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Um breve ensaio sobre a fotografia

e a leitura crítica do discurso fotográfico

Menandro Ramos (*)


FACED/UFBA

PRELIMINARES

Desde sempre a humanidade buscou registrar situações do seu


cotidiano, de seu tempo. Através dos mais diferentes meios, fez
representar objetos e eventos de cada época, que de uma maneira ou
de outra lhe despertaram a atenção.

A história do homem é assinalada pela presença da imagem


através das diversas possibilidades de suportes e técnicas: madeira,
pedra, argila, osso, couro, materiais orgânicos em geral, metais,
papéis, acetatos, suportes digitais...desenho, pintura, escultura,
fotografia, cinema, televisão, web...

Uma história rica em soluções plásticas com a finalidade de


representação para a expressão e o registro. Portanto, marcada pela
imagem como elemento de linguagem, como ato sêmico, como signo
dotado de intencionalidade, com capacidade evocatória de objetos,
pessoas e eventos.

As pinturas rupestres e demais soluções plásticas encontradas


em diversos sítios arqueológicos fazem-nos indagar qual teria sido o
sentido dessas manifestações, se teria fins mágico-propiciatórios, fins
puramente estéticos ou fins de registro. E, nesse caso, vale ainda
indagar se teria relação com a busca e a manutenção do poder.

É curiosa a obstinação da humanidade para eternizar os


momentos de sua vida, numa tentativa, por certo ainda pouco
compreensiva para nós, de partilhá-los com as gerações futuras. Essa
busca de congelar o tempo, através do desenho, da pintura, da
fotografia, dos grandes monumentos, teria relação com a sua
percepção de uma realidade fugaz, sempre evanescente no plano do
indivíduo, a apontar para a finitude do ser?

Ou seria a percepção aguçada da possibilidade de manipulação


dos signos para criar realidades com finalidade do exercício da
dominação dos seus semelhantes, numa forma antecipada do que
hoje se conhece como marketing político?
O que teria pretendido Quéops ao construir em Gizé, no Egito,
por volta de 2575 a.C., uma pirâmide que envolveu100 mil
trabalhadores durante vinte anos?

Qual seria o sentido da construção da estátua de Zeus Olímpico,


em ouro e marfim, cuja cabeça, apenas para se ter uma idéia, media
treze metros de altura, a dar crédito a relatos dos nossos
antepassados?

E o monumental Colosso de Rodes, estátua em bronze com mais


de 35 m de altura, construída para homenagear Hélios, ou o deus
Sol, na antiga Grécia?

E todo acervo ocidental de esculturas e pinturas que


imortalizaram personagens das classes hegemônicas e que hoje
ocupam salas especiais de museus e centros culturais, atraindo
anualmente milhares de visitantes?

No século passado, o francês Chalgrin projetou o "arco-do-


triunfo", de inspiração clássica, para celebrar a vitória de Napoleão
em Austerlitz. Também o alemão Langhans já havia projetado antes a
"porta de Brandemburgo", em Berlim, para comemorar os feitos de
Frederico II. E muito antes ainda, os césares foram homenageados e
tiveram seus nomes imortalizados através do mármore
magistralmente esculpido. Num rápido inventário é possível verificar
o quanto o poder historicamente se valeu da arte, da técnica e dos
artistas para se perpetuar.

Vale indagar, aqui: e contemporaneamente, de quais mídias o


poder se vale para assegurar a sua estabilidade?

Da mesma forma que é curiosa a obstinação da humanidade


para eternizar alguns momentos de sua vida, como já foi dito antes,
também é instigante a sua capacidade de criar soluções técnicas
para a perenização desses momentos. A fotografia, sem dúvida, é
uma delas.

OS CAMINHOS DA FOTOGRAFIA

A história da fotografia mostra bem isso. Os caminhos que antecederam


aos aparatos atuais de registro de imagens são construídos de pequenas
descobertas, aparentemente insignificantes, que vão culminar, mais adiante,
em grandes achados.

No século IV a C. os gregos já conheciam o princípio da câmara escura, a


partir da observação de que os raios de luz solar, penetrando num recinto
fechado e escuro, através de um orifício, projetavam na parede oposta imagens
do exterior. No século XI, a câmara escura, que continha os princípios
elementares da câmara fotográfica moderna, foi usada pela primeira vez com
fins práticos, para a observação de um eclipse solar por astrônomo árabe. Na
Renascença, Leonardo da Vinci descreveu-a minuciosamente e seus
contemporâneos pintores e projetistas usaram-na largamente como importante
método auxiliar de construção da imagem. Datam desse período os primeiros
modelos portáteis projetados pelo italiano Gerônimo Cardano, diferentes das
primeiras câmaras escuras, imensos quartos, capazes de abrigar um homem
no seu interior.

É ainda outro italiano, Giambattista della Porta que descobre a


possibilidade de melhorar a qualidade da imagem projetada valendo-se de uma
lente encaixada no orifício de entrada do raio de luz. Dessa forma, nos meados
do século XVI a estrutura física rudimentar da máquina fotográfica atual já era
conhecida.

Dois séculos mais tarde, o médico alemão Johann Schulze descobre que
a luz incidindo sobre frascos contendo sais de prata é capaz de enegrecer as
substâncias nele contidas. São essas experiências, realizadas em 1727, que
dão as bases para Thomas Wedgewood, em 1790, tentar realizar a primeira
fotografia, através de um pedaço de papel impregnado de nitrato de prata.
Sobre o papel, Wedgewood colocou uma folha de árvore para em seguida
submetê-lo por algum tempo à luz. A região obstruída pela folha ficara marcada
por sua silhueta branca, contrastando com a área enegrecida pelo contato com
a luz.

Embora tal experiência não tenha sido totalmente exitosa, uma vez que
algum tempo depois, a área que não havia recebido a luz acabara ficando
enegrecida também, Wedgewood foi o primeiro a obter um negativo fotográfico
rudimentar.

Somente no século seguinte, em 1822, o francês Joseph Nicéphore


Niepce, trabalhando com método semelhante ao usado por Wedgewood, pôde
obter uma fotografia durável, após oito horas de exposição, de uma mesa no
jardim, disposta para uma espécie de ceia. Para obter essa foto, Niepce
substituiu o papel por uma placa de vidro com uma das faces revestida por
betume, depois de perceber que sempre obtinha o contrário do que via, ou
seja, o que era para ser branco, ficava preto e o que era para ser escuro ficava
claro. Niepce observou que na região em que o betume recebia mais luz a
substância ficava mais endurecida e que na área onde a luz não havia
incidido, a substância era facilmente removida por uma solução de óleo de
lavanda. Dessa forma, ele obteve a imagem em negativo. Para torná-la
positiva, Niepce aplicou iodo em toda a placa. Como o iodo só havia se fixado
na área não revestida pelo betume, a dissolução e remoção deste foi suficiente
para formar uma imagem positiva.

Coube a outro francês, Louis Jacques Mandé Daguerre melhorar o


sistema de seu conterrâneo através de um método mais rápido e duradouro,
valendo-se de uma placa de cobre banhada de prata e amarelecida por uma
solução de iodo. Ao receber a luz, através de uma câmara, a placa tinha a
imagem revelada depois de ser submetida a vapores de iodo e fixada após
lavagem em uma solução aquecida de água salgada.

Assim, em 1837, Daguerre tornou-se o descobridor do princípio da fixação


e responsável por imagens de melhor qualidade, através do método de
obtenção direta do positivo, conhecida pelo nome de "daguerreótipo".

Insatisfeito com o uso da placa banhada de prata, que encarecia


significativamente o processo, William Henry Fox Talbot, em 1841, subtituiu-a
pelo papel. Esse método exigia que o negativo fosse mais uma vez fotografado
para a obtenção do positivo, o que obrigou a se recorrer novamente ao vidro,
por possibilitar imagens mais nítidas, até o surgimento da película transparente
de celulóide, em 1869, ideal para negativos pela sua flexibilidade e resistência.

As primeiras câmaras surgiram num clima de muita euforia. A


possibilidade de registrar cenas do cotidiano com uma relativa facilidade não
encontrada no desenho e na pintura encantou o europeu e o americano. Havia
o inconveniente de o equipamento ser muito pesado para ser transportado.
Algumas câmaras chegavam a pesar até 50 quilos. Sem falar na mais pesada
delas, a célebre "Mamute", oriunda de Chicago, com 635 kg, quando carregada
de sua placa de vidro de 225 kg, exigindo nada menos de quinze homens para
operá-la. A peculiaridade dessa câmara é que foi construída para fotografar um
trem expresso de luxo. Outra curiosidade é que seu fole deslizava sobre trilhos
de estrada de ferro e na revelação de suas fotos eram consumidos 45 litros de
soluções químicas. A enorme foto com ela obtida, medindo 1,4X 2,4 m
mereceu o Grande Prêmio Mundial na Exposição de Paris, em 1900.

Em 1882, George Eastman, industrial americano, lança os primeiros


modelos portáteis. O filme já permitia múltiplas exposições, mas para ser
revelado o usuário tinha de enviá-lo, juntamente com o equipamento, para os
estúdios de Eastman, em Nova York. Mais tarde surgem as embalagens que
permitem ao fotógrafo substituir apenas o filme, em qualquer lugar, sem se
desfazer do equipamento, e sem os cuidados dispensados às películas
anteriores. O surgimento dos modelos portáteis da Kodak permitiu ao fotógrafo
amador ter acesso ao mundo "mágico"da fotografia.

Em 1887, J. Gaedicke e A Miethe inventaram o primeiro flash, dispositivo


que permitia produzir um relâmpago com intensidade luminosa suficiente para
dispensar a luz natural necessária, até então, à realização da fotografia. A luz
era obtida pela queima de pó de magnésio, acompanhada de uma explosão e
muita fumaça, o que a tornava inconveniente. Posteriormente esse método de
iluminação foi aperfeiçoado, sendo o pó acondicionado em ampolas de vidro, o
que impedia a combustão do produto escapar para o exterior. Esses
iluminadores artificiais, inicialmente rudimentares, evoluíram para os potentes
flashes eletrônicos modernos.

De lá até hoje muitos tipos de fotos surgiram como o calótipo, a partir de


negativos de papel, as fotos feitas em chapas úmidas de colódio, o ambrótipo,
o ferrótipo, a fotografia colorida, o slide e tantas outras modalidades. Aos
poucos foram surgindo outros tipos de câmaras mais leves e com dispositivos
de maior controle de entrada de luz no filme e também equipamentos de
tamanhos e formatos variados, além de finalidades específicas. Aperfeiçoaram-
se as lentes e objetivas, surgiram filtros para diversas finalidades.

Contemporaneamente a fotografia está presente na medicina, em suas


diversas modalidades, na biologia, na astronomia, na agronomia, nos vôos
espaciais, em inúmeros campos das ciências e áreas tecnológicas, nas artes,
na propaganda e na área da comunicação de um modo geral, incluindo-se aí a
área editorial, sendo que, nessas últimas, com enorme possibilidade de
interferência ou manipulação.

Com o surgimento da microeletrônica e dos chips, novas possibilidades se


configuram. Aos poucos a câmara digital vem conquistando espaços. Ainda
que em menor frequência, também a fotografia holográfica vem sendo
explorada.

A FOTOGRAFIA ENQUANTO LINGUAGEM

O que vamos tratar aqui é,sobretudo, do aspecto da fotografia enquanto


meio de manifestação e enquanto linguagem, entendida como capacidade de
expressão dos seres humanos.

Fala-se, com frequência, da função referencial da fotografia, da sua


capacidade de remissão a um referente real ou a um objeto referente. Nesse
caso, a fotografia figurativa veicula uma mensagem denotativa. Por
assemelhar-se ao objeto, diz-se que ela é de natureza analógica e a sua
mensagem é icônica, portanto, diferente da mensagem lingüística, via de regra
não-analógica, arbitrária, convencional, simbólica.

Embora conciliáveis, a mensagem icônica é completamente distinta da


mensagem linguística. É comum vir à baila a discussão de natureza hierárquica
de uma em relação à outra. Vanoye [1] (1993, p.190), cita a inflamada defesa
de Alexandre Astruct, cineasta francês em favor da imagem obtida pelo recurso
mecânico da máquina fotográfica, com poder de objetividade, que a palavra
não possui, no seu entender: "A câmara não mente (...) O cinema exige,
afirma, postula, demonstra antes de tudo o respeito pela aparência real(...); a
linguagem humana, as palavras (são) o lugar privilegiado do erro e da mentira".

Atribuir à fotografia apenas a função denotativa é algo por demais


temeroso.

Sabe-se que, por trás da câmara, via de regra, está um observador que
decide o que enquadrar, o que merece ter ou não destaque e que por vezes
tem objetivos a alcançar, valendo-se, portanto, do uso do código icônico
ou imagético com uma intenção. Pode-se afirmar que as decisões tomadas no
ato de enquadrar pessoas ou objetos são provenientes de valores culturais e
visão de mundo de quem fotografa. A posição da câmara em relação ao
fotografado, o enquadramento, a composição, a perspectiva, a iluminação, a
cor, certamente são decisões tomadas pelo fotógrafo nos momentos anteriores
ao disparo do obturador, portanto na fase de preparação que o antecede, da
mesma forma que a fase da montagem, qualquer que seja o meio utilizado,
envolve decisões que precisam, também, ser tomadas em relação a outras
fotos ou mesmo a outros elementos
textuais da mensagem linguística.

A posição da câmara (plongée


contre-plongée) em relação ao
objeto pode torná-lo
monumentalizado ou diminuído,
criando com isso sentidos especiais
na mensagem icônica. Assim, a foto
obtida a partir do olho posicionado
acima ou abaixo do fotografado
pode criar significados hierárquicos
de superioridade/inferioridade,
dominador/dominado. As
experiências vividas historicamente
pelos sujeitos são capazes de
registrar na memória essas
posições, fazendo evocar tais
sentimentos a partir do estímulo do
significante fotográfico. Do mesmo
modo, a ênfase a um objeto ou
pessoa pode ser dada a partir da
escolha de uma posição
visualmente privilegiada ou de uma
dimensão ampliada desse objeto ou dessa pessoa em relação ao conjunto
compositivo.

Tudo isso pode destituir a imagem fotográfica de significados puramente


denotativos, deixando-a cada vez mais distante da verdade objetiva. É na
publicidade que a mensagem conotativa fica mais evidenciada, através da
manipulação explícita e das trucagens utilizadas na construção do discurso
persuasivo. Mas não apenas nela. Diariamente os meios de comunicação
também se valem dos recursos da manipulação da imagem, hoje
potencializados pela ferramenta digital, para atrair e plasmar a sedução. Nesse
caso, a imagem é confundida com o próprio objeto, o significante passa a gozar
do status e de prerrogativas do referente e as câmaras são compreendidas
como máquinas de reproduzir o real.

A manipulação da imagem vem sendo objeto de interesse e pesquisa pelo


poder ilusionista da fotografia, não só pelo universo da publicidade e
propaganda, mas também pelo mundo acadêmico e por empresas, em especial
aquelas com atividades voltadas para a difusão da informação ou ditas de
comunicação e formadoras de opinião.

Em 1986, o lançamento simultaneamente de um livro e de uma exposição


intitulada As fotos que falsificam a história, em Paris, sob a responsabilidade
do jornalista, escritor e cineasta Alain Jaubert, e autor de outros trabalhos
sobre o tema da fotografia, mostraram documentos históricos fotográficos que
sofreram intervenções a mando de governos ditatoriais, ou foram dramatizadas
por iniciativa do próprio fotógrafo, no sentido de monumentalizar determinados
acontecimentos ou de fazer desaparecer personas non gratas aos regimes por
eles sustentados, portanto, imagens que procuraram falsificar a história,
forjando o simulacro.

São essas pequenas e aparentemente inocentes mentiras que muitas


vezes, aliadas a outras em diversas esferas, dão sustentação a regimes
espúrios com fachadas de democracia, ontem e hoje, aqui e alhures.

Daí a importância de se conhecer os fundamentos da construção do


discurso imagético fotográfico, assim como de outras formas de discurso, na
perspectiva de formar indivíduos críticos, vigilantes, interlocutores,
propositores, participativos, capazes de distinguir a mensagem voltada para a
dignificação e emancipação humana das produções obscuras, ainda que
sedutoras, tal qual o canto das sereias, voltadas unicamente para o propósito
de dar manutenção e legitimação dos privilégios de poucos em detrimento da
grande maioria.

As imagens estão presentes nos milhares de mensagens que chegam à


população anualmente através das mídias contemporâneas, e já na década de
80, pesquisas apontavam que 300.000 das mensagens veiculadas na televisão
chegavam ao jovem ao completar 15 anos, cujo tempo de exposição a ela era
o dobro do tempo empregado em sala de aula.

Uma das consequências dos valores difundidos por essas mídias,


principalmente a TV, segundo Soares[2] (1982, p.10), é "a confirmação da
‘justeza’ do modelo atual da sociedade (os pobres são mais pobres porque são
incapazes, mas todos têm iguais ‘oportunidades’, devem, pois, pagar pela sua
incompetência)".

Moholy-Nagy, professor da Bauhaus já dizia, em 1935, que "os iletrados


do futuro vão ignorar tanto o uso da caneta quanto o da câmara". Podemos
acrescentar à fala do ilustre mestre que ignorância e cidadania caminham em
sentidos opostos.

A constatação de que fotografar não é um ato neutro traz a certeza de que


a apropriação da técnica e dos elementos da linguagem fotográfica é uma
necessidade e um desafio para artistas, educadores e professores que se
empenham em construir uma sociedade democrática, com a participação de
cidadãos conscientes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1]Vanoye. Usos das linguagens: problemas e técnicas na produção oral e escrita. São Paulo: Martins
Fontes, 1993.

[2]Soares, Ismar de Oliveira. Escola, Comunicação e Sociedade. In Revista da Educação AEC,


Brasília, Ano 11, nº 44, 1982.
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(*) Fonte: http://www.studium.iar.unicamp.br/23/03.html

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