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C A D E R N O S D A

P C N N A E S C O L A

DIÁRIOS

PROJETOS DE TRABALHO

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO


SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

N. 3/1998
Presidente da República
Fernando Henrique Cardoso
SUMÁRIO
Ministro da Educação e do Desporto
Paulo Renato Souza
Secretário de Educação a Distância DIÁRIOS
Pedro Paulo Poppovic
Eliane Mingues e Cláudia Rosenberg Aratangy
Secretária de Educação Fundamental
Iara Glória Areias Prado
O diário de cada um 7

Secretaria de Educação a Distância Relatório e reunião de pais 15


Cadernos da TV Escola
Diretor de Produção e Divulgação As formas no mundo 22
José Roberto Neffa Sadek
Coordenação Geral
Vera Maria Arantes
Quem dança os males espanta 28
Edição
Elzira Arantes (texto) Alex Furini (arte) Quem conta um conto... conta outros 32
Consultoras
Cláudia Aratangy e Cristina Pereira Quando a gente tem de mudar o rumo 41
© 1998 Secretaria de Educação a Distância/MEC
Tiragem: 110 mil exemplares Variações sobre um mesmo tema 48
Este caderno complementa as séries da programação da TV Escola
PCN na Escola: Diários - Projetos de Trabalho
Informações: PROJETOS DE TRABALHO
Ministério da Educação e do Desporto
Secretaria de Educação a Distância Lúcia Helena Alvarez Leite, Maria Elisabete Penido
Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo I, sala 325 CEP 70047-900 de Oliveira e Mércia Diniz Maldonado
Caixa Postal 9659 – CEP 70001-970 – Brasília/DF - Fax: (061) 321.1178
e-mail: seed@seed.mec.gov.br
Internet: http://www.mec.gov.br/seed/tvescola Técnica de ensino ou postura pedagógica? 58

A organização do projeto 63

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Aprendizagem de conteúdos acadêmicos 71


Diários. Projetos de Trabalho. - Brasília : Ministério da Educação e do Desporto,
Secretaria de Educação a Distância, 1998. 96 p. : il. ; 16 cm. – Conhecimento social e processo individual 78
(Cadernos da TV Escola. PCN na Escola, ISSN 1516-148X ; nº 3)
1. Diário. 2. Relatório. 3. Conteúdos planejados. 4. O papel da criança e O tempo e o espaço na escola 85
do professor. 5. Projetos de trabalho. 6. Organização do projeto. 7.
Conteúdos acadêmicos. 8. A experiência vivida. 9. Informação na escola.
I-Brasil. Secretaria de Educação a Distância. CDU 001.81:37.08 A formação do aluno e a realidade 91
DIÁRIOS
6 Programa 1 7

O DIÁRIO DE CADA UM

átima, incomodada com professores tarefeiros, pro-

F cura orientá-los. Conversa com cada um. Observa,


anota, discute, registra, dá subsídios (textos, infor-
mações), planeja junto, avalia o trabalho e faz propos-
tas. Fátima faz seu diário.

Como diretora que coordena o trabalho pedagógico


da escola, há anos tenho estado preocupada com a
melhoria da qualidade do que se propõe aos alu-
nos. Cansei de observar propostas nas quais se gasta
um tempo enorme, muita energia e paciência, mas
pouco se aprende. Aulas em que os alunos não pre-
cisam conectar mais do que dois neurônios, ativi-
dades sem sentido, mecânicas e repetitivas, sem
qualquer relação com o que se faz fora da escola.
Ultimamente, o que mais tem me incomodado é
perceber que, tal como os alunos, muitos dos ‘meus’
professores também agem de forma mecânica,
ritualizada, sem refletir a respeito daquilo que pro-
põem. No cotidiano da escola, são poucas as situa-
ções em que o professor é convidado a pensar sobre
sua prática e em formas de transformá-la.
Tenho feito o possível para favorecer o desenvol-
vimento profissional do meu grupo: observo-os dan-
do aula, escolho textos teóricos para discutirmos, se-
leciono vídeos para assistirmos e debatermos, indi-
co bibliografia para os projetos em andamento, aju-
8 Programa 1 O diário de cada um 9

do os professores em seus planejamentos, proponho


que socializem suas experiências de sala de aula, Mais razões para fazer um diário
convido especialistas para dar palestras, levo infor- • A partir do momento em que coloca no papel aqui-
mações sobre cursos que possam ajudá-los na sua lo que pensa, o professor entra em contato com
formação... suas próprias idéias e passa a vê-las com mais
Uma das coisas que acho mais importante é distanciamento. Assim, pode reformulá-las. O tex-
acompanhar de per to cada professor, para poder to escrito tem permanência, pode ser revisitado e
auxiliá-lo melhor, mas isso nem sempre é possível. servir como agente transformador para o próprio
O tempo, sempre escasso, não permite que eu con- autor.
verse pelo menos uma hora por semana com cada
um (o que seria ótimo) e temos de ficar improvisan- [...] é a idéia do descentramento [...]: a perso-
nagem que descreve a experiência vivida se
do, conversando ‘picadinho’: um pouquinho na hora
dissocia da personagem cuja experiência se nar-
do lanche, ou na entrada, ou na saída, colocando
ra (o ‘eu’ que escreve fala do ‘eu’ que agiu há
uma substituta na sala de aula e ‘roubando’ o pro- pouco [...]) (Miguel B. Zabalza, Diários de aula)
fessor de sua classe por alguns instantes... Assim,
acabamos por falar apenas das urgências, e o apoio • Para o professor que sente na própria pele a com-
ao desenvolvimento do professor vai aos trancos e plexidade do ato de escrever é mais fácil pensar em
barrancos. boas propostas de escrita para seus alunos. Além
Pensei que, se os professores passassem a escre- disso, ele é um modelo, e é mais fácil convencer os
ver sobre sua prática, eu teria uma forma de acom- outros de que algo é importante quando nós mes-
panhar mais de perto o que se passa na sala de aula mos acreditamos nisso.
e na cabeça do professor, para poder intervir mais,
de forma sistemática e individual. O ato de escrever requer o estabelecimento
É claro que eu não estava me referindo àqueles contínuo de conexões e a manipulação da in-
diários de classe que se conhece – os burocráticos, formação. Não se pode escrever, pelo menos
de capa verde ou rosa –, que servem para o controle num registro diário, de modo mecânico e in-
consciente [...]. (Idem)
da secretaria. Mas, como começar essa empreitada?
Por onde?
• A escrita de um diário registra o percurso de
A primeira coisa que fiz foi, em nossa reunião
uma classe: suas dificuldades, suas conquistas,
semanal de avaliação e planejamento, conversar
suas preferências... configurando, assim, sua
com os professores a respeito disso. história.
Pedi para que todos procurassem descrever por
escrito as atividades desenvolvidas em um dia de [...] O fato de escrever sobre sua própria prá-
trabalho. Na próxima reunião, os registros seriam tica leva o professor a aprender através da sua
compartilhados e comentados. narração. (Idem)
Os resultados variaram muito.
10 Programa 1 O diário de cada um 11

Cada uma de seu jeito atividade teria sido mais adequada? (Nathane: “Foi muito
difícil, prô!”)
Dirce escreveu resumidamente:
7:30 Cheguei à escola e me encontrei com os alunos no Ana não escreveu.
pátio.
Leonice escreveu abordando apenas aspectos
8:00 Fizemos a entrada e encaminhei a correção da lição
afetivos, com pouca reflexão sobre sua própria ação:
de casa.
Hoje fez frio e muitas crianças vieram sem casaco. Coitadi-
8:30 Atividade de Matemática. nhos... Sentamos para conversar sobre o fim de semana e
9:15 Lanche e recreio. eles contaram o que haviam feito. Todos participaram com
muita animação da conversa.
9:45 Leitura silenciosa.
Depois, pedi que desenhassem o que mais gostam de
10:00 Ensaio da quadrilha. fazer na festa junina. Eles adoraram esse tema e fizeram
lindos desenhos. Depois do recreio contei uma história e
11:00 Cópia da Lição de Casa.
Fábio não parou quieto um minuto e tive que ficar muito
11:15 Arrumação da classe. brava com ele...
Luísa escreveu colocando alguns questionamentos, Fiz um ditado com palavras de festa junina, prestaram
mas ainda de modo muito confuso, pois não conseguiu muita atenção e fizeram uma letra caprichada. Pamela não
deixar claro quais eram suas propostas: quis escrever e começou a chorar, ela sempre faz isso.
No final do dia, copiaram os problemas de matemática
Roda de conversa = combinar atividades do dia. Mãe do da lição de casa (incluí o nome de alguns alunos nos proble-
Nathane pediu a receita do bolo de fubá que fizemos ontem mas e foi uma festa!).
= o colar de bandeirinhas que será utilizado no dia de nos-
sa festa junina. Por que resolvemos usar o colar? Quais se-
Ao sentir na própria pele a complexidade do ato de
rão as brincadeiras?
escrever, o professor pode trabalhar melhor a escrita
Na lousa = escrita de todas as atividades que serão desen- com seus alunos.
volvidas no dia ~ numeramos de 1 a 7 = cada bandeirinha
tem uma figura que corresponde a uma brincadeira. (Rapi-
Ivone escreveu, mas não quis mostrar.
dinho eles ‘sacaram’).

= cada criança usou a régua, mediu barbante e cortou para Izabel foi quem fez um diário mais reflexivo, pois já
montar o seu colar. tinha o hábito de escrever:

= problemas que surgiram: colaram bandeirinhas iguais, fal-


[...] Na segunda atividade, fiz mais uma tentativa de traba-
taram bandeirinhas; contavam várias vezes, ‘faltou um’ e não
lhar problemas em matemática e mais uma vez fiquei mui-
conseguiam descobrir qual atividade que faltava.
to satisfeita. Pensei em trabalhar problemas com o jogo de
> Se o número de bandeirinhas fosse menor, será que a trilha, que é um jogo com o qual são super-familiarizados e
12 Programa 1 O diário de cada um 13

que, portanto, não iriam ter dificuldades em entender os A hora dos comentários
problemas; uma vez que eu queria fazer um pouco de sub-
tração, achei que a ‘volta’ da trilha seria um bom modo de Não foi fácil socializar os escritos e comentá-los,
trabalhar. mas foi um bom começo. Discutimos as vantagens
Todos viraram as mesas para a frente, escreveram nome e os objetivos desse tipo de escrita. Alguns profes-
e data. Fiz um desenho de uma trilha na lousa, eles sabiam sores se mostraram resistentes à idéia, disseram
bem o que era e então lhes disse: “Uma pessoa está jogan- que era ‘chato’, que não se sentiam à vontade para
do trilha e ela tira 6, depois 5 e depois 6. Em que casa ela escrev er, pois achavam que não seria útil, não
vai parar?” serviria para nada.
Alguns foram fazendo ‘de cabeça’, outros com os dedos, Disse-lhes que faz parte do processo de escrita
outros desenhando pauzinhos e alguns poucos desenharam começar com um diário bastante descritivo mas que,
a trilha. Continuei, dizendo que havia tirado 6 + 4 + 4, e aos poucos, conforme fossem praticando e se fami-
continuaram a seguir pelo mesmo raciocínio. liarizando com esse instrumento, a tendência era que
Disse-lhes então que eu os aconselhava a desenhar a colocassem as idéias por trás das ações e não ape-
trilha, pois agora iria complicar um pouco. Levei um susto, nas as ações.
pois Erik começou a chorar dizendo que não estava conse- Ressaltei que o fundamental era que a escrita
guindo fazer. Não me assustei com ele, mas comigo mes- deixasse transparecer seus pensamentos, suas dúvi-
ma, que estava na frente dele e sem perceber a ansiedade das, suas questões e idéias, não que fosse um relato
em que ele estava. frio, objetivo e preciso dos fatos. “Quanto mais quen-
Ajudei-o a desenhar uma trilha, fui acalmando-o e fa- te, melhor!” Ou seja, quanto mais se deixassem levar
zendo junto com ele. Logo ele estava tão ‘numa boa’ que pela própria escrita, mais rico o diário se tornaria.
quando acabou de fazer, disse todo sorridente: “e qual é pra Sugeri também que poderiam ilustrar o diário
fazer agora?” com produções das crianças, com enunciados das
Continuando, depois desse entrevero, expliquei que ‘a lições, fotos, recortes enfim, tudo que dissesse respeito
pessoa’ (do jogo) era muito azarada e tinha caído numa casa à vida da classe.
que tinha de voltar 10 para trás. Alguns fizeram de cabeça; Dando continuidade a minhas estratégias de se-
para minha surpresa, João a partir daí desenhou a trilha e dução quanto à importância e à necessidade de re-
foi indo para trás, muitos fizeram isso e perderam tempo gistrar a prática pedagógica, trouxe para o grupo vá-
desenhando a trilha. Outros fizeram com pauzinhos, outros, rios livros escritos na forma de diário, para que pu-
como a Marília, com a ajuda dos dedos, contando de trás dessem apreciar o gênero e, quem sabe, aprender com
para a frente. tão competentes escritores... O livro que fez mais su-
Depois pedi mais 8 para trás e utilizaram a mesma cesso foi As janelas do Paratii, de Amyr Klink. Além
estratégia. Acho que foi uma boa atividade, pois permi- das ilustrações maravilhosas, o texto é realmente
tiu que cada um resolvesse à sua maneira. Na próxima muito bonito.
vez, vou propor uma trilha de 5 em 5. Será que vai ser Propus ainda a leitura e a organização de um
muito difícil? seminário de dois textos teóricos sobre o assunto e,
14 Programa 2 15

aos poucos, venho ganhando esse meu grupo.


Atualmente, as reflexões têm sido uma constan- RELATÓRIO E REUNIÃO DE PAIS
te; encontro nos diários deles afirmações, questiona-
mentos sobre a qualidade das propostas, preocupa-
ções com cada aluno em especial, solicitação de aju-
da, de bibliografia...
Penso que, futuramente, vou pedir para escreve-
rem pequenos relatórios para enviar aos pais, a res-
peito do trabalho desenvolvido com os alunos; sei

A
que o diário é um bom ponto de partida. Mas, va- professora Izabel, da 1 a série, decidiu preparar
um pequeno texto para enviar aos pais de seus
mos devagar com o andor, que o santo é de barro!
alunos antes da pr imeira reunião do ano. Ela
Esta viagem apenas começou... Mas avalio que
pensou que, se os pais soubessem de antemão que o
grandes mudanças estão por vir pois, como recém-
assunto seria alfabetização, poderiam se interessar e
escritores, meus professores começam a navegar por
se preparar para a discussão.
mares nunca dantes navegados...
No relatór io, ela procurou falar das atividades
mais significativas e contar o que as crianças estavam
BIBLIOGRAFIA aprendendo. Considerando que muitos pais têm pouca
familiaridade com esse tipo de leitura, optou por es-
COLL, C. Aprendizagem escolar e construção do conhe-
crever um texto curto, claro, em linguagem acessível,
cimento. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.
e o enviou uma semana antes da reunião.
——. Psicologia e currículo. São Paulo, Ática, 1996.
COLOMBO, Cristóvão. Diário da descoberta da Améri-
ca: as quatro viagens e o testamento. Porto Alegre,
RELATÓRIO DAS ATIVIDADES
L&PM, 1991.
DE ALFABETIZAÇÃO - MARÇO/97
FIFILIPPOVIC, Z. O diário de Zlata. São Paulo, Cia. das
Letras, 1994. Aos pais dos alunos da 1a série
KLINK, Amyr. As janelas do Paratii. São Paulo, Cia. das Quero contar para vocês algo a respeito do trabalho
Letras, 1993.
que estamos realizando com Língua Portuguesa, para que
saibam um pouco o que seus filhos estão aprendendo.
Os nomes próprios são uma importante fonte de in-
formações e conhecê-los é de grande valia no início da
1a série; por isso, organizo várias atividades a partir
daí. Cada dia um aluno é responsável pela chamada,
pela distribuição das pastas e dos materiais e pela es-
crita dos nomes, nas situações em que isso é necessá-
rio. Todos, sem exceção, estão craques na escrita de seu
16 Programa 2 Relatório e reunião de pais 17

nome e já reconhecem e escrevem o nome de muitos Bilhete de aluno


colegas. Por esse caminho, foram conhecendo todas
as letras do alfabeto, seus nomes e valores sonoros —
e podem usar em outras situações isso que aprende- SÃO PAULO, 27 DE FEVEREIRO DE 1997
ram. Se precisarem escrever a palavra ‘mar’, por
exemplo, logo associam com os nomes que aprende- AOS PAIS E MÃES
ram: “É fácil. É ‘mar’ de Márcia, não é?”. NÃO ESQUEÇAM DE LEMBRAR SEUS FILHOS
Como usamos o calendário e uma agenda diaria- QUE MANHÃ TEM AULA DE EDUCAÇÃO FÍSI-
mente, já sabem ler o nome dos dias da semana
CA E PRECISA VIR DE ROUPA ADEQUADA.
sem ajuda. Além disso, procuro fazer com que cola-
borem na organização da classe, escrevendo junto
com eles etiquetas nos lugares em que devem guar- 1 A SÉRIE – TARDE
dar os materiais.
Leio histórias todos os dias, e estamos fazendo A maioria dos pais leu o relatório e compareceu à
um cartaz com o nome dos contos preferidos da reunião. Para os que não haviam lido, a professora
turma. Atualmente estou lendo “O Saci”, de relatou o conteúdo do texto. As pr incipais inquie-
Monteiro Lobato, um livro em capítulos. tações e dúvidas dos pais eram:
Além disso, diariamente apresento para eles le- • Por que vocês não usam mais a cartilha?
rem poemas, letras de música, adivinhas e outros
pequenos textos que já sabem de memória. • Nas lições do meu filho tem muitas palavras erra-
Todos os dias têm oportunidade de ler e de es- das! A senhora não vai corrigir?
crever e, assim, têm muito que pensar, e aprendem • Quando eles vão aprender a escrever com letra de mão?
cada vez mais sobre nossa Língua Portuguesa. Ado- A professora Izabel foi conversando com os pais,
ram os jogos que proponho, como forca, cruzadinha procurando acalmá-los e esclarecer as dúvidas.
e caça-palavras. Como vocês devem ter observado,
meus alunos estão cada dia melhores na produção A conversa da professora
dos bilhetes que são mandados para casa.
Tenho proposto muitas atividades em duplas, como Como aprendemos a andar? Como aprendemos a falar?
a escrita de listas, de títulos e de parlendas (aquelas Como aprendemos a andar de bicicleta? Como aprende-
musiquinhas que as crianças cantam nas suas brin- mos a ler e escrever? Um bom exemplo para entendermos
cadeiras, como “corre cotia, na casa da tia…”), entre como nos alfabetizamos é pensar em como aprendemos a
outras coisas. falar. Desde nenês (às vezes até mesmo antes!) ouvimos as
Para podermos conversar melhor sobre tudo isso pessoas falarem a nossa volta, ouvimos as pessoas se diri-
girem a nós, como se nós as entendêssemos.
espero todos para nossa reunião de pais, na próxima
As mães, principalmente, conversam com seus bebês,
semana.
contam o que estão fazendo, o que vão fazer, o que estão
pensando ou sentindo... sem se preocupar em usar palavras
Um abraço da professora Izabel ‘fáceis’ ou ‘curtas’. Elas simplesmente conversam. Assim, aos
18 Programa 2 Relatório e reunião de pais 19

poucos esse nenê, que vai se tornando uma criança, vai se entram em contato no dia-a-dia, falam de coisas de ver-
apropriando da fala, vai compreendendo cada vez melhor e dade, têm função e sentido.
se fazendo compreender cada vez melhor, pois quer se co- É por isso que, como escrevi para vocês no relató-
municar, quer entender o que lhe é comunicado. rio, fazemos diariamente a escrita e leitura de vários tex-
tos: listas de histórias, legendas de fotos, poesias, con-
O processo de alfabetização tos, músicas, embalagens e rótulos etc. Lendo todos os
Em relação à alfabetização o processo é muito semelhan- dias textos bem escritos, de verdade, e que servem para
te: não precisamos organizar a língua em pedaços frag- resolver coisas, para comunicar ou simplesmente para
mentados para simplificá-la e torná-la acessível aos alu- nos divertir e emocionar, será que não vão aprender
nos (já imaginou uma mãe que só falasse o som ‘A’ para muito mais e melhor? De verdade, é isso que esperamos,
seu filho, deixando para conversar quando ele fosse ca- ao tirar a cartilha de circulação. Acreditamos que assim
paz de emitir cada som separadamente?). formaremos leitores e escritores que necessitem e te-
Mesmo antes de ingressar na escola, as crianças vêem nham desejo de ler e escrever cotidianamente e que sai-
os textos escritos nas placas, nos cartazes, na TV, nos li- bam como fazê-lo. Vocês, sinceramente, acreditam que
vros, nas revistas, nas embalagens, nos folhetos, em muitos a cartilha daria conta desse nosso grande objetivo?
lugares! E vêem as pessoas escrevendo bilhetes, cartas e
listas, anotando informações, lendo jornais, seguindo as ins- Escrever bem e escrever certo
truções de um manual, procurando na lista telefônica, len- Eles não escrevem tudo certo ainda porque são recém-
do receitas e mais um sem-número de situações. Tudo isso escritores e recém-leitores, precisam de tempo para
as faz pensar, ter idéias e suposições sobre a escrita, suas conhecer a Língua Portuguesa. Não é uma questão de
funções, seu significado, seu uso e seu funcionamento. treino e memorização, mas de entender o que estão fa-
As crianças têm idéias bem peculiares a respeito da escri- zendo. Além disso, não podemos nos esquecer que esse
ta; Lucas, por exemplo, acha que formiguinha se escreve com aprendizado vai acontecer durante toda a escolaridade.
menos letras do que boi, “é porque ela é pequenininha e o boi Não precisam aprender tudo no primeiro ano!
é grande”; Marina acha que precisa apenas de três letras para Eu estou, sim, corrigindo as palavras escritas incor-
escrever cavalo: A A O, uma para cada sílaba; para Anderson, retamente — mas não todas ao mesmo tempo. Quanto
gato escreve-se HTO, pois a letra ‘H’ já contém o ‘ga’. mais lerem, melhor aprenderão a forma correta das pa-
Estes exemplos dão uma pequena amostra de como as lavras. Mas eles têm tempo e, como já disse, não acon-
crianças estão o tempo todo pensando na forma de escrever tecerá tudo na 1a série.
as palavras e se alfabetizando. Nós, professores, precisamos Tenho também utilizado o dicionário, procurando fazer
levar em consideração o que elas pensam, para dar-lhes infor- os alunos reconhecerem palavras da mesma ‘família’ (por
mações e fazer desafios, permitindo que aprendam sempre mais. exemplo: chuva, chuveiro, chuvoso etc., todas com ‘ch’) e se
acostumarem a pedir informação para alguém mais sabido.
E a cartilha? Queremos que, além de aprenderem a escrever certo, escre-
Atualmente, não usamos mais a cartilha porque seus tex- vam textos bons, que comuniquem e sirvam de fato para algo.
tos e sua estrutura não consideram tudo que as crianças
sabem, não levam em conta o modo de pensar das cri- Letra cursiva ou bastão?
anças. Além disso, os textos da cartilha são artificiais e Nesse início de processo de alfabetização, optamos por
muito diferentes dos textos que a criança vai encontrar adotar a letra bastão, que é mais usada fora da escola,
fora da escola. Os textos de verdade, com os quais elas em manchetes, etiquetas e anúncios. Isso ajuda muito,
20 Programa 2 Relatório e reunião de pais 21

pois os alunos a conhecem melhor, a vêem mais e têm São inúmeros os temas que podem ser abordados
mais informações que podem usar aqui na escola, nessa nos encontros com os pais, como por exemplo:
difícil construção que é aprender a ler e escrever. • Informar a respeito de algum projeto de estudo
Quanto mais puderem usar tudo que sabem, melhor,
planejado para o bimestre/semestre/ano, para
vocês não acham? Além disso, é um tipo de letra que não
que a família colabore.
confunde: é possível ver cada letra da palavra separada-
mente, com clareza. Nesse momento em que as crianças • Mostrar trabalhos feitos pelas crianças, com relato
estão tentando entender como o sistema alfabético fun- do professor a respeito de como foram realizados.
ciona, é fundamental que possam distinguir quantas e Por exemplo, uma campanha de coleta de lixo se-
quais letras estão vendo. letivo na escola organizada pela classe.
A caligrafia ficará para depois, quando já souberem • Convidar um especialista em saúde, ou em outra
ler e escrever; será uma passagem muito tranqüila e sig- área, e debater questões que afetem a comunidade.
nificativa. Aí, então, poderão se dedicar ao treino e ao
• Pedir aos pais para eles mesmos sugerirem te-
desenho das letras; sua atenção não estará mais voltada
mas que queiram discutir como, por exemplo,
para a letra que precisam usar, ou para como escrever.
Para aprender a ler e escrever não basta, conforme orientação sexual, violência, ou problemas com
se pensava, treinar a memória, a mão, os olhos e os ou- drogas.
vidos... Aprender a ler e escrever envolve pensar a res- • Discutir questões gerais de ensino e aprendizagem.
peito da leitura e da escrita, ter bons problemas para
resolver, tomar decisões, colocar em jogo as informações
A reunião de pais é um importante instrumento para
que se tem, ter boas perguntas. É um processo que não
que escola e pais possam compartilhar a tarefa de
começa quando as crianças entram na escola, mas muito
educar seus alunos/filhos. Não pode ser apenas um
antes. Tampouco acaba no fim do primeiro ciclo. Por isso,
acreditem: todos podem aprender, e essa crença pode espaço de queixas, reclamações e resolução de pro-
levá-los longe, muito longe!!! blemas de ordem prática, financeira e burocrática.

Para aprofundar as informações a respeito do tema Quando a comunidade escolar considera os pais in-
abordado pela professora Izabel, recomendamos que tegrantes de seu projeto pedagógico (e vice-versa)
você assista aos programas de Língua Portuguesa e todos podem sair ganhando muito com essa parce-
leia os respectivos textos. ria, principalmente os alunos.

A professora Izabel decidiu falar de alfabetiza- BIBLIOGRAFIA


ção na reunião de pais porque achou importante
CARRETERO, M. Construtivismo e educação. Porto Ale-
eles saberem como é esse processo, para se senti-
gre, Artes Médicas.
rem parceiros nesse trabalho e ficarem menos an-
siosos em relação aos resultados. Foi o primeiro DEHEIZELIN, M. Construtivismo: a poética das trans-
contato mais formal com os pais, e serviu também formações. São Paulo, Ática, 1996.
para que ela os conhecesse melhor — afinal teriam FERRERO, E. & TEBEROSKY, A. A psicogênese da língua
um ano inteiro juntos. escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1985.
22 Programa 3 As formas no mundo 23

Não sabia por onde começar o trabalho com meus


AS FORMAS NO MUNDO alunos. Só sabia que não queria uma aula expositiva, uma
simples apresentação de ‘pontos’ de Geometria. Queria
que estabelecessem relações com as formas que existem
a nosso redor, que colocassem seus conhecimentos e in-
formações, enfim, que tivessem problemas a resolver.
Célia, professora do ginásio, me ajudou a montar um
material referente a sólidos geométricos e a fazer um ro-
teiro de questões e problemas sobre cada figura.

N
unca tive muita familiaridade com Geometria. Meu objetivo com essa primeira atividade era in-
Na verdade, não sabia muito bem para que tra- vestigar o que os alunos sabiam, levá-los a observar
tar desse assunto. Além disso, meu parco co- como algumas formas geométricas se apresentam no
nhecimento da matéria me deixava pouco à vontade mundo, a estabelecer relações entre os sólidos, a co-
para me aventurar a dar aula. nhecer seus nomes e algumas de suas características.
A Geometria faz parte do currículo de Matemáti- Planejamos também fazê-los identificar um sóli-
ca, ou seja, mais cedo ou mais tarde eu teria de me do a partir de sua forma desmontada. Isso permitiria
defrontar com ela. Desde o início, eu pensava que não que colocassem outras capacidades em jogo –
queria dar ao trabalho um tom burocrático de pales- visualizar a partir de outro ponto de vista, prever, le-
tra, definições e memorizações. vantar hipóteses e testá-las.
Fui então em busca de informações: conversei
com a professora do ginásio, reli os PCNs de Mate-
Conteúdos planejados
mática. Percebi que mal sabia o nome de algumas
formas elementares. Tive de estudar. a) relações entre os sólidos e objetos conhecidos
Também me preocupei em compreender a impor- • esfera
tância da Geometria: Para que serve? Como se apre- • cilindro
senta no mundo? Para que aprendê-la? • cone
Uma das coisas que descobri é que a Geometria
b) relações entre forma e função
está no mundo. Tanto nas formas da natureza quanto
• latinha/cilindro
naquelas produzidas pelo homem, os elementos ge-
• casquinha de sorvete/cone
ométricos estão por toda a parte.
• bola/esfera
Fiquei sabendo também que a Geometria é um
c) comparações entre sólidos
trabalho que “contribui para a aprendizagem de nú-
• cilindro versus cone
meros e medidas, pois estimula a criança a observar,
• diferentes pirâmides
a perceber semelhanças e diferenças, a identificar re-
• cubo versus paralelepípedo
gularidades e vice-versa” (PCN). Além disso, auxilia a
compreender o espaço, amplia e sofistica a maneira d) nomenclatura
de vê-lo e representá-lo. • nome
24 Programa 3 As formas no mundo 25

Algumas das explicações e definições que deram


• lados
• face foram ótimas, como a da diferença entre o cone e o
• base cilindro. Rapidamente adotaram o ‘linguajar geomé-
• ângulos trico’, utilizando e deduzindo expressões como: base
• vértices triangular, hexágono, entre outras.
Tomei o cuidado de deixá-los sempre tentar che-
e) diferenciação entre formas bidimensionais (mais
gar aos nomes das figuras, dando-lhes algumas dicas,
conhecidas pelos alunos) e tridimensionais
chamando a atenção para alguns pontos, como o nú-
mero de lados, a semelhança com outras figuras etc.
Achei que o trabalho em pequenos grupos seria Se não conseguiam, eu lhes informava.
mais produtivo: eles poderiam manipular os sólidos Eu não formulei muito bem algumas questões. Por
e trocar informações. Além disso, seria mais fácil para exemplo, perguntei para que os cilindros eram bons, e
mim, pois bastaria montar um conjunto de sólidos ninguém entendeu o que eu estava querendo saber. Eu
para cada grupo de quatro alunos. queria que percebessem a forma ergonômica que ele
As carteiras individuais não seriam adequadas tem, ou seja, que seu formato se ajusta bem às mãos.
para o trabalho, pois tornariam difícil o manuseio do Mesmo assim, acabaram dizendo algumas das qualida-
material. Então, optei por fazer o trabalho na sala de des e características desses sólidos.
Artes; se eu não dispusesse dessa alternativa, teria
organizado os grupos no chão mesmo. O aproveitamento da classe
Programei uma aula de mais ou menos 30 minutos. A for ma de organizar o espaço, a distribuição das
Planejei começar com um problema, pedindo para os mesas, dos alunos e dos materiais, funcionou muito
grupos separarem, por exemplo, as formas que rolam da- bem. Com quatro alunos em cada grupo, todos pude-
quelas que não rolam, organizarem os tipos de pirâmide e ram participar, observar e testar, sem precisar dispu-
outras tarefas que levassem os alunos a identificar as for- tar os objetos.
mas e falar a respeito delas. Em seguida, cada grupo apre- A atividade durou um pouco menos do que eu ima-
sentaria suas soluções e seria feita uma discussão coletiva. ginava, mas talvez eu pudesse ter colocado mais pro-
Imaginei que, para encerrar, poderia colocar proble- blemas com os sólidos desmontados, que envolviam as
mas mais complexos, como por exemplo identificar um questões mais complexas e mais desafiadoras.
sólido desmontado. A participação de todos foi muito boa: interagiram
bem com o material e com os colegas, ninguém ficou
Avaliação da atividade de fora, souberam ouvir quando necessário. Às vezes,
com o entusiasmo da descoberta, todos falavam ao
Os alunos sabiam mais coisas do que eu imaginava. mesmo tempo e eu precisava chamar a atenção e
Alguns conheciam nomes ‘geométricos’, como esfera, organizá-los, para que pudessem se ouvir.
paralelepípedo e pirâmide. Estabeleciam relações ime- Abordei todos os conteúdos que havia me propos-
diatas, dizendo com que se parecia cada sólido, que to e alcancei meus objetivos. Mas creio que minha
diferenças e semelhanças havia entre eles. pouca familiaridade com a Geometria me deixou um
26 Programa 3 As formas no mundo 27

pouco presa ao material. Depois da aula fiquei me par, ver e explicar o que se passa no espaço sensível.
perguntando se não existiria um caminho ainda mais Por outro, o trabalho com a representação dos obje-
significativo do que esse que trilhei. tos do espaço geométrico permite se desprender da
Será que eu não poderia ter feito o inverso? Ter tra- manipulação dos objetos reais e passar a raciocinar
zido objetos e fotos de coisas que tivessem as formas sobre representações mentais, o que constitui, enfim,
que trabalhei e pedido para criarem critérios e agrupa- a própria ação matemática.
rem as formas parecidas? Acho que sim… Os objetos reais são um simples pretexto de pen-
De qualquer jeito, outros tipos de atividade não samento matemático, na medida em que se aprende
estão descartados, pois pretendo dar continuidade a a identificá-los e diferenciar suas propriedades. Uma
esse trabalho de várias maneiras: problematizando as das possibilidades mais fascinantes do ensino de
formas que estudamos, desmontando outros sólidos, Geometria consiste em levar a criança a perceber e
pedindo para encontrarem outros. Pensei também que valorizar a presença da Geometria, tanto na natureza
podemos investigar as formas presentes na natureza, quanto nas criações do homem, com atividades nas
como das frutas ou flores, descobrir as relações entre quais ela possa explorar as formas — flores, elemen-
suas formas e funções, conhecer seus nomes. (Será tos marinhos, casa de abelha, teia de aranha, escultu-
que a forma da banana tem nome?) ras, pinturas, arquitetura, desenhos em tecidos, vasos,
Espero que, como eu, eles também passem a pres- papéis decorativos, mosaicos, pisos etc.
tar mais atenção à geometria do mundo e no mundo.
As atividades geométricas podem contribuir também
Espaço sensível para o desenvolvimento de procedimentos de estima-
tiva visual – comprimentos, ângulos e outras proprie-
e espaço geométrico
dades métricas das figuras, sem usar instrumentos de
O ensino de noções geométricas é um campo fértil desenho ou de medida.
para trabalhar com situações-problema, despertando
grande interesse nos alunos. São úteis os trabalhos com dobraduras, recortes,
O espaço que percebemos é o espaço que contém espelhos, empilhamentos, ou a modelagem de formas
objetos perceptíveis através dos sentidos – um espa- em argila ou em massa. Construir maquetes, descre-
ço sensível. O ponto, a reta e o quadrado não perten- ver o que nelas está sendo representado, é também
cem a esse espaço. Podem ser concebidos de manei- uma atividade muito importante, especialmente no
ra ideal, mas, rigorosamente, não fazem parte do es- sentido de dar ao professor uma visão do domínio
paço sensível. geométrico de seus alunos.
Pode-se então dizer que a Geometria parte do mun- Os trabalhos com dobraduras, quebra-cabeças,
do sensível e o estrutura no mundo geométrico – dos recortes e colagens, nos quais as crianças têm opor-
volumes, das superfícies das linhas, dos pontos. tunidade de compor e decompor figuras, de perceber
É o aspecto experimental que estabelece relações a simetria como característica de algumas figuras e
entre esses dois espaços, o sensível e o geométrico. não de outras, estão entre as diversas atividades geo-
Por um lado, a experimentação permite agir, anteci- métricas que podem ser exploradas.
28 Programa 4 Quem dança os males espanta 29

Resolvi escolher uma dança diferente daquelas que


QUEM DANÇA os alunos já conhecem. Lembrei-me de Ana, uma gran-
OS MALES ESPANTA de amiga minha descendente de turcos, que conhece
músicas e danças típicas da Turquia. (Se ela não pudes-
se me ajudar, eu iria aprender a sambar na Águias de
Ouro, cuja quadra fica perto de nossa escola.)
Fui conversar com Ana. Ela me falou de uma dan-
ça chamada shamatya, de características atléticas, em
geral considerada mais adequada para os homens.
Educação Física é uma das áreas do currículo que Contou-me também que as crianças aprendem a dan-

A acho mais interessante e as crianças também ado-


ram as aulas. Mas, às vezes, fico meio sem saber o
çar desde os 6 anos, na escola! Além do mais, é uma
dança de roda: achei isso positiv o, pois contr ibui
muito para a integração do grupo.
que fazer. Começo a relembrar brincadeiras de minha in-
fância – amarelinha, pega-pega, esconde-esconde, mãe Pensei em atingir, entre outros, os seguintes ob-
da rua... Quando conseguimos alguma bola, procuro or- jetivos:
ganizar um jogo – futebol, vôlei, basquete (os alunos ti- • Fazer conhecerem um pouco o papel da dança
veram de me ensinar muitas regras). naquele país, onde ela é ensinada na escola.
Ultimamente, comecei a me questionar: não ha- • Explorar a questão de gênero, mostrando que a
veria outro tipo de atividade, além dos jogos e brin- dança de roda é praticada tanto por homens
cadeiras, para as aulas de Educação Física? Consultei quanto por mulheres.
os Parâmetros Curriculares Nacionais e vi que sugeri-
am o trabalho com ginástica, lutas e dança. • Mostrar como é gostoso fazer novos tipos de
Nunca freqüentei aulas de dança, mas sempre movimento, relativamente complexos, sem medo
gostei de dançar. Ocorreu-me que um trabalho com de errar e sem perder a alegria de estar dançan-
dança seria oportuno, por vários motivos: do. Eu pretendia dar uma boa margem de liber-
dade para cada gesto: mostraria os passos, sem
• Seria uma boa oportunidade para abordar a detalhar muito, de modo que desenvolvessem
questão das relações entre meninos e meninas, um estilo próprio.
o que são ‘coisas de menino’, ou ‘coisas de me-
nina’. Preparando para dançar
• Como manifestação cultural típica de cada povo,
Em minha classe, a maioria masculina é esmagadora.
ou de cada região, a dança per mite enfocar a
Eu temia um pouco que os meninos – já um pouco
questão da pluralidade cultural.
machistas – manifestassem preconceitos.
• A dança permite abordar conteúdos e desenvol- Também estava preocupada com a possibilidade
ver competências diferentes das que são possí- de alguns alunos sentirem timidez e vergonha, em-
veis com os jogos. bora achasse que a maioria não teria problemas. De-
30 Programa 4 Quem dança os males espanta 31

cidi então encontrar um espaço no qual pudessem Avaliação da atividade


ficar à vontade, sem se sentir expostos – não dança-
riam na frente de espelhos, não os corrigiria publica- A primeira coisa que devo ressaltar é que houve mui-
mente, não destacaria crianças do grupo. to menos resistência dos meninos do que eu imagi-
Embora a idéia de dança implique a de exibição, nava. Apenas em certos momentos precisei chamar a
achei que eles precisavam inicialmente se acostumar atenção – alguns, mais preconceituosos, ficavam go-
com isso. Depois, poderíamos pensar em apresenta- zando os que estavam dançando. Com firmeza, dis-
ções em pequenos grupos, por exemplo. se-lhes que homem dança, sim senhor, e que ser ia
Achei que era importante situar histórica e cultural- melhor dançarem e descobrirem como é bom, para
mente a dança que íamos treinar. Localizamos a Turquia não ficarem perturbando os outros.
no mapa-múndi, levei fotos e textos de enciclopédia que L e v a r a m u m t e m p i n h o, m a s a p r e n d e r a m o s
contavam um pouco da história e dos costumes do país.
passos básicos sem problemas. Ficaram tão entu-
A música que Ana gravou para nós parecia nos
siasmados que, enquanto eu voltava a fita, conti-
colocar em um transe: o ritmo constante e bem mar-
nuavam a ensaiar, em duplas, trios, ou individual-
cado era acompanhado por uma melodia que ia e
mente.
vinha, ciclicamente.
A aula de dança durou cerca de 20 minutos. Fo-
Optei por fazer essa aula no pátio coberto da es-
ram 20 minutos de sorriso estampado no rosto das
cola. Na quadra, além do sol forte, ficariam muito
crianças e, embora parecesse desorganizado, estavam
espalhados e seria difícil ouvir a música. Na classe,
concentrados, aprendendo. Mesmo aqueles com mais
ficaríamos muito apertados.
dificuldade não desistiram e dançaram, fosse com o
Os passos e os gestos pé errado, na ‘contramão’, fosse um pouco fora do rit-
mo. O lugar do treino contribuiu para que não se en-
Para eu ensinar os passos, os alunos ficaram de fren-
vergonhassem – tinham um espaço seguro para ex-
te para mim — ensinar os passos formando a roda fica
complicado, pois a direita de um é a esquerda do perimentar.
outro. Mostrei-lhes os passos básicos e, depois que Foi apenas a primeira experiência; aprendi que é
aprenderam, fomos para a roda. Havia mais passos, viável e vou continuar a desenvolver esse trabalho,
mas avaliei que perderia muito tempo com aquilo e que pode ensinar muito. Em História vamos estudar
me resumi a ensinar os gestos de corpo e de mãos. imigração e migração; então, pesquisaremos também
Aproveitei a primeira parte da música (ainda sem as danças, entre outros aspectos socioculturais de
a percussão) para improvisar gestos e movimentos cada grupo migratório.
que eles imitavam na maior farra: giros de quadril, Quero ver se os próprios alunos ajudam, apren-
mãos ‘serpenteantes’, olhares enviesados e outras dendo as danças ‘herdadas’ de seus pais e avós, ou
brincadeiras expressivas. Além disso, esses momen- vistas com amigos de fora da escola, para ensiná-las
tos serviam para descansar um pouco – a coreografia aos colegas — danças brasileiras, como samba, forró,
era agitada e uma pausa caía bem, para nos recupe- maxixe, chula e outras (que estão no PCN), ou mes-
rarmos (eu, principalmente). mo danças estrangeiras.
32 Programa 5 Quem conta um conto... conta outros 33

Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel García


QUEM CONTA UM CONTO... Marquez, ganhador do prêmio Nobel de Literatura
CONTA OUTROS (isso ela nos explicou antes de começar a ler). É um
livro fascinante, que fala de várias gerações de uma
família: encontros e desencontros amorosos, guerras,
nascimentos, mortes... tudo em uma linguagem poé-
tica, mágica, que foi nos enfeitiçando.
O livro é longo; quando ela começou, achamos
que iríamos levar o ano inteiro para lê-lo. Nada dis-
ossa, por quantas transformações está passan- so! Depois de três capítulos, ninguém agüentava es-

N do a nossa escola este ano! Estamos com uma


diretora ótima, a Fátima, que nos tem feito pen-
sar muito a respeito de tudo que acontece na sala de
perar até a reunião seguinte; de propósito, ela parava
a leitura num momento emocionante da história, dei-
xando todos em suspense. Não deu outra: cada um
aula. Ela sempre freqüenta cursos de formação e traz tratou de achar um jeito de conseguir o livro. Então,
novidades. Levanta boas questões e nos ajuda a pla- na hora da leitura, todos já haviam lido aquele capí-
nejar o que vamos realizar em cada mês. tulo (e às vezes também os seguintes). Seguíamos
Nunca aproveitamos tanto o horário das reuniões. lendo juntos.
A cada semana temos uma proposta diferente. Um dia Durante essas reuniões, fui reencontrando dentro
lemos um texto, no outro comentamos, às vezes as- de mim o prazer de ler, que parecia adormecido em
sistimos um vídeo e discutimos seu conteúdo, leva- algum canto da minha memória.
mos lições dos alunos para analisar; até na classe ela
entra para assistir aula, quando combinamos. Assessoria segura
Um dos pontos em que ela insiste muito é em re-
Fátima começou a ir às nossas classes observar o que
lação à importância da leitura. Desde a primeira reu-
estávamos lendo para os alunos, e como fazíamos
nião, ela começou a ler em voz alta para nós.
isso. Na primeira vez em que foi à minha classe eu
No começo, estranhamos muito, achando mesmo
estava lendo um livro de literatura infantil que pega-
que era perda de tempo. Afinal, ela não trouxe textos
ra na biblioteca da escola. O livro tinha poucas pági-
a respeito dos conteúdos que iríamos abordar com os
nas, era bem ilustrado, com texto simples e curto.
alunos – Matemática, História, teorias de ensino e
Os alunos se mantinham sentados em suas cartei-
aprendizagem etc. (estes, ela diz sempre para lermos
ras, voltados para mim, mas não estavam prestando
individualmente e, depois, discutimos em conjunto).
muita atenção: cochichavam, se cutucavam, alguns até
Ela lê livros de ficção!!! Trechos de romances, no-
levantavam. Fiquei brava, dei uma bronca neles e dis-
velas, livros de contos, poemas, biografias e outros
se para Fátima, em particular:
textos literários. Mesmo sem entender muito bem o
porquê, fomos aprendendo a gostar; atualmente, po- Viu como não dá para ficar lendo para eles? Não
deríamos passar a reunião inteira lendo. gostam de ouvir, são dispersos. Só ficam quietos
O primeiro livro que compartilhou conosco foi quando estão lendo sozinhos.
34 Programa 5 Quem conta um conto... conta outros 35

Fátima propôs que conversássemos no dia seguin- Esse enredo serviu de base para grande parte dos
te, no horário da merenda. contos de fadas clássicos, como A Bela e a Fera, Cinderela
e Branca de Neve, entre muitos outros. Sua estrutura tam-
Fátima: Como você escolheu aquele livro? bém é utilizada pela psicanálise, para explicar alguns pro-
Eu: Ah, fui até a biblioteca e peguei este, porque achei cessos da alma (Psiquê quer dizer ‘alma’, e psicologia
fácil. quer dizer ‘conhecimento da alma’).
A história é longa, tive de ler em oito capítulos.
Fátima: Você leu o livro antes? Cada vez que eu encerrava a leitura, sempre numa
Eu: Não. Só dei uma passada de olhos. parte emocionante, as crianças ficavam loucas da vida,
querendo que eu continuasse. Atualmente, elas têm
Fátima: Você gostou da história, achou interessante? curtido esse negócio de fazer suspense e degustar a
Eu:???? história vagarosamente. No momento em que eu lia,
todas me ouviam com a maior atenção, sem tirar os
Fátima: Será que toda aquela dispersão não foi olhos de mim, como se estivessem vendo a história
porque a história era desinteressante? acontecer ali dentro da sala. Pareciam estar como em
Fiquei matutando sobre o que ela me dissera. Eu um transe, uma viagem.
Li ainda: Matilda, Os contos do vampiro, As 1.001 noi-
achava que poderia ler qualquer história, que o im-
tes, Fábulas italianas, Contos de Shakespeare e Tristão e
portante era ler. Não importava muito o quê.
Isolda. Além dessas histórias, leio também os contos de
Levamos nossas reflexões para o grupo de profes-
fadas tradicionais e literatura infantil moderna. Não es-
sores, considerando que provavelmente esse assun-
colho as histórias pensando se são ‘de adultos’ ou ‘para
to interessaria a todos. crianças’, mas porque gosto muito delas, porque são
Logo depois da leitura de nosso livro, Fátima pro- bonitas, bem escritas e, acima de tudo, emocionantes.
pôs que listássemos os livros que estávamos lendo A escolha dessas histórias é bem pessoal: são histó-
para as crianças, dizendo como tinham sido escolhi- rias que me comovem. Creio que as crianças comparti-
dos e se os alunos estavam apreciando. lham dessas emoções. Durante esses períodos de leitu-
A maioria de nós estava lendo o mesmo tipo de ra, parece que fortalecemos ainda mais nossos laços,
história (curta e fácil) e tendo os mesmos problemas como se algo por trás dessas histórias nos unisse. Será
(desinteresse). que estou sendo muito mística? Talvez.
No entanto, Izabel, uma das professoras, nos sur- Porém o que sei é da repercussão dessas histórias:
preendeu ao falar das leituras que vinha fazendo para os alunos exigem a leitura diária, vários deles recontam
sua turma. as mais longas e complicadas histórias para pais e ami-
gos, e a todo momento estão mencionando um ou outro
personagem.
As histórias que tenho lido não poderiam ser chamadas
de ‘histórias para crianças’. A primeira história que con-
tei a eles foi Amor e Psiquê, uma história clássica, mara- Esse depoimento nos deixou perplexos. Então, as
vilhosa. Trata-se da saga de Psiquê, que passa por um crianças poderiam sentir as mesmas emoções que nós,
sem-número de aventuras e provações para conquistar e durante a leitura? Podíamos escolher histórias sim-
reconquistar o amor de seu Amor. plesmente por gostar delas? Poderiam ser histórias
36 Programa 5 Quem conta um conto... conta outros 37

longas, em capítulos? Poderiam ter palavras difíceis, Clássicos Infantis. Consultoria de Nelly Novaes Coe-
que as crianças não soubessem o significado?
lho. Moderna.
A discussão pegou fogo. Foi um alvoroço. Fátima,
como sempre, deixou o debate transcorrer por algum Branca de Neve e outros contos de Grimm. Tradução de
tempo e, antes que a reunião terminasse, sintetizou Ana Maria Machado.
algumas das principais idéias e dúvidas que haviam Chapeuzinho Vermelho e outros contos de Grimm. Tradu-
surgido: ção de Ana Maria Machado.
Ao ler literatura, um universo novo se abre para nós: pas- Contos escolhidos. Grimm. Globo.
samos a viajar por mundos diferentes, conhecer pessoas
Contos de Perrault. Itatiaia.
(personagens) interessantes, vivemos aventuras através
do tempo e do espaço. Enfim, a leitura mobiliza emoções Contos de Andersen. Paz e Terra.
e sentimentos que talvez não experimentássemos de ou- Contos escolhidos. Andersen. Globo.
tra forma.
Na leitura para as crianças podemos levar tudo isso Reinações de Narizinho. Monteiro Lobato. Brasiliense.
em consideração. Fazer escolhas que não as subestimem, O Saci. Monteiro Lobato. Brasiliense.
que não empobreçam a língua, simplificando-a demais.
Seus trinta melhores contos. Machado de Assis. Nova
Outro cuidado importante é lembrar por que lemos. Não
lemos para preencher fichas ou responder perguntas (ima- Fronteira.
ginem se eu lhes tivesse pedido um resumo de cada ca- Fábulas italianas. Ítalo Calvino. Cia. das Letras.
pítulo de Cem Anos de Solidão!). Lemos para poder des-
O Minotauro. Adaptação de Orígenes Lessa. Ediouro.
frutar do prazer que as histórias nos oferecem.
Tristão e Isolda. Anônimo. Francisco Alves.
Eu, particularmente, me senti muito seduzida pela
idéia de me arriscar a ler novas histórias. Tenho cer-
teza de que Monteiro Lobato pode comunicar para as Modernos
crianças como ler é uma aventura deliciosa! Duendes e gnomos. Heloísa Prieto. Cia. das Letras.

Sugestões de leitura Fadas, magos e bruxas. Heloísa Prieto. Cia. das Letras.
O teatro de sombras de Ofélia. Michael Ende. Ática.
Para alunos e professores
O pequeno papa-sonhos. Michael Ende. Ática.

Clássicos A história do unicórnio. Otfried Preussier. Ática.

Contos de Grimm. Tradução de Tatiana Belinky. Como contar cr ocodilos. Mar garet Mayo. Cia. das
Letrinhas.
Contos de Grimm. Volumes 1 e 2. Tradução de Maria
Heloísa. A pedra arde. Eduardo Galeano. Loyola.

Sete contos russos. Recontados por Tatiana Belinky. Cia. O diário do lobo: a verdadeira história dos três
das Letrinhas. porquinhos. Jon Suiszka. Cia. das Letras.
38 Programa 5 Quem conta um conto... conta outros 39

A mulher que matou os peixes. Clarice Lispector. Contos de artimanhas e travessuras. Ática.
Siciliano. Contos de animais fantásticos. Ática.
O menino maluquinho. Ziraldo. Melhoramentos. João Pobre João. Luís Diaz. Formato.
Flicts. Ziraldo. Melhoramentos. Contos de assombração. Ática.
Rip Van Winkle. Washington Irving. Ática. Contos de lugares encantados. Ática.
A bolsa amarela. Lygia Bojunga Nunes. José Olympio.
Os colegas. Lygia Bojunga Nunes. José Olympio. Fábulas
A casa da madrinha. Lygia Bojunga Nunes. José Fábulas de La Fontaine. Itatiaia.
Olympio. Fábulas de Esopo. Cia. das Letras.
O gênio do crime. João Carlos Marinho. Moderna.
O livro da Berenice. João Carlos Marinho. Moderna. Poesias
Sangue fresco. João Carlos Marinho. Moderna. Comboio, saudades e caracóis. Fernando Pessoa. FTD.
O conde de Frutreson. João Carlos Marinho. Moderna. A arca de Noé. Vinícius de Moraes. Cia. das Letras.
Contos da Rua Brocá. Martins Fontes. Ou isto ou aquilo. Cecília Meireles. Nova Fronteira.
Matilda. Roald Dahl. Martins Fontes. Poemas malandrinhos. Almir Correa.
Raposas e fazendeiros. Roald Dahl. Martins Fontes. Berimbau e outros poemas. Manuel Bandeira.
Os Minpins. Roald Dahl. Martins Fontes. Antologia poética de Manuel Bandeira.
As bruxas. Roald Dahl. Martins Fontes. A poesia é uma pulga. Sylvia Orthof. Atual.
Série “O pequeno Nicolau”. Sempé. Martins Fontes. Di-versos hebraicos. Tradução de Tatiana B elinky.
Luas e luas. James Thurber. Ática. Scipione.
Série “O pequeno vampiro”. Angela Sommer. Martins Di-versos russos. Tradução de Tatiana Belinky. Scipione.
Fontes.
A vassoura encantada. Chris Van Allsburg. Ática. Para as crianças lerem sozinhas
A casa sonolenta. Audrey e Don Wood. Ática.
Populares O rei bigodeira e sua banheira. Audrey e Don Wood. Ática.
Askeladden e outras histórias. Organização de Francis A bruxa Salomé. Audrey e Don Wood. Ática.
H. Aubert. Edusp. Enquanto seu lobo não vem. Edmir Perroti e Cláudio
Contos populares para crianças da América Latina. Ática Martins. Paulinas.
Contos, mitos e lendas para crianças da América Latina. Vou te pegar! Jony Ross. Martins Fontes.
Ática. João preguiçoso. Jony Ross. Martins Fontes.
Contos de piratas, corsários e bandidos. Ática. Quero meu penico. Jony Ross. Martins Fontes.
40 Programa 6 41

Da Pequena Toupeira que queria saber... Wer ner


Holzwarth. Cia. das Letrinhas.
QUANDO A GENTE
TEM DE MUDAR O RUMO
Olha o bicho. José Paulo Paes. Ática.
Uma letra puxa a outra. José Paulo Paes. Cia. das
Letrinhas.
Poemas para brincar. José Paulo Paes. Ática.

Histórias em quadrinhos
o ano passado, a classe que me coube era ‘aque-
Calvin e Haroldo. Bill Watterson. Cedibra.
Turma da Mônica. Maurício de Souza. N la’ classe. Antes de mim, nenhum professor havia
permanecido durante mais de dois meses: uma
professora saiu de licença, a outra foi ser supervisora, a
outra se casou e mudou, enfim, os alunos passaram boa
parte do ano em adaptação. Infelizmente, o ensino ficou
BIBLIOGRAFIA relegado a segundo plano. Eu sabia disso e, confesso,
estava um pouco apreensivo.
ABRAMOVICH, Fanny (org.). Meu professor inesquecí-
vel. São Paulo, Gente, 1997.
Para conhecer a turma
——. Professor não duvida! Duvida? São Paulo, Gente,
1998. Nos primeiros dias, decidi propor uma atividade de Ma-
TEBEROSKY, A. & TOLCHINSKY, L. (org.). Além da al- temática na qual precisariam recorrer a seus conhecimen-
fabetização. São Paulo, Ática, 1996. tos para resolver um novo problema. Eu pretendia diag-
TEBEROSKY, A & CARDOSO, B. Reflexões sobre o ensi- nosticar como estavam se saindo em cálculo mental.
no da leitura e da escrita. Campinas, Unicamp, 1989. Coloquei na lousa algumas contas. Os valores numé-
ricos eram relativamente altos; no entanto, se as crian-
ças estabelecessem relações entre os números e olhas-
sem a conta em sua totalidade veriam que era possível
recorrer a estratégias de cálculo e/ou a estimativas. Pa-
receu-me que, com tais recursos, seria fácil chegarem ao
resultado (pelo menos era assim que eu pensava).
Escrevi as sentenças no quadro, sem armar a conta, para
evitar que resolvessem automaticamente, sem refletir.

100 - 98 =
Embora seja uma subtração, esta conta pode ser resol-
vida de modo eficiente recorrendo à adição; mas, para
42 Programa 6 Quando a gente tem de mudar o rumo 43

isso, os alunos precisam compreender a inter-relação • Deixei que conversassem entre si e socializas-
entre as duas operações. sem os caminhos encontrados.
90 - 10 = Por não estarem habituados com esse tipo de encami-
Se o aluno tiver uma boa compreensão do sistema nhamento, tiveram muito mais dificuldade do que eu
decimal, pode relacionar 90 - 10 com 9 - 1 e chegar imaginara. Com algumas exceções, os caminhos que
rapidamente ao resultado. acharam foram representar as quantidades com boli-
nhas ou pauzinhos e riscá-las, apagá-las, agrupá-las, ou
50 + 5 = usar os dedos que, no caso, eram insuficientes.
Aqui, o aluno pode se apoiar no conhecimento de que, ao
adicionar unidades a dezenas redondas, o resultado é a Resultados da proposta
dezena com a mesma unidade no final.
Resolvi discutir coletivamente a primeira conta. Ficaram
2 + 3 + 25 =
muito surpresos ao perceber que, embora fosse uma
Sabendo fazer decomposição dos números (principal- subtração, era válido o raciocínio aditivo – somar 2, em
mente do 10), é possível, por exemplo, somar o 5 (do 25) vez de subtrair 98. Uma aluna não conseguia acreditar
com o 5 resultante do 2 + 3, ou vice-versa. que aquele 2 que encontrara “partindo do 98 para che-
99 + 99 = gar ao 100” era o resultado certo, ainda mais com duas
parcelas tão altas (100 e 98).
Neste caso, uma estratégia simples consiste em so-
Pulei para a terceira conta (50 + 5 =); essa, quase
mar 100 + 100 e subtrair 2.
todos fizeram de cabeça, provavelmente utilizando as
1.000 - 100 = estratégias que descrevi acima. Mas um ou outro ape-
Aqui, a relação é semelhante à da segunda conta. lou para os dedos e alguns destes chegaram em 54!
Esse tipo de erro explicitou dois problemas:
7+2+3+5+3+8+6+9+1=
• na contagem, partiram do 50, e não do 51;
Embora sejam apenas unidades, contar nos dedos
não é o melhor caminho; agrupar os números de 10 • provavelmente não compreendiam um dos prin-
em 10 é um bom começo. cípios do sistema de numeração decimal: que o
primeiro 5 do 55 vale 50 e o segundo vale 5
Li as sentenças e expliquei que não poderiam armar a con-
mesmo.
ta: eu queria que resolvessem seguindo por outros cami-
nhos. Para eles, a situação era nova em muitos aspectos: Dei um tempo para que fizessem a quarta conta (2 +
3 + 25 =) e novamente pude constatar que não tinham
• Tirei o ‘chão’ deles, ao impedir que fizessem a
construído procedimentos básicos como, por exemplo,
conta armada. Em vez de aplicar uma fórmula,
conservar o 25, que é o número maior, e acrescentar
precisariam enxergar as relações entre os núme-
o 2 e o 3. Algumas crianças nem mesmo sabiam ler o
ros, para encontrar uma estratégia de resolução.
25. Houve uma discussão sobre trocar ou não o 25 de
• Pedi para tentarem uma solução própria, arris- lugar, sem saber se isso alteraria o resultado final.
cando e fazendo escolhas. Essas dificuldades indicam a falta de conhecimento das
44 Programa 6 Quando a gente tem de mudar o rumo 45

propriedades da adição. É bem provável que tenham falta- ro 10, que é uma estratégia básica para o cálculo, e opera-
do a esses alunos oportunidades de operar com os núme- riam com os múltiplos de dez, que também são básicos.
ros, de modo a construir idéias acerca da ordem das par- Em uma parte do problema poderiam usar os dedos mas,
celas ou da possibilidade de decomposição, por exemplo. nas demais etapas, teriam de operar mentalmente.
Esperei copiarem as contas; só para isso, alguns Aline explicou como uma autêntica professora,
levaram um tempão, e não achei isso bom. Sem dúvi- procurando fazer com que seus ‘alunos’ chegassem a
da, já que meu objetivo era levá-los a pensar, o tem- suas próprias conclusões. Perguntava, por exemplo:
po deveria ter sido usado só para isso; teria sido me- Que número, mais este aqui, dá 10? Precisei intervir al-
lhor entregar as contas já escritas em um papel. gumas vezes, pois todos falavam ao mesmo tempo,
A classe ficou agitada, barulhenta e ansiosa. Percebi querendo dizer a Aline quais números usar. Embora
que, embora a situação ajudasse a iluminar um pouco estivessem agitados, estavam conseguindo entender
suas idéias, eles não possuíam conhecimentos suficien- e operar com os números; era um problema com o
tes para levar a cabo aquela tarefa de maneira significati- qual podiam lidar.
va. Decidi mudar a atividade. Antes mesmo de termina- Percebi que estavam cansados e decidi continuar
rem (levariam séculos fazendo bolinhas e risquinhos), fui em outro dia.
direto para a última conta. Uma das coisas que constatei foi que, mesmo saben-
Tinha visto Aline tentar resolver aquela sentença ma- do fazer a conta armada, nem sempre eles estavam com-
temática somando combinações de 10 e ajudei um pou- preendendo como funciona o sistema numérico, ou quais
co, para que montasse a conta em forma de ‘árvore’, pois são as relações entre a adição e a subtração. Não acho que
poderia mostrar sua estratégia aos outros. tenham encontrado dificuldade diante dos números al-
tos. Na verdade, eles provavelmente haviam tido poucas
7 + 2 + 3 + 5 + 3 +8 + 6 + 9 + 1 = oportunidades de operar com os números, pensar sobre
eles e utilizar seus conhecimentos.

10 10 14 10 Sugestões

20 Concluí que deveria investir em atividades que per-


mitissem a eles construir conhecimentos. Juntamen-
te com outra professora, fiz um levantamento de si-
30 10 4 tuações que poderiam contribuir para a aprendizagem
acerca do sistema numérico e das operações.
40
40 Jogos
• Trilha: um percurso traçado em um tabuleiro
Imaginei que essa conta deixaria os alunos menos as- deve ser percorrido com uma pecinha (peão,
sustados, pois estariam operando com números mais bai- botão, pedrinha), de acordo com o número tira-
xos. Além disso, trabalhariam com a composição do núme- do em dois dados. Nesse jogo, as crianças pre-
46 Programa 6 Quando a gente tem de mudar o rumo 47

cisam somar os números dos dados, calcular Simulações de compra e venda


quantas casas faltam para chegar a determina-
Atividades envolvendo situações de contagem, cálcu-
do ponto, contar quantas casas devem percorrer,
lo de preço e troco – mercadinho, padar ia, banco,
reconhecer os números desenhados e assim por
banca de jornais etc. – proporcionam ricas oportuni-
diante. É possível fazer variações, tornando o
dades de trabalho com o sistema numérico.
jogo gradualmente mais complexo (por exemplo:
Os alunos são levados a pensar nos valores, cal-
lançar vários dados ou traçar uma trilha com in-
cular seus gastos, dar troco, escrever e ler números
tervalos de 10 em 10).
(preços), entre outras inúmeras ações matemáticas.
• Baralho: jogos como batalha, vinte e um, escopa
de 15, buraco, entre muitos outros, possibilitam Álbuns e coleções
o trabalho com a decomposição dos números,
Fazer coleções, montar, organizar e controlar os ál-
conhecimento da escrita e inúmeros cálculos
buns são atividades que levam os alunos a catalogar,
com as quatro operações.
enumerar (lendo e escrevendo números), contar quan-
• Dados: jogos de soma, subtração e multiplicação to falta para completar uma página ou o próprio ál-
com dados comuns e com dados modificados bum, dividir (em páginas ou nos pacotinhos) e ou-
(com dezenas, com sinais matemáticos, com ou- tras relações numéricas.
tros números) permitem explorar as operações, os
valores numéricos e a leitura dos números. Problematização de situações cotidianas
• Cruzadinha de números: é uma brincadeira equi- Situações corriqueiras – como a consulta ao calendá-
valente a palavras cruzadas, mas com parcelas rio, o uso da agenda, o registro de medidas e a reali-
combinadas que devem resultar em um deter- zação de operações com dinheiro – sempre oferecem
minado número. Também é conhecida como muitas oportunidades para o treino de operações de
quadrado mágico. Exemplo: cálculo.
Exemplos de situações que favorecem a leitura e
a escrita dos números, a contagem, os cálculos e as
2 7 1 =12 operações:
3 2 4 =12 • calcular quantos dias faltam para a festa junina;
4 5 2 =12 • anotar números de telefones dos colegas;

2 2 5 =12 • preencher fichas de peso e altura dos alunos;


• comparar preços para compra de material.
=12 =12 =12 =12

Nessa atividade, os alunos precisam decompor os


números em parcelas, somar, subtrair, combinar e
calcular de várias maneiras.
48 Programa 7 Variações sobre um mesmo tema 49

lizadas e dotadas de relevância social do ponto de


VARIAÇÕES vista dessa área do conhecimento.
SOBRE UM MESMO TEMA Assim, as crianças realizam tarefas com nomes
próprios, fazem listas, copiam bilhetes para os pais a
respeito de eventos na escola, escrevem parlendas e
trava-línguas, ouvem boas histórias diariamente, es-
crevem contos, lêem gibis, cartas, poemas etc.

O papel das crianças


uitos são, ainda, os mitos acerca de uma prá- e o do professor
M tica pedagógica construtivista (entendida como
um marco explicativo que integra diversas teo-
rias coerentes e úteis e que contribui com instrumen-
Torna-se cada vez mais evidente que é preciso se pre-
ocupar com a qualidade do que se propõe às crian-
tos que guiam, fundamentam e justificam a atuação ças, para que elas possam desenvolver com maior
de muitos professores). competência sua capacidade leitora e escritora, bem
Contudo, o que mais parece chamar a atenção é a como seu papel de estudante. A escolha dos modelos
crença de que as crianças aprendem sozinhas e não oferecidos é de fundamental importância no resulta-
se pode nem se deve corrigi-las, orientá-las, ajudá-las do de suas produções. Para modelos pobres, há pro-
ou ensiná-las. duções pobres...
Quando falamos em construtivismo, é fundamen- Apesar dessa mudança qualitativa em relação às
tal reconhecermos, entre outros princípios, a impor- produções realizadas pelos alunos, e também da
tância da atividade significativa e ativa dos alunos maior preocupação quanto à seleção dos conteúdos
para a realização de suas aprendizagens, a necessida- a trabalhar, há ainda um grande investimento a ser
de de boas interferências por parte dos professores e feito, principalmente em relação à atuação das crian-
o papel dos conteúdos no processo de ensino e ças e às interferências do professor.
aprendizagem. Não basta, por incrível que pareça, pedir para es-
Atualmente, é possível observarmos que, em mui- creverem... Não basta abrir o livro e ler contos... Não
tos casos, têm ocorrido modificações principalmente basta pedir para inventarem histórias... Não basta
nos conteúdos referentes às propostas de ensino da mandar corrigirem ou revisarem seus próprios textos,
Língua Portuguesa. Esses conteúdos não mais têm para que estes ganhem melhor forma escrita... Não
como referência apenas os exercícios de coordenação basta apenas solicitar que leiam...
motora, a memorização de palavras soltas, a realiza- É necessária uma atuação explícita do professor
ção de tarefas que envolvem o simples conhecimen- para que as crianças avancem, aprendam e desenvol-
to de letras, palavras, frases, pequenos parágrafos e vam uma boa competência leitora e escritora. Atua-
histórias inventadas, ou os exercícios de fixação e gra- ção explícita significa que o professor:
mática propostos nas cartilhas e nos livros didáticos. • planeja o que vai trabalhar, com clareza de ob-
Agora eles incluem também propostas contextua- jetivos;
50 Programa 7 Variações sobre um mesmo tema 51

• antecipa os problemas decorrentes da realiza-


ção da tarefa; NOME
• propõe desafios; D AT A
• organiza bons grupos de trabalho;
D IT A D O D O P R O C U R E E P IN T E
• prevê tempo suficiente para a realização da ati-
vidade; e, principalmente, O REI LEÃO
• faz boas perguntas. A B E LA E A F E R A
Se esses cuidados e princípios de trabalho não forem BRANCA DE NEVE
observados, corremos o risco de ver a classe toda re- A B E LA A D O R M EC ID A
solvendo uma boa atividade elaborada pelo profes- A CASA SONOLENTA
sor da maneira mais descompromissada possível e A B R U XA S ALOM É
gastando tempo para realizá-la, mas sem aproveitar M EU S PO R Q U IN H O S
nada, nem aprender com o que foi proposto. O R E I B IG O D E IR A
As duas cenas descritas abaixo aconteceram a O P E Q U E N O P IN G Ü IM
partir de uma mesma atividade. Foram observadas C H A P E U Z IN H O V E R M E L H O
pela diretora na mesma sala e com a mesma pro-
fessora, em dois momentos distintos. Em ambos os
casos, as crianças participaram e realizaram a mes- A proposta: o aluno deveria procurar o título ditado
ma tarefa... Mas é substancial a diferença em rela- pela professora e pintar ou circular o nome com uma
ção à aprendizagem, aos desafios e aos avanços caneta colorida. A professora começou o ditado:
nos dois momentos. Profa.: A primeira história é Branca de Neve!!!
Imediatamente as crianças marcaram o título. En-
1 a série A – 10 de abril
quanto todas grifavam ou circulavam a história pedi-
Na classe, o clima era de trabalho. As crianças esta- da, muitas responderam ao mesmo tempo:
vam sentadas em grupos de três ou quatro e a pro-
fessora explicou o que iriam fazer: Crianças: É a três !...

Hoje vamos fazer um ditado diferente. É um ditado Profa.: A próxima é Chapeuzinho Vermelho!!!
de procurar e pintar as palavras da lista que vou en- Crianças: É a dez! [Quase todos sabiam a numera-
tregar. ção da lista de cor.]
A professora entregou a cada aluno uma lista com Profa.: Agora vou ditar outra, atenção: O Rei Leão!
o nome de dez histórias conhecidas por todos (havia
na parede um quadro idêntico ao que ela entregou, Crianças: Um, esta é muito fácil...
mas no quadro os títulos estavam numerados de 1 a E assim prosseguiu o ditado. Os alunos usavam a
10). Todos conheciam bem o conteúdo da lista. A fi- memória que tinham da numeração da lista e iam pin-
cha entregue pela professora era assim: tando e circulando as palavras sem nenhum problema.
52 Programa 7 Variações sobre um mesmo tema 53

Enfim, a proposta não sugeria desafio, nenhum pois precisavam estabelecer outras relações para en-
bom problema a ser resolvido. As crianças não preci- contrar a história pedida, procurando indícios que não
savam pensar na escrita, mas apenas recordar o nú- eram os números dos títulos dos contos, como ocor-
mero da lista e marcar o título. Se a memória falhas- rera na primeira vez.
se, bastava apelar para o cartaz, bem à vista! Profa.: Quero que encontrem o nome da história: A
Todos estavam muito envolvidos, interessados nas Bela Adormecida.
canetinhas que iam escolher, nas cores que iam usar, nas
respostas dos que sabiam sem titubear o número da his- Enquanto todos trabalhavam, ela sentou com um gru-
tória ditada, e com a facilidade de acertar todo o ditado. po de quatro crianças que estava com dificuldade e
A professora circulava pela classe, sem ter muito começou a ajudar:
controle de quem grifava o quê, mas ela cumpria o Profa.: De todas estas histórias que estão aí, quais
ritual de dar uma ‘boa atividade’ para seus alunos... vocês já conhecem? [Aguardava as respostas e pe-
No final do dia, a diretora e a professora conver- dia para justificarem].
saram a respeito da atividade e refletiram: Mar iana: Eu conheço a Chapeuzinho Vermelho,
• Por que o cartaz continuou afixado na classe? porque já vi o livro muitas vezes.
• Por que os números não foram retirados da fren- Tiago: É, e começa com CH.
te dos títulos das histórias? Gabriel: Branca de Neve é esta, porque eu sei.
• O que os alunos precisaram pensar sobre a es- Mariana: Tem outra que eu conheço, Meus
crita, para decidir qual história marcar? Porquinhos. Porque não começa nem com O, nem
• Que relações entre os nomes das diferentes his- com A [referindo-se aos outros títulos que come-
tórias poderiam usar para tomar decisões, já que çavam sempre com as mesmas vogais], começa
não lêem convencionalmente? com M, do meu nome, né?.
• Quem poderia ajudar quem? Nem sempre o que começa com A, E, I, O, U é o mais fácil
do ponto de vista de quem tem de pensar na escrita...
1 a série A – 12 de maio Ana: A Bela e a Fera eu conheço, porque começa com
O clima também era de trabalho. Os grupos recebe- A e tem o B.
ram a lista das mesmas dez histórias lidas e já tão A professora pôs em ordem três nomes de histórias
conhecidas. Mas, desta vez, os títulos estavam recor- que têm no início as mesmas letras em comum:
tados em tiras e fora da ordem do cartaz, que fora
retirado da parece no dia anterior. A BEL A E A FER A
A professora foi ditando os títulos das histórias,
pedindo para cada criança pôr em ordem sua lista. A BRUXA SALOMÉ
Não havia numeração nos títulos e o cartaz não esta-
va disponível. A BELA ADORMECIDA
Os alunos trocavam muitas informações entre si,
54 Programa 7 Variações sobre um mesmo tema 55

Profa.: Estas também começam com A e têm o B. E assim por diante... Os alunos foram pensando,
Gabriel: Tem que terminar com A: A Bela e a Fera. estabelecendo relações, comparando nomes, enfim
Então, esta não pode. [Retirando A Bruxa Salomé]. resolvendo problemas.
A professora foi passando entre os grupos e fazendo
Profa.: Estas duas terminam com A, e agora? outras tantas perguntas. O importante não era só que
acertassem, mas que pudessem recorrer a todos os co-
A BEL A E A FER A nhecimentos que possuíam a respeito dos conteúdos
abordados e que pensassem, pensassem muito...
A BELA ADORMECIDA
Para concluir
Gabriel pensou, pensou... E comentou:
A lista dos contos lidos e preferidos pelos alunos pode
Gabriel: Tudo parece. Tem: a, b, e, l, a [mostrando A Bela servir de fonte de informações para a escrita convencio-
Adormecida e A Bela e a Fera]. Só que na segunda tem nal e de organizadora do trabalho feito com as histórias.
E e outro A. Eu acho que é a Bela E A Fera. Nessa classe, a professora lê diariamente, está
Profa.: Perfeito! Então, é só colar. Agora, onde está O preocupada com a qualidade dos textos literários e
Rei Leão? com o planejamento de situações de escrita em que
esta apareça dotada de significado.
Tiago: Onde tem uma cobrinha em cima que faz ão!!!
Qual a diferença entre a atividade realizada no dia
Profa.: Esta ‘cobrinha’ aí que você conhece é um 10 de abril e a de 12 de maio? Nos dois momentos, a
acento chamado til. professora se mostrou preocupada em ampliar signi-
Lucas: Achei! [Mostrando O Rei Leão]. É o único que ficativamente o repertório de contos das crianças.
tem ‘um tio’ em cima dele!!! Quais seriam os objetivos em um momento e no ou-
tro? Que procedimentos se destacaram em uma e na ou-
Profa. E este? [Aponta O Rei Bigodeira].
tra situação?
Lucas: Não sei... A observação da diretora e a discussão das questões
Profa.: Compare [ Vai assinalando a palavra ‘rei’, levantadas por ela contribuíram para que a professora
em O Rei Leão e O Rei Bigodeira]. revisse suas posturas, suas crenças e seus valores. Avaliar
a atividade e o trabalho das crianças permite que se re-
Lucas: Se o primeiro é O Rei Leão, então este outro
pense os encaminhamentos. Às vezes uma boa ativida-
que tem uma parte igual é O Rei Bigodeira.
de é desperdiçada porque o professor não consegue, so-
Profa.: Quem acha aí A casa sonolenta? zinho, distinguir aquilo que promove a aprendizagem
Gabriel: Confunde, porque tudo que sobrou come- daquilo que é meramente mecânico, tarefeiro.
ça com ‘a’, ou com ‘o’. [Mostra, mas logo associa].
Mas casa é com ‘ca’, da Carolina, não é? A reflexão, a análise e a transformação são compo-
nentes dos quais não podemos prescindir, pois defi-
Profa.: Exatamente! Ficou fácil, agora?
nem práticas pedagógicas de qualidade.
Gabriel: A casa sonolenta!!! Achei.
PROJETOS DE TRABALHO
58 Programa 1 Técnica de ensino ou postura pedagógica? 59

Significa romper com um modelo fragmentado de


TÉCNICA DE ENSINO educação e recriar a escola, transformando-a em es-
OU POSTURA PEDAGÓGICA? paço significativo de aprendizagem para todos que
dela fazem parte, colada ao mundo contemporâneo,
sem perder de vista a realidade cultural específica de
seus alunos e professores.

Palavra de professora
Lúcia, professora de 2a série, reflete sobre seu trabalho:
s estudos atuais feitos pelos educadores indicam

O que o modelo clássico de escola, com tempos rígi-


dos atribuídos a cada disciplina, parece não mais
Tenho buscado trabalhar com projetos com meus alunos.
Vejo que sua participação e seu envolvimento têm melhora-
do bastante, mas ainda tenho muitas dúvidas sobre a forma
dar conta da complexidade do mundo moderno. Essa
constatação demonstrou a necessidade de mudar a es- de conduzir esse processo. Algumas questões:
• Quem leva o tema do projeto? Eu posso propor temas, ou
cola, de aproximá-la mais da sociedade e de envolver
devo sempre partir do interesse dos alunos?
mais os alunos no processo de aprendizagem.
• Como envolver todos os alunos no trabalho? E se algum
É nessa perspectiva que, nos anos 90, o trabalho com não se interessar? O que fazer?
projetos, voltado para uma visão mais global do proces- • Qual o papel do grupo de professores no projeto?
so educativo, ganhou força no Brasil e no mundo. • Qual a duração do projeto? Quando ele termina?
Não se trata de uma técnica atraente para transmi- • Como planejar o projeto com os alunos?
tir aos alunos o conteúdo das matérias. Significa de • Como avaliar o que os alunos aprenderam com o projeto?
fato uma mudança de postura, uma forma de repen- • Como relacionar o conhecimento social com o trabalho
sar a prática pedagógica e as teorias que lhe dão sus- individual dos alunos?
tentação. • Como trabalhar com a cultura do aluno sem cair em uma
Significa repensar a escola, seus tempos, seu es- prática vazia de conteúdo?
paço, sua forma de lidar com os conteúdos das áreas • Como propiciar a reflexão dos alunos acerca de temas
transversais, como o da pluralidade cultural presente em
e com o mundo da informação.
nossa realidade?
Significa pensar na aprendizagem como um pro-
• Todas as áreas de conhecimento devem aparecer em um
cesso global e complexo, no qual conhecer a realida- projeto? Ou é um projeto para cada área?
de e intervir nela não são atitudes dissociadas. • Em que momento trabalho os conteúdos? Como sistema-
tizar os conteúdos das áreas? E o conteúdo programático
O estudante aprende participando, formulando pro- da série?
blemas, tomando atitudes diante dos fatos, investi-
Bom, parece que tenho muito mais dúvidas que respostas.
gando, construindo novos conceitos e informações e
Mas, uma coisa eu consigo perceber: as aulas estão mais in-
escolhendo os procedimentos quando se vê diante da
teressantes, mais desafiadoras para mim e para os alunos.
necessidade de resolver questões. Por isso, apesar de tantas dúvidas, continuo apostando nessa
proposta.
60 Programa 1 Técnica de ensino ou postura pedagógica? 61

Esse tipo de situação descrita pela professora Lúcia é tudo. Os alunos, por sua vez, abandonam o papel pas-
vivida com freqüência por educadores e educadoras que sivo de quem recebe tudo pronto e passam a dar sua
buscam compreender e transformar sua prática, com o ob- contribuição efetiva. Em resumo, os projetos são de-
jetivo de atender melhor às necessidades de seus alunos. senvolvidos com os alunos, e não para os alunos.
Não se trata apenas de adotar propostas inovadoras:
• A autenticidade é uma característica fundamental de
precisamos entendê-las, perceber em que concepções se
um projeto.
baseiam, quais são seus referenciais teóricos e suas impli-
Cada processo é único, singular, pois é construído coleti-
cações práticas. Trata-se de fugir dos modismos e assumir
uma nova prática pedagógica, sabendo fazer escolhas, to- vamente por aquele grupo determinado. Nessa perspec-
tiva, um projeto não pode ser copiado, nem montado
mar decisões, propor inovações coerentes com nosso pro-
como se fosse uma unidade de livro didático. Mesmo que
jeto educativo e com nossas concepções de educação.
duas turmas da mesma série desenvolvam projetos so-
Para que possamos assumir os projetos de trabalho
bre o mesmo tema ou problema, com certeza cada um
como postura pedagógica, há alguns aspectos fundamentais:
será diferente: cada turma é única e vivencia seu próprio
• Um projeto envolve complexidade e resolução de
processo de aprendizagem. Portanto, não há como orga-
problemas, possibilitando a análise, a interpretação nizar fórmulas ou modelos para trabalhar com projetos,
e a crítica por parte dos alunos. nem fazer um planejamento fechado e definitivo.
A questão da problematização é fundamental no de-
senvolvimento dos projetos. Problematizar, aqui, não • Um projeto busca estabelecer conexões entre vários
significa fazer uma lista de perguntas do tipo ‘‘que pontos de vista, contemplando uma pluralidade de
queremos sobre o tema...?”. Problematizar corresponde dimensões.
a construir coletivamente uma questão que irá acom- Os caminhos do aprendizado não são únicos, nem ho-
panhar o grupo em todo seu percurso e servirá de re- mogêneos – há várias formas de chegar a um conheci-
ferência para debates, discussões e reflexões. mento e o projeto é uma proposta que garante a flexi-
• O envolvimento, a responsabilidade e a autoria dos bilidade e a diversidade da experiência educativa. Ao
alunos são fundamentais em um projeto. se ver diante de um problema significativo, instigados
a compreender esse problema, os alunos se defrontam
Os alunos são sujeitos ativos, participando de todos
com várias interpretações e com pontos de vista diver-
os momentos do processo – do planejamento à di-
sos acerca da mesma questão.
vulgação, passando pela pesquisa. O trabalho com
projetos deve atender ao interesse dos alunos, mas A partir dessa reflexão, podemos concluir que os projetos
demanda também envolvimento, responsabilidade não se reduzem à escolha de um tema para trabalhar em
e compromisso. Essa atitude desenvolve a coopera- todas as áreas, nem a uma lista de objetivos e etapas.
ção e a solidariedade entre alunos e professores. Eles refletem uma visão da educação escolar, na
Com freqüência, o professor pode não saber resol- qual a experiência vivida e a cultura sistematizada
ver muitos problemas colocados pelo grupo; assim, ele interagem, na medida em que os alunos vão estabe-
se coloca também no lugar de aprendiz, deixando de lecendo relações entre os conhecimentos construídos
ser a única fonte de informação, a pessoa que sabe em sua experiência escolar e na vida extra-escolar.
62 Programa 2 63

Diferenças de perspectiva A ORGANIZAÇÃO DO PROJETO


Perspectiva Perspectiva dos projetos
compartimentada de trabalho
Enfoque fragmentado, cen- Enfoque globalizador, centra-
trado na transmissão de con- do na resolução de problemas
teúdos prontos. significativos.
Conhecimento como acúmulo Conhecimento como instrumen-
de fatos e informações isola- to para a compreensão da reali-
das. dade e possível intervenção nela. uitas das preocupações da professora Lúcia
O professor é o único infor-
mante, com o papel de dar as
O professor intervém no processo
de aprendizagem ao criar situa-
M se relacionam com a questão da organiza-
ção do projeto com os alunos. Ela questio-
respostas certas e cobrar sua ções problematizadoras, introdu- na, por exemplo:
memorização. zir novas informações e dar condi- Quem leva o tema do projeto? Eu posso propor te-
ções para que seus alunos avan-
mas, ou devo sempre partir do interesse dos alunos?
cem em seus esquemas de com-
Qual a duração do projeto? Quando ele termina?
preensão da realidade.
Como planejar o projeto com os alunos?
O aluno é visto como sujeito O aluno é visto como sujeito
Para responder a tais questões, nada melhor que dis-
dependente, que recebe passi- ativo, que usa sua experiência
cuti-las a partir de uma experiência concreta, como a vi-
vamente o conteúdo transmiti- e seu conhecimento para re-
do pelo professor. solver problemas. vida pelo professor Haroldo, com sua turma de 4a série.

O conteúdo a ser estudado é O conteúdo estudado é visto


A experiência vivida
visto de forma compartimenta- dentro de um contexto que lhe
da. dá sentido.
O Instituto Educacional Integração, uma escola que
Há uma seqüenciação rígida dos A seqüenciação é vista em ter- funciona em sistema de cooperativa, se situa em São
conteúdos das disciplinas, com mos de nível de abordagem e de Félix do Araguaia, no M ato Grosso. O professor
pouca flexibilidade no processo aprofundamento em relação às Haroldo, que leciona para a turma da 4 a série, desen-
de aprendizagem. possibilidades dos alunos.
volveu com seus alunos o projeto “Crianças de São
Baseia-se fundamentalmente em Baseia-se fundamentalmente Félix do Araguaia”.
problemas e atividades dos livros em uma análise global da rea- O projeto foi proposto pelo professor. Como pon-
didáticos. lidade. to de partida, ele pediu aos alunos para assistir a uma
O tempo e o espaço escolares Há flexibilidade no uso do reportagem sobre “Crianças que trabalham”, que iria
são organizados de forma rígi- tempo e do espaço escolares. passar em um programa de televisão, para depois
da e estática. debaterem o tema na sala de aula.
Propõe receitas e modelos Propõe atividades abertas, per- O debate levantou uma série de questionamentos
prontos, reforçando a repeti- mitindo que os alunos estabele- e de hipóteses acerca das causas dessa situação, como
ção e o treino. çam suas próprias estratégias. por exemplo:
64 Programa 2 A organização do projeto 65

• Por que algumas crianças precisam trabalhar desde Que tal se fizéssemos uma pesquisa de campo para
cedo? saber como vivem as crianças de São Félix do
• Será que elas estudam? Araguaia?
• Está certo uma criança trabalhar e não estudar? Os alunos foram unânimes em aceitar o desafio.
• Como é a vida de uma criança que trabalha? O professor orientou os trabalhos, sugerindo que
• Como é sua família? Sua saúde? Sua casa? Elas entrevistassem outras crianças, na rua e em suas ca-
brincam? sas, para procurar algumas que trabalhassem.
No planejamento da pesquisa, decidiram que pro-
• Como se vestem?
curariam conhecer vários aspectos da vida dessas
Com o debate, todos se interessaram por fazer um estudo crianças: se trabalham; se estudam; como é sua ali-
mais aprofundado da vida das crianças trabalhadoras. Para mentação; como é sua família; onde moram; o que
ampliar e enriquecer a discussão, o professor Haroldo le- vestem; como é sua saúde.
vou dois livros que tratam da vida das crianças no mundo A turma se dividiu em grupos, para realizar o pro-
e no Brasil: Crianças como você (Unicef/Ática) e Serafina e jeto de pesquisa. Cada grupo ficou responsável por
as crianças que trabalham (Ática). dois ou três aspectos, que depois seriam socializados
com a classe. Delimitaram o campo da pesquisa, dis-
O estudo do tema tribuindo entre os grupos os bairros a visitar. Ficou
Os livros geraram muitas discussões. A turma se dividiu decidido que, além do registro escrito, fariam fotogra-
em grupos; cada grupo escolheu um texto a respeito de fias e usariam uma filmadora.
um país, para depois apresentar o que aprendesse aos Enquanto um grupo fazia o trabalho de pesquisa de
outros grupos. O livro Serafina e as crianças que trabalham campo, os outros ficavam na sala, elaborando novas
foi dividido em capítulos; cada grupo estudou a situação questões para perguntar aos entrevistados. Quando o
de uma criança trabalhadora de uma região do Brasil. grupo retornava da pesquisa, tratava de organizar os
Depois do estudo, os grupos apresentaram as his- dados, produzir um texto, revisá-lo e passá-lo a limpo.
tórias que haviam lido nos livros em forma de teatro, O professor Haroldo filmou as entrevistas, acom-
de teatro de bonecos e com cartazes. panhando o trabalho de campo com uma câmara de
Ao final da apresentação dos trabalhos dos gru- vídeo. Os alunos foram os repór teres desse vídeo
pos, ficou evidente a tomada de consciência de que artesanal, com roteiro discutido e organizado coleti-
nem todas as crianças têm condições de estudar e de vamente.
viver uma infância sadia. Muitos alunos citaram exem-
plos de crianças de sua cidade, São Félix do Araguaia, Um vídeo e um livro
que trabalham e por isso não estudam. Decidiram fazer um livro com o material coletado,
usando como referência os dois livros com os quais
Trabalho de campo haviam trabalhado no início.
O professor aproveitou a situação para propor a se- Estudaram a forma de diagramação usada nas
guinte questão: duas publicações, para decidir como iriam organizar
66 Programa 2 A organização do projeto 67

o texto nas páginas de seu livro. Optaram por uma O trabalho com projetos não se restringe ao estu-
organização mais próxima do livro Crianças como do de um tema: o ponto central é a resolução de pro-
você, colocando em cada página a foto da criança blemas. Os problemas, ou a temática, podem surgir
entrevistada e os dados a seu respeito. Cada grupo do professor, do grupo de alunos ou do próprio con-
organizou uma página. texto social. O importante é garantir que essa temática
O material produzido – vídeo e livro – foi divul- se transforme em uma questão para a turma, e isso
gado para a escola. Assim, os alunos puderam socia- depende basicamente do professor.
lizar com as outras turmas e com os pais tudo que Na experiência relatada, o professor Haroldo fez
haviam aprendido nessa pesquisa. Rhana, uma das a proposta, organizou o debate, apresentou material
alunas, comentou: e organizou o estudo. Seu papel foi fundamental para
Eu achei legal, porque aprendi que as pessoas têm o sucesso do trabalho. Mas sua intervenção não di-
vidas diferentes. Assim: umas têm casa de palha, ou- minuiu a participação dos alunos. Eles opinaram, to-
tras têm de tijolo; uns comem bem, outros comem maram decisões, planejaram o trabalho e influíram no
mal; uns comem peixe porque o pai vive na beira processo.
do rio. E educação, tem uns que estudam, outros não. O relato torna evidente que o fato de o profes-
Eu achei legal porque eu descobri tudo isso. sor ter feito a proposta não impediu que os alunos
Também por iniciativa da turma, foi organizada também se sentissem responsáveis pelo projeto.
uma campanha para levar de volta à escola as crian- Eles encontraram uma questão significativa para
ças trabalhadoras de São Félix. pesquisar, e toda a turma se envolveu na definição
O projeto se desenrolou desde o primeiro semes- dos objetivos, no planejamento das estratégias, no
tre de 1997 até parte do segundo semestre. Mas a cam- desenvolvimento da pesquisa e no processo de
panha e a mobilização dos alunos continuou, mesmo avaliação.
depois do término desse trabalho.
Momentos de trabalho
As lições da experiência Para a organização e o desenvolvimento de projetos,
Experiências como a do professor Haroldo com sua são fundamentais três momentos:
turma dão margem à reflexão acerca de vários aspec- Problematização. É o ponto de partida, o momento
tos da organização de projetos com os alunos. detonador do projeto, a partir do qual o grupo levan-
Em primeiro lugar: como um projeto surge den- ta questões significativas para investigar. Sem essas
tro da sala de aula? Trata-se de um assunto polêmico questões, não há como falar em projeto.
entre os educadores. Alguns acham que o tema deve É importante salientar que problematizar é mais
partir do interesse dos alunos, enquanto outros acre- do que fazer uma lista de perguntas sobre um tema.
ditam que o professor deve propô-lo. Essa polêmica É necessário que haja um fio condutor para o gru-
não leva em conta que a principal característica do po seguir. Aqui, mais uma vez, o papel do profes-
trabalho com projetos não é a origem do tema, mas sor é fundamental. Foi a intervenção do professor
sim o tratamento que se dá a ele. Haroldo – propondo o debate, levando os livros,
68 Programa 2 A organização do projeto 69

instigando a discussão – que possibilitou essa Esse processo de organização e desenvolvimento


problematização. do projeto pode ser representado assim:

Desenvolvimento. Nessa fase são criadas as estraté-


gias para buscar respostas às questões formuladas
PROBLEMATIZAÇÃO
pelo grupo. Como se observa no relato, os alunos fo-
• Conhecimentos prévios
ram se defrontando com vários pontos de vista, de- Detonador
• Questões significativas
senvolvendo habilidades e atitudes e aprendendo a
aprender. Organização do projeto
Para compreender melhor a realidade das
crianças trabalhadoras, eles desenvolveram uma
série de ações: pesquisaram em livros; saíram a
DESENVOLVIMENTO
campo, entrevistando crianças e adultos; tiraram fo-
tografias; falaram diante de uma câmara; organiza- Estratégias para res- • Entrevistas
ram debates e exposições. Não se limitaram à sala ponder às questões • Debates
de aula: o espaço da rua também se tornou espaço • Pesquisas
de aprendizagem.
Realização do projeto
Síntese. Durante a execução de um projeto, as con-
vicções iniciais vão sendo ampliadas e novas
aprendizagens vão sendo construídas. Os alunos SÍNTESE
do professor Haroldo puderam construir novos
• Conceitos, procedimentos
conceitos, adotar novos procedimentos e novas ati- Novas aprendizagens e atitudes
tudes, tornando-se mais curiosos e questionadores. ao longo do proceso • Questões esclarecedoras
Entre outras coisas, aprenderam a fazer pesquisa,
• Novos problemas
entrevistar pessoas, falar em público, organizar um
Avaliação do projeto
livro, ler mapas e calcular distâncias. Complemen-
tando tudo, passaram a respeitar mais as diferen-
ças entre as pessoas e entre os grupos, ampliando É importante salientar que esse quadro esquemático não
sua compreensão de mundo. pode enrijecer o projeto. Cada etapa é um momento do
O processo de avaliação acompanhou todo o pro- processo, encadeado com o seguinte; não se trata de uma
jeto e ganhou formas variadas: produção de poemas série de etapas estanques.
para o livro, organização das idéias em forma de es- O processo de síntese, por exemplo, deve perpas-
quema, debates, defesa de pontos de vista e auto-ava- sar os momentos de problematização e desenvolvi-
liação. O professor Haroldo não precisou criar situa- mento, não se restringindo ao final do projeto.
ções artificiais de avaliação. Dentro do próprio pro- Seguindo o exemplo da experiência relatada, a or-
jeto, pôde avaliar o processo de formação de seus ganização do projeto deve ser flexível e responder às
alunos e criar situações específicas propícias. demandas do trabalho, mantendo-se aberta a ajustes.
70 Programa 3 71

O uso do tempo e do espaço, bem como a organiza-


ção do grupo, são partes integrantes do projeto. APRENDIZAGEM DE
CONTEÚDOS ACADÊMICOS
A palavra do professor Haroldo
Quando eu comecei a desenvolver esse projeto estava cheio
de dúvidas, principalmente em relação à condução do pro-
cesso. E ficava pensando que, se levasse minhas dúvidas para a
sala, estaria sendo autoritário. Tinha a idéia equivocada de que
tudo deveria partir dos alunos. Uma discussão com colegas de
trabalho me mostrou a importância de nós, professores, atuar- utra série de questões trazida pela professora
mos no processo. Hoje, tenho clareza de que o projeto aconte-
ceu com êxito porque eu assumi a coordenação do trabalho, sem
que isso significasse a imposição de uma única lógica, ou a anu-
O Lúcia diz respeito ao lugar das disciplinas aca-
dêmicas dentro dos projetos:
Todas as áreas de conhecimento devem aparecer em
lação do papel dos alunos.
Também vejo que, com esse projeto, eu ousei mais, eu tive um projeto? Ou deve ser feito um projeto para cada
condições de sair mais da sala de aula, de interagir melhor com área? Trabalho os conteúdos em outro momento?
a comunidade. E um dos fatores que ajudou foi o fato de ter Como sistematizar os conteúdos das áreas?
clareza de minhas intenções, de meus objetivos. Essa clareza, Para ajudar a esclarecer essas questões, é útil
no entanto, não significou rigidez. Tive que, em vários momen- conhecer a experiência da escola Balão Vermelho,
tos, ser flexível e modificar meu planejamento inicial.
uma escola particular de Belo Horizonte.
Durante todo o tempo, o projeto contou com a partici-
pação dos alunos como autores, e não como meros execu-
tores. Constatei que o projeto me permitiu fazer um traba- A experiência vivida
lho mais integrado – as crianças aprenderam Português,
Matemática, Ciências Sociais e, ao mesmo tempo, aprende- Uma turma de 3a série da escola Balão Vermelho, com
ram a respeitar e a acolher as diferenças, graças ao contato 28 alunos, desenvolveu em 1996, juntamente com a pro-
com a pluralidade cultural. Meus alunos ampliaram sua re- fessora Vera, um projeto sobre o espaço e o cotidiano
presentação de mundo, aprenderam a conviver e a compre- da escola. Alguns dos temas colocados que serviram de
ender melhor o mundo em que vivem, utilizando, para isso, eixo para o projeto:
tanto sua própria experiência cultural como os conteúdos
Quantos alunos? Quantos professores? Quantas pes-
das áreas de conhecimento.
Pude perceber também que as crianças se tornaram soas em cargos administrativos? Como funciona a
mais sensíveis às questões sociais da cidade e do país e comunicação entre todos? E como é utilizado o es-
mais conscientes da realidade brasileira; começaram a paço físico?
pensar em formas de atuação para intervir nessa reali- Para ajudar a pensar no espaço escolar, a professora
dade. Depois desse projeto, o grupo ficou mais
propôs a construção de uma maquete da sala de aula.
conectado com seu entorno, exercendo realmente sua
cidadania. Tal atitude se estendeu para outras situações fora Que tal construir uma maquete representando nossa
da escola e foi percebida inclusive pelos pais. sala de aula para a exposição de fim de ano?
72 Programa 3 Aprendizagem de conteúdos acadêmicos 73

Sentindo-se desafiada pela proposta, a classe se or- Vocês não querem fazer uma nova maquete, que seja
ganizou em grupos e logo se empenhou no trabalho. uma miniatura real de nossa sala, para a exposição? O
O projeto caminhou bem, com o envolvimento de que seria preciso para construir uma maquete assim?
todos, durante cerca de quatro semanas. A partir dessa questão se desenvolveu uma conver-
Avaliação das maquetes sa muito rica. Os alunos constataram que seria preciso
medir tudo, olhar bem a posição de cada objeto e até
No dia da análise dos trabalhos, todos os grupos exibi-
contar os azulejos das paredes. Discutiram a necessida-
ram boas maquetes, mostrando que haviam respeitado a
de de reduzir as medidas, planejando como fariam isso
forma, a quantidade e a posição dos objetos. A professo-
– que instrumentos utilizar e como utilizá-los. Com a
ra ficou atenta a aspectos que os alunos não haviam ob-
situação já problematizada pelos alunos, Vera explicou:
servado e, a partir disso, foi fazendo perguntas acerca da
proporção dos objetos entre si e em relação às paredes, Para começar o novo projeto e construir uma maquete
bem como em relação aos ângulos e aos alinhamentos. do jeito que combinamos, vocês vão precisar apren-
Os alunos fizeram também sua avaliação e, depois, der alguns novos conteúdos. Vão estudar medidas de
a professora discutiu os resultados com a classe. comprimento e perímetro, aprender a escrever e a
operar com números decimais, saber o que são múlti-
Olhem agora para a porta. É mais alta ou mais baixa do
plos e submúltiplos, aprender a reduzir as medidas,
que o quadro? Ela vai até perto do teto? Vejam se está
entender uma escala e trabalhar com ela.
mais no meio ou no canto da parede. Agora, vamos fazer
uma votação: em qual maquete a porta ficou mais pare- Os alunos desenvolveram o trabalho, utilizando
cida com a da nossa sala? metro, trena e outros instrumentos de medir. Essa ativi-
dade encaminhou para a pesquisa da função de pedrei-
A professora prosseguiu a análise, levando os alu-
ros, arquitetos e construtores e para o estabelecimento
nos a observar a proporção e o alinhamento das ja-
de relações entre a construção da maquete e o conheci-
nelas, da mesa, do armário e das carteiras, em rela-
mento sociocultural já adquirido pelos alunos a respei-
ção às paredes e entre os próprios objetos. Sob cada
to do trabalho de construção e da função de medir.
aspecto, variava o grupo vencedor da votação, até a
O projeto se desenrolou durante dois meses, mas a
professora intervir:
aprendizagem dos conteúdos matemáticos correlacionados
Estou achando difícil saber qual destas maquetes se- não ficou por aí. O estudo da sistematização da escrita de
ria o retrato mais real de nossa sala. Vocês acham que números decimais, bem como a solução de situações-pro-
é possível construir maquetes que sejam realmente um blema para aprofundar a compreensão das operações com
‘retrato’ daquilo que queremos representar? decimais, prosseguiu até o final do ano.
As crianças acharam que seria possível. Algumas
já tinham visto uma maquete profissional; descreve- O trabalho com escala
ram detalhes para o grupo e combinaram a ida a um Um dos conhecimentos novos requerido pela realização
shopping da cidade, no final de semana, para obser- da maquete era saber o que é escala e como trabalhar
var uma maquete que estava em exibição. Na primei- com ela. A professora organizou uma série de ativida-
ra aula da semana seguinte Vera propôs: des para o estudo sistematizado desse conteúdo.
74 Programa 3 Aprendizagem de conteúdos acadêmicos 75

Vera levou para a sala de aula um atlas geográfi- mural etc. Trabalharam com entusiasmo, e a escala foi
co, gráficos e mapas de Belo Horizonte. Organizou a uma ferramenta importante para construir a maquete.
turma em grupos e distribuiu o material, para que Até os desenhos e textos que estavam no mural da
procurassem a palavra ‘Escala’ e tentassem descobrir sala foram reproduzidos com suas medidas reduzidas,
o que era. Em seguida, fizeram uma roda para discu- na proporção correta.
tir as conclusões de cada um. As crianças repararam
que a escala aparecia em todos os mapas, marcando As lições da experiência
o ‘tamanho do mapa’, ou ‘o tanto que havia encolhi-
do’. Logo concluíram que os mapas jamais poderiam No desenvolvimento de um projeto, a execução das ta-
ser de tamanho natural. refas e a busca de solução para as situações-problema
Conversaram bastante a respeito da função das es- põem em destaque aquilo que os alunos sabem e reve-
calas, do uso dela pelos geógrafos e de seu papel tanto lam o que eles precisam aprender para realizar o traba-
na redução quanto na ampliação das medidas. O assun- lho. No início do projeto da turma de Vera, por exem-
to se estendeu para a função dos microscópios, para co- plo, ela observou que os alunos sabiam lidar com for-
mentários acerca de gravuras e filmes de insetos, enfim, mas e posições, mas não estavam levando em conta a
foram ampliando os conhecimentos acerca dos usos e proporção e a relação espacial entre os objetos.
das funções da escala.
Após promover a socialização desses novos con- Em qualquer projeto, as observações do professor
ceitos, a professora resolveu conversar a respeito de geram intervenções que contribuem para ampliar as
um gráfico que haviam construído anteriormente, para situações de aprendizagem.
representar a população da escola. Haviam construído
o gráfico em papel quadriculado, color indo 1 Ao fazer essa constatação, ela viu que precisaria in-
quadradinho para cada grupo de 10 alunos. Ela mos- tervir: analisou as maquetes e encaminhou o olhar dos
trou como haviam então utilizado a proporção 1 para alunos para esses aspectos, propondo a nova maquete.
10, e escreveu no quadro: 1:10.
O assunto continuou em pauta, com atividades va- Módulos de aprendizagem
riadas. Trabalharam com ampliação e redução de figu- Quando Vera explicou aos alunos que, para fazer a
ras simples em papel quadriculado, viram plantas de segunda maquete, precisariam absorver alguns conhe-
casas, entrevistaram um arquiteto e leram vários tipos cimentos matemáticos que ainda não dominavam, sua
de gráfico. Assim, aprofundaram o estudo de escala e de intenção era mostrar que o estudo seria indispensá-
seu uso com medidas de comprimento. vel para desenvolverem seu projeto e, assim,
Para continuar o projeto da maquete, precisavam mobilizá-los para a necessidade de aprofundar seus
medir a sala. Mas, então, já lidavam mais facilmente conhecimentos. Ao planejar essa parte do trabalho, a
com a noção de escala. A classe inteira fez uma só professora organizou o módulo de aprendizagem re-
maquete; cada grupo se encarregou de uma parte. ferente a ‘escala’.
Alguns mediram e construíram as paredes, outros fa- Mas, o que são módulos de aprendizagem?
bricaram carteiras, mesa, armários, estantes, lixeira, São como ‘parênteses’ que podemos ir abrindo ao
76 Programa 3 Aprendizagem de conteúdos acadêmicos 77

longo do percurso de qualquer projeto. São espaços pri- eles são instrumentos culturais valiosos e necessários
vilegiados de aprendizagem, porque permitem ao pro- para a formação dos alunos.
fessor trabalhar os conteúdos das disciplinas dentro de Dessa forma, os projetos geram a necessidade de
um contexto que lhes dê sentido. aprendizagem de novos conteúdos que, a partir da
O relato acima, comentando o módulo “O traba- análise do professor em relação ao processo da tur-
lho com escala”, mostra como ele representou um ma, podem ser aprofundados e sistematizados em
mergulho no conteúdo escolhido. Para que os alunos módulos de aprendizagem. Esses conteúdos, por sua
se apropriem de fato do novo conhecimento, o pro- vez, vão ampliando as possibilidades de compreen-
fessor precisa planejar intervenções objetivas, como são e de intervenção dos alunos em outras situações
foi feito por Vera que: educativas, dentro e fora da escola.
• provocou o contato dos alunos com variados
contextos em que se usa escala; A palavra da professora Vera
• orientou a leitura de diversos gráficos analisan-
Sempre fiquei muito preocupada com a sistematização de con-
do a escala; teúdos e tinha medo que os projetos acabassem por prejudicar
• retomou o trabalho feito pelo grupo, para que a qualidade do ensino. O projeto de maquete me mostrou o
assumissem um novo olhar; contrário. A partir desse projeto, pude trabalhar vários conteú-
dos matemáticos de forma significativa.
• pediu a leitura da escala nas plantas apresenta- Meus alunos compreenderam bem o conceito de escala (um
das pelo arquiteto; conteúdo teoricamente difícil para essa faixa etária), bem como
• propôs ampliações e reduções em papel quadri- sua função social. Percebi que as áreas de conhecimento que
culado. aparecem no projeto são as necessárias para resolver as ques-
tões propostas pelo grupo; por essa razão, não há como deter-
O trabalho da professora Vera mostra que não basta minar que em cada projeto precisam aparecer todas as áreas,
os alunos depararem com um determinado conteúdo ou que se deve ter um projeto para cada área de conhecimento.
em um projeto para garantir a aprendizagem desse Essa definição vai depender da natureza do projeto.
conteúdo. O fato de trabalhar os conteúdos das áreas a partir de
projetos não dispensa o professor de ter clareza acerca de suas
A intervenção do professor, criando situações e inter- intenções educativas, ou de ter parâmetros para nortear suas
vindo no processo, é fundamental para uma aprendi- escolhas. O que mudou, em meu modo de ver, foi a postura
zagem significativa. que passei a ter diante desses objetivos. Hoje, não enxergo
meus objetivos como pontos terminais de um processo que,
ao cabo de dois meses, todos deverão alcançar. Sei que são
A experiência revela também que, ao contrário do
como um fio condutor de meu trabalho, dando parâmetros para
que muitos educadores julgam, o trabalho com pro- minha prática.
jetos não significa o fim das áreas de conhecimento, Percebi que, com os projetos, os alunos não entraram
ou a desqualificação delas. Na verdade, ocorre o rom- em contato com os conteúdos das áreas a partir de concei-
pimento com uma concepção de ‘neutralidade’ de de- tos abstratos e de modo teórico. Isso fez com que a apren-
terminados conteúdos, graças à compreensão de que dizagem fosse mais significativa e duradoura.
78 Programa 4 Conhecimento social e processo individual 79

Ao retomar as aulas no segundo semestre, Mércia, a


CONHECIMENTO SOCIAL professora de Artes, percebeu que o Bumba-meu-boi ain-
E PROCESSO INDIVIDUAL da instigava algumas crianças. Em uma oficina de argila,
muitos alunos quiseram moldar o Boi, enquanto os cole-
gas optavam pela modelagem de outros objetos – telefo-
ne celular, computador, carro, boneco, xícara, cinzeiro etc.
Ao observar o interesse por essa representação e
percebendo o uso restrito que as crianças faziam do
barro, Mércia imaginou que o contato com produções

A
professora Lúcia levantou também algumas artísticas de outras pessoas poderia trazer novos ele-
questões a respeito do processo individual dos mentos para as reflexões e as produções do grupo.
alunos dentro dos projetos:
• Como relacionar o conhecimento social com o tra- Constatação da diversidade
balho individual dos alunos? Ao planejar suas aulas, Mércia reservou um tempo
• Como trabalhar com a cultura do aluno sem cair para projetar imagens relativas ao Bumba-meu-boi e
em uma prática vazia de conteúdo? para conversar com a classe a respeito do tema; além
disso, manteve programado um tempo de oficina, para
• Como possibilitar que os alunos reflitam sobre te- dar continuidade aos trabalhos de criação pessoal.
mas transversais, como o da pluralidade cultural Na primeira roda que organizou, ela projetou
presente em nossa realidade? imagens do Bumba-meu-boi feitas por dois artistas:
Mais uma vez, vamos nos apoiar no relato de uma Luiz Antônio, de Pernambuco, e Nhozim, do Maranhão.
experiência para refletir sobre essas questões. Para desencadear os comentários, projetou as
duas imagens simultaneamente, sem falar do que se
A experiência vivida tratava. Na primeira, reconheceram imediatamente
uma cena de Bumba-meu-boi. Em relação à segunda,
O projeto “Arte Popular Brasileira” foi desenvolvido as crianças perguntaram:
com um grupo de crianças da 2 a série do Centro Edu-
Foi a mesma pessoa quem fez?
cacional Leonardo da Vinci, em Lagoa Santa, uma ci-
dade do interior de Minas Gerais. Mércia devolveu: O que vocês acham? A partir daí,
No primeiro semestre, o grupo havia conversado a os palpites se multiplicaram:
respeito do Bumba-meu-boi, na aula de Artes; as crianças
conheciam a representação em barro dessa festa folclóri- • Eu acho que não, porque um usou fita, o outro não.
ca e se preparavam para uma encenação em uma festa da • Eu acho que não, porque um é pequeno e o outro
escola. Mesmo conhecendo o enredo, queriam saber em é grande.
quais outros lugares havia essa tradição, a forma como
• Eu acho que é, porque tem as mesmas cores.
era encenado, por que os artistas ‘repetiam’ a festa no
barro, por que nem todos personagens são gente etc. • Eu acho que não, porque um é o Bumba e o outro não.
80 Programa 4 Conhecimento social e processo individual 81

• Eu acho que é, porque é de barro. por que representavam em outra linguagem elemen-
Mércia foi fazendo comentários, procurando desper- tos de sua vida cotidiana?
tar a atenção das crianças em relação ao uso dos Embora fosse uma pergunta difícil de responder, ela
materiais: contribuiria para colocar em evidência um dos elementos
da arte popular: o talento do artista em captar cenas do dia-
O que mostra que o trabalho não é da mesma pessoa
a-dia de um povo e transpô-las, como expressão viva e
é o material que ele usou? Em nossa oficina de argila,
criativa, para o barro, o tecido, a madeira etc.
o que você usou para fazer o celular? E o Henrique
Para encaminhar a observação desse aspecto da
para fazer o carro? Não foi o mesmo material? Você
arte popular, Mércia propôs a organização de grupos
tem certeza que os dois são de barro? Se você não ti-
temáticos ligados a aspectos do cotidiano: profissão,
vesse visto a miniatura do Bumba que eu trouxe, dava
dia-a-dia, festas, brincadeiras etc. Fariam isso tanto
para saber de que material era, só olhando a imagem?
em relação às obras de artistas quanto em seus pró-
De que outro material poderia ser feito?
prios trabalhos, produzidos nas oficinas de Artes.
Quando souberam que as duas imagens eram do No desenvolvimento dessa proposta, a professo-
Bumba, as crianças duvidaram e começaram a fazer ra procurou também discutir as relações entre o ar-
comparações. Também ficaram em dúvida quanto ao tista popular e seu cotidiano, a partir da observação
uso do barro na produção de Nhozim. Essas questões de obras de arte popular:
levantaram a necessidade de conferir as informações,
lendo as legendas. Os artistas populares retratam cenas de seu cotidiano.
Após a leitura das legendas, constataram que um Vocês reconhecem as situações retratadas nessas obras?
Bumba era do Maranhão, e o outro de Pernambuco – esta Como são essas cenas aqui na cidade? Se vocês fossem
era uma das razões de os estilos serem distintos. Mércia retratar cenas que acontecem na praça Dr. Lund [uma
orientou a observação dos alunos para outras caracterís- praça da cidade], o que produziriam? Como seria retra-
ticas. A diversidade dos materiais utilizados por Nhozim tada a cena de lavar a roupa da casa de vocês?
chamou a atenção do grupo, que elaborou então uma lis- A partir das reflexões a respeito de diferentes rea-
ta de materiais que poderiam usar nas aulas de Artes. lidades, o grupo foi se organizando para produzir tra-
balhos artísticos que expressassem seu cotidiano. E
A escolha dos temas passaram a escolher, entre os diversos materiais dis-
A partir do momento em que se viram diante de um poníveis na oficina, os mais adequados a seu projeto
leque de possibilidades de uso de materiais, as crian- de criação.
ças começaram a rejeitar o uso restrito do barro, bus- Para aproximar ainda mais a idéia de arte popular,
cando alternativas para suas produções pessoais. Mércia fez a leitura de textos que retratavam o cotidia-
Mércia estava satisfeita, pois percebeu que levara no de artistas do vale do Jequitinhonha (MG) e do Alto
os alunos a ampliar o uso de materiais em suas pro- do Moura (PE), chamando a atenção para o fato de
duções. Mas ainda não trabalhara uma questão tam- aquelas representações plásticas revelarem a realidade
bém levantada no semestre anterior: por que os ar- do povo, em diversos aspectos culturais e regionais.
tistas repetiam cenas do dia-a-dia no barro? Ou seja, O que se pôde perceber, no final do projeto, foi
82 Programa 4 Conhecimento social e processo individual 83

que as crianças ampliaram suas possibilidades de peito do sujeito criador, tanto na perspectiva do ar-
criação nas oficinas de Artes. Passaram a utilizar uma tista profissional como na perspectiva delas próprias,
série de recursos – panos, serragem, tintas naturais, como aprendizes.
papéis, vidrilhos –, e não só o barro. Construíram um Não houve uma reprodução passiva do conheci-
sentido maior para seu trabalho, que não mais se li- mento, uma cópia dos trabalhos analisados. Ocorreu
mitou a confeccionar objetos amassando barro, mas de fato uma mudança de atitude dos alunos diante de
passou a procurar retratar, por meio da arte, aspectos seu próprio fazer artístico.
da vida cotidiana. A seriedade com que encaravam suas produções
– fazendo escolhas, tomando decisões e relacionan-
As lições da experiência do as informações recolhidas com o que procuravam
desenvolver nas oficinas – revela um movimento au-
Na experiência da escola Leonardo Da Vinci há ele- tônomo e ousado de criação.
mentos que levam a refletir como, em um projeto,
se entrelaçam o conhecimento social e o processo Na perspectiva do trabalho com projetos, a aquisição
individual dos alunos. O trabalho com projetos da cultura acumulada socialmente não se dá a partir
permite estabelecer o contato dos alunos com o de um movimento de substituição ou justaposição.
conhecimento acumulado pela humanidade ao É sempre um processo de reconstrução, no qual a
longo dos séculos. No contato com esse conheci- função do professor consiste em possibilitar a cria-
mento, no entanto, não pode ocorrer uma postura ção de um campo de compreensão comum na sala de
passiva: é indispensável que seja criado um espa- aula e em apresentar instrumentos para ampliar esse
ço de diálogo com a cultura acumulada. espaço de conhecimento partilhado.
A relação estabelecida entre as produções artísticas
das crianças e a produção social da arte, por exemplo, A professora Mércia conseguiu promover uma ex-
foi fundamental. Mas não teria o mesmo sentido se a periência de aprendizagem com sentido para seus
experiência transcorresse fora do contexto, sem que as alunos porque foi capaz de observar e analisar o de-
crianças pudessem articular esse conhecimento com sempenho e a atitude deles na oficina de Artes e in-
suas representações da arte popular. tervir para ampliar esse olhar, fornecendo novos ele-
mentos para que desenvolvessem a compreensão.
Considerar a escola como espaço cultural significa O projeto não se restringiu a dar um modelo
criar possibilidades para que o aluno participe, de pronto para ser copiado, nem se limitou a uma série
forma crítica, da reelaboração pessoal da cultura acu- de oficinas de argila e barro. Os alunos lidaram com
mulada pela humanidade. a questão da diversidade cultural, entenderam melhor
o cotidiano das pessoas de várias regiões brasileiras
Na experiência relatada, o contato com produções e aprenderam a utilizar novas técnicas e novos mate-
de artistas populares reconhecidos nacionalmente riais em suas produções.
possibilitou às crianças ampliar seu repertório de ma- Tudo isso transcorreu dentro de um contexto com
teriais e desenvolver sua capacidade de refletir a res- significado, sem ser de forma fragmentada ou artifi-
84 Programa 5 85

cial. O fazer e o compreender se integraram a um só


processo, no qual a ação e a reflexão se deram de for- O TEMPO
ma orgânica. O individual e o coletivo se E O ESPAÇO NA ESCOLA
complementaram e puderam dar vida e criatividade
ao processo. Houve uma real interação entre a cultu-
ra acumulada socialmente, a cultura dos alunos e a
cultura presente no cotidiano dos diversos grupos
sociais.

O trabalho com projetos traz, como um de seus ele-

A
professora Lúcia também se preocupa com al-
mentos centrais, a incorporação da pluralidade de gumas questões relacionadas com o envolvi-
conhecimentos presente na dinâmica social, transfor- mento coletivo da escola e com as mudanças que
mando a escola em espaço de vivências culturais re- isso acarreta:
ais e significativas.
Como envolver todos os alunos no trabalho? E se al-
gum não se interessar, como fazer? Qual o papel do
A palavra da professora Mércia grupo de professores no projeto? Ocorre alguma mo-
dificação no uso do tempo e do espaço escolar?
Quando iniciei esse projeto, não havia me dado conta de Da experiência com o Festival de Folclore em uma
sua riqueza e de sua amplitude. Eu estava pensando em
escola pública podemos retirar alguns elementos que
um trabalho mais restrito, lidando apenas com o uso de
contribuem para essa reflexão.
materiais. Foi a partir da observação do que estava acon-
tecendo que me dei conta da necessidade de ampliar a
representação dos alunos a respeito de arte popular. A experiência vivida
Fui então aprendendo a observar, a interpretar o pro-
cesso vivido e a tomar decisões. Isso foi fundamental para A escola municipal da Vila Pinho, em Belo Horizonte, aten-
que o projeto ganhasse uma dimensão mais aprofundada, de cerca de mil crianças e jovens de camadas populares,
além da simples constatação de semelhanças e diferenças na periferia da cidade. No último ano realizaram o 2o Fes-
entre obras artísticas. tival de Folclore.
Também observei que, ao ter maior clareza da relação Na escola da Vila Pinho, o folclore não é visto apenas
entre a cultura social e o processo individual dos alunos,
como uma data comemorativa. Mais que um conteúdo abs-
permiti que eles se tornassem mais atentos, mais capazes
trato ou distante, o folclore é encarado como um saber vivo,
de observar, aceitar e compreender as diferenças. E essas
presente nos rituais, nas danças, na linguagem, nas expres-
competências se estenderam para outros aspectos de sua
vida escolar e extra-escolar. sões, nas brincadeiras e nos costumes alimentares. Repre-
Com esse projeto, percebi que trabalhar a cultura social- senta também o saber, passado de geração em geração, que
mente acumulada é mais que apresentá-la aos alunos: é dá identidade ao grupo social.
criar um campo de significado compartilhado entre essa Estudar o folclore, na escola, é estudar os costumes e
cultura e a cultura individual dos alunos. as tradições presentes na vida cotidiana dos alunos. O 2o
86 Programa 5 O tempo e o espaço na escola 87

Festival de Folclore da Escola Municipal Vila Pinho repre- alunos em parceiros de trabalho. Foi um espaço de
sentou um momento no qual toda a escola pôde sociali- troca, de socialização e de encontro e motivou um
zar suas descobertas, suas experiências e seus projetos. intenso processo de organização coletiva.
Na escola há três ciclos de formação, cada um com Os professores de cada ciclo precisaram se reunir,
a duração de três anos e abrigando em média doze tomando em conjunto as decisões e fazendo os enca-
turmas; um coletivo de professores trabalha em cada minhamentos. A organização requereu também o
ciclo. Cada ciclo selecionou alguns projetos que já es- reagrupamento de alunos de modo que, em vários
tavam em andamento e que, de alguma forma, envol- momentos, alunos de turmas diferentes se encontraram
viam as tradições folclóricas. O Festival representou e trabalharam juntos. Os professores se transformaram
um momento de culminância desses projetos. em costureiros, os pais ajudaram a organizar o cenário,
os alunos maiores cuidaram das fantasias dos menores.
As atribuições de cada ciclo Logo após o festival, as paredes e os murais da es-
O 1 o ciclo prepararia uma apresentação, a partir do cola se transformaram em espaços públicos, nos quais
projeto que estava sendo desenvolvido com brinca- os alunos de todos os ciclos colocaram suas avaliações,
deiras em torno de histórias, cantigas, danças e ou- fixaram fotografias e depoimentos de pais, de alunos e
tras atividades lúdicas populares. Algumas dessas ati- de professores sobre a experiência vivida.
vidades já faziam parte da experiência das crianças,
dentro e fora de sala de aula; outras foram sendo in- As lições da experiência
corporadas ao longo do processo.
No 2o ciclo se desenrolavam dois projetos que trariam A experiência de alunos e professores na Vila Pinho
boas contribuições para o festival: “Os índios” e “Os contribuiu para a compreensão da relação entre os
afrodescendentes”. Ao programar sua participação, o 2o Ci- projetos e a vida coletiva da escola.
clo optou por apresentar números que refletissem “a influ- O tempo dentro das escolas em geral é organiza-
ência das diferentes etnias na vida cultural brasileira”. do de forma fragmentada: séries, bimestres, ativida-
O 3 o ciclo vinha desenvolvendo uma pesquisa des em salas específicas, tempo de brincar etc.
sobre as regiões do Brasil e decidiu fazer no Festival Os espaços, por sua vez, também são configura-
Folclórico uma apresentação ligada à questão da dos de maneira fragmentada: cada turma em sua sala
pluralidade cultural do país. e cada espaço com uma função. No espaço de Educa-
Ao trabalhar em seus projetos, os alunos dos três ci- ção Física se mexe com o corpo; no espaço de sala de
clos pesquisaram, fizeram entrevistas com os pais, ouviram aula se ‘mexe’ com a cabeça; o espaço do pátio é para
e registraram relatos de alunos, realizaram visitas a grupos brincar e o da sala é para estudar.
folclóricos e a rezadeiras do bairro. Envolvendo a comuni-
dade local, convidaram contadores de história para se apre- O trabalho com projetos leva a repensar o uso do
sentar na escola e artesãos para realizar oficinas com os tempo e do espaço na escola.
alunos, além de entrevistar grupos de rap do bairro.
O Festival de Folclore deu vida nova à escola, A escola da Vila Pinho reorganizou seu tempo e
transformou alunos em companheiros, professores e seus espaços, ora mesclando turmas, ora usando o
88 Programa 5 O tempo e o espaço na escola 89

pátio como espaço de estudo ou a sala de aula como lação ao processo de aprendizagem. Eles se envolveram
espaço para brincadeiras. mais e ampliaram seu interesse ao encontrar um senti-
Com o Festival do Folclore, os alunos tiveram um do para seu estudo.
envolvimento significativo em um projeto coletivo que Nesse projeto, cada um deles foi educando e educa-
recriou os espaços, transformou o tempo e abriu a esco- dor, informante e pesquisador. Assim, se estabeleceram
la para a participação da comunidade. E esse espaço como sujeitos pertencentes a um grupo e, como tal, de-
passou a ser visto como espaço coletivo, pertencente a senvolveram sua perspectiva de se tornar autônomos e
todos, que passaram a se sentir responsáveis por ele. responsáveis, características tão desejáveis em nossos
Os portões abertos, o encontro de alunos de várias objetivos educacionais.
turmas e os ensaios para o festival não tiveram a caracte-
rística de um tempo fora do cotidiano, ou de atividades Os professores da escola de Vila Pinho tiveram a opor-
extracurriculares, nem de espaço para bagunça. O que a tunidade de repensar seu papel e de avançar na cons-
Escola Vila Pinho viveu foi um rico e intenso processo de trução de uma proposta coletiva de educação.
produção e organização coletivas da experiência escolar.
Rompendo com a tradição individualista de traba-
Os alunos como sujeitos do processo lho docente, na qual cada professor se responsabili-
É interessante observar que a experiência da Vila Pi- za pela educação de uma determinada turma, os pro-
nho transformou professores e alunos em parceiros fessores se organizaram em coletivos e passaram a
de trabalho. Os alunos deixaram de ter um papel pas- trabalhar em grupo.
sivo na escola. Sugeriram encaminhamentos, partici- O trabalho deixou de ser individual e solitário. A
param da tomada de decisões, organizaram e plane- cooperação e a interação substituíram o isolamento
jaram o trabalho. Todo esse processo fez também com e a competição. Ao trabalhar em grupo, esses profes-
que assumissem responsabilidades, se comprometes- sores trocaram experiências, aprenderam com os co-
sem com o trabalho e com o coletivo. legas, dividiram dúvidas e partilharam inquietações.
Pouco a pouco, as mudanças ganharam corpo: alunos Descobriram-se aprendizes e pesquisadores. Ao viver
até então calados passaram a opinar e alunos tal experiência, perceberam a riqueza desse tipo de
descomprometidos passaram a assumir responsabilidades. trabalho e descobriram que é possível, na prática,
A escola passou a ser também dos alunos. E isso fez com construir um projeto coletivo de educação.
que eles cuidassem mais do prédio, se preocupassem mais
com a conservação dos materiais e com a limpeza. Os pais têm o que dizer na escola
Essa experiência revela que a responsabilidade e o
compromisso dos alunos não são construídos em cima A experiência da Vila Pinho mostra que os pais tam-
de um vazio, ou à custa de lições de moral e de bons bém podem ser parceiros da experiência escolar. Dei-
hábitos. Essa responsabilidade é construída a partir do xando o lugar de meros espectadores, os pais se co-
envolvimento em um trabalho no qual eles se sintam locaram como informantes privilegiados, como deten-
realmente autores, e não meros executores. tores de um saber que tem importância e valor para a
Além de tudo, ocorrem mudanças de postura em re- escola.
90 Programa 6 91

Com o projeto desenvolvido, a escola passou a


ser, naquele bairro de periferia, um espaço de encon- A FORMAÇÃO
tro e de difusão de cultura. Os portões, que em mui- DO ALUNO E A REALIDADE
tas escolas são barreiras para não deixar o mundo
entrar, se transformaram em ponte entre a vida da
escola e a vida do bairro.

A experiência com projetos não interfere apenas nas


questões de ensino/aprendizagem. Traz mudanças
profundas no cotidiano escolar: no uso do espaço e pesar de suas dúvidas, a professora Lúcia afir-
do tempo, na relação com o bairro e com a cidade e
na forma como seus sujeitos – pais, alunos e profes-
sores – se integram nessa dinâmica.
A ma que o trabalho com projetos mudou sua
prática na sala de aula: Não sei explicar bem, mas
observo que as aulas estão mais interessantes e desafia-
doras, para mim e para os alunos.
Assim como Lúcia, muitos professores e professoras
A palavra de professores que trabalham com projetos conseguem perceber que a
e professoras da Vila Pinho escola ganha uma dinâmica nova, mais viva, mais sinto-
nizada com as demandas do mundo contemporâneo.
Com esse projeto, pudemos perceber a diferença entre fa-
zer simplesmente um Festival de Folclore e organizar um A escola e a informação
projeto coletivo de trabalho. No primeiro caso, toda a orga-
nização fica na mão dos professores, enquanto os alunos Até recentemente, a escola era a grande agência de in-
apenas executam tarefas. Não se cria um vínculo entre o formação dentro da comunidade. Mas esse papel pas-
festival e o cotidiano da escola. É como se todos precisas-
sou por profunda transformação. Este mundo em que
sem parar de estudar para cuidar apenas do festival.
vivemos é o mundo da informação, da globalização, da
No projeto coletivo, alunos e professores têm papéis
bem atuantes, pois o fato de os alunos ajudarem a planejar informatização. A escola não consegue, nem deve ten-
não descarta a necessidade de os professores intervirem e tar, se comparar aos meios de comunicação, em relação
coordenarem o processo. ao volume de informações que transmite.
Outra mudança importante se refere às relações entre Mas, embora não seja o veículo privilegiado de
as turmas e os professores. A atitude de disputa e compe- transmissão de informação, a escola não deixa de ter
tição acirrada para fazer a melhor apresentação deu lugar um papel central no que se refere ao tratamento des-
ao espírito de cooperação e à interação. Nós, professores, sa informação. Formar criticamente o cidadão não é
tivemos de aprender a trabalhar em grupo, assim como papel dos meios de comunicação.
nossos alunos. Todos nós, professores, alunos e pais, passa- Em geral, a informação que chega a cada um é trans-
mos a nos sentir mais como sujeitos de um coletivo. mitida de forma fragmentada, nem sempre compreensí-
vel. Desenvolver a capacidade de compreender essa in-
formação, selecioná-la, criticá-la e se posicionar diante
92 Programa 6 A formação do aluno e a realidade 93

dela passa a ser de responsabilidade basicamente da temporânea. Compreender significa ser capaz de ir além
escola. No mundo moderno, a escola aparece como es- da informação dada, estabelecer relações entre vários
paço de formação crítica dos estudantes. pontos de vista, analisá-los e se posicionar diante deles.
Mas a maneira de uma pessoa compreender as in- A compreensão e a interpretação da realidade pelo
formações e lidar com elas depende de vários fatores. estudante estão vinculadas a sua experiência cultural,
Essa capacidade é influenciada pela classe social, pelo a seus conhecimentos prévios, à cultura acumulada
espaço geográfico e pela cultura de origem do indivíduo historicamente pela humanidade e à cultura contem-
em seu grupo social. Por isso, também é papel da escola porânea.
acolher a diversidade cultural presente na sociedade
brasileira e trabalhar com ela.
Características de um projeto
O trabalho de formação • É um processo educativo desencadeado por uma
questão, que favorece a análise, a interpretação e a
Outro aspecto do papel da escola contemporânea diz crítica, como confronto de pontos de vista.
respeito à natureza da informação. Os temas contem- • A aprendizagem acontece a partir da interação entre o
porâneos ultrapassam as clássicas disciplinas escola- aprendiz e o objeto de conhecimento, dentro de um
res e não podem ser enquadrados em uma só área contexto com sentido e significado.
específica de conhecimento. • No projeto predomina a cooperação: professores e
A questão ecológica, por exemplo, não é um proble- alunos assumem o papel de pesquisadores.
ma exclusivo de Ciências Naturais: envolve questões • Estabelece conexões entre as informações, questio-
geográficas, históricas, sociológicas, econômicas e outras. nando a idéia de uma versão única da realidade.
Por isso, a antiga lógica das disciplinas fechadas em si • Trabalha com diferentes tipos de informação.
mesmas não se enquadra nessa nova perspectiva. • Leva alunos e professores a perceber que há dife-
A rapidez com que os novos conhecimentos são rentes formas e caminhos para o aprendizado.
construídos não permite que sejam apreendidos como • Leva alunos e professores a agir com flexibilidade,
conhecimentos imutáveis e a-históricos. Não é mais a acolher a diversidade e a compreender sua reali-
possível tratar os conteúdos como verdades absolutas. dade pessoal e cultural.

Hoje, o foco principal da atuação da escola está na Fonte: Aula de Inovación Educativa n o 59, p. 80 (tradução adap-
formação dos estudantes, no objetivo de torná-los tada)
capazes de conviver com um mundo em profunda
transformação, perceber as causas das mudanças e se Assim, o trabalho na perspectiva de projetos parte de
posicionar diante delas. uma visão segundo a qual o conhecimento da realidade
constitui um processo ativo, no qual os alunos vão con-
A intenção educativa dos professores ao trabalhar na seguindo interpretar a realidade e dar-lhe significado,
perspectiva de projetos é possibilitar que os alunos com- compreendendo-a cada vez mais profundamente. Trata-
preendam os problemas colocados pela realidade con- se de um processo ativo e participativo.
94 Programa 6 A formação do aluno e a realidade 95

Essa perspectiva enfatiza a problematização de Com o trabalho de projetos, a gente observa que as cri-
situações e a busca efetiva de soluções como cami- anças se sentem mais envolvidas e interessadas pelo traba-
nho para envolver os alunos em um processo rico e lho, porque também são responsáveis por ele. Com isso, há
dinâmico, no qual vão aprendendo, de forma não frag- realmente uma aprendizagem e é uma aprendizagem signi-
ficativa. Esses meninos passam a estender todo esse com-
mentada, a compreender e a intervir no mundo em
portamento de investigação e observação para outras situa-
que vivem.
ções fora da sala de aula, e até com outros professores.
A seguir, alguns depoimentos de professores e de
(Juliane)
alunos em relação ao trabalho com projetos. Os de-
poimentos constam do vídeo “Os projetos de traba-
A palavra dos alunos
lho”, da SMED/PBH.
Os alunos também vão percebendo mudanças em seu
A palavra dos professores processo de formação quando passam a estudar a
partir da perspectiv a dos projetos de trabalho. Os
Alayde e Juliane são professoras da Rede Municipal de
depoimentos de alunos e alunas da Rede Municipal
Belo Horizonte que vêm orientando sua prática na pers-
de Belo Horizonte refletem essas mudanças:
pectiva dos projetos de trabalho. Elas dão aqui seu de-
poimento a respeito do significado desse processo. Quando a gente aprende alguma coisa, eu passo todas aque-
las coisas para a minha mãe; por exemplo, do câncer de
O trabalho com projetos permitiu que os alunos tomassem mama, fazer o auto-exame, ela faz. A gente se relaciona
maior consciência do estudo e do processo de investigação, muito com aquilo que a gente está estudando.
na medida em que eles acompanharam, desde o início, o (Ronaldo, aluno do 2o ciclo)
plano, o processo e a síntese do trabalho. Puderam também
socializar todas essas informações para outras turmas e O aluno pode dar mais opinião, assim, se não tivesse esse
estender o conhecimento adquirido para outras situações es- projeto Escola, a professora direto dava aquela matéria [...].
colares e extra-escolares. Agora, a gente tem o direito de estudar mais.
É claro que eles não deram conta de apreender to- (Davidson, aluno do 1 o ciclo)
dos os conceitos, todos os procedimentos e atitudes en-
volvidos. Eles deram conta de fechar algumas situações, A gente não tinha muito interesse pra fazer aquilo que a
mas outras questões ficaram abertas para desenvolvimen- gente queria. Agora não, agora é diferente. Os alunos, eles
to em novos projetos de trabalho. (Alayde) trazem aquilo que a gente tem em casa, a gente procura
nos livros, procura nas casas das pessoas.
Quando a gente pára para refletir acerca de nossa prática, (Talita, aluna do 2o ciclo)
percebe como o trabalho com projetos provoca mudanças
em nós mesmos. Observei que comecei a escutar mais o A gente é que buscou esse saber. A gente buscou através de
grupo, a trabalhar mais dentro do interesse dos meninos e pesquisa, de entrevista, filmes que a gente assistia; é, a gente
a problematizar esses interesses. Com isso, acabei me trans- tinha sede de saber, a gente se sentiu importante, assim, a gente
formando em uma pesquisadora, já que eu também preciso se sentiu gente, a gente que tava buscando esse saber, não era
ser fonte de informação para a solução dos problemas le- ninguém que tava trazendo pra gente.
vantados. (Alaíde, educadora de creche e aluna de Supletivo)
96 Programa 6

Uma palavra para Lúcia


Lúcia, esperamos que essa série de programas possa
ter ajudado você a refletir mais sobre sua prática, for-
necendo novos elementos para compreender a pos-
tura pedagógica em que se fundamentam os projetos
de trabalho.
Sabemos que as inquietações vão continuar, pois
elas são inerentes a todo processo de aprendizagem
e revelam a busca de fundamentação para sua inter-
venção pedagógica.
Acreditamos que, assim como você e como todos
que aqui relataram suas experiências, muitos profes-
sores estão aprendendo com a análise e a reflexão de
sua prática pedagógica. Por isso, esperamos que a
análise dessas experiências possa ser uma referência
a mais nesse rico e intenso processo de formação que
você e muitos educadores brasileiros estão vivendo.

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