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A grande política e sua relação com os fragmentos inéditos kriegserklärung de Nietzsche

A GRANDE POLÍTICA E SUA RELAÇÃO COM OS


FRAGMENTOS INÉDITOS KRIEGSERKLÄRUNG
DE NIETZSCHE
The great politics and its relaçãocom unknown fragmentos
kriegserklärung of Nietzsche

Jorge Luiz Viesenteiner*

Resumo
Resultado de estudos stricto sensu, o objetivo central desse texto é apresentar algumas reflexões sobre um
tema capital do último período de produção filosófica de Nietzsche: a Grande Política. Acrescente-se ainda
a íntima relação que o tema possui com alguns pares de fragmentos póstumos, que por seu turno,
constituiriam parte integrante de um escrito jamais publicado por Nietzsche denominado Kriegserklärung,
vale dizer, “Declaração de Guerra”.
Palavras-chave: Grande política, Kriegserklärung, Política, Pequena política, Guerra.

Abstract
The central objective of this text – resulted by strictu sensu’s studies– is to show some analysis about a nuclear
theme from the last period of Nietzsche’s philosophical production: Grand Politics. Add the close relationship
that this theme has with some Nietzsche’s Nachlass, these lasts composing part of a inedited write no-
published by Nietzsche called Kriegserklärung, that is, “statement of war”.
Keywords: Grand politics, Kriegserklärung, Politics, Short politics, War.

* Professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.


Rua Imaculada Conceição, 1155, Prado Velho, Curitiba – Pr, CEP 80215-901.
E-mail:jvies@uol.com.br

Revista de Filosofia, Curitiba, v.15 n.16, p. 65-72, jan./jun. 2003. 65


Jorge Luiz Viesenteiner

A partir do minucioso trabalho histórico- Ecce Homo, os organizadores da edição crítica de Ni-
filológico iniciado pelos italianos Giorgio Colli e etzsche (1971), fornecem uma sugestiva referência:
Mazzino Montinari (1972), no final dos anos 60 e “Quanto ao surgimento desses capítulos, especialmente
que, além disso, acabou por imprimir um rumo os últimos capítulos deesta obra, [Por que sou um
completamente diferente às pesquisas referentes a destino – JLV], vale conferir as observações introdutó-
Nietzsche no mundo inteiro, pôde-se ter acesso a rias acima. Os fragmentos sobre a grande política en-
inúmeros escritos de fragmentos póstumos de re- contram-se numa estreita afinidade com este
levância do filósofo alemão. capítulo”.(NIETZSCHE, 1971, p. 509).
Não apenas isso, mas, sobretudo, com o Com relação ao registro do conceito de
acesso às edições integrais das obras enviadas a grande política no contexto do colapso mental
impressão por Nietzsche foi possível um conheci- sofrido por Nietzsche – deve-se dizer que já em
mento de diversas passagens dos textos que, como dezembro de 1888 Nietzsche sofre um grave co-
já se é sabido, foram literalmente censuradas pe- lapso que o mergulha no delírio e em janeiro de
los editores do Nietzsche-Archiv. A edição crítica 1889 é internado numa clínica da Basiléia –, Gior-
dos escritos de Nietzsche, enfim, possibilitou uma gio Colli escreve no posfácio aos volumes 12 e 13
compreensão muito mais ampla não apenas de as seguintes palavras: “Contudo, o que admira re-
temas já conhecidos de obras publicadas, bem almente é que há apenas um diminuto número de
como uma coerente interpretação desses mesmos textos realmente patológicos. Trata-se apenas de
temas, mas também, uma compreensão de con- uns poucos registros da ‘grande política’, nos quais
ceitos que vieram aparecer de forma relevante e é declarada uma radical ‘guerra de morte’. Em ou-
especial nos fragmentos póstumos. tras palavras, quase ao mesmo tempo em que Ni-
O conceito de Grande Política – cujo re- etzsche mergulha no delírio [Verstand verliert], ele
gistro por Nietzsche foi feito pela primeira vez em interrompe também sua produção
Aurora,1 mas trabalhado de forma especial apenas literária”.(NIETZSCHE, 1980, p. 668).
nos fragmentos póstumos do último período de De fato, é praticamente impossível elen-
produção literária do filósofo – está inserido no car quais seriam os “textos realmente patológicos”
conjunto destes conceitos que puderam ser inter- da grande política. Mesmo assim, deve-se frisar
pretados graças à publicação das obras críticas de que o texto detalhado da grande política foi escri-
Nietzsche. (NIETZSCHE, 1998, p. 208; 241;254; to precisamente no contexto do colapso mental,
1980, p. 639; 1973; 1971). isto é, nos fragmentos de dezembro 1888-janeiro
A questão a se mencionar a propósito de 1889.
obras publicadas é que o conceito não é ampla- Em todo caso, distante de uma política
mente elaborado por Nietzsche, mas apenas cita- do poder, controle e dominação, a Grande Política
do esparsamente. Mesmo nos fragmentos que per- é supranacional. É a partir dela precisamente que
maneceram inéditos, um dos registros em que o Nietzsche realiza uma radical declaração de guer-
conceito é elaborado com detalhes aparece num ra. Aos termos “grande” e “política”, Nietzsche
fragmento que data de Dezembro de 1888 e início (2002, 208) executa uma espécie de estridente con-
de janeiro de 1889, registrado sob o título “Die tra-discurso em oposição ao que ele denominou
Grosse Politik”.(NIETZSCHE, 1980, p. 637, tradu- de “tempo da pequena política”, ao contexto de
ção do autor). Nesse sentido, como já se pode nivelamento, homogeneização e apequenamento
perceber, a dificuldade de se levantar quaisquer do homem. Assim, é “Grande” Política precisamente
hipóteses de interpretação acerca do conceito gran- em virtude dos objetivos que tem em vista e o
de política, deve-se ao fato de que a noção encon- termo Grösse deve vir associado rigorosamente à
tra-se amplamente espalhada pelo conjunto dos grandeza cultural: “aqui é apresentado textual-
escritos de Nietzsche, notadamente na produção mente o sentido de grandeza [...], oposta aos par-
dos últimos anos antes do colapso mental, com ticularismos e aos interesses dinásticos, grandeza
especial atenção aos anos entre 1887 e 1889, mas como supra-nacional”. Segundo Ottmann (1999,
com uma intensidade maior no final de 1888 e p. 240;242) “Nietzsche entende grandeza de tal
início de 1889. modo como ele compreendeu com Buckhardt des-
A propósito deste último período, especial- de os tempos do nascimento do Reich alemão,
mente o período de confecção do último capítulo de como grandeza de cultura, não de Império”. O

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que deve resplandecer na Grande Política não é a Diante disso e como grandeza cultural, o
nação, mas o homem mesmo colocado em Gegen- tema da grande política suscita uma questão nu-
satz ao monstruoso processo de mediocrização e clear no pensamento de Nietzsche (1980, p. 640),
rebaixamento produzido pela pequena questão essa posta pelo próprio filósofo: “aproxi-
política.(NIETZSCHE, 2002, p. 242). ma-se de forma imperiosa, hesitante, fecunda como
Nietzsche (1980, p. 637) tem um cenário o destino, a grande tarefa e questão: como se de-
eminentemente político quando reivindica pela veria governar a terra como um todo? E para que
grande política. Ottmann (1999, p. 241), observa o ‘homem’ como um todo – e não mais um povo,
que trata-se de uma declaração de guerra que bro- uma raça – deveria ser cultivado?”. Assim Nietzs-
ta do solo dos mesquinhos nacionalismos emer- che (1980, p. 533) observa que é que a grande
gentes, à fragmentação da unidade política em que política conjuga em seu interior duas questões
de acordo com Colli e Montinari (Orgs.) (1980, p. paradigmáticas: coloca-se, por um lado, como “go-
377) “cada povo da Europa de hoje se fecha e se verno da terra” e, por outro, toma nas mãos a su-
tranca, como se estivessem todos de quarentena”, prema tarefa de cultivo do homem, ou antes, a
enfim, contra as hostilidades de interesses das di- preparação das condições para o advento dos “eu-
nastias européias: ropeus superiores, precursores da grande políti-
ca”. (NIETZSCHE, 1980, p. 532).
Para mim é repugnante o que se procede por A compreensão da compulsão à grande
ora [...]. Não conheço nada que cause mais política, ao domínio da terra passa pela reivindica-
profunda contrariedade no sentido sublime ção por uma certa unidade cultural, uma ampla
da minha tarefa – que hoje faz reivindicação formação de domínio capaz de superar a desagre-
pelo <nome> “grande política” – do que este gação político-moral da modernidade. Para Niet-
detestável incitamento egoísta entre povos e
zsche (1908, p. 462) um governo da terra, uma
raças. Não tenho palavra para exprimir meu
desprezo diante do nivelamento <espiritual>,
administração global da terra que encerra em si
que se acredita hoje guiar a história da huma- uma radical dureza de disciplinação e cultivo, que
nidade na forma dos ministros do reino ale- “torna a fisiologia senhora sobre todas as outras
mão e com a oficial-atitude prussiana da casa questões” e, sobretudo, “cria um poder forte o
dos Hohenzollern, essa espécie diminuta de suficiente para cultivar a humanidade como um
homem. (NIETZSCHE,1980, p. 640).2 todo e mais elevada, com a mais impiedosa dure-
za contra a degeneração e parasitismo na vida”
O fenômeno dos nacionalismos emergen- (NIETZSCHE, 1980, p. 638), superando, assim, a
tes fornece significado pleno para o entendimento patologia dos nacionalismos.
da fórmula nietzscheana registrada em Além do Conjugado a um governo da terra está
bem e do mal e que reza o seguinte: “o tempo da aquela outra tarefa mencionada por Nietzsche: a
pequena política chegou ao fim: já o próximo sé- preparação das condições que possibilitam o ad-
culo traz a luta pelo domínio da Terra – a compul- vento de “novos filósofos”, os arautos da transva-
são à grande política”. (NIETZSCHE, 2002, p. 208). loração dos valores e futuros legisladores:
A bem da verdade, a grande política é
antidemocrática e antimoderna até a raiz! É decla- Nós, que somos de outra fé – nós, que consi-
ração de guerra no rigoroso sentido de ser contra- deramos o movimento democrático não ape-
figura, contra-discurso, contra-movimento aos prin- nas uma forma de decadência das organiza-
cipais fenômenos sócio-políticos, bem como aos ções políticas, mas uma forma de decadência
programas de melhoramento do tipo homem efe- ou diminuição do homem, sua mediocriza-
ção e rebaixamento de valor: para onde apon-
tivados na modernidade. E como tal, tem o pro-
taremos nós as nossas esperanças? – Para no-
blema do cultivo do homem como questão decisi- vos filósofos, não há escolha; para espíritos
va para suas tarefas. Trata-se, enfim, de ser uma fortes e originais o bastante para estimular
Gegensatzerin ao imenso desenvolvimento de um valorizações opostas e transvalorar e trans-
processo decadencial colocado em marcha pela tornar “valores eternos”, para precursores e
pequena política que tem o “último homem” como arautos, para homens do futuro que atem no
seu produto, ele mesmo se percebendo como fim presente o nó, a coação que impõe caminhos
da história. novos à vontade de milênios. Ensinar ao ho-

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mem o futuro do homem como sua vontade, teor eminentemente político em que Nietzsche di-
dependente de uma vontade humana, e pre- reciona uma crítica radical aos Hohenzollern e “seu
parar grandes empresas e tentativas globais instrumento, o príncipe Bismarck, o estúpido par
de disciplinação e cultivo, para desse modo excellence entre todos os homens de
pôr fim a esse pavoroso domínio do acaso e estado”.(NIETZSCHE, 1980, p. 643; 668). O con-
do absurdo que até o momento se chamou
texto de produção destes fragmentos coincide com
“história” – o absurdo do “maior número” é
apenas sua última forma; [...] uma transvalo-
a crescente onda de “nacionalismo e de ódio raci-
ração dos valores, sob cuja nova pressão e al” que delineia o cenário histórico do contexto
novo martelo uma consciência se tornaria político de Nietzsche, e a conseqüente fragmenta-
brônzea, um coração se faria de aço, de modo ção das dinastias européias. O fato de extrema re-
a suportar o peso de uma tal responsabilida- levância, a propósito de Kriegserklärung, é que os
de. (NIETZSCHE, 2002, p. 203; 462)3 fragmentos sobre a grande política deste período
[dez.1888-jan.1889 – JLV], seriam precisamente pre-
Os arautos – os novos filósofos –, res- parações para o escrito Kriegserklärung (NIETZS-
ponsáveis por essa tão grandiosa tarefa, são desig- CHE, 1980, p. 773). Em suma: os fragmentos do
nados por Nietzsche (1980, p. 511) observa que período supracitado são os que expressam de
ao longo de seus escritos sob o signo de “bons maneira mais direta e contundente o teor da gran-
europeus”, conforme Nietzsche ( 2002, p. 282) isto de política que, por sua vez, é considerada como
é, os filósofos legisladores, aqueles que serão ca- preparação para Kriegserklärung.
pazes – porque podem – de estar em profunda Uma das questões centrais que foi levan-
contradição e dissonância com seu próprio tem- tada inicialmente sobre este manuscrito é que ele
po, tementes em sentar-se à mesa e “partilhar o faria parte de um outro importante texto, vale di-
mesmo prato” que seus contemporâneos se ser- zer, “Lei contra o cristianismo”, este último real-
vem. mente parte integrante do apêndice à obra canô-
Nietzsche retoma essas reflexões novamen- nica de Nietzsche: O Anticristo. Desta forma, Krie-
te – com variantes – nos fragmentos dos últimos gserklärung seria parte integrante também daque-
meses de 1888, certamente o período de maior pro- la obra. Um dos especialistas que defende esta tese
dução filosófica do autor. Nesse contexto ele estava é Champromis.(NIETZSCHE, 1980, p. 453).
preparando alguns escritos que iriam expressar cla- As pesquisas histórico-filológicas de Colli
ramente sua declaração de guerra: trata-se dos iné- e Montinari (Eds.), no entanto, acabaram por mos-
ditos Kriegserklärung. Assim, pois, os fragmentos trar, ao contrário, que Kriegserklärung não possui
escritos especialmente entre o período de dezem- qualquer relação com Gesetz wider das Christen-
bro de 1888 e início de janeiro de 1889, publicados thum. O registro dos editores a propósito desta
no volume 13 da obra Kritische Studienausgabe questão reza: “O certo é que Lei contra o cristia-
(1980), são precisamente os póstumos inéditos de nismo não é, de modo algum, idêntico a “Krieg-
Kriegserklärung, com atenção relevante para 25[1], serklärung” e que o primeiro constitui parte inte-
25[6], 25[11], 25[13] e 25[14]. Ressalte-se que não se grante do manuscrito impresso d “O Anticris-
trata de um livro que Nietzsche teria intenção de to”(1980 p. 452).
publicar, mas apenas um excurso com alguns pares Ora, se Kriegserklärung não é parte da
de fragmentos que seriam publicados, conforme se Gesetz e, portanto, d’O Anticristo, a questão cen-
verá adiante, na conclusão de Ecce Homo. Estes tex- tral é saber a que textos o manuscrito está relacio-
tos possuem, por isso mesmo, uma relação absolu- nado. A bem da verdade, Kriegserklärung foi es-
tamente estreita com o último capítulo de Ecce boçado no decorrer da produção de Ecce Homo e
Homo, “Por que sou um destino”, cujo vínculo foi reunido a partir de alguns pares de fragmentos
assinalado pelos próprios editores Colli e Montina- póstumos do período compreendido entre dez.1888
ri: “os fragmentos sobre a grande política possuem e jan.1889. Estes fragmentos são precisamente os
uma estreita afinidade com este, conforme Nietzs- já mencionados 13, 25[1. 6. 11. 13. 14]. Uma das
che (1980, p. 509). maneiras para se saber desta relação com Ecce
Ora, mas o que é Kriegserklärung e qual Homo foi pelas páginas que Nietzsche havia nu-
sua relação com a grande política? merado neste texto. Conforme registram os comen-
Trata-se de alguns textos aforismáticos de tadores, “a última página mantida no manuscrito

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A grande política e sua relação com os fragmentos inéditos kriegserklärung de Nietzsche

para impressão de Ecce Homo foi numerada pelo em duas partes. A parte 1 corresponde (com
próprio Nietzsche com o número 44” (NIETZSCHE, variantes) à primeira parte do capítulo “Por
1980, p. 453). Os próprios editores indicam, pois, que sou um destino” em sua versão final; a
que “as páginas faltantes de 45 a 47 deveriam con- parte 2, ao contrário, não encontra nenhuma
ter o manuscrito Kriegserklärung suprimido”. (NI- correspondência ao capítulo citado e nem ao
restante de Ecce Homo. Às palavras “diese
ETZSCHE, 1980, p. 453).
gepurpurten Idioten” [...], encontra-se a se-
De fato, Kriegserklärung deveria ser pu- guinte observação de Elisabeth Förster-Niet-
blicado como parte do último capítulo de Ecce zsche: “uma expressão que se encontrava na
Homo. E realmente estava sendo até a última alte- folha e que nossa mãe queimou em virtude
ração feita por Nietzsche neste livro: “A última al- de ser um insulto à majestade”. Esta folha
teração de 29 de dezembro de 1888 – 2 de janeiro queimada pertencia, portanto a Ecce Homo e
de 1889 no final de Ecce Homo produziu a conclu- foi designada por Nietzsche em seu índice,
são deste escrito assim como estava no primeiro enviando “Kriegserklärung” para Leipzig, que
manuscrito para ser impresso (meados de novem- se dirigia contra a casa dos Hohenzollern e
bro). Esta alteração – em 29 de dezembro – dizia “seu instrumento, o príncipe Bismarck”. (NI-
respeito a não manter mais o texto Kriegserklärung ETZSCHE, 1980, p. 451)
[...].Kriegserklärung pertencia a Ecce Homo desde
a revisão do início de dezembro”.(NIETZSCHE, A expressão “diese gepurpurten Idioten”
1980, p. 469). Acrescente-se, além disso, que Ni- utilizada por Nietzsche (1980, p. 641)4 é dirigida,
etzsche (1980, p. 469) vinha se ocupando com mais como se vê, à nata política da Alemanha daquele
intensidade do tema da grande política até 29 de contexto, e traz em seu bojo, como se verá logo
dezembro de 1888. No período de elaboração de adiante, uma crítica radical às práticas nacionalis-
sua proclamação à grande política Nietzsche ain- tas e de apequenamento do homem. É natural,
da se debruça uma última vez sobre Krieg- portanto, que houvesse estas mutilações nos tex-
serklärung. A intenção era registrar uma “última tos por parte dos familiares e editores, provavel-
consideração” sobre o cenário político de seu tem- mente para preservá-los de um possível constran-
po, cujas anotações estão, de fato, assinaladas nos gimento surgido destes escritos de Nietzsche.
fragmentos 25 [13 e 14] deste período. Apenas por De qualquer maneira, o fato é que as la-
curiosidade, nesta mesma época, conforme regis- mentáveis guerras e hostilidades entre povo e povo
tram os editores, alguns esboços de cartas já “con- não são aquelas guerras reivindicadas pela grande
têm traços visíveis de delírios evasivos”.(1980, p. política. No volume de comentários, especialmen-
469). te a nota pertencente ao fragmento 25[1] do mes-
Nesta última alteração, Nietzsche supri- mo período, os editores trazem o registro que con-
me o Kriegserklärung de Ecce Homo e não deixa firma a relação de Kriegserklärung com a grande
ir a público estes fragmentos. O interessante a se política: “25[1] provavelmente preparação para
registrar também é que estes textos foram, posteri- Kriegserklärung. Citadas na página 451.”.(NIET-
ormente, mutilados em virtude de algumas passa- ZSCHE, 1980, p. 773). Neste sentido, a reivindica-
gens que supostamente poderiam trazer um certo ção por Nietzsche pela grande política surge, por-
constrangimento aos seus familiares. Em alguns tanto, em meio a uma política de fragmentação
casos Kriegserklärung teve passagens até mesmo nacionalista, de um nivelamento do espírito, de
queimadas. O comentário a seguir é dos editores: uma homogeneização, apequenamento e medio-
crização do tipo homem.
Sob os fragmentos de dezembro de 1888, A grande política traz sim a guerra. É, além
publicados no texto do tomo 13, [...] que Ni- disso, uma cáustica e radical declaração de guerra
etzsche reuniu no decorrer de seu trabalho à tradição político-moral do Ocidente. Porém, não
em Ecce Homo – há muitos fragmentos que se trata de uma guerra entre povos ou de uma
são registrados por “Kriegserklärung”: 25[1], política hostil de raças. Muito próximo dessa no-
25[6], 25[11], 25[13.14]. Eles nos fornecem uma ção está o fragmento 25[1], que por seu turno, é
razoável apresentação do índice de “Krieg- aquele provável fragmento da preparação de Kri-
serklärung”. Dentre eles, presta-se nossa es- egserklärung. O título deste fragmento é precisa-
pecial atenção ao 25[6]. O fragmento consiste mente “A Grande Política”:

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Jorge Luiz Viesenteiner

Eu trago a guerra. Não entre povo e povo; espíritos, a grande política encerra uma busca in-
não tenho palavra para exprimir meu despre- cessante por resistências, visto que “todo crescimento
zo pelos detestáveis interesses políticos das se denuncia na busca de um adversário – ou de um
dinastias européias, que fazem do incitamen- problema – mais potente”.6
to egoísta e presunçoso dos povos contra si Deve-se possuir, pois, um certo “prazer de
um princípio e quase um dever. Não entre
aniquilar em um grau correspondente a minha for-
classes. Pois não temos nenhuma classe su-
perior, portanto também <nenhuma> inferi-
ça para aniquilar [...]. Eu sou o primeiro imoralista:
or. [...] Eu trago a guerra entre todos os absur- por isso sou o aniquilador par
dos acasos de povo, estado, raça, profissão, excellence”.(NIETZSCHE, 1971). Mais uma vez, este
educação, formação: uma guerra como entre aniquilamento não se confunde com o extermínio,
ascensão e declínio, entre vontade de vida e mesmo porque “negar e aniquilar são condições
desejo de vingança contra a vida, entre ho- para dizer sim”.(NIETZSCHE, 1971, p. 111). Nos
nestidade e mentiras matreiras... [...] Primeira fragmentos do último período de produção literária
proposição: a grande política quer tornar a do filósofo, Nietzsche fornece mais uma indicação
fisiologia senhora sobre todas as outras ques- desta positividade na negação: “propriamente o cris-
tões; ela quer criar um poder, forte o sufici- tianismo se torna necessário: a forma mais elevada,
ente, para cultivar a humanidade como um mais perigosa, mais sedutora do não à vida provo-
todo e mais elevada [...]. Segunda proposição:
ca apenas sua mais elevada afirmação”. (NIETZS-
guerra de morte contra o vício; viciosa é toda
forma de contra-natureza. [...] Segunda pro-
CHE, 1980, p. 64).
posição: criar um partido da vida, forte o sufi- Trazer a guerra, como o quer a grande
ciente, para a grande política: a grande polí- política, é introduzir um intenso conflito no interior
tica torna a fisiologia senhora sobre todas as do homem, uma vez que “o segredo para colher da
outras questões, – ela quer cultivar a huma- vida a maior fecundidade e a maior fruição é: viver
nidade como um todo, ela mede o nível de perigosamente” [...] Vivam em guerra com seus pa-
raças, de povos, de indivíduos segundo seu res e consigo mesmos”, (NIETZSCHE, 1980, p. 283;
futuro- [—], segundo sua garantia de vida que 377). Nietzsche ( 1973) observa que a espiritualida-
carrega em si [...]. Terceira proposição: o res- de da guerra está precisamente em não renunciar à
tante segue daqui. (NIETZSCHE, 1980, p. 637; guerra, pois se estaria, desta forma, renunciando-se
643)5 à própria vida, em não renunciar à própria guerra
que o homem já é. (NIETZSCHE, 2002, p. 200).
A grande política, enquanto estridente con- Kriegserklärung é, pois, um dos manus-
tra-discurso em relação à pequena política, traz a critos mais centrais visto que se coloca, ele mes-
guerra. Mas não aquela que confunde combate com mo, em oposição ao próprio cenário político do
extermínio. O próprio Nietzsche diz saber fazer um contexto de fins do século XIX. É uma declaração
uso melhor de 12 bilhões que se gastam, na sua de guerra contra as políticas de autocentramento e
época, na “paz armada”.(NIETZSCHE, 1980, p. 646). homogeneização do tipo homem, contra quaisquer
É possível trazer a fisiologia, segundo Nietzsche, mecanismos que retiram a espiritualidade do con-
por outros meios: “Nós outros caminhamos inces- flito e a tensão interna no homem. O interessante
santemente a um grandioso e elevado trabalho de é que o próprio Nietzsche já se coloca igualmente
vida – temos ainda tudo para organizar. Há ainda em Gegensatz em relação ao seu contexto, i.é., ele
meios reais de trazer à terra a fisiologia, do que mesmo se insere radicalmente colocando-se de
através dos hospitais militares”.(NIETZSCHE, 1980, maneira a exprimir seu contra-discurso: “Eu não
p. 644). seria possível sem uma forma contrária de raça,
Trata-se, a bem da verdade, de uma “guer- sem alemães, sem estes alemães, sem Bismarck,
ra de espíritos”, de uma profunda colisão de cons- sem 1848, sem ‘guerras de liberdade’, sem Kant,
ciências, em que “todas as formações de poder da sem o próprio Lutero...”.(NIETZSCHE, 1980, p. 641).
velha sociedade saltam pelos ares – todas elas se Às palavras: “só se é fecundo ao preço de ser rico
fundam na mentira: haverá guerras como jamais em antíteses”, a grande política, consistindo em
houve na Terra. Somente a partir de mim existe na preparação para Kriegserklärung, já efetiva de for-
Terra a grande política”, “por que eu sou o ma colidente a intransigente negação à moderni-
destino”.(NIETZSCHE, 1971, p. 2). Como guerra de dade política e ao próprio contexto de final de

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século XIX. (NIETZSCHE, 1973, cap. 3). Onde se lê: “Eu designo isso mesmo como extração de um exces-
so de luxo da humanidade: nela deveria ser impulsionada à luz
Esta guerra de espíritos reivindicada pela uma forma mais forte, um tipo superior, que tem suas condições
grande política configura, de acordo com o tipo de surgimento e conservação diferentes daquela do tipo de ho-
de homem produzido em seu contexto, precisa- mem mediano. Meu conceito, minha metáfora para esse tipo é,
mente a espiritualidade mesma destes homens: “Os como se sabe, a palavra ‘além-do-homem’”.

homens mais espirituais, por serem os mais fortes, 4


Optou-se aqui por deixar a expressão no original por correspon-
encontram sua felicidade onde outros encontrari- der, possivelmente, a uma expressão popular da época. Literal-
mente ela significa: “estes púrpuros idiotas”.
am sua ruína: no labirinto, na dureza consigo mes-
5
mos e com outros, no experimento; seu prazer é a Onde Nietzsche assinala a guerra de morte dirigida contra os
Hohenzollern e o príncipe Bismarck.
auto-superação”.(NIETZSCHE, 1999, p. 3-4; 57). O
estabelecimento de um campo minado a partir da 6
Por que sou tão sábio. No prosseguimento deste aforismo há
grande política, sem dúvida, é o solo mais vantajo- uma explicação do que Nietzsche chama de “práxis bélica”, que
por seu turno, resulta em quatro princípios: primeiro: “eu só ata-
so para o cultivo desta espiritualidade. co coisas que triunfam”; segundo: “eu só ataco coisas quando
Ao passo que trazer a guerra não é trazer não vou encontrar aliados”; terceiro: “eu jamais ataco pessoas”;
uma guerra entre povo e povo, mas estabelecer quarto: “eu só ataco coisas quando está excluída qualquer dispu-
ta pessoal, quando está ausente todo fundo de experiências pe-
uma guerra de espíritos, a grande política se mos- nosas. Ao contrário, em mim atacar representa uma prova de
tra, paradigmaticamente, como a herdeira supre- benevolência e, em ocasiões, de gratidão”.
ma da tradição político-moral do Ocidente preci-
samente por estabelecer um contexto de radical
conflito e multiplicidade antagônica. Nas mãos de Referências
Nietzsche, então, é propriamente o desferimento
do golpe final, ou também, o estabelecimento de ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche contra
novas possibilidades para o homem, de novos para Rousseau. Cambridge: Cambridge University
quê. E, se por um lado, as palavras de Nietzsche Press, 1996.
(1980, p. 646) podem ser alegóricas e irônicas:
“numa palavra, e até mesmo muito boa: depois BAIER, Horst. Die Gesellschaft: Ein langer Schat-
que se aboliu o antigo Deus estou pronto para ten des Toten Gottes. Nietzsche-Studien, Berlin,
governar o mundo...”; por outro lado, e para além v. 10/11, p. 366-407, 1981/1982.
das alegorias e ironias típicas dos escritos de Niet- MAURER, Reinhart. Der andere Nietzsche. Gere-
zsche, trata-se sem dúvida de uma reivindicação e chtigkeit kontra moralische Utopie. Aletheia, Ber-
denúncia. Reivindicação entendida como interes- lin, v. 5, p. 9-20. 1994.
se em superar seu tempo e o próprio homem da-
quele contexto. E denúncia entendida, seja profe- NIETZSCHE, Friedrich W. Kritische Studienaus-
ticamente ou direta e contundentemente, como um gabe. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. (Eds.).
alerta para o espetáculo que se iria abrir na Terra Berlin: Walter de Gruyter, 1980.
pelos próximos dois séculos. _____. Além do bem e do mal. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia
Notas das Letras, 1998.
1
O termo grande política ainda aparece em Além do bem e do _____. Genealogia da moral. Tradução de Pau-
mal. Em Crepúsculo de los ídolosI, moral como contra-natureza, lo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das
e , por que sou um destino. Num fragmento de Dezembro de Letras, 1998.
1888 e início de janeiro de 1889, portanto do mesmo período da
produção de Ecce Homo, cujo fragmento pode ser considerado _____. Crepúsculo de los ídolos. Tradução de
como o esboço para o texto publicado, curiosamente Nietzsche
não registra a última frase que é precisamente a menção do con- Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza, 1973.
ceito, qual seja, “somente a partir de mim existe na terra a grande
política”. O fragmento está em: Kritische Studienausgabe. As obras _____. Ecce Homo. Tradução de Andrés Sán-
de Nietzsche estão abreviadas segundo a terminologia registrada chez Pascual. Madrid. Alianza, 1971.
na bibliografia, após o título de cada livro.
2
_____. El anticristo: maldición sobre el cristia-
No volume de comentários, há o seguinte registro a propósito
deste fragmento: “Versão do capítulo Por que sou um destino que
nismo. Tradução de Andrés Sánchez Pascual.
Nietzsche abandonou em favor de sua Kriegserklärung”, p. 774. Madrid: Alianza, 1999.

Revista de Filosofia, Curitiba, v.15 n.15, p. 65-72, jan./jun. 2003. 71


Jorge Luiz Viesenteiner

OTTMANN, Henning. Philosophie und Politik TONGEREN, P. Van. Die Moral von Nietzsches
bei Nietzsche. 2. verb. Und erw. Anfl. Berlin: [s. Moralkritik. Bonn: Bouvier, 1989.
n.], 1987.
PASCHOAL, Antônio E. A dinâmica da vontade Recebido em / Received in: 15/04/2003
de poder como proposição moral nos escri- Aprovado em / Approved in: 28/05/2003
tos de Nietzsche. 1999. Tese (Doutorado em fi-
losofia) - Universidade de Campinas, Campinas
1999.

72 Revista de Filosofia, Curitiba, v. 15, n.16, p. 65-72, jan./jun. 2003.

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