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ENTRE ANJOS E CYBORGS 

Doutora Ieda Tucherman 
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro 

“Ismênia: Estás correndo atrás do impossível 
Antígona:  Pois  seja,  na  última  fronteira  do  possível, 
tombarei” 

Antígona – Sófocles 

1  ­ Começando com anjos 

Parece  surpreendente  e  provavelmente  descabido  associar  num  artigo  de  pretensão 


científica  duas  figuras  de  origens  tão  diversas  e  aparentemente  tão  dicotônicas:  os  anjos, 
gerados  no  interior  do  pensamento  judaico­cristão  e  os  cyborgs,  criaturas  que  nos  foram 
apresentadas no ambiente contemporâneo e des­sacralizante da ficção científica. No entanto, 
talvez  possamos  pensar  que,  mais  do  que  se  oporem  simplesmente,  anjos  e  cyborgs  se 
referem a uma possibilidade mais que humana de criar figuras. E com elas aprender a pensar 
em nós mesmos e nas relações que simbólica e imaginariamente construímos com e a partir 
delas. 
Anjos  e  cyborgs  são  figuras  de  fronteira,  ou  melhor,  são  angélicos  e  cibernéticos, 
híbridos,  exatamente  porque  escapam  das  fronteiras  lógicas  que  balizamos  para  viver  e 
pensar.  O  que  testemunham,  a  partir  de seus poderes especiais é que as fronteiras não são 
naturais.  São  processos  de  territorialização,  circunscrições  que  demarcam  espaço  e 
movimento, do corpo como do pensamento. Se a etologia menciona o hábito dos animais de 
demarcar  seus  territórios;  se a geografia clássica apropriada pela geopolítica nos ensinou a 
pensar  em  rios,  oceanos  e  montanhas  como limites, as teorias das quais nos servimos para 
compreender o mundo produziram definições categoriais e disciplinares, nomes e conceitos 
que operam como fronteiras demarcatórias. Se elas são tão necessárias, na medida em que é


a  partir  delas  que  podemos  discernir  o  que  há  do  que  não  existe  e  operar  as  combinações 
que fundam nosso território, precisamos não esquecer que qualquer fronteira tem um caráter 
político­administrativo.  Talvez  seja  este  o  recado  que  nos  trazem,  anjos  e  cyborgs:  o  de 
aprender  a  pensar  contra  as  fronteiras.  Com  as  conseqüências  inevitáveis  que  temos  que 
enfrentar, sendo a mais imediatamente visível a perda das referências que nos proporcionam 
o conforto do reconhecimento. De qualquer modo eles parecem trazer uma proposta: pensar 
pode e deve ser um vôo no inesperado, o que é o oposto de reconhecer. 
Foi  nesta  posição  de  intermediário  do  tempo  e  de  seu  guardião  que  a  mitologia 
judaico­cristã criou sua legião de mensageiros, algumas vezes invisíveis, outras invisíveis: os 
anjos. Nas tradições monoteístas, os anjos aparecerem e desaparecerem, passam no silêncio, 
percorrendo o  espaço na velocidade do pensamento. Silêncio, um anjo passa... Tecendo no 
seu percurso redes, não entre seres e coisas exatamente, mas os mapas do nosso universo, as 
cartas e os agenciamentos, as novas e insondáveis produções do mundo das quais conhecem 
os  segredos.  Como  mensageiros  assumem  formas  humanas,  mas também fluxos de ar e de 
água etc., e atravessam os espaços e os tempos, as muralhas e as portas fechadas. Nada lhes 
seria,  a  princípio,  vedado,  mas  eles  são  seu  próprio  limite:  eles  só  levam  a  palavra  e  a 
promessa, são comissários da palavra 1 , esperando que o Mediador em carne e osso possa vir 
à presença. Mediadores do mediador, o mensageiro deve desaparecer e se apagar para que o 
destinatário  ouça  a  correspondência  do  expedidor  –  o  texto  –  e  não  o  enviado.  E  quando 
somem mostram duplamente suas mensagens: o que eles produzem e o que são. Mensagem 
perfeita: o anúncio feito a Maria pelo anjo Gabriel de que ela será a mãe do filho de Deus. 
Por esta excelência, talvez uma das reproduções mais freqüentes da arte ocidental. 
São também guardiões do tempo e de sua locanda: no Velho Testamento, no mito da 
Gênese,  apenas  uma  árvore  era  proibida  a  Adão  e  Eva  no  Paraíso:  a  Árvore  do 
Conhecimento.  Eles  comeram  dela  e  se  envergonharam  (tinham  transposto  o  limite).  Foi 
então que Deus interditou uma segunda árvore, a da Vida, que passou a ser guardada pela 
espada de fogo do anjo. Se os homens tiverem o conhecimento e a eternidade serão deuses: 
ascender  ao  conhecimento  é  integrar­se  ao  tempo  e  à  finitude  (por  isto  mesmo  o  desafio 
radical de toda a nossa ciência é superá­la). Comer da Árvore da Vida seria ganhar o infinito


que  nem  os  anjos  tem,  já  que  nascem,  isto  é, tem origem. O Anjo­Guardião­da­Lei, Anjo­ 
Guardião­da­Morte.  São  assim,  corpos  de  relações.  Suas  mensagens  são  os  caminhos 
possíveis e impossíveis no espaço e no tempo. 
Cada  anjo  carrega  múltiplas  relações,  o  que  os  desliga  para  sempre  da  unidade 
sujeito de qualquer enunciação. Construindo mensagens e o processo de seu transporte, as 
metáforas, sendo espírito e corpo, de dois sexos e sem sexo, naturais e técnicos, coletivos, 
em  ordem  ou  desordem,  produtores  de  barulho,  de  música,  de  línguas,  espalhados  pelas 
coisas do mundo e nos artefatos, os anjos são quase inapreensíveis. Opostos ao deus central, 
produtor irradiando uma origem dos tempos. E de Satã, em hebraico, acusador público ou 
advogado geral, o homem do julgamento. Os anjos existem em miríades e nós os inventamos 
aos milhares, ansiando por sua leveza 2 . 
E não fazemos isto apenas nos textos religiosos. Pensemos em alguns segredos que 
as  palavras  encerram,  pedindo  algum  cuidado  para  serem  desveladas.  Uma  delas,  que  em 
nossos hábitos costumamos associar à produção científica e tecnológica, ou seja, à pesquisa 
e à criação, é muito curiosa: laboratório, pois diz, na sua etimologia, de uma combinação a 
princípio  tão  inusitada  quanto  a  dos  personagens  deste  texto:  labor,  de  trabalho,  tarefa, 
atividade  e  oratório,  de  lugar  sagrado,  prece,  campo  religioso.  Um  lugar  privilegiado  de 
produção de milagres, parece ser sua topologia lingüística. Pois é o lugar onde os cientistas 
agem  como  deuses,  criando  ou  transformando  o  que  há  na  natureza.  Lugar  de  desafio  de 
fronteiras,  onde  o  natural  é  apreendido  pelo  artificial  e  por  ele  domado.  Até  mesmo 
sintetizado, numa operação de geração ainda mais complexa. 
O  que  associamos  aos  anjos,  mais  imediatamente,  é  a  sua  ausência  de  gravidade. 
Que,  de  certa  forma,  nós,  mortais  só  experimentamos  nos  sonhos  quando,  por  vezes,  eles 
nos fazem voar, perder o peso do corpo que carregamos nas nossas vidas acordadas. Não é 
difícil  lembrar  do  Anjo­Personagem  do  filme  Win  Wenders,  Asas  do  Desejo,  que  pede, 
apaixonado,  um  corpo.  E,  com  ele,  o  nosso  destino  e  modo  de  ser  gente.  As  grandes 


Para pensar nos anjos como redes e fluxos o belíssimo livro La Légende des Anges de Michel Serres, Paris, 
Flammarion, 1994 é rigorosamente aconselhável. 

Em  Seis  Propostas  para  o  Próximo  Milênio,  Ítalo  Calvino  escolhe  como  tema  de  sua  primeira  palestra 
exatamente  a  leveza,  e  afirma, na página 24: “Se quisesse escolher um símbolo votivo para saldar o novo 
milênio, escolheria este, o salto ágil do poeta­filósofo”.


experiências amorosas também nos angelizam num mágico instante em que o corpo parece 
levitar. Mas pode ser isto mesmo que os franceses chamam o orgasmo de petit mort. 
2  ­ Inventando o Corpo e seu Outro: o Monstro 

Pois  o  corpo  é,  além  do  mais  longevo  conceito  da  civilização  ocidental,  nossa 
referência  mais  radical. 3  A  persistência  e  a  força  desta  categoria  conceitual  (já  que  o  que 
temos, naturalmente, é sangue, músculos, nervos e ossos – e o corpo é a imagem totalizada 
e  reconhecível  que  produzimos  culturalmente)  deve­se,  imediatamente,  à  sua  aparente 
evidência, que funcionou como suporte para que nós nos inventássemos, esquecêssemos que 
era uma invenção, esquecêssemos do que havíamos inventado e tornássemos a nos inventar, 
na categoria mais radical que parecia determinar a forma como podemos nos reconhecer no 
espelho, no  cinema e até mesmo na nossa sombra, que nos faz presentes na nossa ausência 
imediata. 
Também já consideramos o recurso ao espelho, agora pensado no grande plano, para 
além  do  close­up,  que  nos  parece  alegoricamente  sedutor.  Pois  apenas  o  que  possui  uma 
imagem  atual  e  totalizada  se  permite  capturar  no  espelho  na  presença  de  duas  dimensões: 
altura  e  largura.  “E,  quando  nos  vemos no espelho, o que vemos refletido é a imagem do 
Narciso que está em nós, não do vampiro que nos habita: este sempre escapa, mas escapa 
como viajante nômade [...] O vampiro que somos torna possível a imagem do Narciso que 
vemos: mas o vampiro não pode ser contemplado, já que o espelho não reproduz a imagem 
do vampiro. Drácula contra Narciso. Drácula contra Édipo”. 4 
Sendo  assim,  à  invenção  do  Corpo  coube  a  simultaneidade  da  invenção  de  seu 
Outro: o monstro, ao mesmo tempo, o corpo do Outro e o Outro do corpo. Fato tão antigo 
quanto  a  própria  geração  da  noção  de  humano,  já  que  a  existência  real  ou  imaginária  de 
raças ou pessoas que apresentam mal­formações ou deformações remonta à mesma origem. 
Podemos afirmar que a presença contínua deste “outros seres” se reportou à necessidade de 
constituir um locus de diferença e alteridade cujas formas e figuras têm o limite daquilo que 
contrasta  com o  mesmo  ou  o  idêntico.  Embora  freqüente  e  permanente,  a  “monstrologia” 


A este respeito, Tucherman, Ieda, Breve História do Corpo e de Seus Monstros, Lisboa, Ed. Vega, Coleção 
Passagens, 1999. 

Souza, E.J., Theatrum do Sentido, apud Tucherman, Ieda, op. cit. pg. 12.


não  foi  muito  inventiva:  seu  repertório  básico;  constituído  por  anões,  gigantes,  siameses, 
hermafroditas  etc.  não  é  muito  amplo,  o  que  demonstra,  como  afirma  José  Gil,  que  “um 
monstro não é não importa o quê” 5 
Quando  ao  mesmo,  seu  parâmetro  de  fundação,  construído  na  mitologia  judaico­ 
cristã  é  a  perspectiva  da  Semelhança,  já  que  o  homem,  a  última  criatura  a  ser  criada  pelo 
Criador, foi criado à Sua imagem e Semelhança. A diferença do monstro representa portanto 
um aviso, um desvio, um afastamento deste modelo. 
De certa forma uma condenação no corpo. Visível para todos. 

3 ­ A Contração da Anomalia 

No entanto, é fácil constatarmos que vivemos hoje uma freqüência exacerbada e uma 
prodigiosa  proliferação  de  monstros  que  nos  surgem  de  todos  os  lugares:  do  cinema,  das 
artes plásticas, dos brinquedos, dos vídeo­games etc. O mais interessante porém, parece ser 
o fato que, para além de sua multiplicação numérica, eles também nos são apresentados nas 
revistas científicas, nos programas educativos e nos nossos mais conceituados laboratórios, 
ou  seja,  onde  os  homens  brincam  de  deuses,  surgem  também  seus  monstros.  Vivemos 
atualmente  uma  efetiva  banalização  da  monstruosidade, que tanto se deve à “sociedade do 
espetáculo” quanto, e mais consistentemente, a uma, antes impensável, associação da ciência 
com a monstruosidade, seja através das pesquisas das formas de vida sintética, seja através 
da manipulação genética ou das misturas de elementos de natureza diferente (como a orelha 
humana implantada no dorso do rato). O que nos permite diagnosticar “uma contração no 
domínio da anomalia” 6 
Poderíamos buscar a genealogia destes monstros e da própria monstruosidade. Cada 
época histórica propôs para este campo suas teorias, suas explicações, seus motivos e suas 
origens. O que nos interessa, no entanto, é considerar que se convivemos pacificamente com 
eles,  que  nos  aterrorizam  menos,  é  porque  não  temos  mais  uma  configuração  tão  fechada 
para  o  mesmo,  na  qual  estabeleceríamos  nossa  imagem  do  nosso  próprio  corpo,  e  que  os 


Gil, José, Monstros, Lisboa, Quetzal Ed. 1984, p. 15. 

Jose Gil, opus cit. p.12


fixaria na mais absoluta e apavorante diferença. Por outro lado, se por eles nos interessamos 
tão intensamente é porque eles nos colocam questões extremamente contemporâneas, talvez 
porque  ainda  precisemos  de  suas  figuras  para  recolocar  a  questão  sobre  a  humanidade  do 
homem,  esgarçadas  as  certezas  de  sua  identidade  e  inteireza  neste  mundo  onde  fazemos 
proliferar  associações  entre  a  carne  e  o  metal,  o  cérebro  e  o  silício  e  até  nos  atrevemos  a 
pensar a vida fora da base carbono. 
Tradicionalmente, o que parece decisivo na concepção dos monstros imaginários é o 
seu  surgimento  a  partir  de  hibridizações  de  natureza  diferente:  natureza  humana  e  animal; 
natureza  divina  e  animal.  O  que  deveria  se  configurar  como  estruturalmente  diferente  e 
nunca se cruzar, produz os monstros teratológicos ou “fabulosos” quando perde a distância, 
quando  se  aproxima  demais,  a  ponto  de  se  misturar.  Não  é  portanto  leviano  afirmar  que 
alguém  que  se  conecta  com  as  novas  virtualidades  técnicas,  com  um  novo  princípio  de 
“realidade”, e não vive seu corpo como separação radical do mundo, ao mesmo tempo em 
que domestica seu horror, fascina­se com estas hibridizações, ou seja, misturas. 
Pois não é a oposição simples que marca a diferença entre monstros e homens, mas 
um sistema complexo de aproximações e distâncias. Sendo o Outro, ele não é externo como 
deuses  e  animais,  vigora  sempre  no  limite  do  humano,  um  limite  “interno”,  produtor  de 
figuras  estranhas  em  relação  às  quais  não  deixamos  de  nos  perguntar  se  são  efetivamente 
humanas,  já  que  nos  surgem  como  a  folia  do  corpo,  o  desregramento  da  cultura,  a 
desfiguração  do  Mesmo  no  Outro.  Como  algo  com  o  qual  não  nos  confundimos,  mas 
também  não  nos  diferenciamos  totalmente:  nesse  sentido  sua  definição  é  instável  e  sua 
alteridade é móvel. Os monstros talvez existam para nos mostrar o que poderíamos ser, não 
o que somos mas também não o que nunca seríamos, e assim articulam a questão: Até que 
grau  de  deformação  (ou  estranheza)  permanecemos  humanos?  Este  é  o  lugar  do  cyborg, 
talvez, por este motivo, considerado como o mais consagrado mito pós­moderno. 

4 ­ Hibridizações: A Vida Artificial 

Mencionamos  a  mistura  dos  elementos  de  diferente  natureza.  E  já  nos  referimos  à 
existência  lógica  e  naturalizada  do  corpo  humano:  criado  por  Deus  ou  como  evolução  da


espécie no seu processo de “seleção natural”, se quisermos simplificar bastante as teorias de 
Darwin. A herança do Tabu do Natural e seus sintomas podemos associar a suspeita de que 
a artificialização da vida é talvez a mistura ao mesmo tempo mais perseguida e mais temida. 
É  isto  que  nos  conta  Mary  Shelley  em  seu  Frankenstein:  a  geração  artificial  da  vida 
produzindo  um  monstro.  Mas,  talvez  involuntariamente,  podemos  pensar  no  que  ela  aí 
insinua; recuperando  a sensação desconfortável de estranhamento que o seu texto provoca, 
já que não sabemos bem, se formos mais atentos ou sensíveis, quem é o monstro verdadeiro 
desta história: a criatura produzida artificialmente ou o seu criador demiúrgico. 
Hoje, em função da carga simbólica que sobre carrega a palavra artificial, que recebe 
sentidos como inautêntico, não genuíno, ilusório e outros tantos, parece interessante pensar 
na  diferença  entre  dois  processos:  o  artificial  e  o  sintético. 7  É  mais  fácil  explicá­la 
recorrendo a um exemplo: uma pedra de vidro colorido feita de maneira a parecer com uma 
safira  é  artificial;  ao  passo  que  uma  pedra  feita  com  os  mesmos  elementos  químicos,  a 
mesma composição molecular, é sintética. 
Sintético,  portanto,  indica  a  real  construção  em  laboratório,  designando  algo 
diferente  do  que  o  senso  comum  expressa  com  a  idéia  de  imitar.  O  que  torna  seu  sentido 
ainda mais complexo e problemático é a manipulação da matéria para a produção de coisas 
que não tem análogo “natural”, ou, o que é mais surpreendente, a criação de novos materiais 
que instauram ou restituem processos naturais. A noção de hiper­corpo, que designa hoje a 
experiência da nossa corporeidade e se realiza com estoques de órgãos, próteses conectáveis 
ou implantáveis como os nanorobôs ou os hormônios sintéticos que ingerimos diariamente, 
fala­nos deste novo modo­de­ser  “real”. 
Quanto à vida artificial, apesar ou por causa de seu sentido de não­genuíno, ilusório, 
pareceu  sempre  se  reportar  aos  significados  ligados  à  etimologia  de  poiésis,  tais  como 
invenção, criação, produção e artefato, conjugando assim a natureza como o seu domínio e 
o  campo  da  arte  como  o  do  seu  obrar.  Como  sua  etimologia,  a  vida  artificial  tem  raízes 
históricas muito remotas, o que confere ao termo cyborg, que designaria em primeiro lugar a 
hibridização  do  natural  e  do  artificial  ou  do  corpo  e  do  artifício  (máquina),  uma  longa 


Esta  diferença  e  suas  conseqüências  está  consignada  na  dissertação  de  mestrado  de  Adriana  Ítalo  –  O 
Conhecimento do Criador, apresentada no departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do 
Rio de Janeiro em agosto de 1999 e que nos foi de uma ajuda inestimável.


genealogia,  apresentando  termos  que  vem  de  séculos  atrás,  como  os  autômatos,  e  outros 
mais  recentes,  de  décadas  passadas, como os andróides e os robôs, assim como o adjetivo 
biônico. 

5  ­ Cyborgs e Precursores: 

Norbert Wiener, o inventor da teoria e do termo cibernética, do qual se originaram, entre 
outros,  ciberespaço,  cyborg,  cyberpunk  etc.,  enuncia  uma  breve  e  interessante  história dos 
autômatos no seu clássico manifesto de 1948: Cibernética: ou Controle e Comunicação no 
Animal e na Máquina, 8  identificando quatro figuras que corresponderiam a quatro modelos 
para o corpo, constituindo assim uma curiosa história do corpo a partir da geração dos seus 
autômatos.  O  primeiro,  ele  o  encontra  no  mítico  Golem,  nascido  das  especulações 
cabalísticas sobre a criação de Adão por Deus, que povoou as lendas da Europa dos séculos 
XV  e  XVI, 9  cujo  modelo  é  o  do  corpo como mágico, maleável, feito de barro; o segundo 
corresponde  à  era  dos  relógios  (século  XVII  e  XVIII),  quando  o  relógio era o modelo de 
tecnologia e elabora o autômato como um mecanismo do relógio, assim como o corpo: são 
as  figuras  que  vemos  se  movimentar  para  tocar  as  badaladas  do  relógio  e  que  podem  ser 
homens ou bichos; o terceiro corresponde à era do vapor, originando o mecanismo do auto­ 
contrôle  (final  do  século  XVIII,  início  de  XIX),  o  qual  faz  corresponder  ao  corpo  um 
glorificado  engenho  térmico,  queimando  combustível  em  vez  da  glicose  para  fazer  seus 
movimentos. O último, mas recente, corresponde à era da comunicação e do controle, uma 


Wiener, N., apud, Thomas, David in Feedback in Cybernetics: Remaining the Body in the Age of Cyborgs, 
in  Cyberspace,  Cyberbodies,  Cyberpunk,  Cultures  of  Technological  Embodiment,  edited  by  Mike 
Featherstone and Roger Burrows, London, Sage Publications, 1995. 

É  curiosa  a  transcrição  de  uma  das  versões;  o  primeiro  Golem  com  forma  humana teria sido criado pelo 
profeta  Jeremias  que  teria  ouvido  a  voz  de  Deus  dizer­lhe:  “Arranje  um  companheiro!”  que  alterando  as 
letras que tinha na testa YHWH Eloim Emet (“O Senhor Deus é a Verdade”), apagou a letra aleph de emet, 
ficando met: “O Senhor está morto!”. Jeremias então exige satisfações e o monstro lhe conta uma parábola: 
“Um arquiteto construiu muitas casas, cidades e praças, mas ninguém podia copiar sua arte e competir com 
ele  em  conhecimento  e  habilidade,  até  que  dois  homens  o  persuadiram  a  contar  o  segredo.  Quando 
aprenderam  a  fazer  tudo  de  maneira  correta,  os  discípulos  começaram  a  aborrecê­lo  com  palavras. 
Finalmente,  tornaram­se  arquitetos,  cobrando a metade do preço. As pessoas pararam de honrar o artista e 
passaram  a  privilegiar  os  discípulos  renegados.  Da  mesma  maneira,  Deus  vos  criou  à  Sua  Imagem  e 
Semelhança.  Mas  agora,  que,  à  exemplo  Dele,  vocês  criaram  um  homem,  as  pessoas  dirão:  “Não  há  mais 
Deus neste mundo a não ser aqueles dois” – in Nazário, Luiz, Da Natureza dos Monstros, Belo Horizonte, 
Ed. Arte e Ciência, 1998, p. 90.


idade  marcada  pelo  poder  da  engenharia  computacional,  para  quem  o  corpo  é  um  sistema 
eletrônico.  A  este  último,  de  1948,  virá  juntar­se,  nos  anos  60  a  proposta  de  Marshall 
MacLuhan,  do  computador  e  da  sociedade  da informação como produzindo a extensão da 
nossa mente. 

6 ­ Novos Modelos 

O que parece separar estes modelos não se prende ao limite das suas realizações. É a 
mesma  coisa  que  nos  afasta  de  Mary  Shelley,  no  temor  que  ela  enuncia  do  mito  da 
intervenção da técnica e da hibridização homem­máquina. A radical diferença foi a mudança 
sem  precedentes  que  marcou  a  segunda  metade  do  nosso  século  como  sendo  a  da 
mundialização  da  técnica,  pois  agora,  a  anunciada  hibridização  natureza­tecnologia  surge 
como conquista e não como o pecado cultural da aproximação e mistura do que tem origem 
ou  diferente  natureza.  No  lugar  do  horror,  convivemos  com  a  sedução  dos  novos  corpos 
que  surgiram  e  continuam  surgindo  como  realização  da  promessa  tecnológica.  Cada  vez 
mais a ciência promoveu a interação das técnicas à natureza, isto é, do metal (ou do silício) à 
carne. 
Obtivemos neste movimento conquistas fundamentais: sistemas de controle e auxílio 
para  as  funções  orgânicas,  desde  os  marca­passos  que  têm  salvo  os  cardiopatas  de  um 
destino  condenatório,  aos  aparelhos  de  monitoramento  e  respiração  artificiais  que  operam 
milagres de ressuscitamento nas Unidades de Terapia Intensiva, que parecem ocupar para a 
saúde o que o purgatório era para a salvação, distribuindo não entre céu e inferno, mas entre 
sobrevida  e  morte.  Produziram­se  aparelhos  que  ajudam  portadores  de  deficiência  a  se 
locomover  e  falar,  por  exemplo,  de  tais  maneiras  eficientes,  que  levaram  Paul  Virilio  a 
afirmar em diversos livros que o modelo do homem rico super­equipado é o deficiente físico, 
“naturalmente” desequipado. E, mesmo quando a técnica não introduz corpos nas máquinas 
ou máquinas nos corpos, pode realizar outras intervenções como o transplante de órgãos, a 
fertilização  in  vitro  ou  as  cirurgias  plásticas,  permitindo  duas  questões  antes  radicalmente 
hereges e impensáveis: Que corpo quero ter? Que funções quero que meu corpo exerça?


Paralelamente  a  este  avanço  científico,  e  como  não  podia  deixar  de  ser,  o  terreno 
ficcional  também  se  viu  invadido  por  seres  híbridos,  como  os  andróides,  celebrados  no 
cultmovie  Blade  Runner,  ou  mutantes,  derivados  de  melhorias  genéticas  que  associam  o 
imaginário social às conquistas da ciência. Neste contexto surgem os cyber­bodies, cyborgs, 
habitantes  de  um  mundo  virtualizável  e  virtualizado,  organismos  híbridos  cujas  funções 
fisiológicas  são  realizadas  com  a participação de máquinas tecnológicas, correspondendo à 
nova imagem mítica relacionada à era da técnica. 
Nesta  cultura  tecnológica,  os  antigos  dualismos  e  as  seguras  fronteiras  que 
caracterizaram  nossa  tradição  cultural  são  postos em xeque. Separações radicais como eu­ 
outro,  corpo­mente,  criador­criatura,  verdade­ilusão,  natural­artificial,  real  e  irreal  não  são 
nítidas nem operacionais no mundo da relação homem­máquina. 
Do mesmo modo, o desenvolvimento dos sistemas de comunicação e a implantação 
das  redes,  das  quais  a  INTERNET  é  a  mais  familiar,  tornou  cotidiana  e  doméstica  a 
experiência da erosão das fronteiras no que se refere à nossa idéia de identidade, banalizando 
a  virtualização  do  mundo  na  nova  cultura  da  simulação.  Aprender  a  viver  nela,  ou  seja, 
conectado, afeta imediatamente nossas idéias sobre corpo e mente, eu e máquina. 
Significa, portanto, que a erosão de fronteiras entre o real e o virtual, o animado e o 
inanimado, o eu unitário e o eu múltiplo, que ocorre nos campos avançados de investigação 
e  nos  mais  prestigiados  laboratórios  de  psicologia  cognitiva,  engenharia  genética  etc., 
também  se  realiza,  simultâneamente,  nas  nossas  modestas  práticas  cotidianas  o  que  se 
visualiza  na  freqüência  com  que  nos  referimos  e  transitamos  pelo  ciberespaço 10  e  na 
presença constante do adjetivo virtual como referência à experiência sexuais e afetivas. Um 
novo contexto que parece ter como premissa lógica a dispensa do corpo e de seus gestos, a 
morte da distância e a substituição da dimensão temporal pela aceleração. 

7 ­ Identidades sem corpos: Além do Sonho e da Besta 

10 
Termo criado pelo romancista de ficção científica William Gibson, no seu livro Neuromancien escrito em 
1984, para designar a representação gráfica dos dados provenientes de todos os computadores gerados pelo 
homem.

10 
Sherry  Turkle,  analisando  a  mudança  do  processo  de  construção  de  identidades  na 
INTERNET,  cita  o  seguinte  comentário  oriundo  de  um  usuário  da  vida  sexual  e  afetiva 
virtual:  “Por  que  dar  um  status  superior  ao  corpo,  quando  os  eus  que  não  tem  corpo 
podem ter diferentes formas de experiência?” 11 
Prosseguindo  sua  reflexão  ela  elabora  duas  analogias,  bastante  interessantes  para 
compreendermos  a  mitologia  contemporânea  do  cyborg.  Na  primeira  ela  menciona  o 
estranhamento que sentia e parecia ser compartilhado, diante das teorias “pós­modernas” de 
Lacan, Foucault, Deleuze e Guattari, que apontavam a noção de que o eu unitário era uma 
ilusão,  enquanto  no  campo  social  cotidiano  havia  a  forte  pressão  para  que  as  pessoas  se 
dotassem de responsabilidade em suas ações e vissem a si mesmos como atores intencionais 
e  unitários;  ou  seja,  o  que  havia,  para  ela,  era  o  contraste  entre  a  teoria  e  a  experiência 
vivida, onde o unitário era a realidade mais básica. Diz ela: “Deste modo, mais de 20 anos 
depois do encontro com as idéias de Lacan, Foucault, Deleuze e Guattari, as reencontro na 
minha  nova  vida  nos  mundos  mediados  pelo  computador;  o  eu  é  múltiplo,  fluido  e 
constituído  com  conexões  com  uma  máquina;  é  feito  e  transformado  pela  linguagem;  o 
encontro  sexual  é  uma  troca  de  significantes;  a  compreensão  provém  da navegação e da 
bricolagem mais do que da análise. No mundo tecnológico gerado pelos MUDs (Multiple 
Users  Domaine)  me  encontro  com  personagens  que  me  põem  em  outra  relação  comigo 
mesma, numa nova relação com a identidade. 12 
Sua segunda analogia também é curiosa quando relacionamos, como neste texto, os 
cyborgs  com  anjos  e  monstros.  Recuperando  o  diário  de  Ralph  Waldo  Emerson,  de  1832, 
“Os sonhos e as bestas são duas chaves através das quais vamos descobrir nossa natureza, 
são  objetos  de  prova” 13  ela  afirma  que  ele  encontrara  os  objetos  de  pensamento  da 
Modernidade,  tendo  sido  profético:  Freud  pensou  a  racionalidade  confrontando­a  com  o 
sonho;  Darwin  e  seus  seguidores  pensaram  o  mesmo  confrontando  o  homem  com  a 
natureza: o mundo das bestas visto como nosso passado e ascendência. Hoje, o computador 
seria o novo objeto de prova: como as bestas e o sonho se situa nas margens. É uma mente 
mas não é de todo uma mente. É inanimado mas interativo. É um objeto; no fim das contas 

11 
Turkle, Sherry, La Vida en la Pantalla, Barcelona, Paidós, 1995, p. 21. 
12 
Turkle, Sherry, opus cit p. 23. 
13 
Emerson, apud Turkle, Sherry opus cit p. 30.

11 
um  mecanismo,  mas  atua,  interatua  e,  em  certo  sentido,  parece  ter  conhecimento.  Este 
objeto de prova do pós­modernismo é assim visto: “O computador nos leva além do mundo 
do sonho e das bestas porque nos possibilita pensar a vida mental que existe apartada de 
nossos corpos. Possibilita­nos contemplar sonhos que não tem bestas. O computador é um 
objeto evocador que provoca a renegociação das nossas fronteiras”. 14 
Assim, se na Modernidade o monstro, o “freak” era percebido como “um outro”, na 
nossa atualidade poderíamos, como Rimbaud, afirmar que “Je est un autre”, ou, talvez mais 
consistentemente: “Je est plusieurs d’autres”, se pensarmos em freqüentadores aficcionados 
das  comunidades  virtuais,  como  MUDs  e  CHATS,  que  desempenham  múltiplos 
personagens, podendo ser uma mulher sedutora em um deles, um homem rude em outro, um 
homem que finge que é uma mulher que finge que é um homem em um terceiro e um coelho, 
nos MUDs onde esta presença é possível. 
Esta sensação de estranhamento que acompanha as perdas de referência foi, de certa 
maneira,  preparada ou domesticada na ficção gerada em torno do cyborg, onde, na mescla 
entre o homem e a máquina, o que aparecia era a humanização dos andróides. O cinema nos 
oferece  múltiplos  exemplos  desta  “transição”  e,  escolhendo  alguns,  verificamos:  os 
replicantes  de  Blade  Runner,  o  caçador  de  andróides,  de  Ridley  Scott,  projetados  para 
serem  isentos  de  emoções,  desenvolvem  subjetividades  guerreiras  a  partir  de  sua  morte 
anunciada,  já  que deverão viver apenas quatro anos; em  o Exterminador do Futuro II, de 
James Cameron, o andróide consegue compreender porque as pessoas choram; o Robocop 
do  filme  de  mesmo  nome  de  Paul  Verhoeven,  desperta  emoções  na  policial  que  o 
acompanha – tem, a todo momento, lapsos onde parecem surgir fragmentos de uma história 
e  de  uma  memória  humanas.  No  mais  recente  MATRIX  os  heróis  querem  recuperar  a 
fronteira e separar novamente o mundo real do virtual. 

8  ­ Cyborg: Um devir? 

Quando  o  modelo  da  ciência  e  o  da  ficção  são  povoados  com  a  mesma  figura,  parece 
legítimo pensar que o cyborg é um devir e um frutífero objeto de pensamento. Para Donna 

14 
Turkle, Sherry, opus cit. P. 31.

12 
Haraway, permanentemente citada quando se fala de cyborg, “Um cyborg é um organismo 
cibernético,  um  híbrido  de  máquina  e  organismo,  uma  criatura  de  realidade  social  tanto 
quanto  de  ficção  [...]  A  medicina  moderna  está  cheia  de  cyborgs  [...]  Descobrimo­nos 
cyborgs,  híbridos,  mosaicos,  quimeras  [...]  Organismos  biológicos  tornaram­se  sistemas 
bióticos,  dispositivos  de  comunicação.  Não  há  separação  fundamental,  ontológica,  em 
nosso  conhecimento  formal  de  máquinas  e  organismo,  de  técnica  e  do  orgânico.  A 
máquina  não  é  uma  “coisa”  a  ser  animada,  cultuada,  dominada.  A  máquina  somos  nós, 
nosso  processo,  um  aspecto  da  nossa  incorporação  [...]  dispositivos  protéticos, 
componentes  íntimos,  amigáveis  “eus”  [...]  cyborgs  não  buscam  “teorias  totais”  mas  a 
íntima experiência de fronteira, sua construção e desconstrução”. 15 
No entanto, é preciso retomar uma certa distância crítica; é isto que exige um objeto 
de pensamento. Não devemos esquecer que as novas formas de tecnologia e as novas formas 
de pensamento que lhe são sincrônicas tem uma estranha e avassaladora capacidade de gerar 
novas pedagogias de dominação. Fragilizando o humano neste processo de entendê­lo como 
hibridização  com  as  máquinas,  precisamos  pensar  se  lhe  são  oferecidas  ou  retiradas  novas 
formas de singularização, substituídas por etiquetas ou identidades prêt­à­porter. Afinal, em 
cada  MUD,  nosso  personagem  citado  fixou  uma  delas.  Daí  deriva  um  panorama  de afetos 
que  cerca  o  nosso  contemporâneo  mundo:  uma  certa  euforia  maníaca  que  tem  como 
contraponto  o  seu  par  psicológico:  o  pessimismo  depressivo e a anestesia da sociedade de 
controle. 
Giorgio  Agamben,  num  minúsculo  artigo,  entitulado  O  Novo  Êxodo 16 ,  sem  analisar 
os  cyborgs,  mas  elaborando  a  questão  da  relação  da  política  com  a  vida  mostra  como 
vivemos hoje um estado de exceção, assim definido na medida em que saímos da vigência da 
política  clássica  que  distinguia  claramente  a  zoè  (vida  natural)  da  bios  (vida  política). 
Secundando Foucault, ele afirma que somos animais em cuja política o que está em jogo é a 
própria vida. E “Viver no estado de exceção transformado em regra significou também que 
nosso  corpo  biológico  privado  se  tornou  indistingüível  do  nosso  corpo  político;  que 

15 
Haraway,  Donna  –  Simians,  Cyborgs  and  Women  –  The Reinvention of Nature,  New York, Routledge, 
1991, p. 62. 
16 
Agamben, Giorgio, O Novo Êxodo, in Lugar Comum nº 7, janeiro­abril de 1999, Revista, Rio de Janeiro, 
Ed. Universitária José Bonifácio, pgs. 73­77.

13 
experiências que antes se diziam políticas fossem, de chofre, confinadas ao corpo biológico 
e  experiências  privadas  se  apresentassem,  repentinamente,  fora  de  nós,  como  corpo 
político...” 
Parece  que  não  temos  mais  uma  Revolução  para  realizar,  não  há  nenhuma 
humanidade  a  ser  preservada.  Surge  uma  nova  forma  de  poder  que  se  ajusta  à  nossa 
contemporânea  sociedade  de  controle,  que  Donna  Haraway  denomina  de  Informática  da 
Dominação:  as  redes  ubíquas  e  invisíveis  da  sociedade  tecnológica.  Para  ela,  a  sociedade 
tecnologicamente avançada desafia de forma inquietante os dualismos: não se sabe quem faz 
e quem é feito nessa relação homem­máquina, não é claro o que seria do domínio da mente e 
o que é de domínio do corpo, não é nítida a resposta sobre a origem do pensamento: são as 
máquinas  que  pensam  ou  nós  que  as  operamos.  As  últimas décadas realizaram três brutais 
rupturas de fronteiras: humano e animal; animal­humano e máquina e físico e não­físico, mas 
produziram, a partir destas, novos posicionamentos políticos e científicos que talvez venham 
a  ser  expressos  em  novas  formas  de  classificação­dominação,  como,  por  exemplo,  quem 
processa mais rápido? Quem é mais eficiente? 

“Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós apavorantemente inertes” 17 

O cyborg que aparece neste universo de fronteiras rompidas é, por isto mesmo, uma 
criatura pós­gênero, sem nenhuma tentação de uma integridade orgânica realizável por meio 
de  uma  apropriação  final  de  todas  as  suas  partes  numa  unidade  maior.  “A  formação  da 
totalidade,  a  partir  de  fragmentos,  inclusive  aqueles  da  polaridade  ou  da  dominação 
hierárquica, está em questão no mundo do cyborg” 18 
O universo dos cyborgs é o mundo dos fluxos. Na ficção, especialmente na fílmica, 
as células podem responder a chips programados, como os que vemos no Exterminador do 
Futuro  II.  No  campo  da  ciência,  eletrodos  podem  induzir  movimentos  em  membros 
paralisados,  retirando  as  pessoas  do  limite  da  cadeira  de  rodas.  Nos  corpos  “cyborg”  as 

17 
Haraway, Donna, Um Manifesto para os Cyborgs, Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista na década 
de 80, apud Tendências e Impasses: o Feminismo como crítica da cultura, org. Heloísa Buarque de Holanda, 
Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 241. 
18 
Idem p. 246.

14 
funções orgânicas, como já mencionamos, se regulam pelo fluxo de informação e estímulos 
entre as máquinas e organismos biológicos conectados. 
Fundamental é a conexão. Fazer parte do contexto “cyborg” é estar conectado. Mas 
estas conexões não tem mais a saudade da unidade total, não é  a ela que buscam. O cyborg, 
filho  da  perda  das  grandes  narrativas,  é  uma  ironia  parcial  e,  ao  contrário  de  se  constituir 
numa  promessa  totalizante,  ele  politiza  a  própria  corporeificação.  Constrói  o  mundo  das 
sínteses  conectivas  não­totalizantes,  onde  os  conjuntos  unificados,  bem  definidos  e 
predicáveis  tendem  a  se  relativizar,  tornando  imprecisa  a  distinção  identidade/alteridade. 
Para  Haraway  há  espaço  para  esperança,  neste  cyborg  pensado  como  [...]  um  tipo  de  eu 
desmontado e remontado, no sentido pós­moderno e pessoal”. 19  Este poderia sugerir não a 
pasteurização, mas uma nova política plantada nas reinvidicações de mudanças fundamentais 
nos conceitos de classe, raça, gênero etc., herdeiros dos nossos dualismos clássicos, política 
da qual o cyborg seria uma simulação. 
O  cyborg  em  si  tematiza  o  problema  do  nosso  tempo:  o  acontecimento  da  técnica 
cujos  efeitos  abaladores  ainda  não  ousamos  totalmente  decifrar.  As  tecnologias  continuam 
inscrevendo­se  no  corpo,  enxertando­se  nele,  levando­o  ao  limite.  Surge  assim  o  “corpo 
conectado” do mundo da técnica, no qual mudou a consistência tradicional das ligações do 
corpo,  já  que  não  são  mais  religiosas,  naturalistas  e  antropocentradas,  uma  vez  que 
pertencem ao mundo da eletrônica e da informação. 
Para produzir a diferença ente natural e artificial, a cultura criou um corpo e o impôs 
como  parâmetro;  a  técnica  como  último  acontecimento  da  cultura,  está  substituindo  o 
corpo­mediador  por  esta  nova  noção:  o  cyborg.  E  não  o  faz  sem  atingir  de  morte  o 
imaginário  do  corpo,  agora  opaco  e/ou  perdido.  Dependendo  de  onde  os  olhemos,  os 
cyborgs são os novos anjos ou as novas bestas. 
A  teoria  científica  parece  tê­los  associado  aos  anjos,  seus  sonhos  e  vôos.  Sherry 
Turkle,  que  já  citamos,  afirma  que  todos  sonhamos  sonhos  cyborgs.  Enquanto  as  crianças 
imaginam humanos metamorfoseando­se em metálicos répteis cibernéticos, nossos cientistas 
informáticos  sonham  a  si  mesmos  como  imortais.  Imaginam­se  pensando  para  sempre 
atravessadas  pela  máquina.  O  investigador  de  Inteligência  Artificial,  Daniel  Willis,  afirma: 

19 
Haraway opus cit, 1994, p. 246.

15 
“Tenho  o  mesmo  amor  nostálgico  pelo  metabolismo  humano  do  que  qualquer  outra 
pessoa,  mas,  se  pudesse  me  incorporar  em  um  corpo  melhorado  e  durar  10.000  anos,  o 
faria  instantaneamente,  sem  pensar  duas  vezes.  Na  realidade,  não  creio  que  venha  a  ter 
esta opção mas talvez meus filhos a tenham”. 20 
Nossos poetas são mais desconfiados. Descrevem nosso tempo como: 
“Com pedaços de mim eu monto um ser atônito” 
(Manoel de Barros – Livro Sobre Nada) 

20 
Turkle, Sherry, opus cit. p. 332.

16 
BIBLIOGRAFIA: 

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