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Doutora Ieda Tucherman
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
“Ismênia: Estás correndo atrás do impossível
Antígona: Pois seja, na última fronteira do possível,
tombarei”
Antígona – Sófocles
1 Começando com anjos
1
a partir delas que podemos discernir o que há do que não existe e operar as combinações
que fundam nosso território, precisamos não esquecer que qualquer fronteira tem um caráter
políticoadministrativo. Talvez seja este o recado que nos trazem, anjos e cyborgs: o de
aprender a pensar contra as fronteiras. Com as conseqüências inevitáveis que temos que
enfrentar, sendo a mais imediatamente visível a perda das referências que nos proporcionam
o conforto do reconhecimento. De qualquer modo eles parecem trazer uma proposta: pensar
pode e deve ser um vôo no inesperado, o que é o oposto de reconhecer.
Foi nesta posição de intermediário do tempo e de seu guardião que a mitologia
judaicocristã criou sua legião de mensageiros, algumas vezes invisíveis, outras invisíveis: os
anjos. Nas tradições monoteístas, os anjos aparecerem e desaparecerem, passam no silêncio,
percorrendo o espaço na velocidade do pensamento. Silêncio, um anjo passa... Tecendo no
seu percurso redes, não entre seres e coisas exatamente, mas os mapas do nosso universo, as
cartas e os agenciamentos, as novas e insondáveis produções do mundo das quais conhecem
os segredos. Como mensageiros assumem formas humanas, mas também fluxos de ar e de
água etc., e atravessam os espaços e os tempos, as muralhas e as portas fechadas. Nada lhes
seria, a princípio, vedado, mas eles são seu próprio limite: eles só levam a palavra e a
promessa, são comissários da palavra 1 , esperando que o Mediador em carne e osso possa vir
à presença. Mediadores do mediador, o mensageiro deve desaparecer e se apagar para que o
destinatário ouça a correspondência do expedidor – o texto – e não o enviado. E quando
somem mostram duplamente suas mensagens: o que eles produzem e o que são. Mensagem
perfeita: o anúncio feito a Maria pelo anjo Gabriel de que ela será a mãe do filho de Deus.
Por esta excelência, talvez uma das reproduções mais freqüentes da arte ocidental.
São também guardiões do tempo e de sua locanda: no Velho Testamento, no mito da
Gênese, apenas uma árvore era proibida a Adão e Eva no Paraíso: a Árvore do
Conhecimento. Eles comeram dela e se envergonharam (tinham transposto o limite). Foi
então que Deus interditou uma segunda árvore, a da Vida, que passou a ser guardada pela
espada de fogo do anjo. Se os homens tiverem o conhecimento e a eternidade serão deuses:
ascender ao conhecimento é integrarse ao tempo e à finitude (por isto mesmo o desafio
radical de toda a nossa ciência é superála). Comer da Árvore da Vida seria ganhar o infinito
2
que nem os anjos tem, já que nascem, isto é, tem origem. O AnjoGuardiãodaLei, Anjo
GuardiãodaMorte. São assim, corpos de relações. Suas mensagens são os caminhos
possíveis e impossíveis no espaço e no tempo.
Cada anjo carrega múltiplas relações, o que os desliga para sempre da unidade
sujeito de qualquer enunciação. Construindo mensagens e o processo de seu transporte, as
metáforas, sendo espírito e corpo, de dois sexos e sem sexo, naturais e técnicos, coletivos,
em ordem ou desordem, produtores de barulho, de música, de línguas, espalhados pelas
coisas do mundo e nos artefatos, os anjos são quase inapreensíveis. Opostos ao deus central,
produtor irradiando uma origem dos tempos. E de Satã, em hebraico, acusador público ou
advogado geral, o homem do julgamento. Os anjos existem em miríades e nós os inventamos
aos milhares, ansiando por sua leveza 2 .
E não fazemos isto apenas nos textos religiosos. Pensemos em alguns segredos que
as palavras encerram, pedindo algum cuidado para serem desveladas. Uma delas, que em
nossos hábitos costumamos associar à produção científica e tecnológica, ou seja, à pesquisa
e à criação, é muito curiosa: laboratório, pois diz, na sua etimologia, de uma combinação a
princípio tão inusitada quanto a dos personagens deste texto: labor, de trabalho, tarefa,
atividade e oratório, de lugar sagrado, prece, campo religioso. Um lugar privilegiado de
produção de milagres, parece ser sua topologia lingüística. Pois é o lugar onde os cientistas
agem como deuses, criando ou transformando o que há na natureza. Lugar de desafio de
fronteiras, onde o natural é apreendido pelo artificial e por ele domado. Até mesmo
sintetizado, numa operação de geração ainda mais complexa.
O que associamos aos anjos, mais imediatamente, é a sua ausência de gravidade.
Que, de certa forma, nós, mortais só experimentamos nos sonhos quando, por vezes, eles
nos fazem voar, perder o peso do corpo que carregamos nas nossas vidas acordadas. Não é
difícil lembrar do AnjoPersonagem do filme Win Wenders, Asas do Desejo, que pede,
apaixonado, um corpo. E, com ele, o nosso destino e modo de ser gente. As grandes
1
Para pensar nos anjos como redes e fluxos o belíssimo livro La Légende des Anges de Michel Serres, Paris,
Flammarion, 1994 é rigorosamente aconselhável.
2
Em Seis Propostas para o Próximo Milênio, Ítalo Calvino escolhe como tema de sua primeira palestra
exatamente a leveza, e afirma, na página 24: “Se quisesse escolher um símbolo votivo para saldar o novo
milênio, escolheria este, o salto ágil do poetafilósofo”.
3
experiências amorosas também nos angelizam num mágico instante em que o corpo parece
levitar. Mas pode ser isto mesmo que os franceses chamam o orgasmo de petit mort.
2 Inventando o Corpo e seu Outro: o Monstro
Pois o corpo é, além do mais longevo conceito da civilização ocidental, nossa
referência mais radical. 3 A persistência e a força desta categoria conceitual (já que o que
temos, naturalmente, é sangue, músculos, nervos e ossos – e o corpo é a imagem totalizada
e reconhecível que produzimos culturalmente) devese, imediatamente, à sua aparente
evidência, que funcionou como suporte para que nós nos inventássemos, esquecêssemos que
era uma invenção, esquecêssemos do que havíamos inventado e tornássemos a nos inventar,
na categoria mais radical que parecia determinar a forma como podemos nos reconhecer no
espelho, no cinema e até mesmo na nossa sombra, que nos faz presentes na nossa ausência
imediata.
Também já consideramos o recurso ao espelho, agora pensado no grande plano, para
além do closeup, que nos parece alegoricamente sedutor. Pois apenas o que possui uma
imagem atual e totalizada se permite capturar no espelho na presença de duas dimensões:
altura e largura. “E, quando nos vemos no espelho, o que vemos refletido é a imagem do
Narciso que está em nós, não do vampiro que nos habita: este sempre escapa, mas escapa
como viajante nômade [...] O vampiro que somos torna possível a imagem do Narciso que
vemos: mas o vampiro não pode ser contemplado, já que o espelho não reproduz a imagem
do vampiro. Drácula contra Narciso. Drácula contra Édipo”. 4
Sendo assim, à invenção do Corpo coube a simultaneidade da invenção de seu
Outro: o monstro, ao mesmo tempo, o corpo do Outro e o Outro do corpo. Fato tão antigo
quanto a própria geração da noção de humano, já que a existência real ou imaginária de
raças ou pessoas que apresentam malformações ou deformações remonta à mesma origem.
Podemos afirmar que a presença contínua deste “outros seres” se reportou à necessidade de
constituir um locus de diferença e alteridade cujas formas e figuras têm o limite daquilo que
contrasta com o mesmo ou o idêntico. Embora freqüente e permanente, a “monstrologia”
3
A este respeito, Tucherman, Ieda, Breve História do Corpo e de Seus Monstros, Lisboa, Ed. Vega, Coleção
Passagens, 1999.
4
Souza, E.J., Theatrum do Sentido, apud Tucherman, Ieda, op. cit. pg. 12.
4
não foi muito inventiva: seu repertório básico; constituído por anões, gigantes, siameses,
hermafroditas etc. não é muito amplo, o que demonstra, como afirma José Gil, que “um
monstro não é não importa o quê” 5
Quando ao mesmo, seu parâmetro de fundação, construído na mitologia judaico
cristã é a perspectiva da Semelhança, já que o homem, a última criatura a ser criada pelo
Criador, foi criado à Sua imagem e Semelhança. A diferença do monstro representa portanto
um aviso, um desvio, um afastamento deste modelo.
De certa forma uma condenação no corpo. Visível para todos.
3 A Contração da Anomalia
No entanto, é fácil constatarmos que vivemos hoje uma freqüência exacerbada e uma
prodigiosa proliferação de monstros que nos surgem de todos os lugares: do cinema, das
artes plásticas, dos brinquedos, dos vídeogames etc. O mais interessante porém, parece ser
o fato que, para além de sua multiplicação numérica, eles também nos são apresentados nas
revistas científicas, nos programas educativos e nos nossos mais conceituados laboratórios,
ou seja, onde os homens brincam de deuses, surgem também seus monstros. Vivemos
atualmente uma efetiva banalização da monstruosidade, que tanto se deve à “sociedade do
espetáculo” quanto, e mais consistentemente, a uma, antes impensável, associação da ciência
com a monstruosidade, seja através das pesquisas das formas de vida sintética, seja através
da manipulação genética ou das misturas de elementos de natureza diferente (como a orelha
humana implantada no dorso do rato). O que nos permite diagnosticar “uma contração no
domínio da anomalia” 6
Poderíamos buscar a genealogia destes monstros e da própria monstruosidade. Cada
época histórica propôs para este campo suas teorias, suas explicações, seus motivos e suas
origens. O que nos interessa, no entanto, é considerar que se convivemos pacificamente com
eles, que nos aterrorizam menos, é porque não temos mais uma configuração tão fechada
para o mesmo, na qual estabeleceríamos nossa imagem do nosso próprio corpo, e que os
5
Gil, José, Monstros, Lisboa, Quetzal Ed. 1984, p. 15.
6
Jose Gil, opus cit. p.12
5
fixaria na mais absoluta e apavorante diferença. Por outro lado, se por eles nos interessamos
tão intensamente é porque eles nos colocam questões extremamente contemporâneas, talvez
porque ainda precisemos de suas figuras para recolocar a questão sobre a humanidade do
homem, esgarçadas as certezas de sua identidade e inteireza neste mundo onde fazemos
proliferar associações entre a carne e o metal, o cérebro e o silício e até nos atrevemos a
pensar a vida fora da base carbono.
Tradicionalmente, o que parece decisivo na concepção dos monstros imaginários é o
seu surgimento a partir de hibridizações de natureza diferente: natureza humana e animal;
natureza divina e animal. O que deveria se configurar como estruturalmente diferente e
nunca se cruzar, produz os monstros teratológicos ou “fabulosos” quando perde a distância,
quando se aproxima demais, a ponto de se misturar. Não é portanto leviano afirmar que
alguém que se conecta com as novas virtualidades técnicas, com um novo princípio de
“realidade”, e não vive seu corpo como separação radical do mundo, ao mesmo tempo em
que domestica seu horror, fascinase com estas hibridizações, ou seja, misturas.
Pois não é a oposição simples que marca a diferença entre monstros e homens, mas
um sistema complexo de aproximações e distâncias. Sendo o Outro, ele não é externo como
deuses e animais, vigora sempre no limite do humano, um limite “interno”, produtor de
figuras estranhas em relação às quais não deixamos de nos perguntar se são efetivamente
humanas, já que nos surgem como a folia do corpo, o desregramento da cultura, a
desfiguração do Mesmo no Outro. Como algo com o qual não nos confundimos, mas
também não nos diferenciamos totalmente: nesse sentido sua definição é instável e sua
alteridade é móvel. Os monstros talvez existam para nos mostrar o que poderíamos ser, não
o que somos mas também não o que nunca seríamos, e assim articulam a questão: Até que
grau de deformação (ou estranheza) permanecemos humanos? Este é o lugar do cyborg,
talvez, por este motivo, considerado como o mais consagrado mito pósmoderno.
4 Hibridizações: A Vida Artificial
Mencionamos a mistura dos elementos de diferente natureza. E já nos referimos à
existência lógica e naturalizada do corpo humano: criado por Deus ou como evolução da
6
espécie no seu processo de “seleção natural”, se quisermos simplificar bastante as teorias de
Darwin. A herança do Tabu do Natural e seus sintomas podemos associar a suspeita de que
a artificialização da vida é talvez a mistura ao mesmo tempo mais perseguida e mais temida.
É isto que nos conta Mary Shelley em seu Frankenstein: a geração artificial da vida
produzindo um monstro. Mas, talvez involuntariamente, podemos pensar no que ela aí
insinua; recuperando a sensação desconfortável de estranhamento que o seu texto provoca,
já que não sabemos bem, se formos mais atentos ou sensíveis, quem é o monstro verdadeiro
desta história: a criatura produzida artificialmente ou o seu criador demiúrgico.
Hoje, em função da carga simbólica que sobre carrega a palavra artificial, que recebe
sentidos como inautêntico, não genuíno, ilusório e outros tantos, parece interessante pensar
na diferença entre dois processos: o artificial e o sintético. 7 É mais fácil explicála
recorrendo a um exemplo: uma pedra de vidro colorido feita de maneira a parecer com uma
safira é artificial; ao passo que uma pedra feita com os mesmos elementos químicos, a
mesma composição molecular, é sintética.
Sintético, portanto, indica a real construção em laboratório, designando algo
diferente do que o senso comum expressa com a idéia de imitar. O que torna seu sentido
ainda mais complexo e problemático é a manipulação da matéria para a produção de coisas
que não tem análogo “natural”, ou, o que é mais surpreendente, a criação de novos materiais
que instauram ou restituem processos naturais. A noção de hipercorpo, que designa hoje a
experiência da nossa corporeidade e se realiza com estoques de órgãos, próteses conectáveis
ou implantáveis como os nanorobôs ou os hormônios sintéticos que ingerimos diariamente,
falanos deste novo mododeser “real”.
Quanto à vida artificial, apesar ou por causa de seu sentido de nãogenuíno, ilusório,
pareceu sempre se reportar aos significados ligados à etimologia de poiésis, tais como
invenção, criação, produção e artefato, conjugando assim a natureza como o seu domínio e
o campo da arte como o do seu obrar. Como sua etimologia, a vida artificial tem raízes
históricas muito remotas, o que confere ao termo cyborg, que designaria em primeiro lugar a
hibridização do natural e do artificial ou do corpo e do artifício (máquina), uma longa
7
Esta diferença e suas conseqüências está consignada na dissertação de mestrado de Adriana Ítalo – O
Conhecimento do Criador, apresentada no departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro em agosto de 1999 e que nos foi de uma ajuda inestimável.
7
genealogia, apresentando termos que vem de séculos atrás, como os autômatos, e outros
mais recentes, de décadas passadas, como os andróides e os robôs, assim como o adjetivo
biônico.
5 Cyborgs e Precursores:
Norbert Wiener, o inventor da teoria e do termo cibernética, do qual se originaram, entre
outros, ciberespaço, cyborg, cyberpunk etc., enuncia uma breve e interessante história dos
autômatos no seu clássico manifesto de 1948: Cibernética: ou Controle e Comunicação no
Animal e na Máquina, 8 identificando quatro figuras que corresponderiam a quatro modelos
para o corpo, constituindo assim uma curiosa história do corpo a partir da geração dos seus
autômatos. O primeiro, ele o encontra no mítico Golem, nascido das especulações
cabalísticas sobre a criação de Adão por Deus, que povoou as lendas da Europa dos séculos
XV e XVI, 9 cujo modelo é o do corpo como mágico, maleável, feito de barro; o segundo
corresponde à era dos relógios (século XVII e XVIII), quando o relógio era o modelo de
tecnologia e elabora o autômato como um mecanismo do relógio, assim como o corpo: são
as figuras que vemos se movimentar para tocar as badaladas do relógio e que podem ser
homens ou bichos; o terceiro corresponde à era do vapor, originando o mecanismo do auto
contrôle (final do século XVIII, início de XIX), o qual faz corresponder ao corpo um
glorificado engenho térmico, queimando combustível em vez da glicose para fazer seus
movimentos. O último, mas recente, corresponde à era da comunicação e do controle, uma
8
Wiener, N., apud, Thomas, David in Feedback in Cybernetics: Remaining the Body in the Age of Cyborgs,
in Cyberspace, Cyberbodies, Cyberpunk, Cultures of Technological Embodiment, edited by Mike
Featherstone and Roger Burrows, London, Sage Publications, 1995.
9
É curiosa a transcrição de uma das versões; o primeiro Golem com forma humana teria sido criado pelo
profeta Jeremias que teria ouvido a voz de Deus dizerlhe: “Arranje um companheiro!” que alterando as
letras que tinha na testa YHWH Eloim Emet (“O Senhor Deus é a Verdade”), apagou a letra aleph de emet,
ficando met: “O Senhor está morto!”. Jeremias então exige satisfações e o monstro lhe conta uma parábola:
“Um arquiteto construiu muitas casas, cidades e praças, mas ninguém podia copiar sua arte e competir com
ele em conhecimento e habilidade, até que dois homens o persuadiram a contar o segredo. Quando
aprenderam a fazer tudo de maneira correta, os discípulos começaram a aborrecêlo com palavras.
Finalmente, tornaramse arquitetos, cobrando a metade do preço. As pessoas pararam de honrar o artista e
passaram a privilegiar os discípulos renegados. Da mesma maneira, Deus vos criou à Sua Imagem e
Semelhança. Mas agora, que, à exemplo Dele, vocês criaram um homem, as pessoas dirão: “Não há mais
Deus neste mundo a não ser aqueles dois” – in Nazário, Luiz, Da Natureza dos Monstros, Belo Horizonte,
Ed. Arte e Ciência, 1998, p. 90.
8
idade marcada pelo poder da engenharia computacional, para quem o corpo é um sistema
eletrônico. A este último, de 1948, virá juntarse, nos anos 60 a proposta de Marshall
MacLuhan, do computador e da sociedade da informação como produzindo a extensão da
nossa mente.
6 Novos Modelos
O que parece separar estes modelos não se prende ao limite das suas realizações. É a
mesma coisa que nos afasta de Mary Shelley, no temor que ela enuncia do mito da
intervenção da técnica e da hibridização homemmáquina. A radical diferença foi a mudança
sem precedentes que marcou a segunda metade do nosso século como sendo a da
mundialização da técnica, pois agora, a anunciada hibridização naturezatecnologia surge
como conquista e não como o pecado cultural da aproximação e mistura do que tem origem
ou diferente natureza. No lugar do horror, convivemos com a sedução dos novos corpos
que surgiram e continuam surgindo como realização da promessa tecnológica. Cada vez
mais a ciência promoveu a interação das técnicas à natureza, isto é, do metal (ou do silício) à
carne.
Obtivemos neste movimento conquistas fundamentais: sistemas de controle e auxílio
para as funções orgânicas, desde os marcapassos que têm salvo os cardiopatas de um
destino condenatório, aos aparelhos de monitoramento e respiração artificiais que operam
milagres de ressuscitamento nas Unidades de Terapia Intensiva, que parecem ocupar para a
saúde o que o purgatório era para a salvação, distribuindo não entre céu e inferno, mas entre
sobrevida e morte. Produziramse aparelhos que ajudam portadores de deficiência a se
locomover e falar, por exemplo, de tais maneiras eficientes, que levaram Paul Virilio a
afirmar em diversos livros que o modelo do homem rico superequipado é o deficiente físico,
“naturalmente” desequipado. E, mesmo quando a técnica não introduz corpos nas máquinas
ou máquinas nos corpos, pode realizar outras intervenções como o transplante de órgãos, a
fertilização in vitro ou as cirurgias plásticas, permitindo duas questões antes radicalmente
hereges e impensáveis: Que corpo quero ter? Que funções quero que meu corpo exerça?
9
Paralelamente a este avanço científico, e como não podia deixar de ser, o terreno
ficcional também se viu invadido por seres híbridos, como os andróides, celebrados no
cultmovie Blade Runner, ou mutantes, derivados de melhorias genéticas que associam o
imaginário social às conquistas da ciência. Neste contexto surgem os cyberbodies, cyborgs,
habitantes de um mundo virtualizável e virtualizado, organismos híbridos cujas funções
fisiológicas são realizadas com a participação de máquinas tecnológicas, correspondendo à
nova imagem mítica relacionada à era da técnica.
Nesta cultura tecnológica, os antigos dualismos e as seguras fronteiras que
caracterizaram nossa tradição cultural são postos em xeque. Separações radicais como eu
outro, corpomente, criadorcriatura, verdadeilusão, naturalartificial, real e irreal não são
nítidas nem operacionais no mundo da relação homemmáquina.
Do mesmo modo, o desenvolvimento dos sistemas de comunicação e a implantação
das redes, das quais a INTERNET é a mais familiar, tornou cotidiana e doméstica a
experiência da erosão das fronteiras no que se refere à nossa idéia de identidade, banalizando
a virtualização do mundo na nova cultura da simulação. Aprender a viver nela, ou seja,
conectado, afeta imediatamente nossas idéias sobre corpo e mente, eu e máquina.
Significa, portanto, que a erosão de fronteiras entre o real e o virtual, o animado e o
inanimado, o eu unitário e o eu múltiplo, que ocorre nos campos avançados de investigação
e nos mais prestigiados laboratórios de psicologia cognitiva, engenharia genética etc.,
também se realiza, simultâneamente, nas nossas modestas práticas cotidianas o que se
visualiza na freqüência com que nos referimos e transitamos pelo ciberespaço 10 e na
presença constante do adjetivo virtual como referência à experiência sexuais e afetivas. Um
novo contexto que parece ter como premissa lógica a dispensa do corpo e de seus gestos, a
morte da distância e a substituição da dimensão temporal pela aceleração.
7 Identidades sem corpos: Além do Sonho e da Besta
10
Termo criado pelo romancista de ficção científica William Gibson, no seu livro Neuromancien escrito em
1984, para designar a representação gráfica dos dados provenientes de todos os computadores gerados pelo
homem.
10
Sherry Turkle, analisando a mudança do processo de construção de identidades na
INTERNET, cita o seguinte comentário oriundo de um usuário da vida sexual e afetiva
virtual: “Por que dar um status superior ao corpo, quando os eus que não tem corpo
podem ter diferentes formas de experiência?” 11
Prosseguindo sua reflexão ela elabora duas analogias, bastante interessantes para
compreendermos a mitologia contemporânea do cyborg. Na primeira ela menciona o
estranhamento que sentia e parecia ser compartilhado, diante das teorias “pósmodernas” de
Lacan, Foucault, Deleuze e Guattari, que apontavam a noção de que o eu unitário era uma
ilusão, enquanto no campo social cotidiano havia a forte pressão para que as pessoas se
dotassem de responsabilidade em suas ações e vissem a si mesmos como atores intencionais
e unitários; ou seja, o que havia, para ela, era o contraste entre a teoria e a experiência
vivida, onde o unitário era a realidade mais básica. Diz ela: “Deste modo, mais de 20 anos
depois do encontro com as idéias de Lacan, Foucault, Deleuze e Guattari, as reencontro na
minha nova vida nos mundos mediados pelo computador; o eu é múltiplo, fluido e
constituído com conexões com uma máquina; é feito e transformado pela linguagem; o
encontro sexual é uma troca de significantes; a compreensão provém da navegação e da
bricolagem mais do que da análise. No mundo tecnológico gerado pelos MUDs (Multiple
Users Domaine) me encontro com personagens que me põem em outra relação comigo
mesma, numa nova relação com a identidade. 12
Sua segunda analogia também é curiosa quando relacionamos, como neste texto, os
cyborgs com anjos e monstros. Recuperando o diário de Ralph Waldo Emerson, de 1832,
“Os sonhos e as bestas são duas chaves através das quais vamos descobrir nossa natureza,
são objetos de prova” 13 ela afirma que ele encontrara os objetos de pensamento da
Modernidade, tendo sido profético: Freud pensou a racionalidade confrontandoa com o
sonho; Darwin e seus seguidores pensaram o mesmo confrontando o homem com a
natureza: o mundo das bestas visto como nosso passado e ascendência. Hoje, o computador
seria o novo objeto de prova: como as bestas e o sonho se situa nas margens. É uma mente
mas não é de todo uma mente. É inanimado mas interativo. É um objeto; no fim das contas
11
Turkle, Sherry, La Vida en la Pantalla, Barcelona, Paidós, 1995, p. 21.
12
Turkle, Sherry, opus cit p. 23.
13
Emerson, apud Turkle, Sherry opus cit p. 30.
11
um mecanismo, mas atua, interatua e, em certo sentido, parece ter conhecimento. Este
objeto de prova do pósmodernismo é assim visto: “O computador nos leva além do mundo
do sonho e das bestas porque nos possibilita pensar a vida mental que existe apartada de
nossos corpos. Possibilitanos contemplar sonhos que não tem bestas. O computador é um
objeto evocador que provoca a renegociação das nossas fronteiras”. 14
Assim, se na Modernidade o monstro, o “freak” era percebido como “um outro”, na
nossa atualidade poderíamos, como Rimbaud, afirmar que “Je est un autre”, ou, talvez mais
consistentemente: “Je est plusieurs d’autres”, se pensarmos em freqüentadores aficcionados
das comunidades virtuais, como MUDs e CHATS, que desempenham múltiplos
personagens, podendo ser uma mulher sedutora em um deles, um homem rude em outro, um
homem que finge que é uma mulher que finge que é um homem em um terceiro e um coelho,
nos MUDs onde esta presença é possível.
Esta sensação de estranhamento que acompanha as perdas de referência foi, de certa
maneira, preparada ou domesticada na ficção gerada em torno do cyborg, onde, na mescla
entre o homem e a máquina, o que aparecia era a humanização dos andróides. O cinema nos
oferece múltiplos exemplos desta “transição” e, escolhendo alguns, verificamos: os
replicantes de Blade Runner, o caçador de andróides, de Ridley Scott, projetados para
serem isentos de emoções, desenvolvem subjetividades guerreiras a partir de sua morte
anunciada, já que deverão viver apenas quatro anos; em o Exterminador do Futuro II, de
James Cameron, o andróide consegue compreender porque as pessoas choram; o Robocop
do filme de mesmo nome de Paul Verhoeven, desperta emoções na policial que o
acompanha – tem, a todo momento, lapsos onde parecem surgir fragmentos de uma história
e de uma memória humanas. No mais recente MATRIX os heróis querem recuperar a
fronteira e separar novamente o mundo real do virtual.
8 Cyborg: Um devir?
Quando o modelo da ciência e o da ficção são povoados com a mesma figura, parece
legítimo pensar que o cyborg é um devir e um frutífero objeto de pensamento. Para Donna
14
Turkle, Sherry, opus cit. P. 31.
12
Haraway, permanentemente citada quando se fala de cyborg, “Um cyborg é um organismo
cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social tanto
quanto de ficção [...] A medicina moderna está cheia de cyborgs [...] Descobrimonos
cyborgs, híbridos, mosaicos, quimeras [...] Organismos biológicos tornaramse sistemas
bióticos, dispositivos de comunicação. Não há separação fundamental, ontológica, em
nosso conhecimento formal de máquinas e organismo, de técnica e do orgânico. A
máquina não é uma “coisa” a ser animada, cultuada, dominada. A máquina somos nós,
nosso processo, um aspecto da nossa incorporação [...] dispositivos protéticos,
componentes íntimos, amigáveis “eus” [...] cyborgs não buscam “teorias totais” mas a
íntima experiência de fronteira, sua construção e desconstrução”. 15
No entanto, é preciso retomar uma certa distância crítica; é isto que exige um objeto
de pensamento. Não devemos esquecer que as novas formas de tecnologia e as novas formas
de pensamento que lhe são sincrônicas tem uma estranha e avassaladora capacidade de gerar
novas pedagogias de dominação. Fragilizando o humano neste processo de entendêlo como
hibridização com as máquinas, precisamos pensar se lhe são oferecidas ou retiradas novas
formas de singularização, substituídas por etiquetas ou identidades prêtàporter. Afinal, em
cada MUD, nosso personagem citado fixou uma delas. Daí deriva um panorama de afetos
que cerca o nosso contemporâneo mundo: uma certa euforia maníaca que tem como
contraponto o seu par psicológico: o pessimismo depressivo e a anestesia da sociedade de
controle.
Giorgio Agamben, num minúsculo artigo, entitulado O Novo Êxodo 16 , sem analisar
os cyborgs, mas elaborando a questão da relação da política com a vida mostra como
vivemos hoje um estado de exceção, assim definido na medida em que saímos da vigência da
política clássica que distinguia claramente a zoè (vida natural) da bios (vida política).
Secundando Foucault, ele afirma que somos animais em cuja política o que está em jogo é a
própria vida. E “Viver no estado de exceção transformado em regra significou também que
nosso corpo biológico privado se tornou indistingüível do nosso corpo político; que
15
Haraway, Donna – Simians, Cyborgs and Women – The Reinvention of Nature, New York, Routledge,
1991, p. 62.
16
Agamben, Giorgio, O Novo Êxodo, in Lugar Comum nº 7, janeiroabril de 1999, Revista, Rio de Janeiro,
Ed. Universitária José Bonifácio, pgs. 7377.
13
experiências que antes se diziam políticas fossem, de chofre, confinadas ao corpo biológico
e experiências privadas se apresentassem, repentinamente, fora de nós, como corpo
político...”
Parece que não temos mais uma Revolução para realizar, não há nenhuma
humanidade a ser preservada. Surge uma nova forma de poder que se ajusta à nossa
contemporânea sociedade de controle, que Donna Haraway denomina de Informática da
Dominação: as redes ubíquas e invisíveis da sociedade tecnológica. Para ela, a sociedade
tecnologicamente avançada desafia de forma inquietante os dualismos: não se sabe quem faz
e quem é feito nessa relação homemmáquina, não é claro o que seria do domínio da mente e
o que é de domínio do corpo, não é nítida a resposta sobre a origem do pensamento: são as
máquinas que pensam ou nós que as operamos. As últimas décadas realizaram três brutais
rupturas de fronteiras: humano e animal; animalhumano e máquina e físico e nãofísico, mas
produziram, a partir destas, novos posicionamentos políticos e científicos que talvez venham
a ser expressos em novas formas de classificaçãodominação, como, por exemplo, quem
processa mais rápido? Quem é mais eficiente?
“Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós apavorantemente inertes” 17
O cyborg que aparece neste universo de fronteiras rompidas é, por isto mesmo, uma
criatura pósgênero, sem nenhuma tentação de uma integridade orgânica realizável por meio
de uma apropriação final de todas as suas partes numa unidade maior. “A formação da
totalidade, a partir de fragmentos, inclusive aqueles da polaridade ou da dominação
hierárquica, está em questão no mundo do cyborg” 18
O universo dos cyborgs é o mundo dos fluxos. Na ficção, especialmente na fílmica,
as células podem responder a chips programados, como os que vemos no Exterminador do
Futuro II. No campo da ciência, eletrodos podem induzir movimentos em membros
paralisados, retirando as pessoas do limite da cadeira de rodas. Nos corpos “cyborg” as
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Haraway, Donna, Um Manifesto para os Cyborgs, Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista na década
de 80, apud Tendências e Impasses: o Feminismo como crítica da cultura, org. Heloísa Buarque de Holanda,
Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 241.
18
Idem p. 246.
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funções orgânicas, como já mencionamos, se regulam pelo fluxo de informação e estímulos
entre as máquinas e organismos biológicos conectados.
Fundamental é a conexão. Fazer parte do contexto “cyborg” é estar conectado. Mas
estas conexões não tem mais a saudade da unidade total, não é a ela que buscam. O cyborg,
filho da perda das grandes narrativas, é uma ironia parcial e, ao contrário de se constituir
numa promessa totalizante, ele politiza a própria corporeificação. Constrói o mundo das
sínteses conectivas nãototalizantes, onde os conjuntos unificados, bem definidos e
predicáveis tendem a se relativizar, tornando imprecisa a distinção identidade/alteridade.
Para Haraway há espaço para esperança, neste cyborg pensado como [...] um tipo de eu
desmontado e remontado, no sentido pósmoderno e pessoal”. 19 Este poderia sugerir não a
pasteurização, mas uma nova política plantada nas reinvidicações de mudanças fundamentais
nos conceitos de classe, raça, gênero etc., herdeiros dos nossos dualismos clássicos, política
da qual o cyborg seria uma simulação.
O cyborg em si tematiza o problema do nosso tempo: o acontecimento da técnica
cujos efeitos abaladores ainda não ousamos totalmente decifrar. As tecnologias continuam
inscrevendose no corpo, enxertandose nele, levandoo ao limite. Surge assim o “corpo
conectado” do mundo da técnica, no qual mudou a consistência tradicional das ligações do
corpo, já que não são mais religiosas, naturalistas e antropocentradas, uma vez que
pertencem ao mundo da eletrônica e da informação.
Para produzir a diferença ente natural e artificial, a cultura criou um corpo e o impôs
como parâmetro; a técnica como último acontecimento da cultura, está substituindo o
corpomediador por esta nova noção: o cyborg. E não o faz sem atingir de morte o
imaginário do corpo, agora opaco e/ou perdido. Dependendo de onde os olhemos, os
cyborgs são os novos anjos ou as novas bestas.
A teoria científica parece têlos associado aos anjos, seus sonhos e vôos. Sherry
Turkle, que já citamos, afirma que todos sonhamos sonhos cyborgs. Enquanto as crianças
imaginam humanos metamorfoseandose em metálicos répteis cibernéticos, nossos cientistas
informáticos sonham a si mesmos como imortais. Imaginamse pensando para sempre
atravessadas pela máquina. O investigador de Inteligência Artificial, Daniel Willis, afirma:
19
Haraway opus cit, 1994, p. 246.
15
“Tenho o mesmo amor nostálgico pelo metabolismo humano do que qualquer outra
pessoa, mas, se pudesse me incorporar em um corpo melhorado e durar 10.000 anos, o
faria instantaneamente, sem pensar duas vezes. Na realidade, não creio que venha a ter
esta opção mas talvez meus filhos a tenham”. 20
Nossos poetas são mais desconfiados. Descrevem nosso tempo como:
“Com pedaços de mim eu monto um ser atônito”
(Manoel de Barros – Livro Sobre Nada)
20
Turkle, Sherry, opus cit. p. 332.
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Janeiro, Ed. Fundação José Bonifácio.
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__________________, Um Manifesto para os Cyborgs: Ciência, Tecnologia e Feminismo
na década de 80, in Tendências e Impasses, o Feminismo como Crítica da Cultura, org.:
Heloísa Buarque de Holanda, Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
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