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Textos Filosóficos

A religião e o sentido da existência ― a experiência da


finitude e a abertura à transcendência[1]
O que irás aprender neste capítulo?
Neste capítulo vais estudar o problema do sentido da existência. Num primeiro
momento, irás tentar perceber de que se fala quando se usa a expressão «sentido
da existência». Em seguida, irás estudar a resposta que a religião dá a esse
problema e algumas críticas e alternativas a essa resposta.

O problema do sentido da existência


Quem é que, num momento ou noutro, ao olhar um céu nocturno, ao contemplar
uma flor ou ao reflectir sobre si próprio e os outros seres humanos, não se
interrogou já acerca da razão de ser disto tudo ou não se perguntou por que
razão está aqui e como deve viver para que a sua vida tenha sentido? Estas são
questões que têm intrigado os homens desde tempos imemoriais e são
certamente algumas das perguntas mais importantes que o ser humano pode
colocar sobre si próprio. Há mesmo quem, como Albert Camus, vá ao ponto de
afirmar que estas são as únicas questões verdadeiramente importantes:

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.


Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão
fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se
o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos;
primeiro é necessário responder. (...)
Se pergunto a mim próprio como decidir se determinada interrogação é
mais premente do que outra qualquer, concluo que a resposta depende
das acções a que elas incitam, ou obrigam. Nunca vi ninguém morrer
pelo argumento ontológico. Galileu, que possuía uma verdade científica
importante, dela abjurou com a maior das facilidades deste mundo,
logo que tal verdade pôs a sua vida em perigo. Fez bem, em certo
sentido. Essa verdade não valia a fogueira. Qual deles, a Terra ou o
Sol, gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente. A bem
dizer, é um assunto fútil. Em contrapartida, vejo que muitas pessoas
morrem por considerarem que a vida não merece ser vivida. Outros
vejo que se fazem paradoxalmente matar pelas ideias ou pelas ilusões
que lhes dão uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver
é ao mesmo tempo uma excelente razão de morrer). Julgo pois que o
sentido da vida é o mais premente dos assuntos ― das interrogações.
Albert Camus, O Mito de Sísifo, pp. 13-14
Parte deste interesse pela questão do sentido da vida parece ser intelectual e
resultar da curiosidade própria do ser humano, do seu desejo natural de saber,
como dizia Aristóteles. Somos seres inteligentes num universo que nos deixa
constantemente perplexos e no qual cada nova descoberta, ao mesmo tempo que
sacia a nossa curiosidade, aumenta o nosso deslumbramento. É natural, portanto,
que queiramos saber o que é o universo e que papel — se é que algum — nos
está nele reservado.
Mas uma parte substancial do interesse resulta também da sua grande
importância para a forma como vivemos a nossa vida. Teriam Hitler ou Estaline
mandado matar milhões de pessoas se soubessem que Deus tem um propósito
para nós que requer um comportamento moral exemplar? E teria S. Francisco
Xavier empreendido a evangelização do Oriente se soubesse que Deus não existe
ou, se existe, não tem qualquer propósito para o universo e para homem? É difícil
imaginar que a resposta a estas questões fosse em ambos os casos afirmativa.
Por conseguinte, a maneira como cada um, de forma mais ou menos consciente,
responde a esta questão determina o modo como encara a vida e influencia as
decisões que toma.
E, no entanto, apesar deste grande interesse, a questão é tudo menos clara.
Quando se pergunta qual o sentido da existência, o que se quer exactamente
dizer com isso? O que significa a expressão «sentido da existência»?[2]
Algumas escolas filosóficas recusam-se a aceitar que se possa dizer que a
existência tem sentido. É o caso do positivismo lógico[3] e da escola da
linguagem comum[4], que se desenvolveram na primeira metade do século XX
em Viena e Oxford, respectivamente. Do ponto de vista dessas escolas, apenas as
palavras e as frases têm sentido. Como a vida não é nem uma coisa nem outra,
ela não pode, segundo elas, ter qualquer sentido e, portanto, dizer que a vida
tem sentido é incoerente. Estas escolas, claro, entendem a palavra «sentido» no
sentido de «significado linguístico», como quando perguntamos qual o sentido de
uma frase ou dizemos que uma frase não tem sentido. Num caso estamos a
perguntar qual o significado da frase e no outro a afirmar que ela não tem
significado. Quando nos capítulos iniciais aprendeste a distinguir frases
declarativas com sentido (que expressam proposições) de frases declarativas sem
sentido ou absurdas (que não expressam proposições), a palavra «sentido»
nesses casos estava a ser utilizada com o sentido de «significado linguístico». Se
entendermos que a palavra «sentido» quer dizer isto, então a vida, como é óbvio,
não tem qualquer significado e estas escolas filosóficas têm toda a razão ao
recusarem dizer que a vida tem sentido. No entanto, a palavra sentido não tem
apenas o significado de «significado linguístico». Usemos um exemplo para tornar
claro este ponto.
No livro As Sereias de Titã, Kurt Vonnegut, um escritor americano de ficção
científica, narra como a história humana foi manipulada de modo a tornar os
seres humanos capazes de fabricar uma pequena peça de metal para uma nave
espacial que se dirige do planeta Tralfamadore, na Pequena Nuvem de Magalhães,
para uma galáxia distante, com a missão de entregar uma mensagem de
saudações, e que se avariou ao passar pelo Sistema Solar.
Se, tendo a história de Vonnegut por referência, perguntarmos qual o sentido da
vida humana, a resposta terá forçosamente de ser «fabricar uma peça para
permitir entregar uma mensagem numa galáxia distante». Esta resposta sugere
que a palavra «sentido», além de ter o significado que acabámos de ver, também
pode, pelo menos em certos contextos, querer dizer propósito, finalidade ou
desígnio, como quando, por exemplo, perguntamos «Qual o sentido de fazer
sofrer um animal indefeso?». Por conseguinte, a pergunta sobre o sentido da vida
pode também significar «Qual o propósito ou a finalidade da vida?». Nesta
acepção, a pergunta está longe de não ter sentido e de ser incoerente. Já não se
trata de dizer que a vida tem significado, no sentido que o termo tem em
linguística, mas de saber qual o objectivo da vida. É mesmo com este sentido,
com o sentido de «objectivo» ou «finalidade», que a expressão «sentido da
existência» é geralmente usada quando se fala do problema do sentido da vida.
A história de Vonnegut contém ainda uma outra implicação. É impossível não ter a
impressão de que se a finalidade da vida humana é produzir uma peça
insignificante para permitir levar uma mensagem, também ela insignificante, a
uma galáxia longínqua, a vida tem pouco que a faça merecer ser vivida. Isto
sugere que para que a vida tenha sentido não basta que tenha um propósito ou
finalidade. É também necessário que esse propósito tenha valor, que seja de
alguma forma importante. No filme de João César Monteiro, Recordações da Casa
Amarela, o personagem principal, João de Deus, colecciona pêlos púbicos de
jovens donzelas. É evidente que a sua vida tem um objectivo, mas é também
evidente que não tem qualquer valor, visto que esse objectivo não tem ele próprio
qualquer valor. Coleccionar pêlos púbicos pode fornecer uma finalidade à vida,
mas é difícil imaginar que possa fazer com que mereça a pena vivê-la, mesmo que
isso torne a pessoa que o faz imensamente feliz. A razão está em que quando nos
interrogamos acerca do sentido da vida não queremos apenas saber qual o
objectivo que ela pode ter. Procuramos também uma justificação para a nossa
existência, algo que lhe dê valor e que a faça merecer a pena ser vivida.
Perguntar, então, qual o sentido da vida implica perguntar como devemos viver
para que a nossa vida mereça a pena ser vivida. Talvez a melhor forma de
entenderes isto seja imaginares-te no fim da vida, já muito idoso, às portas da
morte, olhando para o passado e perguntando a ti mesmo se a tua vida teve
sentido (ou, se preferires, uma vez que o resultado é o mesmo, imaginares-te
agora a perguntares a ti mesmo como deves viver a tua vida para que, uma vez
velhinho, possas dizer que ela teve sentido). Chegarás facilmente à conclusão de
que há apenas duas coisas que interessam para responder a essa questão:

1) saber se a tua vida teve um ou mais objectivos; e


2) saber se esse objectivo ou objectivos têm valor.

Se a tua resposta a estas perguntas for em ambos os casos afirmativa, então a


tua vida teve sentido. Se, pelo contrário, nenhuma das tuas respostas ou se
apenas uma foi afirmativa, então a tua vida não teve sentido.
Alguns pensadores afirmam que para que a vida tenha sentido é não apenas
necessário que tenha um objectivo com valor como que esse objectivo possa ser
alcançado. Isto, no entanto, parece não ser verdade. Se fosse, a vida de alguém
que se dedicasse a um objectivo inquestionavelmente meritório, mas, dado o
estado actual do mundo, inalcançável, como, por exemplo, acabar com a
exploração dos animais pelo homem, não teria sentido, mesmo que, ao tentar
atingir esse objectivo, essa pessoa tivesse contribuído de forma significativa para
que os animais fossem melhor tratados. Além disso, dado que a esmagadora
maioria dos homens não consegue atingir os seus objectivos, se só aqueles que
atingissem o seu objectivo pudessem ter uma vida com sentido, o número das
pessoas com uma existência com sentido seria certamente muito reduzido.
Outros pensadores têm uma perspectiva inversa e afirmam que não é o objectivo
que dá sentido à vida, mas o processo pelo qual se procura alcançar esse
objectivo.

«Se os construtores de uma grande e florescente civilização antiga


pudessem de algum modo ver agora os arqueólogos desenterrar os
insignificantes vestígios do que outrora realizaram com grande esforço
— ver os fragmentos de potes e vasos, umas quantas estátuas
partidas, e outros sinais de uma outra época e grandeza —, poderiam
na verdade perguntar a si próprios qual o propósito de tudo isso, se
era naquilo que tudo se tinha transformado. No entanto, as coisas não
lhes pareceram assim na altura, porque era precisamente o acto de
construir, e não o que acabou por ser construído, que dava sentido à
sua vida.»
Richard Taylor, “The Meaning of Life” in Klemke, E. D., The Meaning of
Life, p. 174

Este ponto de vista também não parece correcto, uma vez que viola duas fortes
intuições dos seres humanos. Em primeiro lugar, o comportamento das pessoas
parece constantemente mostrar que acreditam que são os objectivos que dão
sentido à sua vida e não os processos pelos quais os alcançam. Em segundo
lugar, se fossem os processos por intermédio dos quais atingimos os objectivos
das nossas vidas que lhes dão sentido, então ter uma vida com sentido consistiria
simplesmente em viver a vida e, portanto, a vida de praticamente toda e
qualquer pessoa teria, nesse caso, sentido. Assim, quer a ideia de que a vida tem
sentido apenas quando alcançamos os nossos objectivos quer a ideia de que
aquilo que dá sentido à vida é o que fazemos para atingir os nossos objectivos
parecem estar erradas. A primeira porque implica que apenas um número muito
limitado de pessoas tenha uma vida com sentido; e a segunda porque implica que
toda a gente tem uma vida com sentido (desde que, evidentemente, tenha
objectivos e faça alguma coisa para os atingir). Não deve ser preciso ser santo
para ter uma vida com sentido e não se pode ser serial killer e ter uma vida com
sentido. A verdade deve estar algures no meio.
Podemos, portanto, concluir que o objectivo poder ser alcançado não é uma
condição para que a vida tenha sentido. Assim, há apenas duas condições que são
necessárias e suficientes para que a vida tenha sentido, a saber, que a vida tenha
um ou mais propósitos, finalidades ou objectivos e que esse objectivo ou esses
objectivos tenham valor.

Actividades
1. Explica as razões do interesse pelo problema do sentido da existência.
2. Por que razão algumas escolas filosóficas afirmam que a vida não pode ter
sentido?
3. Para que a vida tenha sentido, é suficiente que tenha uma finalidade? Justifica.
4. Explica por que razão as ideias de que a vida tem sentido apenas quando
alcançamos os nossos objectivos e de que aquilo que dá sentido à vida é o que
fazemos para atingir os nossos objectivos estão erradas.
5. Indica as condições necessárias e suficientes para que a vida mereça a pena
ser vivida.

A resposta religiosa
Chegados a este ponto, parece que afinal o problema do sentido da vida é de fácil
resolução. Tudo o que precisamos fazer é determinar qual o objectivo ou os
objectivos que têm valor e dedicar a nossa vida à sua realização. Ora, o problema
está precisamente aqui. Embora os filósofos estejam em geral de acordo em que
uma vida para ter sentido tem de ter um ou vários objectivos com valor, estão
longe de concordar quanto a qual ou quais os objectivos que têm valor.
Isso resulta, pelo menos em parte, dos seus pontos de vista sobre os valores. Já
estudámos anteriormente a questão dos critérios de valor, pelo que não vamos
voltar aqui a esse tema. Convém, no entanto, que tenhamos em conta as
implicações dos diferentes pontos de vista sobre os valores para a questão do
sentido da vida.
Por um lado, há os filósofos que julgam que os valores são subjectivos e que
qualquer objectivo a que uma pessoa atribua valor tem valor para essa pessoa e,
portanto, dá sentido à sua vida. Deste ponto de vista, até João de Deus, com a
sua colecção de pêlos púbicos, ou um serial killer, com o seu cortejo de
cadáveres, têm uma vida com sentido, desde que, bem entendido, isso constitua
para eles um objectivo a que dêem valor.
Por outro lado, há os filósofos que pensam que existem valores objectivos. Estes
filósofos, no entanto, estão em desacordo quanto à origem da objectividade dos
valores. Uma tradição imensamente influente é a da teoria dos mandamentos
divinos. De acordo com essa tradição, o único ponto de vista objectivo é o de
Deus e, portanto, é Deus que determina o que tem ou não tem valor. Matar
alguém sem qualquer razão é errado ou combater a fome no mundo é correcto,
não porque alguém julga que isso é assim, nem sequer porque a maioria das
pessoas pensa desse modo, mas porque Deus o determinou. Como só Deus é
sumamente bom e omnisciente, só Deus sabe o que objectivamente tem valor.
Isto é válido tanto para as nossas acções como para os nossos objectivos: é o
ponto de vista absoluto de Deus que determina quais os objectivos com valor.
Assim, o objectivo da nossa existência, qualquer que ele seja, tem de derivar de
Deus, porque tem de ter valor e Deus é a origem de todo o valor.
Os defensores destas ideias em geral pensam também que Deus estabeleceu
efectivamente qual é a finalidade para a existência humana e a comunicou aos
homens por intermédio da Bíblia e de outras formas de revelação. Dado que a
mensagem cristã tem sido de enorme importância nos últimos dois milénios,
fornecendo conforto espiritual a muitos milhões de pessoas, temos de estudar
esta resposta com detalhe e procurar determinar se constitui uma resposta
efectiva ou uma resposta ilusória à questão do sentido da existência.
A ideia fundamental da resposta religiosa é a de que é Deus que dá sentido à
existência. A finalidade da vida humana é a felicidade, mas, devido ao facto de a
vida terrena ser limitada e incompleta, essa felicidade não pode ser plenamente
alcançada nesta vida. Ela só pode ser alcançada numa vida depois desta vida, em
que a alma imortal vive eternamente no reino de Deus. A felicidade é
precisamente esta comunhão eterna com Deus. Em princípio, este objectivo está
ao alcance de todos os homens, uma vez que Deus os fez à sua imagem e
semelhança, mas só aqueles que fizerem da imitação de Jesus Cristo um
objectivo da sua vida e a dedicarem à oração e à prática da virtude, poderão
aspirar à vida eterna. Os outros, claro, estão condenados à infelicidade eterna no
Inferno. A felicidade eterna, portanto, não é algo a que se possa aspirar sem
contrapartidas. Para poder alcançá-la, o homem tem de viver neste mundo uma
vida moral e religiosa plena, na qual a prática do bem e a adoração a Deus têm
um papel essencial. Assim, embora o objectivo último da vida só possa ser
encontrado numa vida para além desta, esse objectivo projecta-se nesta vida e
dá-lhe significado e valor, pelo que o Cristão, mesmo neste mundo, pode ter uma
existência com sentido.

Actividades
1. Uma perspectiva subjectivista a respeito dos valores, permite responder
satisfatoriamente ao problema do sentido da vida? Porquê?
2. Qual é a resposta religiosa para o problema do sentido da existência?
3. «(…) o objectivo da nossa existência, qualquer que ele seja, tem de derivar de
Deus, porque tem de ter valor e é Deus a origem de todo o valor.» Concordas?
Justifica.

Argumentos a favor da resposta religiosa


Que razões têm os cristãos para pensar que a vida com valor é a vida religiosa?
Em primeiro lugar, a incapacidade da forma de vida alternativa, dedicada à
obtenção e fruição de bem exteriores, muitos deles mundanos e imediatos, de
conduzir à felicidade e dar sentido à vida. Isto não significa que, para o
Cristianismo, só os santos, só aqueles que se dedicam exclusivamente à via
espiritual possam ser felizes. O Cristianismo não rejeita a santidade — há mesmo
várias ordens religiosas católicas que a têm como regra de vida —, mas também
não faz dela a única condição necessária para ser feliz. Muitos cristãos admitem
que alguns bens terrenos — saúde, riqueza, amigos, bons livros e boa música,
etc. — são igualmente necessários para que o homem seja feliz e, de uma
maneira geral, incluem-nos na sua concepção de vida. O que eles recusam é que
a felicidade nesta vida possa consistir apenas na fruição desses tipos de bens,
sem que a espiritualidade e a moralidade tenham aí qualquer papel. E isto por
várias razões:

1. Porque quem vive para os bens terrenos está prisioneiro dos seus
desejos, é dilacerado por muitos impulsos, e, por essa razão, não é
livre nem pode ter paz.
2. Porque quem procura a felicidade nos bens externos procura-a em
coisas de natureza precária, sobre as quais não tem qualquer domínio,
pelo que a sua felicidade pode a qualquer momento transformar-se em
infelicidade.
3. Porque os bens externos não têm valor em si mesmos, não são bens
últimos; são, na melhor das hipóteses, bens instrumentais, meios para
outros fins, cujo valor depende daquilo para que servem e que podem
ser bem ou mal usados.
4. Porque as concepções de felicidade que se baseiam neste tipo de
bens pressupõem um estatuto privilegiado para aquele que é feliz, uma
vez que dependem de capacidades e de circunstâncias excepcionais,
que a maior parte dos seres humanos, por múltiplas razões, não tem
nem pode aceder. Se o sentido da vida estivesse nestes tipos de
felicidade, então a maior parte dos seres humanos não teria qualquer
possibilidade de ser feliz.

Mas talvez a razão mais importante a favor da vida religiosa é a de que só Deus e
a imortalidade podem dar sentido à existência humana.
Esta ideia tem defensores tanto entre os apoiantes da resposta religiosa como
entre uma parte dos seus opositores, como se tornará mais claro na próxima
secção. Entre os apoiantes da resposta religiosa, William Lane Craig é talvez
quem na actualidade apresenta a melhor defesa desta tese.
Ele pensa que se Deus não existir e se a alma humana não for imortal, nada, nem
a nossa vida nem a totalidade do universo, têm qualquer sentido, valor ou
propósito.
Em primeiro lugar, porque se Deus não existir e a alma não for imortal, nada tem
sentido. Se a alma não é imortal, se as pessoas deixam de existir quando
morrem, tudo o que façamos tem apenas um sentido relativo, isto é, é apenas um
meio para outras coisas que, elas próprias, têm também somente um sentido
relativo e, portanto, nada do que façamos tem um sentido último. E se nada tem
sentido último, então nada do que façamos — todas aquelas pequenas coisas com
que preenchemos o nosso dia-a-dia e as grandes coisas que podemos
eventualmente fazer — tem qualquer sentido. Por conseguinte, se a alma não é
imortal, a vida humana não tem qualquer sentido. Mas não basta que a alma seja
imortal para que a vida humana tenha sentido. O mero facto de viver para
sempre não dá sentido à existência. Se Deus não existe, a nossa vida, mesmo
que seja uma vida imortal, é apenas uma vida infinita sem qualquer sentido.
Portanto, é preciso também que Deus exista.
Em segundo lugar, se Deus não existir e a alma não for imortal, nada tem valor.
Por um lado, porque se a alma não for imortal, o que quer que façamos não fará
qualquer diferença. Tanto faz que sejamos como Estaline ou a Madre Teresa de
Calcutá, o resultado é o mesmo. Se tudo acaba na sepultura, o que devemos
fazer é agir exclusivamente de acordo com os nossos interesses, sem olhar a
deveres ou a consequências, pois, no fim, é indiferente. Na verdade, muitas
pessoas que tiveram fé e que depois a perderam ou que têm apenas uma fé
superficial («Eu sou católico não praticante», etc.), agem exactamente deste
modo. Além disso, se Deus não existe, não há padrões objectivos de certo e
errado. Sem Deus, os valores morais ou são a expressão do gosto pessoal, e são
subjectivos, ou subprodutos da evolução socio-biológica e da cultura, e são
relativos. E se não existem valores, é impossível condenar mesmo os actos mais
hediondos. Num universo sem Deus, o bem e o mal não existem. Existe apenas o
facto da existência sem ninguém que diga o que está certo e errado.
Em terceiro lugar, se Deus não existe e a alma não é imortal, nada tem um
propósito. Porque, se a vida acaba com a morte, essa vida não tem qualquer
objectivo e é inútil e nem o universo nem o homem têm qualquer objectivo ou
propósito. Mas mesmo que a vida humana seja imortal, sem Deus essa vida não
tem qualquer propósito, porque nesse caso o universo é apenas o resultado do
acaso, de um acidente cósmico, sem nenhuma razão para que tenha ocorrido. E o
mesmo é verdade do homem, um mero produto da matéria, do acaso e do
tempo, uma aberração da natureza num universo sem propósito, que vive uma
vida ela própria sem propósito.
Em resumo, se Deus e a alma não for imortal, nada do que fizermos tem sentido,
valor ou propósito e tanto o universo como a vida humana são absurdos.
Mas qual o problema de a vida e o universo serem absurdos? O problema é que
se a vida e o universo são absurdos, o homem não pode ser feliz. Para que o
homem seja feliz, tanto a vida como o universo têm de ter sentido, valor e
propósito. Não um sentido, valor e propósito subjectivos ou relativos, porque
esses, no fim de contas, equivalem à ausência de sentido, valor e propósito, mas
um sentido, valor e propósito objectivos. Ora, só Deus pode garantir um sentido,
valor e propósito objectivos. Daí a superioridade da resposta religiosa. Como
William Craig diz:

De acordo com a visão cristã do mundo, Deus existe e a vida humana


não acaba no túmulo. No corpo ressuscitado o homem pode fruir de
vida eterna e da companhia de Deus. O Cristianismo Bíblico, portanto,
fornece as duas condições necessárias para uma vida humana com
sentido, valor e propósito: Deus e a imortalidade. Devido a isto,
podemos viver de forma consistente e feliz.
William Lane Craig. “The Absurdity of Life Without God” in Klemke, E.
D. The Meaning of Life, p. 53

Willaim Craig sabe que não provou que a resposta religiosa ao problema do
sentido da vida é verdadeira e que tudo o que fez foi apresentar as alternativas —
a resposta não religiosa e a religiosa — e mostrar por que razões a segunda é
preferível à primeira. O seu argumento é, no essencial, o seguinte:

Primeira premissa: Ou Deus não existe e a vida é fútil ou Deus existe e


a vida tem sentido.
Segunda premissa: Ora, se a vida tem sentido, podemos ser felizes.
Conclusão: Portanto, é racional pensar que Deus existe.

É fácil perceber que este argumento não prova a conclusão, uma vez que não é
possível deduzi-la das premissas. Este argumento tem estranhas semelhanças
com o argumento moral de Kant. No argumento moral, Kant pergunta o que é
necessário que um homem acredite para que aja moralmente. A sua resposta é
os postulados da razão prática: livre-arbítrio, imortalidade da alma e Deus. Aqui
tudo se passa como se Craig perguntasse «O que é necessário para que o homem
seja feliz?» e respondesse que é necessário que a vida tenha sentido, isto é, que
a alma seja imortal e que Deus exista. Ora, da mesma maneira que o argumento
moral de Kant — como o próprio Kant sabia — não prova que o homem tenha
livre-arbítrio, nem que a alma seja imortal ou que Deus exista, também o
argumento de William Craig não prova que Deus exista e a alma seja imortal, e
Lane Craig sabe-o. Contudo, ele pensa que dadas as circunstâncias, isto é, dado
que essa é a única forma de o homem ser feliz, isso é razão suficiente para
postular que a alma é imortal e que Deus existe. Mas será que é?

Actividades
1. Esclarece as razões pelas quais uma vida dedicada à obtenção e fruição dos
bens exteriores não pode, de acordo com o cristianismo, ser uma vida feliz.
2. Que razões apresenta William Craig para sustentar que se Deus não existir e se
não houver imortalidade, a nossa vida não tem qualquer sentido?
3. Que razões apresenta William Craig para sustentar que se Deus não existir e se
não houver imortalidade, a nossa vida não tem qualquer valor?
4. Que razões apresenta William Craig para sustentar que se Deus não existir e se
não houver imortalidade, a nossa vida não tem qualquer propósito?
5. O argumento de William Craig prova a existência de Deus? Justifica.

Críticas e alternativas à resposta religiosa


Apesar de imensamente popular, a crença em que é a vida religiosa que dá
sentido à vida está sujeita a muitas objecções.
A primeira, embora nem por sombras a mais importante, é que ela depende da
imortalidade da alma e da existência de Deus. Alguém que não acredite numa ou
noutra ou em ambas, não terá qualquer razão para aceitar a resposta religiosa e,
como vimos no capítulo anterior, pelo menos em relação a Deus não é difícil ter
boas razões para duvidar da sua existência.
Uma segunda dificuldade está em que essa hipótese significa que os muitos
milhões de pessoas, existentes actualmente ou no passado, que não acreditam ou
não acreditaram em Deus, ou que acreditam ou acreditaram num deus diferente
ou em vários deuses, numa palavra, todos aqueles milhões de pessoas que não
partilham ou não partilharam a tradição religiosa judaico-cristã e muçulmana
estão completamente impedidos de ter uma vida com sentido. Esta ideia, além de
imoral, é difícil de aceitar. Imagine-se alguém que, embora ateu, por amor
sincero aos homens dedica a sua vida a auxiliar as vítimas da lepra ou da sida.
Como, por ser ateu não acredita na imortalidade da alma e em Deus, a sua vida
está inexoravelmente condenada a não ter sentido. Ao mesmo tempo, a vida da
Madre Teresa de Calcutá, que se dedicou ao auxílio dos pobres e doentes, não por
amor deles, mas como forma de propagar a fé cristã, como acredita em Deus e
na imortalidade, tem uma vida com sentido. Admitindo que Deus existe e tenha
criado tudo o que existe, não parece plausível que sendo sumamente bom, como
os cristãos acreditam que Deus é, possa ter feito as coisas deste modo.
Outro problema ainda é que se, como os cristãos pretendem, Deus criou-nos e
deu sentido às nossas vidas, então as nossas vidas têm sentido para ele e não
para nós. Se a razão de ser das nossas vidas for, como resulta da Bíblia, cumprir
a vontade divina, ter uma vida com sentido, uma vez que esse é determinado do
exterior, é pior do que não ter uma vida com qualquer sentido predeterminado. O
que será melhor, ser um escravo com um papel no universo ou uma pessoa livre
para criar um papel para si própria? E, no entanto, se o sentido da nossa vida for
determinado por Deus, se a única forma de alcançar a felicidade for obedecer-lhe,
o papel que nos está reservado é o de escravos. A nossa situação não é diferente
do prisioneiro que quer sobreviver a todo o custo e sabe que a única forma de o
conseguir é fazer exactamente o que o seu captor lhe manda.
Os argumentos a favor da resposta religiosa também evidenciam outras
dificuldades dessa resposta. Embora seja mais evidente no argumento de William
Craig do que no primeiro, os dois opõem a resposta religiosa a alternativas que
por razões diferentes são consideradas insatisfatórias. O primeiro argumento
opõe a vida religiosa a uma vida dedicada exclusivamente aos bens exteriores, ao
passo que no segundo argumento, a alternativa é entre a não existência de Deus
e uma vida fútil, por um lado, e a existência de Deus e de uma vida com sentido,
por outro.
O problema destes argumentos é que cometem ambos a falácia do falso dilema.
No primeiro argumento, a vida religiosa é comparada com um outro tipo de vida
do qual está excluída toda e qualquer atitude ou actividade moral. A possibilidade
que nos é dada é a de escolher entre uma vida religiosa e moral e uma vida
dedicada à fruição dos bens exteriores concebida de modo que a moral não tenha
nela qualquer papel. Contudo, se pensarmos um bocadinho, percebemos
facilmente que há outras alternativas. Uma alternativa é, por exemplo, uma vida
em que a procura e a fruição de bens exteriores, materiais e mundanos ou não,
tenha um papel importante, mas que não exclua a moral e até uma dose
importante de espiritualidade. Não há nenhum motivo para pensar que uma vida
deste tipo, em que os diferentes tipos de bens (materiais e espirituais) tenham
um papel equilibrado, não possa ser uma vida com sentido. É uma vida mais ou
menos assim que a esmagadora maioria dos seres humanos parecem procurar
viver. Se fosse impossível ser feliz desse modo, esse tipo de vida não seria
certamente tão popular.
O argumento de William Craig enfrenta problemas semelhantes. Por que razão a
vida não tem sentido se não existir Deus nem imortalidade? Por que razão só
temos duas hipóteses possíveis: uma vida com Deus e imortalidade e, portanto,
com sentido e uma vida sem nenhuma dessas coisas e inevitavelmente absurda?
Lane Craig, ao pôr as coisas desta forma, não está, no entanto, sozinho. Vários
outros pensadores associaram o sentido da vida a Deus, à imortalidade ou a
ambos, embora tenham disso tirado conclusões diferentes das dele. É o caso, por
exemplo, de Tolstoi, Nietzsche, e os existencialistas franceses, Albert Camus e
Jean-Paul Sartre.
Mas será que se Deus não existir, a vida é necessariamente absurda? Há um
sentido em que isto é trivialmente verdade. Se Deus não existir, é impossível que
a vida tenha o sentido que se crê que Deus lhe dá. Concluir, no entanto, que a
vida é absurda, que não tem qualquer sentido, é ir longe de mais. Quem pensa
assim, julga que a vida só pode ter um único sentido — ou, pelo menos, um único
realmente com valor — e que se este, por hipótese não existir, então a vida não
tem qualquer sentido. Lane Craig pensa que a vida tem de ter este sentido único
e último e funda aí a sua convicção na existência de Deus.
Há, no entanto, outras hipóteses. Uma é a de que Deus exista e a vida não tenha
qualquer sentido porque, ao contrário do que os teístas pensam, Deus não fez o
mundo com qualquer propósito. Esta hipótese é consistente com uma concepção
deísta de Deus, mas incompatível com a concepção teísta dominante nas grandes
religiões ocidentais e, por isso, histórica e filosoficamente sem importância. Uma
quarta hipótese é a de Deus não existir e, apesar disso, a vida ter sentido. Lane
Craig recusa vigorosamente esta hipótese porque, como vimos, julga que não
permite a existência de valores morais objectivos. Muitos filósofos, contudo, não
vêem com bons olhos esta associação entre Deus e valores morais objectivos.
A crença em que os valores morais têm origem em Deus constitui, como já vimos
antes, a teoria dos mandamentos divinos. Esta teoria é objecto de uma crítica
importante, que tem as suas origens no diálogo Êutifron de Platão, e a que é
costume chamar dilema de Êutifron. Nesse diálogo, Sócrates, a personagem
principal, encontra Êutifron a caminho do tribunal e discute com ele acerca da
piedade. A palavra piedade não tem neste contexto o significado mais comum de
compaixão ou misericórdia, mas de respeito e devoção para com os deuses. Um
homem piedoso é, assim, um homem que respeita os deuses e pratica os seus
deveres religiosos. A dado passo no diálogo, Sócrates pergunta a Êutifron:
«Então, a piedade é amada pelos deuses, porque é piedade, ou é piedade, porque
é amada pelos deuses?» (Platão, Êutifron, p. 44.) Esta pergunta costuma ser
ligeiramente alterada para a melhor adaptar ao problema da origem dos valores
morais, pelo que o dilema de Êutifron é basicamente o seguinte:

Deus manda fazer uma acção porque ela é correcta ou uma acção é
correcta porque Deus a manda fazer?

A pergunta estabelece duas opções que esgotam todas as possibilidades: a


primeira é a de que Deus manda fazer uma acção porque ela é correcta e a
segunda é a de que uma acção é correcta porque Deus a manda fazer. Em rigor,
apenas a segunda opção corresponde à teoria dos mandamentos divinos, mas,
por razões diferentes, nenhuma destas possibilidades é favorável à ideia de que a
ética deriva de Deus. No caso da primeira opção, porque se Deus manda fazer
uma acção porque ela é correcta, isso significa que o facto de uma acção ser ou
não correcta é independente de Deus, pelo que ele está sujeito à mesma
obrigação que qualquer um de nós a agir de certa forma. No caso da segunda
opção, porque se uma acção é correcta porque Deus a manda fazer, segue-se que
seja o que for que Deus mande fazer é correcto e a ética completamente
arbitrária. Se Deus, por exemplo, tivesse resolvido fazer um mundo no qual as
acções correctas fossem exactamente as opostas daquelas que fazem parte dos
Dez Mandamentos, essas acções, pelo simples facto de Deus as ter mandado
fazer, seriam correctas.
Parece, portanto, que qualquer tentativa de argumentar dos valores morais para
Deus, isto é, de defender que devido a haver valores morais objectivos Deus
existe, está votada ao fracasso. E se não se pode fazer isto, segue-se daí, como
William Craig afirma, que não existem valores morais objectivos?
O dilema de Êutifron, ou melhor, a primeira opção do dilema, sugere uma
resposta negativa a esta questão e muitos filósofos contemporâneos tendem a
pensar do mesmo modo e a ver pelo menos em parte aí a resposta para o
problema do sentido da vida.
Estudaste no Capítulo 8 duas importantes teorias éticas, a ética kantiana e o
utilitarismo. Esta última é um bom exemplo de uma teoria não religiosa e
objectiva da ética. O critério utilitarista de felicidade constitui um critério moral
objectivo e independente da religião. E embora Kant, como vimos no capítulo
anterior, faça em última instância a sua ética depender de postulados religiosos
(o livre-arbítrio, a imortalidade da alma e Deus), parece ser possível uma teoria
ética deontologista que aceite o essencial da teoria kantiana — e, por
conseguinte, funde a ética na razão —, mas recuse os seus pressupostos
religiosos.
Numa palavra, aqueles que recusam o subjectivismo e todas as suas implicações,
não estão irremediavelmente condenados a aceitar a teoria dos mandamentos
divinos para poderem perfilhar um ponto de vista objectivista dos valores.
Dissemos atrás que nem todos os filósofos que defendem a existência de valores
morais objectivos estão de acordo acerca da sua origem. Um bom número deles
pensa que Deus é a origem desses valores. Mas, aceitando a sugestão do dilema
de Êutifron, outros filósofos pensam que existem critérios estritamente racionais
que permitem fundar uma ética objectivista. Se estes filósofos estiverem certos,
Deus não é necessário para que haja valores morais objectivos e uma das
principais razões de Lane Craig, e de outros com ele, a favor da resposta religiosa
ao problema do sentido da vida perde força.
Muitos filósofos que recusam que os valores derivem de Deus recusam também
que se a vida acabar com a morte do corpo não tenha qualquer propósito e, por
consequência, qualquer sentido. Alguns chamam a atenção para a forma vaga
como a vida eterna é com frequência descrita pelos defensores da resposta
religiosa; outros para o facto de que a mera eternidade não pode constituir em si
mesma um propósito (o que também é reconhecido por alguns crentes), e outros
para que a eternidade é mesmo um obstáculo a uma vida com sentido. De um
modo geral, estes filósofos optam por uma resposta humanista [5]e naturalista
[6] ao problema do sentido da vida e pensam, em consequência, que é esta vida
que tem de ter sentido e, portanto, que é nesta vida que é preciso encontrar um
ou mais propósitos com valor. Alguns, como Peter Singer, um filósofo utilitarista
contemporâneo, julgam que a resposta ao problema está numa vida ética,
dedicada a projectos éticos com valor, quer se trate de causas humanitárias,
ambientais ou animais. Outros, sugerem que o sentido da vida pode estar
igualmente em outros projectos com valor. Não lhes parece fazer sentido afirmar
que as vidas de Mozart, Einstein ou Picasso não tiveram valor. Assim, para estes
filósofos, as vidas dedicadas ao conhecimento e à arte também são vidas com
valor. Mas, de um modo geral, todos recusam, por um lado, a resposta religiosa
e, por outro, a alternativa, que a vida é absurda, de filósofos como Camus, Sartre
e, mais recentemente, Thomas Nagel, e afirmam vigorosamente que a nossa vida
pode ter sentido, desde que queiramos.

Actividades
1. Expõe as objecções à crença de que é a vida religiosa que dá sentido à
existência.
2. Esclarece de que forma os argumentos a favor da resposta religiosa ao
problema do sentido da vida incorrem na falácia do falso dilema.
3. Explica o dilema de Êutifron e destaca as suas implicações para a teoria dos
mandamentos divinos.
4. A rejeição do subjectivismo dos valores implica necessariamente a adopção da
teoria dos mandamentos divinos? Justifica.
5. Poderá a existência ter sentido fora da religião? Justifica.

Para saber mais

Texto 1: O problema do sentido da vida

Na sua obra «Uma Confissão», Tolstoy narra como, quando tinha 50 anos de
idade e no auge da sua carreira, a convicção de que a vida não tinha sentido o
angustiou profundamente:
Há cinco anos, começou a acontecer-me algo muito estranho; ao princípio era
dominado por minutos de perplexidade e depois uma paragem da vida, como se
eu não soubesse como viver ou o que fazer, e ficava perdido e deprimido. Mas
isso passou e eu continuei a viver como antes. Então esses momentos de
perplexidade repetiram-se cada vez mais e sempre exactamente da mesma
forma. Estas paragens da vida expressavam-se sempre através da mesma
questão: «Porquê? Bem, e então?»
Ao princípio pensei que essas eram simplesmente questões despropositadas e
inapropriadas. Pareceu-me que essas questões eram todas bem conhecidas e que
se quisesse dar-me ao trabalho de procurar a sua solução, não me custaria muito
labor, — que agora não tenho tempo de tratar delas, mas que se quisesse
encontraria as respostas adequadas. Mas as questões começaram a repetir-se
cada vez mais e eram exigidas respostas cada vez com mais persistência, e como
pontos que caiem no mesmo sítio, estas questões, sem quaisquer respostas,
engrossaram até formar uma mancha negra....
Senti que aquilo em que estava apoiado tinha desaparecido, que não tinha base
em que me apoiar, que aquilo para que tinha vivido já não existia, e que não tinha
nada para que viver....
«Bem, eu sei?, disse a mim mesmo, tudo aquilo que a ciência procura tão
persistentemente saber, mas não há resposta para a questão acerca do sentido da
vida.»
Talvez quase todas as pessoas sensíveis e reflexivas tenham tido pelo menos
alguns momentos em que medos e questões similares tenham aparecido nas suas
vidas. Talvez as experiências não fossem tão extremas quanto as de Tolstoy, mas
foram mesmo assim penosas. E certamente quase toda a gente em algum
momento perguntou: Qual é o sentido da vida? Tem ela algum sentido? Qual o
propósito de tudo isto? Qual a razão de ser de tudo isto? Parece evidente, então,
que a questão do sentido da vida é uma das questões mais importantes. E é
importante para todas as pessoas e não apenas para os filósofos.
Pelo menos um autor sustentou que é a questão mais premente. Em O Mito de
Sísifo, Camus escreve:
Há apenas um problema filosófico verdadeiramente sério, o problema do suicídio.
Julgar se a vida merece ou não ser vivida equivale a responder à questão
fundamental da filosofia. Tudo o resto — se o mundo tem três dimensões, se a
mente tem nove ou doze categorias — vem depois. Estes são jogos; primeiro
temos de responder.... Se pergunto a mim próprio como determinar se esta
questão é mais premente do que aquela, respondo que determinamos a partir das
acções que ela implica. Nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico [a
favor da existência de Deus]. Galileu, que possuía uma verdade científica de
grande importância, dela abjurou com a maior das facilidades assim que tal
verdade pôs a sua vida em perigo. E, em certo sentido, fez bem. Essa verdade
não valia a fogueira. Qual deles, Terra ou o Sol, gira em redor do outro é
completamente indiferente. Para dizer a verdade, é uma questão fútil. Em
contrapartida, vejo muitas pessoas morrerem por considerarem que a vida não
merece ser vivida. Outros vejo que, paradoxalmente, se fazem matar pelas ideias
ou ilusões que lhes dão uma razão de viver (aquilo a que se chama uma razão de
viver é também uma excelente razão para morrer). Concluo, pois, que o sentido
da vida é o mais premente das questões.»
Seja como for que classifiquemos a questão — como a mais premente de todas ou
como uma das mais prementes de todas — a maior parte de nós considera que
esta questão merece a mais séria das atenções. Parte da sua premência deriva do
facto que tem relação com muitas outras questões que enfrentamos nas nossas
vidas quotidianas. Muitas das decisões que fazemos em relação a carreiras, tempo
livre, dilemas morais, e outras matérias dependem de como respondemos à
questão do sentido da vida.
Contudo, a questão pode significar várias coisas. Distingamos algumas delas. A
questão «Qual é o sentido da vida?» pode significar qualquer das seguintes
questões: 1) Por que razão existe o universo? Por que razão existe algo em vez
do nada? Há algum plano para o universo como um todo? 2) Por que razão os
seres humanos (em geral) existem? Existem para algum propósito? Se sim, qual?
3) Por que razão eu existo? Existo para algum propósito? Se sim, como poderei
saber qual é? Se não, como pode a vida ter algum significado ou valor?
Não pretendo sugerir que estas questões são rigidamente distintas. Elas estão
obviamente interrelacionadas. Por essa razão, muitos de nós interpretamos a
questão «Qual é o sentido da vida?» em sentido lato de modo a que possa incluir
uma, duas ou mesmo as três questões. Ao proceder assim, estamos a seguir o
uso normal.
Klemke, E. D. “The Question of the Meaning of Life” in Klemke, E. D. The Meaning
of Life, pp.1-2

Texto 2: O sentido da vida segundo o Cristianismo

(...) Há, contudo, uma lição a aprender acerca dos significados de uma vida
distintamente Cristã se a tomarmos como uma aproximação à interpretação mais
exigente daquilo que está implicado no apelo aos Cristãos para que adeqúem a
narrativa das suas vidas ao retrato de Jesus que se encontra nas narrativas do
Novo Testamento. Parece não ser difícil supor que a vida de um imitador
Kierkegaardiano de Cristo, que deseja e se esforça por fazer o bem, terá
significado teleológico positivo, apesar do sofrimento que provavelmente contém.
Mas se essa vida acaba na morte do corpo, há problemas em supor que toda a
vida desse tipo tenha também um significado axiológico positivo, porque algumas
destas vidas, no conjunto, não parecem ser boas para as pessoas que as vivem.
Mas, como é óbvio, a vida terrena de Jesus, que terminou num sofrimento atroz e
numa morte ignominiosa, dá origem exactamente ao mesmo problema. Contudo,
faz parte da fé Cristã tradicional que a vida de Jesus não terminou com a morte
do corpo mas continuou após a sua ressurreição e continuará até ao seu regresso
em glória; pelo que, no conjunto, é uma vida boa para ele. Tal como a vida do
próprio Jesus, pelos menos as vidas de alguns imitadores Kierkegaardianos de
Cristo serão no conjunto boas para eles apenas se se prolongarem para além da
morte nalguma forma de vida futura. Por isso, a sobrevivência à morte do corpo
parece ser necessária para assegurar um significado axiológico positivo e assim
um significado positivo completo para as vidas de todos aqueles cujas narrativas
correspondam tanto quanto é humanamente possível, como Kierkegaard
compreende o que está implicado nessa correspondência, ao paradigma ou
protótipo apresentado nas narrativas dos Evangelhos da vida de Jesus.
O Cristianismo também faz uma narrativa acerca do destino da raça humana por
intermédio da meta-narrativa cósmica da história da salvação. Começa com a
criação dos seres humanos à imagem e semelhança de Deus. A Encarnação, na
qual o Filho de Deus se torna completamente humano e salva a humanidade
pecadora, é um episódio fundamental. Culminará com a vinda prometida do Reino
de Deus. Os Cristãos têm estado em desacordo a respeito de algumas questões
acerca dos detalhes da história da salvação. Irão todos os seres humanos no fim
de contas serem salvos? Se alguns não vão ser, predestinou-os Deus para não
serem? Mas as grandes linhas da história tornam claro o amor de Deus pela
humanidade e o cuidado providencial com que é expresso. A ênfase da história no
que Deus fez pelos seres humanos também torna claro que eles são importantes
do ponto de vista de Deus.
A narrativa da história da salvação revela alguns dos desígnios de Deus tanto
para os indivíduos humanos como a para o conjunto da humanidade. Espera-se
que os Cristãos estejam de acordo com estes desígnios e ajam para promovê-los
até onde as suas circunstâncias permitam. Estes desígnios podem estar assim
entre aqueles que dão sentido teleológico positivo e dessa forma contribuírem
para dar um sentido positivo completo à vida de um Cristão. Podemos assumir
com segurança que todo o Cristão e, na verdade, todo o ser humano tem um
papel com sentido a representar no grande drama da história da salvação se a
visão Cristã for ainda que aproximadamente correcta.
Mas o que dizemos acerca daqueles que se recusam a estar de acordo com os
desígnios de Deus? Marcos, 14:21, cita Jesus a dizer «Pois o Filho do Homem vai,
como está escrito a seu respeito, mas ai daquele por quem o Filho do Homem é
traído! Teria sido melhor para esse que não tivesse nascido.» Se teria sido melhor
para Judas que não tivesse nascido, então a sua vida, no conjunto, não é boa
para ele e carece de sentido axiológico positivo. Isto será verdade de Judas na
suposição tradicional de que ele morre determinado a rejeitar os desígnios de
Deus e sofre por isso eternamente no inferno. Contudo, na suposição
universalista até Judas irá eventualmente virar-se para Deus e estar de acordo
com os desígnios de Deus e ser salvo. Se isto ocorresse, até a vida de Judas teria
em última análise sentido axiológico e sentido teleológico positivos. Nesse caso,
não seria verdade que teria sido melhor para Judas que não tivesse nascido.
Quinn, Philip L. “The Meaning of Life According to Christianity” in Klemke, E. D.
The Meaning of Life, pp. 60-61

Texto 3: A necessidade de Deus e de Imortalidade

O homem moderno pensou que quando se tivesse visto livre de Deus, se teria
liberto a si mesmo de tudo o que o reprimia e asfixiava. Em vez disso, descobriu
que ao matar Deus, também se matou a si mesmo.
Pois se Deus não existe, então a vida do homem torna-se absurda.
Se Deus não existe, então tanto o homem como o universo estão inevitavelmente
condenados à morte. O homem, como todos os organismos biológicos, tem de
morrer. Sem qualquer esperança de imortalidade, a vida do homem conduz
apenas à sepultura. A sua vida é apenas uma fagulha na escuridão infinita, uma
fagulha que aparece, tremeluz e morre para sempre. Comparada com o tempo
infinito, o tempo de vida humana é apenas um momento infinitesimal; e mesmo
assim esta é toda a vida que alguma vez conheceremos. Portanto, teremos todos
de estar cara a cara com aquilo a que o teólogo Paul Tillich chamou «a ameaça da
não-existência.» Pois embora eu saiba agora que existo, que estou vivo, também
sei que algum dia já não existirei, que já não irei ser, que irei morrer. Este
pensamento é desconcertante e ameaçador: pensar que a pessoa a que chamo
«eu mesmo» deixará de existir, que não existirei mais!
Lembro-me bastante bem da primeira vez que o meu pai me disse que um dia eu
iria morrer. De alguma forma enquanto criança o pensamento nunca me tinha
ocorrido. Quando ele me disse, assolou-me uma tristeza insuportável. E embora
ele tentasse várias vezes assegurar-me de que ainda faltava muito tempo isso
não parecia interessar. O facto inegável era que mais cedo ou mais tarde eu
morreria e não existiria mais, e esse pensamento devastou-me. Com o tempo,
aprendi, como todos nós, a aceitar simplesmente o facto. Todos nós aprendemos
a viver com o inevitável. Mas a percepção de criança continua a ser verdadeira.
Como o existencialista francês, Jean-Paul Sartre disse, várias horas ou vários
anos não faz diferença nenhuma, uma vez que se tenha perdido a eternidade.
Quer isso ocorra mais cedo ou mais tarde, a perspectiva da morte e a ameaça da
não-existência é um choque terrível. Mas encontrei uma vez um estudante que
não sentia esta ameaça. Ele disse que tinha sido criado numa quinta e estava
habituado a ver os animais nascerem e morrerem. Para ele, a morte era
simplesmente uma coisa natural — uma parte da vida, por assim dizer.
Surpreendeu-me quão diferentes eram as nossas duas perspectivas da morte e
achei difícil compreender por que razão ele não sentia a ameaça da não-
existência. Penso que encontrei a resposta anos mais tarde ao ler Sartre. Sartre
observou que a morte não é ameaçadora conquanto a encaremos como a morte
de outros, do ponto de vista de uma terceira pessoa, por assim dizer. É apenas
quando a interiorizamos e a olhamos de uma perspectiva de primeira pessoa —
«a minha morte: Eu vou morrer» — que a ameaça da não existência se torna
real. Como Sartre chamou a atenção, muitas pessoas a meio da vida nunca
assumem esta perspectiva de primeira pessoa; podemos até olhar para a nossa
própria morte de um ponto de vista de terceira pessoa, como se fosse a morte de
outra pessoa ou mesmo de um animal, como fazia o meu amigo. Mas o
verdadeiro significado existencial de a minha morte pode apenas ser apreciado de
uma perspectiva de primeira pessoa, à medida que compreendo que vou morrer e
deixar de existir para sempre. A minha vida é apenas uma passagem
momentânea do esquecimento para o esquecimento.
O universo enfrenta igualmente a morte. Os cientistas dizem-nos que o universo
está em expansão e que todas as coisas nele se afastam cada vez mais umas das
outras. À medida que isso acontece, o universo torna-se cada vez mais e mais frio
e a sua energia esgota-se. Por fim, todas as estrelas se extinguirão e toda a
matéria colapsará em estrelas mortas e em buracos negros. Não existirá qualquer
luz; não existirá qualquer calor; não existirá qualquer vida; apenas os cadáveres
de estrelas e galáxias mortas, expandindo-se para sempre na escuridão infinita e
os recessos frios do espaço — um universo em ruínas. O universo inteiro dirige-se
irreversivelmente para o seu túmulo. Por conseguinte, não é apenas a vida de
cada pessoa individual que está perdida; é a totalidade da raça humana que está
perdida. O universo precipita-se para a sua extinção inevitável — a morte está
escrita em toda a sua estrutura. Não há fuga. Não há esperança.
Se Deus não existe, então o homem e o universo estão perdidos. Como
prisioneiros condenados à morte, esperamos a nossa execução inevitável. Não há
Deus e não há imortalidade. Qual é a consequência disto? Segue-se que a própria
vida é absurda. Segue-se que a vida que temos não tem propósito, valor ou
significado últimos.
Craig, William Lane. “The Absurdity of Life Without God” in Klemke, E. D. The
Meaning of Life, pp.40-42

Texto 4: Uma resposta ética

Há ainda alguma coisa pela qual viver? Haverá algo a que valha a pena
dedicarmo-nos, além do dinheiro, do amor e da atenção à nossa família? Falar de
«algo pelo qual viver» tem um certo travo vagamente religioso, mas muitas
pessoas que não são absolutamente nada religiosas têm uma sensação incómoda
de poderem estar a deixar escapar qualquer coisa básica que conferiria às suas
vidas uma importância que, de momento, lhes falta. E estas pessoas também não
têm qualquer compromisso profundo com uma cor política. Ao longo do último
século, a luta política ocupou frequentemente o lugar que era consagrado à
religião noutros tempos e culturas. Ninguém que reflicta acerca da nossa história
recente pode agora acreditar que a política, por si só, bastará para resolver todos
os nossos problemas. Mas para que outra coisa poderemos viver? No presente
livro, dou uma resposta. É tão antiga como o alvor da filosofia, mas tão
necessária nas circunstâncias actuais como sempre foi. A resposta é que podemos
viver uma vida ética. Ao fazê-lo, passaremos a integrar uma vasta tradição que
atravessa culturas. Além disso, descobriremos que viver uma vida ética não
constitui um sacrifício pessoal, mas uma realização pessoal.
Se conseguirmos alhear-nos das nossas preocupações imediatas e encarar o
mundo como um todo e o nosso lugar nele, veremos que existe algo absurdo na
ideia de que as pessoas têm dificuldade em encontrar por que viver. Afinal, há
tanto que precisa de ser feito. Quando este livro estava prestes a concluir-se, as
tropas das Nações Unidas entraram na Somália numa tentativa de assegurar que
os alimentos chegavam às populações famintas. Apesar de esta tentativa ter
corrido muito mal, constituiu, pelo menos, um sinal positivo de que as nações
ricas estavam preparadas para fazer alguma coisa acerca da fome e do
sofrimento em áreas distantes. Podemos tirar as devidas lições deste episódio, de
modo a que as tentativas futuras sejam mais bem sucedidas. Talvez estejamos no
início de uma nova era na qual não nos limitaremos a ficar sentados à frente dos
nossos televisores a ver crianças morrer e depois continuar a viver as nossas
vidas abastadas sem sentir qualquer incongruência. Mas não são apenas as
grandes crises dramáticas e com honras de noticiário que requerem a nossa
atenção: há inúmeras situações, numa escala mais reduzida, que são tão
horríveis e evitáveis como as maiores. Ainda que esta tarefa se nos afigure
imensa, trata-se apenas de uma das muitas causas igualmente urgentes às quais
se podem dedicar as pessoas que buscam um objectivo digno.
Singer, Peter. Como Havemos de Viver?: A ética numa época de individualismo,
pp. 13-14

Texto 5: Uma resposta filosófica

Além da sua utilidade na revelação de possibilidades insuspeitadas, a filosofia


adquire valor — talvez o seu principal valor — por meio da grandeza dos objectos
que contempla e da libertação de objectivos pessoais e limitados que resulta
desta contemplação. A vida do homem instintivo está fechada no círculo dos seus
interesses privados. A família e os amigos podem estar incluídos, mas o mundo
exterior não é tido em conta excepto na medida em que possa auxiliar ou impedir
o que entra no círculo dos desejos instintivos. Numa vida assim há algo de febril e
limitado, comparada com a qual a vida filosófica é calma e livre. O mundo privado
dos interesses instintivos é um mundo pequeno no meio de um mundo grande e
poderoso que, mais cedo ou mais tarde, reduzirá o nosso mundo privado a ruínas.
A menos que consigamos alargar os nossos interesses de modo a incluir todo o
mundo exterior, somos como uma guarnição numa fortaleza sitiada, que sabe que
o inimigo impede a sua fuga e que a rendição final é inevitável. Numa vida assim
não há paz, mas uma luta constante entre a persistência do desejo e a
incapacidade da vontade. De uma forma ou de outra, se queremos que a nossa
vida seja grande e livre, temos de fugir desta prisão e desta luta.
Uma forma de fugir é por intermédio da contemplação filosófica. Na sua
perspectiva mais ampla, a contemplação filosófica não divide o universo em dois
campos hostis — amigos e inimigos, prestável e hostil, bom e mau — vê o todo
com imparcialidade. Quando é pura, a contemplação filosófica não procura provar
que o resto do universo é semelhante ao homem. Toda a aquisição de
conhecimento é um alargamento do Eu, mas alcança-se melhor este alargamento
quando ele não é directamente procurado. É obtido quando o desejo de
conhecimento é apenas operativo, por um estudo que não deseja
antecipadamente que os seus objectos tenham esta ou aquela característica, mas
adapta o Eu às características que encontra nos seus objectos. Este alargamento
do Eu não é obtido quando, aceitando o Eu como é, tentamos mostrar que o
mundo é de tal modo semelhante a este Eu que é possível conhecê-lo sem ter de
admitir o que parece estranho. O desejo de provar isto é uma forma de auto-
afirmação e, como toda a auto-afirmação, é um obstáculo ao crescimento do Eu
que ela deseja e de que o Eu sabe ser capaz. Na especulação filosófica como em
tudo o mais, a auto-afirmação vê o mundo como um meio para os seus próprios
fins; considera, assim, o mundo menos importante do que o Eu e o Eu limita a
grandeza dos seus bens. Na contemplação, pelo contrário, partimos do não-Eu e
por intermédio da sua grandeza alargamos os limites do Eu; por intermédio da
infinidade do universo, a mente que o contempla participa da infinidade.
Por esta razão, as filosofias que adaptam o universo ao Homem não promovem a
grandeza de alma. O conhecimento é uma forma de união do Eu e do não-Eu e,
como todas as uniões, é prejudicado pelo domínio e, portanto, por qualquer
tentativa de forçar o universo a conformar-se ao que encontramos em nós. Há
uma ampla tendência filosófica para o ponto de vista que nos diz que o Homem é
a medida de todas as coisas, que a verdade é feita pelo homem, que o espaço, o
tempo e o mundo dos universais são propriedades da mente e que, se existir algo
que não tenha sido criado pela mente, é incognoscível e não tem qualquer
importância para nós. Se as nossas discussões anteriores estavam correctas, este
ponto de vista é falso; mas para além de ser falso, tem o efeito de despojar a
contemplação filosófica de tudo o que lhe dá valor, uma vez que a confina ao Eu.
Aquilo a que chama conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas um
conjunto de preconceitos, de hábitos e de desejos, que constituem um véu
impenetrável entre nós e o mundo fora de nós. O homem que encontra prazer
numa teoria do conhecimento destas é como o homem que nunca deixa o círculo
doméstico por receio de que a sua palavra possa não ser lei.
A verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra satisfação em todo
o alargamento do não-Eu, em tudo o que engrandeça os objectos contemplados
e, por essa via, o sujeito que contempla. Tudo o que na contemplação seja
pessoal ou privado, tudo o que dependa do hábito, do interesse pessoal ou do
desejo, deforma o objecto e, por isso, prejudica a união que o intelecto procura.
Ao criarem desta forma uma barreira entre o sujeito e o objecto, estas coisas
pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O intelecto livre verá
como Deus pode ver, sem um aqui e agora, sem esperanças nem temores, sem o
empecilho das crenças vulgares e dos preconceitos tradicionais, calmamente,
desapaixonadamente, no desejo único e exclusivo de conhecimento —
conhecimento tão impessoal e tão puramente contemplativo quanto o homem
possa alcançar. Também por este motivo, o intelecto livre dará mais valor ao
conhecimento abstracto e universal, no qual os acidentes da história privada não
entram, do que ao conhecimento originado pelos sentidos e dependente, como
este conhecimento tem de ser, de um ponto de vista exclusivo e pessoal e de um
corpo cujos órgãos dos sentidos deformam tanto quanto revelam.
A mente que se habituou à liberdade e à imparcialidade da contemplação filosófica
conservará alguma desta mesma liberdade e imparcialidade no mundo da acção e
da emoção. Encarará os seus propósitos e desejos como partes do todo, com a
falta de persistência que resulta de os ver como fragmentos minúsculos num
mundo no qual nada mais é afectado por qualquer acção humana. A
imparcialidade que na contemplação é o desejo puro da verdade, é a mesma
qualidade da mente que na acção é a justiça e na emoção é o amor universal que
pode ser dado a tudo e não apenas aos que consideramos úteis ou dignos de
admiração. Por conseguinte, a contemplação alarga não apenas os objectos dos
nossos pensamentos, mas também os objectos das nossas acções e das nossas
afecções; faz-nos cidadãos do universo e não apenas de uma cidade murada em
guerra com tudo o resto. A verdadeira liberdade humana e a sua libertação da
sujeição a esperanças e temores mesquinhos consistem nesta cidadania do
universo.
Russell, Bertrand. Os Problemas da Filosofia, Cap. XV

Sugestões para os alunos

Dicionários
Almeida, Aires (org.). “Positivismo lógico” e “Sentido da vida” in Dicionário Escolar
de Filosofia, Lisboa: Plátano Editora, 2003.
Blackburn, Simon. “Humanismo”, “Naturalismo”, “Positivismo lógico” e “Sentido da
vida” in Dicionário de Filosofia, Lisboa: Gradiva, 1997.

Artigos e capítulos de livros


Murcho, Desidério. “Sísifo e o Sentido da Vida” in Pensar Outra Vez: Filosofia,
Valor e Verdade, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2006.
Nagel, Thomas. “O Sentido da Vida” in Que Quer Dizer Tudo Isto?, Lisboa:
Gradiva, 1995.
Singer, Peter. "Viver com um Propósito" e "A Vida Boa" in Como Havemos de
Viver?: A ética numa época de individualismo, Lisboa: Dinalivro, 2006.

Artigos da web e websites


Augustine, Keith. A Morte e o Sentido da Vida

Livros
Camus, Albert. O Estrangeiro, Lisboa: Livros do Brasil, 2001.
Capote, Truman. A Sangue-frio, Lisboa: Dom Quixote, 2006.
Ellis, Bret Easton. Menos que Zero, Lisboa: Editorial Teorema, 2000.
Hesse, Hermann. O Lobo das Estepes, Lisboa: Difel, 2002.
Kafka, Franz. A Metamorfose, Lisboa: Editorial Presença, 1999.
Queiroz, Eça de. A Cidade e as Serras, Lisboa: Livros do Brasil, 2001.
Platão. Górgias, Lisboa: Edições 70, 2005.
Sartre, Jean-Paul. A Náusea, Lisboa: Europa-América, 1976.
Savater, Fernando. Ética para um Jovem, Lisboa: Dom Quixote, 2005.

Filmes
Coppola, Francis Ford. Apocalyse Now, 1979.
Jones, Terry e Gilliam, Terry. O Sentido da Vida, 1983.
Weir, Peter. Clube dos Poetas Mortos, 1989.
Welles, Orson. Citizen Kane, 1941.

Bibliografia e sugestões para os professores

Dicionários e enciclopédias
Blackburn, Simon. Dicionário de Filosofia, Lisboa: Gradiva, 1997.
Stanford Encyclopedia of Philosophy
The Internet Encyclopedia of Philosophy
Wikipedia

Artigos e capítulos de Livros


Pinker, Steven. “The Fear of Nihilism” in The Blank Slate, Londres: BCA, 2002.
Rachels, James. “Dependerá a moralidade da religião?” in Elementos de Filosofia
Moral, Lisboa: Gradiva, 2003.
Russell, Bertrand. “A Free Man Worship” in Misticism and Logic, Londres:
Routledge, 1994.

Artigos da web e websites


Rosenberg, Alex. “Darwin's Nihilisitc Idea: Evolution and the Meaninglessness of
Life”
Virtual Office of William Lane Craig
Wolf, Susan. “The Meanings of Lives”.

Livros
Baggini, Julian. What's It All About?: Philosophy and the Meaning of Life, Londres:
Granta Books, 2005.
Camus, Albert. O Mito de Sísifo, Lisboa: Livros do Brasil, 2005.
Cottingham, John. On the Meaning of Life, Londres: Routledge, 2002.
Klemke, E. D. (Org.) The Meaning of Life, Oxford: OUP, 2000.
Platão. Êutifron, Lisboa: IN-CM, 1992.
Séneca. Da Brevidade da Vida, Carcavelos: Coisas de Ler Edições, 2005.
Singer, Peter. Como Havemos de Viver?: A ética numa época de individualismo,
Lisboa: Dinalivro, 2006.
Thomson, Garrett. On The Meaning of Life, Thomson, 2003.
Tolstoy, Leo. A Confession, Nova Iorque: W. W. Norton & Company, Inc., 1996.

Programas de rádio
Taylor, Ken, e Perry, John. “Meaning of Life” in Philosophy Talk

[1] Este texto foi originalmente concebido para um manual de Filosofia do 10.º
ano. O seu estilo e a sua estrutura reflectem este facto. Alguns esclarecimentos
originalmente concebidos para surgiram na margem, aparecerão aqui como notas
de rodapé.
[2] Expressão ambígua pela qual se costuma misturar várias questões: porque
existe o universo? Porque existe o ser humano? Há um algum propósito para o
universo e o ser humano? Como podemos viver uma vida com um objectivo com
valor?
[3] Doutrinas filosóficas associadas aos filósofos do Círculo de Viena. Estes
filósofos defenderam que há apenas dois tipos de proposições, as analíticas e
aquelas cuja verdade ou falsidade pode ser verificada empiricamente. Todas as
outras proposições não têm sentido. Isso levou-os a rejeitar toda a metafísica
tradicional.
[4] Escola filosófica que dominou a filosofia anglo-saxónica em meados do século
XX e que dava especial atenção à análise e compreensão da linguagem comum.
[5] Humanismo: qualquer filosofia que dê relevância à capacidade dos seres
humanos para determinar os valores e o seu destino independentemente de
quaisquer concepções religiosas.
[6] Naturalismo: ponto de vista filosófico segundo o qual tudo o que existe é de
natureza corpórea e material e que rejeita, portanto, a crença na existência das
entidades sobrenaturais da metafísica e da religião tradicionais.

Álvaro Nunes, 2008

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