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4 Literatura comparada: reflex6es sobre uma * GODZICH. 1994p 278 disciplina académica Eduardo F. Coutinho (UFRJ) Surgida em contraposigio aos estudos de literaturas nacionais ou produzidas em um mesmo idioma, a Literatura Comparada traz como marca fundamental, desde os seus primérdios, a nogZo da transversalidade, seja com relagdo as fronteiras entre nagdes ou idi- ‘omas, seja no que concerne aos limites entre areas do conhecimento, Tal transversalidade, ao assegurar 2 disciplina um carter de ampli- tude, confere-Ihe ao mesmo tempo um sentido de inadequa compartimentagio do saber que, como afirma Wlad Godzich em seu The Culture of Literacy, dominou as instituiges de ensino no Oci- dente a partir do Huminismo! ,e projeta a Literatura Comparada em ‘um terreno pantanoso, cujas fronteiras, frequentemente esgargadas, tornam dificil qualquer delimitagZo. Assim, desde a época de sua configuragio e consolidagiio como disciplina académica, as tentati- vas de defini-la estendem-se desde os que, iludidos pela idéia da comparagio, a véem como um simples método de abordagem do fenémeno literirio, até os que a tomam, no sentido amplo, como rea do conhecimento. Deixando de lado qualquer tentativa de apri- sionamento da Literatura Comparada em férmulas lingtifsticas definidoras, teceremos aqui algumas consideragdes sobre a evolu- io hist6rico-conceitual da disciplina, procurando assinalar as ten- déncias por que ela vern passando, maxime nas dltimas décadas, € suas repercussées em contextos como o brasileiro. Como © marco diferenciador da Literatura Comparada em oposigao ao estudo das literaturas nacionais foi, na era de estabele- cimento do comparatismo, a abordagem de duas ou mais literaturas nacionais ou de produgGes literdrias em idiomas distintos, as tentati vas de definigdo da disciplina nessa época acentuam todas elas 0 seu 42 Revista Brasileira de Literatura Compara 2006 cariter internacional e a familiaridade do estudioso com mais de um idioma. E assim, por exemplo, a definigio de Guyard, que orientou durante longos anos o estudo da Literatura Comparada no Ociden- te, bem como a de Pichois e Rousseau, embora em momento bastan- te posterior. Ougamos primeiro a Guyard, que, em seu livro La littérature comparée (1951), manual construfdo a maneira do de Van Tieghem (1931), € do qual mantém o mesmo titulo, afirma: “A literatura comparada € a hist6ria das relagdes literdrias inter- nacionais. O comparatista se coloca nas fronteiras, lingifsticas ‘ou nacionais, e examina as mudangas de temas, idéias, livros ou sentimentos entre duas ou ¥: eraturas. seu método de trabalho deverd adaptar-se & diversidade de suas pesquisas. Um certo equipamento .... the & indispenséivel. Ele deve ser capaz.de lerdiversas linguas; e deve saber aonde localizar as bibliografias indispensiveis” A énfase dada ao cunho internacional ou interlingiistico dos estudos de Literatura Comparada é no sé 0 elemento fuleral de todo 0 texto, refletindo o que veio a ser conhecido como o binarismo. desses estudos, dominante na chamada Escola Francesa, como tam- bém é assinalada a importincia de o estudioso ser capaz de ler diver- sas Iinguas, pratica que restringiu durante muito tempo 0 ambito da disciplina, confinando-a a uma pequena elite versadaem varios idio- mas. Mas observe-se que, além dessa tOnica e da referéncia neces sidade de “certo equipamento”, expresso de Van Tieghem, reforga- da por Guyard, e que pode ser vista como uma recusa ao impressionismo critico, a afirmagio de que “o seu método de traba Iho deverd adaptar-se a diversidade de suas pesquisas” deixa claro que a Literatura Comparada no é vista pelo autor como um méto- do, mas antes como uma disciplina que dispBe de um ou mais méto- dos de abordagem, suficientemente flexiveis de modo a poder adap- tar-se a diversidade de suas pesquisas. A definigiio de Pichois e Rousseau, em manual de 1967, que propositadamente porta o mesmo titulo dos anteriores, € mais sucin- ta do que a de Guyard e, por influéncia do momento de sua produ- do — 0 periodo estruturalista -, traz certa énfase sobre a necessid: de de sistematizagiio dos estudos comparatistas, certa preocupagdo cientifica, mas volta a assinalar o seu cardter internacional e interlingiifstico: SGUYARD, 1951 p12. to. toa. > picHOIS & ROUSSEAU, 1967, p85. tea A “10st 974, p. 3, * ALDRIDGE, 1969, 11a AD Literaura eomparada: relexdes sobre uma disciplina académica a “Literatura Comparada: descrigio analitica, comparagio metédi- cate diferencial; Interpretagdo sintética de fendmenos litersrios terlingilisticos ou interculturais, através da histéria, da criticze da filosofia, a fim de se compreender melhor a literatura como uma fungao espectfica do espi ” to humano! Aqui, contudo, & diferenga da definigao de Guyard, chama-se alengiio para a interpretagiio do fenémeno literario através da hist6- ria, da critica e da filosofia, entendendo-se assim os diversos discur- sos sobre a literatura, € vé-se a esta dltima como “uma fungio espe- cifica do espiritofhumano”, observacdo que vem ao encontro da tese de um estudioso como Frangois Jost, que encara a Literatura como uma espécie de dom muito especial e entende o seu estudo, a Litera- tura Comparada, como uma verdadeira “filosofia das letras”, um “novo humanismo™. Embora a preocupagio com o cariter internacional e interlingiiistico da Literatura Comparada se encontre também pre- sente na perspectiva da chamada “Escola Americana”, observa-se, nas tentativas de definigo da disciplina fornecidas pelas figuras que a integram, uma inegivel abertura no sentido de admit do de Literatura Comparada de obras isoladas de ressalva, entretanto, de que tal estudo seja feito por uma perspectiva que transcenda fronteiras nacionais ¢ idiomiticas. Vejam-se nesse sentido as palavas de Owen Aldridge: ~Atualmente hd um certo consenso sobre o futo de que a Literatu- ra Comparada no compara literaturas nacionais no sentido de puramente contrasti-las umas com as outras. Em vez disso, ela fornece um método de ampliagdo da perspectiva do individuo na abordagem de obras isoladas de literatura — uma forma de voltar- se para akém dos limites estreitos das fronteiras nacionais, com 0, fim de discemir tendéncias e movimentos em varias culturas naci- is € observar as relagdes entre a literatura e outras esferas da idade humana... Em suma, a Literatura Comparada pode ser oestudo de qualquer fendmeno literdrio do ponto de vista de ‘mais de uma literatura nacional ou em conjunto com outra dis plina intelectual, ou até mesmo virias.”* O importante para Aldridge nio € 0 estudo constrastivo de literaturas nacionais, mas o fornecimento de um método que permita 44° Revista Brera de Litecuura Compara 98,2006 a0 estudioso “discemir tendéncias e movimentos em varias culturas nacionais”, 0 que o situa em uma perspectiva mais ampla com rela- ¢o ao binarismo anterior e chama atengo mais uma vez para o fato de que a Literatura Comparada, longe de ser um método, dispoe de um ou mais métodos de abordagem da literatura. Além disso, traz tona também a questo da interdisciplinaridade, ao destacar 0 estu- do de qualquer fendmeno literirio “em conjunto com outta disciplina intelectual, ou até mesmo virias” Besta referéncia a interdisciplinaridade que norteia a defini- gio de Henry Remak, ¢ que constitui um dos principais tragos da chamada “Escola Americana”: “A Literatura Comparada ¢ 0 estudo da literatura além das fron- teiras de um pats espeeifico e o estudo das relagdes entre a litera tura, de um lado, e outras reas do conhecimento e crenga, como as.artes, a filosofia, a historia, as ci8ncias sociais, a religido, etc., de outro lado, Em suma, € a comparagdio de uma literatura com outra ou outras, € a comparagio da literatura com outras esferas da expresso humana’ A interdisciplinaridade, embora presente desde 0 processo de configuragio da Literatura Comparada como disciplina académica— como se pode observar, por exemplo, pelas palavras de J. J. Ampére, que, em seu Discurso sobre a historia da poesia, de 1830, j4 se referia & “historia comparativa das artes e da literatura” (CARVALHAL, p. 9), ou pela tentativa de Philartte Chasles de for- mular alguns principios 1s do que ele considerava ser uma “his- t6ria da literatura comparada” (CARVALHAL, p. 10), partindo para propor uma visio conjunta da hist6ria da literatura, da filosofia e da politica nos cursos que ministrou em 1840 no Collége de France -, foi amplamente acentuada pela Escola Americana e desenvolvidaem grande escala nessa época no Ambito do ensino universitério. As definigdes acima, ou, melhor, tentativas de definigzio, a des- peito de suas variagées, apontam todas na diregio da constituigio de um campo de atividades suficientemente amplo em que o estudi- oso, servindo-se de uma vasta possibilidade de métodos e técnicas de abordagem da obra ou obras literdrias, € capaz, de desenvolver sistemas de reflexdo sobre essas obras que Ihe permitam descrevé- las, interpreta-las avalid-las, bem como organiz-las em conjuntos "REMAK, 1961,p.3, tra. Literatu compasaa; ref 2s sobre uma diseiplina aeadémies 45 ou séries espago-temporais que as distingam umas das outras, Dafa impossibilidade a que se referiu René Wellek de se separar Literatura Comparada ¢ Critica (WELLEK, 1959, 156) ou de se erigir como compartimentos estanques a esfera da Teoria ou da Histéria e da Literatura Comparada. Os problemas que se podem observar na de~ signagio “Literatura Comparada” so sem diivida muitos, a maio- ria deles relacionados com o método a que o adjetivo “comparada” se refere (dat talvez.a confusio em que incorreram alguns estudioxos que 0 identificaram com um simples método), mas se atentarmos para os diversos sentidos lo termo, verificaremos que “comparada” significa também, conforme deixa claro, por exemplo, 0 Oxford English Dictionary a respeito do termo inglés “comparative”, “aqui- lo que envolve diferentes ramos de estudo” (Cit. CLEMENTS, 1978, p. 10), reportando-nos portanto para a idéia da transversalidade que apontamos como trago fundamental da diseiplina. Foi com esse sentido amplo, internacional, interlingiifstico e interdisciplinar do termo, que a Literatura Comparada instituiu, em sua fase ckissica, sobretudo no perfodo da chamada “Escola Ame cana”, cinco dreas de investigagio, hoje bastante modifieadas, mas que sero aqui discutidas por refletirem 0 espirito que norteou a constituigo da disciplina: 0 estudo de géneros ou formas, de movi- mentos ow eras, de temas ou mitos, da inter-relagio de literatura ‘com outras formas de expressio artistica ou outras areas do conhe- cimento, ¢ finalmente da relagdo da literatura com os discursos da. Teoria, da Critica c da Historiografia literdrias. Tais areas de investi- Jo so, como se pode observar, bastante desiguais, e demons- ua propria desigualdade, a tendéncia formalista da Esco- tram, pel la Norte-Americana: as és primeiras acham-se voltadas para as obras _mesmas € as duas tiltimas para as relagdes destas com outras formas de produgiio, no primeiro caso, ¢ com os discursos sobre a literatu- ra, no segundo, Em todas elas, no entanto, sente-se a preocupagio de tomar como ponto de pavtida o texto ou textos literdrios e desen- volver, através de uma reflexiio comparativa, formulages ou siste- matizagdes. A abordagem por géneros remonta a Aristételes com a s\ Poética e, apesar das oposigdes que encontrou ao longo da histér da Literatura Ocidental — sobretudo entre os romanticos (Victor Hugo) ¢ mais tarde os impressionistas (Croce) -, constituiu durante muito tempo uma das formas mais tradicionais dos estudos de Lite- 46 Revista Brasileira de Lterstura Compa 8.2006 ratura Comparada. Ela consistiu na configuragio teérica dos géne- ros a partir do confronto entre obras e em estudos hist6ricos sobre géneros especificos, mas apresentou mais indagagdes do que res- postas a0 longo de toda a sua trajetéria, e € hoje ainda reconhecida exatamente pelos problemas que levantou: a difi tagZo de fronteiras entre as construgdes de géneros, a inadequagiio de qualquer generalizagio em. fungo das mudangas por que estes passaram ao largo da hist6ria litera idade de tragar- se um percurso claro de sua evolugiio devido ais oscilagdes que tive- ram, como a stit maior ou mencr importincia num dado momento histérico ou em certos locais. Essa abordagem por géneros deu ori gem aestudos hoje clissicos de Literatura Comparada, como os que estabeleceram distingdes, por exemplo, entre a tragédia grega € a moderna, ou os que tragaram a evolugio do épico da Antigilidade & era moderna, passando pelos poemas anénimos medievais (Beowoulf, Chanson de Roland e Poema dle mio Cid), mas so hoje mais es sose voltados, em sta maioria, para uma perspectiva predominante- mente cultural. Do mesmo modo que a anterior, a abordagem por movimen- tos ou eras, ou ainda estilos de época e excolas, foi também das mais freqiientes nos estudos tradicionais de Literatura Comparada e trou- xe sem diivida contribuigdes fundamentais ainda hoje respeitadas. Ela estudou, acima de tudo, os diversos perfodos ou movimentos da hist6ria lite aando-os a partir de temas especificos, cnones estéticos e priticas estilfsticas, e deu origem a um amplo Jeque de cursos que povoaram as universidades ocidentais, como os centrados em torno de um movimiento ou era (0 periodo Renascentista, o Romantismo, 0 Barroco, a era Elizabethana ou a cra de Lufs XIV), ou de uma escola ou geragio (a geragdo de 98 na Espanha, a Lost Generation americana, a Escola de Minas ou a Es- cola de Frankfurt). Entretanto, aqui também, os problemas levanta- dos por este tipo de estudo foram maiores do que qualquer tentativa de resposta e deram margem a novas investigagdes do mesmo modo frutiferas. Entre estas destacam-se os estudos que problematizaram questdes como a da periodizagio, das variagdes nacionais de estilos como 0 Barroco ou 0 Modernismo, da existéncia de obras isoladas ou grupos de obras que anteciparam certos movimentos, como é 0 caso do Sturm und Drang, na Alemanha, ou de uma figura como Sousindrade ou Machado de Assis, no Brasil, da existéncia de movi- ma ria, caracter Literatura compurada: rellexdes sobre wma disciplina académica 7 mentos criados por uma figura como Petrarca ou Shakespeare, que atravessaram séculos, e dos estudos de fontes e influéncias, to cri- ticados atualmente, mas que renderam farto material no passado. Em todos esses casos, embora a preocupagdio dominante tenha sido com o elemento estético, ou mais especificamente litersrio, a Hist6- ria ea Filosofia, assim como outras disciplinas, tiveram significativa participagdio, chamando atengio mais uma vez para o cardter interdisciplinar que 0 comparatismo nunca deixou de lado. Sea Historia e a Filosofia desempenharam um papel relevante no caso cm questo, na abordagem por temas ou mitos, ou ainda motivos € assuntos, tanto essas como outras disciplinas, como a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia e a Politica, tornaram-se indispensaiveis se nZio mais para fornecer o substrato basico para os estudos ¢ impedir qualquer visio impressionista das questdes trata- das. Essa abordagem, que constitui toda uma drea de estudos co- nhecida como Sioffgechichte, € talvez.a mais abrangente de todas € inclui t6picos abundamentemente explorados pela Literatura Com- parada, como o tema do Fausto na Literatura Ocidental, o tema do D. Juan, 0 mito do herdi, o mito de Edipo, o motivo do suicidio, o tema da utopia, a presenga do indio nas literaturas americanas, € inclusive questGes que atualmente constituem reas espectficas de estudo, como a questo da mulher na literatura (Women Studies questio do negro ou de outros grupos étnicos (Afro-Amercian Studies, Chicano Studies, etc.) ¢ a questio do homossexualismo (Gay and Lesbian Studies). Aqui também, como nas abordagens anterio- res, a problematizagio é mais relevante do que qualquer tentativa de afirmagdio ou busca de solugdo para os problemas, e o maior deles € sem diivida a amplitude excessiva do material, que requer rigorosa selegio preocupagio cientifica, bem como a improvisagdo de te- mas ou mitos, que deve ser olhada sempre com desconfianga, Como trata de uma abordagem extremamente rica ¢ criativa, em quie a \erdisciplinaridade se faz mais evidente, as mudangas por que pa ssam os estudos nessa seara silo também bastante mais rpidas. E evidentemente na abordagem & base da inter-relagiio da Li- teratura com outras formas de expressao artistica ou outras dreas do conhecimento que a transversalidade da Literatura Comparada se faz mais explicita, e € importante lembrar que este tipo de estudo, existente ja desde a Antigilidade, ainda que de forma nao sistemati- zada, vem cada vez se ampliando mais em nossos dias. J na época 48 Revista Brasierade Litertura Compara, 08.2006, de configuragio e consolidugio da disciplina — 0 século XIX ~ figu- ras como Amptre e Chasles, ao tentarem definir a Literatura Com- parada, buscaram aproxim-la, respectivamente, como vimos, de ou- ras formas de expressiio artistica ¢ outras dreas do conhecimento, € at chamada Escola Francesa realizou diversas incursées em ambit cesferas de atividades, Mas no perfodo da Escola Americana a preo- cupagao com a interdisciplinaridade foi de tal modo ampliada, que passou a figurar inclusive da maioria das tentativas de definigo da disciplina. Na definigdo de Aldridge, por exemplo, acima menciona da, 0 termo “literaturas” chega a ser substituido num por “culturas nacionais”, indicando uma significati mbito do comparatismo, c verifica-se grande insisténeia sobre a idgia de comparagio entre “mais de um literatura nacional” e “outra dis- ciplina intelectual, ou até mesmo varias”. Além disso, so intimeros 0 trabalhos que surgem nessa época sobre as relagdes entre Litera- tura e Musica, Artes Plisticas, Cinema, Dangu, ¢ outras searas do conhecimento, como Filosofia, Hist6ria, Psicologia, Sociologia, Antropologia, Teologia, Politica, Biografia e Direito, e tais estudos conferem 3 disciplina um vigor extraordinsrio, A relagao entre a literatura e as outras artes, bem como at dit literatura ¢ outras areas do conhecimento vem de tempos os mais remotos, €, se formos tragar um quadro retrospective dos Estudos Literirios, veremos que ela produziu como resultado frutos impor- tantes, sob a forma muitas vezes «le novos géneros de teor misto. Os exemplos so muitos, mas citem-se a titulo de amostragem que da associagiio da literatura com a hist6ria resultaram a propria poesia &pica, o romance histérico ¢ a bio ida; de sua com- binago com a miisica religiosa, surgiram os hinos; da relagaio com a danga, os ballets narrativos; €, com a astronomia, a fiegao cientifica. E lembremos ainda que este proceso associ:ttivo continua vivo, pro- duzindo novos géneros nio menos expressivos que os acima menei onados, como & © caso, no contexto brasilei literatura com « misica popular, que deu origem ao samba-enredo, expressdo das mais marcantes da cultura popular do pais. Além dis. nda que a aluagio dessas diversas dreas sobre a literatura e vice-versa sempre foi significativa, no sé em nivel temitico quanto inclusive formal. Eo caso, por exemplo, do cine- ‘ma, no século XX. que provocou na literatura a ruptura das dim s6es tradicionais dle tempo e espaco, introduzindo recursos como 0 so, assinale-se catura compara: reflexdes sobre uma. diseiplina aeadémica 49 da simultaneidade, hoje to corrente na ficgiio, ou ainda o das artes plasticas, que, sob formas como a do Cubismo, introduziu na litera- tura a nogio de superposigao de planos, que se estendeu, por exem- plo, de Picasso a Appolinaire. ‘Com essa amplitude de material, os estudos nessa esfera do comparatismo formam uma vasta bibliografia que abarca areas as jadas do saber, ¢, como em todas as abordagens anterior- mente citadas, a problematizagio aqui faz-se obviamente mais im- portante do que qualquer tentativa de afirmagiio de pressupostos te6ricos delimitadores. Assim, dentre as preocupagdes que mais in- quietaram os pesquisadores, destaquem-se a da delimitagio de cam- pos, da adaptagZo de uma obra para outra, ou, melhor, da tradugio para um outro meio, ¢ da atuagao de uma direa sobre a outra, através principalmente da utilizagdo de recursos importados daquela. A pri- meira dessas quest6es deu origem a estudos muito ricos sobre a re- lagdo entre a palavra e a imagem no cinema e na literatura ou na pintura € na literatura, ou sobre os vinculos existentes entre uma composigo musical e outra poética, e deu ensejo a amplas di sdes sobre a classificagdo numa esfera ou noutra de letras de mtisica popular ou de formas litero-cinematogrificas como 0 cinéroman de Pasolini ou Robbe-Grillet. A segunda, a da adaptagiio ou tradugiio, de obras de uma érea para # outra, foi a tnica também de muitos estudos, e teve como grande contribuigio a desmitificagio da pers- pectiva bindria tradicional que considerava sempre a forma adaptada ou traduzida como manifestago menor ou devedora da primeira. A terccira, finalmente, também proficua em trabalhos, tanto quantitati- va como qualitativamente, foi a que abordou o emprego de recursos de uma drea na outra, como 0 uso de recursos musicais ou pictéricos na literatura, e de recursos literrios no cinema, nas artes plisticas ou na misica. ‘Mas se nos exemplos acima nos ativemos a esfera das relagdes entre a literatura e outras formas de manifestagiio estética, vale lem- brar que também foram ricos e abundantes os estudos que enfocaram a relagio entre a literatura e outras éreas do conhecimento, como é o caso da Sociologia, da Filosofia e da Psicologia, ou, mais especifica- mente, da Psicandlise, que chegaram muitas vezes a fornecer um instrumental para a abordagem do fendmeno literirio, ¢ se serviram também da Literatura para as suas formulagées te6ricas, reu, por exemplo, com a iltima, que teve muitas de suas concepedes mais cus- como ocor- 50 Revista Brasileira de Literatura Compara, 9,206 basicas extrafdas da literatura ckissica (os mitos de Edipo, Elec Prometeu, Medéia, etc.). No cabe aqui detalhar a atuagdo de cada uma dessas dreas sobre a Literatura e vice-versa, mas nao nos pode- ‘mos furtar a mencionar os diversos géneros mistos daf surgidos, como © romance filoséfico de um Sartre ou Camus, a chamada “narrativa engajada", fortemente influenciada pelo marxismo, ou o romance psicolégico de um Svevo, por exemplo, nem muito menos as corren- tes critico-tedricas oriundas dessa relagio, como a corrente filoséfi- ca, 0 marxismo ou a meramente socioldgica, ¢ a corrente psicanali- tica, ou simplesmente de base psicolégica, que deu margem a um grande niéimero de leituras, muitas delas bastante interessantes, de obras literdrias. Embora a maioria dos pressupostos da Escola Americana de Literatura Comparada tenham sido fortemente abalados apés a dé- cada de 1970, dando lugar a outras tendéncias distintas e diversas entre si, o veio interdisciplinar por ela amplamente estimulado é um trago que iré permanecer, ainda que com faces diferentes. Assim,em fungdo de contribuigdes de correntes do pensamento contempora- neo como os Estudos Culturais e P6s-Coloniais, a compartimentagiio do saber que ainda vigorava na época da Escola Americana, exigin- do que um estudo comparatista sobre 0 tema do incesto ou da revo- lugio, por exemplo, fosse abordado por um viés que enfatizasse o literdrio, € no o psicanalitico ou 0 sociolégico respectivamente com 0 objetivo explicito de deixar clara a diferenga entre as duas {reas — deixou de ser levada em conta. Do mesmo modo, a questiio da adaptagdo de uma obra de uma esfera artistica ou do conhe mento para outra também deixou de ser vista pela perspectiva bi ria tradicional, que considerava sempre a segunda como devedora da primeira, e passou a ser encarada como uma outra manifestagio, uma tradugdo criativa da primeira, que com ela dialoga, mantendo a sua singularidade. Na fase clissica da disciplina, havia sem dvida uma penetragdo em dreas distintas do conhecimento, mas 0 locus de pertencimento do estudo era deixado claro. Hoje essas fronteiras foram langadas por terra, € 0 sentido da interdisciplinaridade se am- plia de tal modo que tende a generalizar-se, sendo muitas vezes subs- lo pela idéia de cultura, A relagao da literatura com os discursos da Teoria, da Critica e da Historiografia literdrias € uma das questdes mais amplas ¢ con- trovertidas no Ambito dos estudos literdrios e no pode ser conside~ Literatura comparada:reflexdes sobre uma. disciplina acauémica 3! rada apenas uma das abordagens da Literatura Comparada, como quiseram os estudiosos que a inclufram nessa esfera. Contudo, ela revela uma série de aspectos que nos interessam em particular, maxi- me no que diz respeito 3 rela¢Zo do comparatismo com tais discur- sos. Assim, no que concerne 3 Teoria, comecemos por observar que a Literatura Comparada e a Teoria Literdria nao se antagonizam em momento algum; antes complementam-se e ndo podem prescindir uma da outra, Toda teorizagao sobre uma obra ou obras literdrias pressupée necessariamente uma ati jade comparatista, ainda que num plano intertextual nao explicito, ¢ todo estudo comparatista sério conflui para uma reflexdo de ordem te6rica e eritica; caso con- trrio, corre o risco de ater-se a mero descritivismo, ou, como diria Wlad Godzich, nao hi nenhuma abordagem ateorética da literatura, problema que se verificou com freqiiéncia nos estudos de Teoria Literiria € que a Teoria sofreu uma espécie de inversio epistemolégica, afastando-se de seu sentido originario de reflexao sobre textos literiirios com vistas a uma sistematizagiio (observe-se que em sua etimologia a palavra encerrava os sentidos de “contem- plagio”, “olhar”) e incorporando a idéia da aplicagio de modelos que adquiriram foros de universalidade. Essa pretensio, de cunho cientifico-formalista, atingiu o seu pice no periodo do Estruturalis- mo € continua viva ainda hoje, sobretudo na pritica universitéria. E © grande risco a que ela leva o pesquisador da literatura € 0 da a- historicidade, uma vez que busca a construgo de modelos exemplit- res que sejam extensivos a todo tempo e lugar. Tal concepgaio do discurso te6rico nao s6 0 afasta da idéia mesma de discurso, que é sempre histérico, como o distancia tanto da obra ou obras que the deram origem, quanto, ¢ As vezes de modo abissal, daquelas a que 0 discurso sera aplicado, porque nao leva em consideragio a suas diferengas contextuais, As teorias surgem num contexto espectfico é € € saudvel que migrem para outras paragens, mas, ao fazé-lo, preciso, como diria Edward Said, em seu ensaio “Traveling Theory’ que se reconhegam as diferengas hist6rico-culturais entre o seu con- texto de origem e o de recepgdo (SAID, 1983, p. 226). Além disso, como as teorias tém surgido com mais frequéneia nos meios académicos onde os estudos literdrios acham-se mais de- senvolvidos, ¢ tais meios localizam-se, por razdes predominante- mente econémicas, na Europa Ocidental e na América do Norte, elas se baseiam num corpus literdrio emanado daquele contexto, 52 Revista Brasileira de Litentura Compras, 8, 2006, izadas, as teorias estiio automaticamente igindo as obras que the deram origem como modelares e encaran- do todas as demais a que forem aplicadas como secundétias ou infe- riores. O resultado € uma visio profundamente eurocéntrica monocultural da questo, que toma tanto a literatura européia quan- to sua reflexiio teérica como grande referenci: s demais produgdes provenientes de outras regides a pecha de periféri- cas, Foi essa pritica que constituiu a ténica dos estudos literdrios na América Latina, especialmente na época durea do Estruturalismo, € que ainda hoje, a despeito de amplo questionamento por que vem passando, encontra espago no meio universitario. Do mesmo modo que a Teoria, a Critica tampouco se acha em oposigdo 3 Literatura Comparada, conforme ja assinalou Wellek em seu ensaio “A crise da Literatura Comparada”, apresentado no IL Congreso da Associagio Internacional de Literatura Comparada, em Chapel Hill (1958); a0 contririo, no ha avaliagio de obra ou obras literarias que niio passe por uma perspectiva comparatista, as- sim como qualquer estudo comparatista requer uma reflexio que englobe os estigios da Critica —a descrigao, a interpretagio e a ava- liagdo. No entanto, aqui também, como no caso da Teoria, 0 proble- ma reside no cardter universalizante que a Critica freqiientemente adquiriu, tornando-se um discurso a-hist6rico e calcado em valores de ordem monocultural. Assim como a Teoria, a Critica, sobretudo de meados do século XX, ergueu seus pilares sobre um corpus da tradigdo ocidental, eleito luz de pardmetros supostamente imu veis, que se originaram de reflexes tedricas anteriores, cristalizadas através da hist6ria, Servindo-se de pressupostos dessas construgdes que nunca puderam ser completamente definidos, como as nodes de “literariedade” e de “permanéncia”,e respaldando-se em tratados que vio desde a Poética de Aristételes aos nossos dias, a Critica entdo preocupou-se em ratificar os valores estéticos neles apresen- tados, construindo um verdadeiro baluarte — 0 cinone ocidental ~ {que passou a instituir-se como at grande referéneia (COUTINHO, 2003, p. 74-5). A partir de entio, toda produgo era medida A base da comparaco com os modelos que integravam ou o cinone especifico das diversas literaturas nacionais ou o cdnone ocidental referido, com- posto de representantes das nagdes mais prestigiadas do Ocidente. Essa posigio da Critica, hoje bastante questionada pelo seu cunho etnocéntrico — que se tornava ainda mais grave nos contextos, ratura comparada: reflexdes sobre uma. disciplina académiea 33 periféricos, devido ratificagdo a que levava dos valores do eixo euro-norte-americano ~, nao foi, contudo, © Gnico problema que este tipo de discurso acarretou para os estudiosos da Literatura, Ao lado desse, erguia-se também o dos parametros de avaliagio, ligado a0 método ou corrente critico-tedrica escolhido para descrever, in- terpretar e avaliar a obra ou obras em questiio. As correntes critico- teéricas sucediam-se com rapidez e variavam de um contexto para outro, oferecendo possibilidades varias, muitas vezes bem distintas até contraditérias. Nesse caso, como eleger, entre o leque de opgdes oferecidas, muitas vezes inclusive condicionadas a.um momento hit {6rico espectfico, a abordagem adequada, mxime quando falta, como a0 iniciante, a experiéncia que o ird orientar? A resposta para tal indagagio € obviamente mais ampla e diversificada do que a sua formulagdo, e sé pode ser apreendida ao pensar-se na rela- stabelecida entre 0 estudioso e seu objeto de trabalho, mas a mera indagagdo sobre esse fato traz. 4 tona novamente uma questo que nos vem ocupando desde o inicio: a de que a Literatura Com- parada niio tem um método exclusivo de trabalho, mas serve-se ao contririo das diversas possibilidades que a Critica e a Teoria the oferecem, Existente também desde a Antigiiidade, quando esteve, por exemplo, voltada para o estabelecimento de textos do Velho e Novo Testamentos a partir de uma infinidade de manuseritos distintos, a Historiografi sempre se instituiu como uma das principais searas de investigagZo da Literatura Comparada, tendo esta inclus ‘ve em seus primérdios sido freqiientemente confundida com ela, em decorréncia do predominio do método historicista a ocasitio da con- figuragdo e consolidagao da disciplina. Tal aproximagio, se de um Jado assinala a importincia do cardter hist6rico dos estudos litersri- os, de outro levou a um problema que perdurou durante longo tem- po-o do emprego do método historicista na abordagem do fendme- no literdrio e a reagdo a que tal atitude levou em momento posterior, com a onda de correntes imanentistas, que nao sé relegaram a Historiografia Literdria a plano secundério, como chegaram a consi- derar a dimensao histérica como irrelevante ou até mesmo dispensi- vel na apreensio da obra literdria. Foi somente do diimo quarte! do século XX para o presente, ou, melhor, na era pés-estruturalista, que a importancia do contexto hist6rico foi resgatada, mas é preciso lem- brar que por uma perspectiva bastante distinta da do historicismo tra- 54 RovitaBea cra de Literatura Compara 8, 2006 dicional. Agora, além de o movimento mais freqiiente na abordagem do fendmeno literdrio estar caleado na dialética texto/ contexto, pas se a levar em conta nao s6 0 lacus hist6rico-cultural de produgao da obra como também o de recepgiio, e evidentemente a relagio estabelecida entre ambos. Com as transformages sofridas nas dltimas décadas, a Historiografia literdria voltou a ocupar um espago privilegiado nos estudos de Literatura Comparada, s6 que agora os estudiosos da Literatura deixaram de ver a Hist6ria Literiria como o registro acumulativo de tudo 0 que se produziu ou a simples compilagao de temas ou formas, e passaram a encaré-la como a escritura constante de textos anteriores com o olhar do presente, estabelecendo 0 que Fernand Braudel designou de uma verdadeira dialética entre o pas- sado e 0 presente. Conscientes de que os fatos, fendmenos ou acon- tecimentos que irdo relatar ocorreram no passado, mas também de que eles préprios sio individuos historicamente situados, eles cons- troem stias narragdes 3 luz. de uma visiio comprometida com o tem- po e local de enunciagaio. O resultado é que a Histéria Literdria passa a ser a histéria da produgZo e recepedo de textos, e, para 0 historiador, esses textos constituem ao mesmo tempo documentos do passado e experiéncias do presente (COUTINHO, 2003, p. 77). ‘a nova visio da Historiografia leva os historiadores da Li- teratura & consciéncia do cariter etnocéntrico ¢ elitista do discurso historiogréfico tradicional e traz como conseqiiéncia, como no caso da Critica, o questionamento do canone, aqui representado pela his- LGria oficial, Além disso, com o questionamento que vem sendo em- preendido por correntes do pens:mento contemporineo sobre o pré- prio conceito da obra literdria, a esfera da Historiografia Litersria amplia-se consideravelmente, porque passa a incluir outras formas de discurso até entiio exclufdas. Do mesmo modo que os estudos de Hist6ria rout court deixaram de restringir-se aos eventos politicos e diplomiticos, passando a incluir as circunstancias mais amplas que os condicionaram, as pesquisas de Histéria Literdria enveredaram também por territ6rios antes reservados a outros saberes. Agora, a0 lado do exame do texto, passa a ter relevancia também a andlise do campo em que se produziu a experiéncia literdria, e 0 contexto de recepgdo da obra é equiparado ao da produgio. O desvio de olhar passa a ser uma constante na Historiografia Literdria e os mesmos epis6dios passam a ser relatados por perspectivas distintas. Surge Es: Ci. CLEMENTS, 197%, P 208. tu. 8. Literatura comparada:reflexdes sobre uma diseiplina académiea 35 também nio s6 uma quantidade de hist6rias ndo-oficiais, que vem por em xeque a autoridade da versio candnica, como passam a inte- grar a Historiografia Literdria tanto a produgio de grupos até entio excluidos por essa vertente, como os chamados grupos étnicos minoritérios, quanto ainda outros registros, como o “popular”, tra- dicionalmente contraposto ao erudito. Finalmente, passam também a figurar dessa nova historiografia outras espécies de discurso, que se situam na esfera da cultura em geral, explicitando, mais do que nunca, a fluidez das fronteiras interdisciplinares. As abordagens da Literatura Comparada, tanto as que focali- zam as obras mesmas quanto as que esto voltadas para as suas rela- gdes com outras formas de manifestagdo artistica ou outra area do conhecimento, revelam todas elas um leque amplo e variado de estu- dos que, juntos, formam, como pudemos ver, uma disciplina, freqiientemente identificada, ndo fosse a énfase sobre a idéia dacom- paragzo ou da transversalidade, com a propria nogio de estudos lite- ririos. E € nesse sentido que ela € vista em espagos académicos como o francés ou o norte-americano que denominam seus departa- ‘mentos de estudos ndo especificamente de literaturas nacionais como de Literatura Comparada. Tais departamentos, surgidos em contraposigao aos de literaturas nacionais, foram criados exatamen- te para portar a marca da transversalidade e da interdisciplinaridade € para caracterizar-se pela sua amplitude, estando conseqiientemen- te voltados para a assimilagio de diversos métodos. Assim, qual- quer restricdio a um método ou técnica de abordagem do fendmeno Titerdrio era vista como problemdtica e criticada no Ambito da disci- plina, como podemos ver pelas palavras de Lowry Nelson: a Literatura Comparada deve guardar-se contra certos mo- demnismos ou modismos. Limitar os estudos literirios a certas versdes excéntricas ou totalitérias de Freud ou a ditima revivificagio de Heidegger (como nos jogos de palavras filosofi- ‘cos de Derrida) significa tornar provincianos os estudos literdrios ce deixar de lado suas bases académicas”. No entanto, se a restrigio a um método ou técnica especttico de abordagem do fendmeno literirio era contraria ao espirito da Li- teratura Comparada, que tinha sempre a possibilidade de dispor de opgdes metodolégicas distintas, dependendo das circunstancias es- peefficas que cercavam cada caso, por outro lado a sua identificagao asia de Literatura Compara, 82006 tout court com a prépria érea dos estudos literdrios, sugerida na afirmagao acima, implica uma generalizagio, que foi tida também por varios criticos como problemitica, por suprimir a nfase sobre 0 carter de transversalidade que tanto assinalou a evolugao histérico- conceitual da disciplina. Nao é A toa que Susan Bassnett, em seu livro Comparative Literature: a Critical Introduction, afirma que a resposta mais simples para a pergunta sobre o que & a Literatura Comparada seria a de que ela “envolve o estudo de textos entre culturas, que ela é interdisciplinar e que esti voltada para os padres de relagdes entre as literaturas no tempo € no espago."* Enno sentido mais amplo de disciplina acaiémica, mais proxi- ma do que se poderia chamar de Estudos Literdrios do que de um imples método, que a Literatura Comparada se desenvolveu no Bra- sil, principalmente apés a criagdo da ABRALIC. Ao longo do sécu- lo XX, diversos estudiosos da Literatura ja haviam realizado est dos de Literatura Comparada, como é o caso, por exemplo, de figu- ras como Antonio Candido, Afrinio Coutinho, Eugénio Gomes, Augusto Meyer, ¢ Tasso da Silveira, que inclusive publicara,em 1964, um manual A maneira dos franceses com o titulo de Literatura Com- parada, ¢ a disciplina jé era lecionada em algumas universidades brasileiras, como a UFRJ e a USP, na primeira tanto a nivel de gra- duagdo quanto de pés-graduaco, Mas o grande impulso que a area tomou data da criagdo da ABRALIC, e foi também a partir dai que a sua esfera de atuagio se ampliou de tal modo, que chegou a ser identificada — pelo menos no nivel da associagdo ~ com a drea dos estudos de Literatura em geral. Idealizada durante o XI Congresso da Associacio Internacio- nal de Literatura Comparada, ocorrido na Universidade de Sorbonne- Nouvelle, em Paris, no ano de 1985, por um pequeno grupo de estu- diosos brasileiros Id presentes—com 0 objetivo de propiciar, através de um intercimbio mais dindmico com os demais pélos de estudos da disciplina, um desenvolvimento verdadeiramente eficaz do comparatismo no Brasil -, e fundada um ano depois em Porto Ale- gre, durante o “I Seminério Latino-Americano de Literatura Com- parada’”, a ABRALIC veio a se tomar a maior associagao de literatu- ra do pafs, deixando de lado qualquer especificidade e passando a aburcar todo tipo de estudo na drea em questdo. Hoje a Associagao, que ja realizou, em seus dezenove anos de existéncia, nove congres- 0s internacionais de grande porte, seguidos da publicagiio dos Anais, “BASSNETT, 1993.0. |. eratura comparada:reflexdes sobre uma disciplina académiea 37 € conta com dois vefculos importantes de divulgagio ~ 0 Boletim Contraponto e principalmente a Revista Brasileira de Literatura Comparada, agora em seu oitavo nimero -, inclui professores pesquisadores de toda a drea de Letras no Brasil e estimula pesqui- sax que se estendem desde as abordagens mais tradicionais da disci- plina até dreas antes situadas & margem dos estudos de Literatura por nao lidarem necessariamente com textos considerados literitios, como a dos Estudos Culturais. Esse sentido abrangente que os estudos de Literatura Compa- rada adquiriram no Brasil nao constitui evidentemente um caso iso- ado; antes trata-se de uma tendéncia por que vem passandoa disci- plina no contexto universal, decorrente em grande parte do {questionamento empreendido nas tiltimas décadas sobre nogBes como at da propria “literariedade” e de construgdes como a “nagdo” ou 0 “idioma”, pilares tradicionais do comparatismo. Mas nem por isso é menos importante, pois indica uma vez mais, e sob uma nova roupa- gem, a preocupagiio sempre presente com a delimitagao da diseipli na, Se os estudos de Literatura Comparada ndo devem mais ter necessariamente como referencia um texto ou textos literdrios e se 1nd tém de ser necessariamente (ransnacionais ou trans-idiomiticos. (0 que ento, se poderia perguntar, marcaria a especificidade da dis- ina? Nao hd diivida de que responder atal pergunta, numa época que se caracteriza justamente pela diluigao de fronteiras disciplina- res, 6 tarefa no mfnimo deticada, mas arriscar novas indagagdes & mbém um trago salutar. Assim, concluimos nossa reflexiio com a pergunta que pode abrir novos caminhos, mas jamais fechar-se em solugdes: se a Literatura Comparada niio é sem diivida um simples método de abordagem do fendmeno literdrio nem tampouco a area imteira dos chamados Estudos Litersrios, ainda que mais préxima se situe da tltima do que do primeiro, é possivel ainda encontrar tragos que possam, se néo defini-la com clareza, a0 menos sugerir suits fronteiras? 38 Revista Brasileira de Literatura Compara, . 8, 2006 Referéncias bibliogrificas ALDRIDGE, Owen, ong. Comparative Literature: Matterand Method. Urbana: Univ. of Minois Press, 1969, BASSNETT, Susan, Comparative Literature: « Critical Introduction. 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