a partir do século XIII. O
questões subjetivas (processos de autor possibilita-nos afirmarmos a produção
subjetivação) presentes no processo de da culpa individual como mecanismo de
ensino e de aprendizagem. Estas questões se controle. A relação da psicologia com a
engendram em um funcionamento educação como produtora de crianças com
institucional, isto é, em um território problemas individuais que fracassam na
estabelecido por práticas, saberes e relações escola foi aprofundada por Patto (1990) ao
de poder. Habitar este território de uma refazer o percurso histórico dessas práticas e
maneira não-ingênua implica termos acesso saberes. As novas roupagens do poder,
às funções que estamos ocupando quando intensificadas por uma mídia produtora de
vamos à escola, isto é, a maneira como consumidores e por práticas que engendram
habitamos esse território não depende sensações de faltas a serem preenchidas por
apenas de nossas intenções e objetivos, mas coisas, tratamentos e medicações, têm sido
também da forma como incluímos as foco de nossas discussões ao nos
demandas dos educadores e os usos e efeitos debruçarmos nas condições de vida e de
em relação à nossa presença nas instituições. trabalho dos professores. Essas discussões
E, como veremos, se não analisarmos essas inpiraram as construções dos estágios que
demandas, ocupamos esse espaço de modo a serão narradas a seguir. O desafio
cair nas raias do instituído sem poder estabelecido por estas leituras revela que
questioná-lo. todos os acontecimentos são efeitos de
No caso de nossos estudantes – alunos relações, isto é, fazemos parte de um campo
de graduação do curso de Psicologia da USP de forças cujo sentido hegemônico revela o
–, eles carregam a história da relação entre que tem dominado neste território, mas não
educadores e especialistas da saúde, na qual revela todas as forças (muitas minoritárias)
se deposita no especialista a possibilidade de presentes nele. O pedido para que um
cura e melhora das crianças e jovens das psicólogo cure um aluno (foi assim que a
escolas públicas. Por isso, estar em uma psicologia, historicamente, ensinou os
instituição como estagiário de psicologia professores a demandarem seu trabalho)
implica colocarmos em análise as demandas carrega também: pedido de ajuda, a
estabelecidas nessa relação, que elas sirvam possibilidade de pensarmos juntos o
para mostrar as intensidades presentes em processo de produção daquilo que se
um certo campo relacional de maneira que apresenta como queixa, a possível invenção
possamos, com isso, agir neste campo. de ações na escola que intervenham nessa
Muitos educadores trabalham em produção, a problematização de uma
instituições nas quais domina um instituição com muitos funcionamentos
funcionamento individualizante, que cristalizados, etc.
culpabiliza o aluno pela produção do Apresentaremos os dois momentos das
fracasso escolar, que culpabiliza a família práticas dos estudantes de Psicologia na área
pelo fracasso da educação (dizem: “Nosso de Psicologia Escolar articulados com
problema são os pais que largam e algumas idéias e concepções que buscam o
abandonam seus filhos na escola”), que vive entendimento e a criação de ações frente aos
as práticas educativas de maneira processos, acima mencionados, de
individualizada (os professores exercem individualização e culpabilização. São eles:
suas regras com discursos pessoais: “Na 1) conhecer a realidade educacional
minha aula isso pode ou não pode”; “Eu (parte prática, obrigatória);
Estágio de psicologia nas escolas públicas 87
de uma instituição escolar tem sido o modo estigmatização. O projeto estabelecido com
de funcionamento das reuniões pedagógicas essa educadora foi criar um dispositivo no
dos professores. É possível pensar em qual se enfatizasse a existência de diferentes
estratégias pedagógicas abrangentes para o maneiras de cuidar e de ser cuidado.
enfrentamento de certas problemáticas, Inventou-se um extraterrestre, inventaram-se
como, por exemplo, a violência? As perguntas deste extraterrestre aos terrestres,
reuniões servem como desabafo ou há inventaram-se vidas diferentes. E as crianças
encaminhamento das ações propostas? foram se encantando e ficando curiosas com
Quem cuida do quê? as diferentes possibilidades de produzir
Os professores nos falam dos cuidado. Todo este trabalho visava incidir
analfabetos que freqüentam o Ensino nas práticas pedagógicas, em suas
Fundamental II (antiga 5a à 8a séries), efeitos concepções e seus efeitos nos processos de
das práticas com a progressão continuada 1 – subjetivação.
trabalhamos com a produção do Falamos, portanto, da relação entre as
analfabetismo no Ensino Fundamental I, práticas instituídas e as concepções e os
com a relação entre as políticas de governo e saberes que instituem essas práticas. A
o dia-a-dia escolar e, nesta discussão, o tema maneira como os pais são chamados pela
da educação inclusiva tem estado bastante escola, o funcionamento do conselho
presente. escolar, as discussões nos espaços coletivos,
Como nos ensinou Michel Foucault, as rotinas, a relação público/privado nas
queremos ter acesso ao processo de práticas cotidianas, a gestão das ações
produção daquilo que se tornou atributo educacionais, os passeios pagos nos quais
individual do sujeito. Por exemplo: entender algumas crianças não podem exercer o
como se produz o indisciplinar no cotidiano direito de participar desta atividade
escolar de maneira a engendrar os alunos pedagógica porque não podem pagar – tudo
indisciplinados. Para isto uma série de ações isso tem relação com as produções
deve ser pensada na relação com micropolíticas do cotidiano (Guatarri e
educadores, pais, funcionários e crianças – Rolnik, 2005).
como têm sido apresentado por vários Escrever “incompleto” no caderno de
autores (Machado, Fernandes e Rocha, Severino (7 anos), que suou e lutou durante
2006). uma hora e meia para conseguir copiar o
No estágio realizado em uma EMEI cabeçalho, é uma ação engendrada em um
(escola municipal de ensino infantil) uma território que deve ser refletido (Costa e
dupla de estagiários trabalhou com a Santos A. A., 2002).
professora de uma classe com crianças de 5 Queremos que nossos alunos percebam
anos. A questão trazida pela professora era a produção coletiva, histórica, intensiva de
como agir com o fato de haver muitas qualquer fenômeno a ser analisado, sabendo
crianças de uma casa-abrigo na sala de aula. que ele se engendra em um funcionamento
As crianças que viviam com suas famílias institucional do qual esses alunos (e nós)
revelavam receio e preconceito em relação fazem parte. Portanto:
às que viviam na casa-abrigo: Como viver 1. Precisamos de espaços e tempos
sem família? Elas não têm casa? Elas não para discussão destas ações nas escolas,
têm mãe?... A professora havia pensado em junto aos professores. Os estagiários
fazer uma visita à casa-abrigo com todas as agendam encontros com os professores para
crianças da classe. Pensamos que este pensarem sobre os saberes e ações
recurso – no qual, a nosso ver, o público constituídas no estágio. Eles também
atravessa o privado – intensifica efeitos de redigem escritos sobre o que vão
percebendo, aprendendo e fazendo, para
serem lidos junto com o professor. Estes
1
Política pública estabelecida em 1998 escritos são intensamente discutidos nas
denominada Regime de Progressão Continuada supervisões, pois é comum a escrita de
que reorganizou o ensino fundamental da rede frases julgadoras que culpabilizam o
pública paulista em dois ciclos de 4 anos cada:
professor. Em alguns projetos cabe à
Ciclo I: 1a a 4a séries; Ciclo II: de 5a a 8a séries –
no interior dos quais somente há reprovação de supervisora ir quinzenalmente, ou de 3 em 3
alunos faltosos. semanas, para reuniões com professores
90 Machado, A. M.
interessados. Portanto, criamos espaços onde Isso requer contínua discussão com os
as apropriações e funções de nossas ações profissionais das escolas.
possam ser problematizadas.
2. Precisamos de tempo de supervisão
para que as ações dos estagiários possam ser
Referências
discutidas. Na supervisão, as cenas que Costa, E., & Santos, A. A. (2002)
ocorrem no cotidiano – um professor que Cadernos escolares na primeira série
pede para um estagiário ajudar em algo, do ensino fundamental: funções e
outro que critica um aluno para o estagiário, significados. Dissertação de Mestrado
outro que pergunta várias vezes o que em Psicologia, Instituto de Psicologia,
estamos fazendo lá, etc. – são nossas Universidade de São Paulo, SP.
matérias-prima, e não imprevistos em nossa
ação. Nestas cenas, temos acesso às Foucault, M. (1987) Vigiar e Punir: o
expectativas, concepções, práticas dos nascimento da prisão (5a ed.). Rio de
educadores e estabelecemos uma Janeiro: Ed. Vozes.
interlocução com tudo isso.
Guatarri, F., & Rolnik, S. (2005)
Micropolítica: cartografias do desejo
Estágio: objetivo de (7a ed.) Rio de Janeiro: Ed Vozes.
Transformação
Machado, A. M. (2006) O psicólogo
Tendo acesso a uma prática trabalhando com a escola: intervenção
institucional atenta à complexidade de a serviço do quê? In M.E.M. Meira &
relações presentes na escola e com estudos
M. Antunes (Orgs.). Psicologia e
teóricos sobre os funcionamentos grupais e
institucionais, nossos estagiários têm mais
Educação: práticas críticas. São
chance de romper com a queixa tão rotineira Paulo: Editora Casa do Psicólogo.
sobre a falta de um aluno ideal, a queixa Patto, M. H. S. (1990) A produção do
sobre a falta de um grupo de professores fracasso escolar. São Paulo: Ed. T. A.
mais envolvidos, a queixa sobre a falta de Queiroz.
direcionamento político nas ações. Romper
essa queixa em relação à produção faltosa
implica percebermos como agenciar forças
Enviado em Novembro/2007
aliadas a construir outras possibilidades nas
Revisado em Maio/2008
instituições onde trabalhamos. Para isso é
Aceite final em Agosto/2008
preciso um trabalho de estágio que, desde o
Publicado em Junho/2009
seu formato, seja de produção coletiva e de
construção de estratégias de enfrentamento
em relação aos acontecimentos cotidianos.