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Tradução & Comunicação DESCRIÇÃO E INTERPRETAÇÃO: DUAS

Revista Brasileira de Tradutores


POSSIBILIDADES DO AUDIODESCRITOR?
Nº. 25, Ano 2012

Description and interpretation:


two possibilities for the audio describer?

Helena Santiago Vigata


Universidade de Brasília - UnB RESUMO
subtitulando@gmail.com
Este artigo propõe-se a questionar a necessidade de manter a oposição
entre objetividade-subjetividade e descrição-interpretação no campo da
audiodescrição. Partindo de sua conceituação como uma modalidade
de tradução audiovisual, discorre-se sobre os aspectos que caracterizam
o trabalho do audiodescritor, quem, como todo profissional da
tradução, deve fazer escolhas que repercutirão diretamente na forma e
no sentido do texto. Da mesma maneira que um legendador ou um
dublador podem optar entre diversos métodos de tradução para
abordar a tradução de um texto audiovisual, não deveria o
audiodescritor poder trabalhar com certa flexibilidade? Com o intuito
de responder a essa pergunta, recorre-se aos Estudos da Tradução
Audiovisual e da Análise Fílmica como arcabouço para entender os
fatores que influenciam as decisões tradutórias do audiodescritor. Em
seguida, apresentam-se alguns problemas de tradução encontrados
durante a audiodescrição do curta-metragem Um outro ensaio (2010),
perante os quais se tornou mais apropriado adotar soluções mais
próximas da interpretação que da mera descrição objetiva.

Palavras-Chave: audiodescrição; subjetividade; objetividade; descrição;


interpretação.

ABSTRACT

The aim of this paper is to argue the need to maintain the opposition
between objectivity-subjectivity and description-interpretation in the
field of audio description. If we take into consideration that audio
description is a modality of screen translation, we must see the audio
descriptor as a translation professional whose work is characterized by
the selection of solutions that will have a direct impact on the form and
sense of the text. If a screen translator who works on the subtitling or
dubbing of a project can choose among several translation methods,
shouldn’t the audio descriptor have the same possibilities? This
question will be discussed from the framework of Translation Studies
and Film Analysis, as an attempt to understand the factors that
influence the decisions made by the audio descriptor. Then, I will
Anhanguera Educacional Ltda. proceed to the explanation of some translation problems found during
Correspondência/Contato the process of audio description of the short film Um outro ensaio (2010),
Alameda Maria Tereza, 4266
when it happened to be more appropriate to adopt solutions that were
Valinhos, São Paulo
CEP 13.278-181 closer to interpretation than to objective description.
rc.ipade@aesapar.com
Coordenação Keywords: Audio description; subjectivity; objectivity; description;
Instituto de Pesquisas Aplicadas e interpretation.
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 02/02/2013
Avaliado em: 04/03/2013
Publicação: 11 de abril de 2013 23
24 Descrição e interpretação: duas possibilidades do audiodescritor?

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho1 propõe-se a refletir sobre a necessidade – e factibilidade real – de banir


incondicionalmente a subjetividade e a interpretação no campo da audiodescrição, como
até hoje vem sendo feito nos documentos oficiais que regulamentam a atividade. Partindo
de alguns problemas de tradução encontrados durante a audiodescrição do curta-
metragem Um outro ensaio2 (2010), perante os quais se tornou mais apropriado adotar
soluções menos próximas da mera descrição objetiva que da interpretação, pretende-se
recorrer aos estudos da tradução audiovisual e da análise fílmica na procura de um
melhor entendimento dos fatores que influenciam as decisões tradutórias do
audiodescritor.

O filme, escrito e dirigido por Natara Ney, mostra com poesia e sensibilidade um
dia na vida de um casal que se encontra em processo de adaptação à recém adquirida
cegueira da cônjuge. Enquanto ela tenta fazer uma vida normal na escuridão, ele segue
seus passos para ajudá-la e protegê-la na clandestinidade.

Lançando mão da magia espaço-temporal da narrativa cinematográfica, a autora


nos faz mudar nossa perspectiva dos fatos ao longo da história, apresentando os mesmos
acontecimentos com diversas subjetividades. Dessa forma, acompanhamos os
personagens ao longo de um dia e encarnamos os medos, afetos e inquietações de cada
um deles, o que nunca poderíamos fazê-lo na vida real. Isso é possível graças a um
recurso denominado por Genette (apud Castany Prado, 2008) frequência repetitiva, que
consiste em apresentar mais de uma vez um mesmo acontecimento da história, e essa
repetição, que nos permite ver primeiro como foi o dia para ela e, em seguida, como foi
para ele, é perceptível ao espectador principalmente pelos elementos visuais, pois as
nuances de ponto de vista foram construídas maioritariamente por meio do
enquadramento da câmara e pela montagem.

Esse recurso narrativo da repetição para mostrar novos pontos de vista também
existe em outras formas de expressão, como a televisão e a literatura. Porém, a principal
dificuldade deste filme residiu em transpor esse recurso e o jogo visual que o constitui
para o código linguístico. O teste de recepção realizado com nosso consultor cego3
apontou que o entendimento da repetição poderia se perder na recepção final dos

1 Uma versão mais curta deste trabalho foi apresentada como comunicação no II Encontro Nacional Cultura e Tradução,

ocorrido na Universidade Federal da Paraíba de 05 a 07 de outubro de 2011.


2 O filme pode ser visto aqui: http://portacurtas.org.br/filme/?name=um_outro_ensaio
3 Tomás Verdi Pereira é aluno bolsista do grupo Acesso Livre, da Universidade de Brasília (UnB), onde foi desenvolvida esta

pesquisa. Além de participar como consultor do grupo, ele faz pesquisa na área de audiodescrição. Os outros membros do
grupo que participaram na elaboração do roteiro são os professores Soraya Ferreira Alves (coordenadora do grupo), Charles
Rocha Teixeira e a autora deste trabalho.

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espectadores com deficiência visual, devido a que, mesmo relatando as mesmas ações
cotidianas na primeira e na segunda parte do filme, a linearidade da narração não foi
exatamente a mesma na segunda parte e todas as cenas apresentaram detalhes diferentes.

Esse problema fez-nos optar por um afastamento metodológico daquele implícito


no conceito institucionalizado da audiodescrição como uma forma de tradução que
consiste em descrever os signos visuais relevantes à narrativa, evitando todo ponto de
vista subjetivo para deixar que seja o espectador final quem proceda à sua própria
interpretação daqueles signos. No exemplo exposto, consideramos mais acertada a
explicitação da técnica narrativa como uma explicação (ou interpretação) do que
aconteceu no filme.

2. A AUDIODESCRIÇÃO COMO MODALIDADE DE TRADUÇÃO AUDIOVISUAL

Considerando a audiodescrição uma forma de tradução audiovisual, concordamos com


Chaume (2004: 150) em que não é preciso criar uma nova teoria da tradução para tratar de
cada modalidade de tradução existente. De acordo com o autor, as teorias gerais da
tradução devem ser suficientemente flexíveis para abranger todos os seus
desdobramentos, de maneira que os processos das novas formas de tradução possam
ampliar os horizontes dos Estudos da Tradução. Portanto, é necessário pensar a
audiodescrição como uma (relativamente nova) modalidade de tradução, com suas
especificidades, mas também com muitos aspectos comuns às outras formas tradutórias, e
aceitar que diversas abordagens e métodos são passíveis de serem adotados em função de
uma série de fatores internos e externos que inevitavelmente afetarão as decisões do
tradutor e o resultado da audiodescrição.

Dentro da dimensão interna, Chaume faz referência aos problemas gerais da


tradução audiovisual que são compartilhados com as outras variedades de tradução,
como a tradução de terminologia, dos socioletos, de gírias, do humor e das referências
culturais. Já parte dessa dimensão corresponde a problemas específicos da tradução
audiovisual, que têm como base o carácter semiótico do texto, pois ele está composto por
diversos códigos de significação que operam simultaneamente na produção de sentidos.
Dessa forma, o tradutor deve “desenvolver a capacidade de entender o texto como um
todo, de analisar a interação entre a informação transmitida por ambos os canais e de
avaliar a influência da narração visual sobre a narração acústica e vice-versa” [tradução
nossa] (2004: 164). Essa compreensão torna-se fundamental no processo de
audiodescrever um texto audiovisual, pois só assim será possível estabelecer hierarquias

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entre a informação icônica que deve ser descrita, considerando sua relação com a
informação acústica, para facilitar o acompanhamento da obra.

Já para entender os fatores externos que influenciam a abordagem e o resultado


da tradução de textos audiovisuais, Chaume explica (2004: 158) que é necessário
considerar as dimensões profissionais, comunicacionais, sócio-históricas e de recepção.
Esses fatores incidirão nas decisões do tradutor, que deverá escolher um método de
tradução, estrangeirizante ou familiarizante, e adotar uma série de estratégias e técnicas.
Como o autor explica, (p. 236), em casos em que pode ocorrer um problema de recepção
de um signo cultural – como quando o personagem faz um gesto que não possui
nenhuma carga de significação na cultura alvo –, podemos optar por aproximar o leitor da
cultura de origem (método estrangeirizante), permitindo que aprenda o estranho, ou
aproximar a cultura de origem ao leitor explicando os significados em jogo (método
familiarizante). Se os legendadores e dubladores de um texto audiovisual podem escolher
entre esses dois métodos, não seria legítimo conceder essa possibilidade também ao
audiodescritor? Ao contrário, é amplamente difundida entre os estudiosos da
audiodescrição a visão de que não se deve dizer nada além da descrição objetiva e
esvaziada de significado das imagens.

Sem negar a capacidade sugestiva da descrição, acreditamos que em certos casos


pode ser mais apropriado – seja para auxiliar no entendimento da trama ou para
preservar traços do estilo e do ritmo da obra – abrir mão dessa objetividade rigorosa da
descrição e acrescentar informação adicional que permitirá condensar uma ideia principal,
evitando uma ladainha de descrições prolixas que podem resultar confusas e enfadonhas
para o espectador.

Por exemplo, se uma cena de um filme está ambientada em um espaço


caracterizado de maneira que todo espectador vidente o associe imediatamente com uma
sala de interrogatório, sugerimos que, ao invés de dizer: “Eles estão sentados em uma sala
escura e lúgubre”, se possa acrescentar: “Eles estão sentados em uma sala de
interrogatório escura e lúgubre”. Dessa forma, torna-se possível situar de forma rápida e
objetiva o espectador na sala de interrogatório (aspecto crucial da trama) e, em seguida,
descrever as características próprias do ambiente (aspectos secundários, porém
importantes na construção da estória), sem que isso signifique uma interferência abusiva
na interpretação do receptor.

Apresentamos, a seguir, algumas reflexões que surgiram durante a elaboração do


roteiro de audiodescrição do curta Um outro ensaio.

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3. OBJETIVIDADE X SUBJETIVIDADE

Em nosso entendimento, a premissa da objetividade, presente nos documentos


normativos da audiodescrição, é questionável pela impossibilidade de se abandonar
totalmente nossa visão dos objetos e fenômenos. Concordamos com Balázs em que:
Todo objeto, seja homem ou animal, fenômeno natural ou artefato, possui milhares de
formas, de acordo com o ângulo do qual observamos e destacamos os seus contornos.
Em cada uma das formas, definidas por milhares de contornos diferentes, podemos
reconhecer sempre o mesmo objeto, pois elas sempre se assemelham ao seu modelo
comum, mesmo que não se pareçam entre si. Mas cada qual expressa um ponto de vista
diferente, uma interpretação diferente, um diferente estado de espírito. Cada ângulo
visual significa uma atitude interior. Não há nada mais subjetivo do que o objetivo
(BALÁZS, 2003: 97).

Se, além dessa observação, levamos em conta as mudanças de perspectiva que


guiam – sintaticamente, por meio de uma gramática visual por momentos despercebida –
o espectador na construção de sentidos ao longo do filme Um outro ensaio, não podemos
aceitar sem concessões o imperativo da objetividade. Durante a primeira metade do filme,
acompanhamos, com um olhar aparentemente distanciado e imparcial, a protagonista nas
suas atividades do dia. Apesar do distanciamento dos primeiros minutos, o espectador
não pode evitar emitir um julgamento negativo em relação ao cônjuge, que parece focado
na sua vida e despreocupado com a da sua companheira. A segunda parte mostra os
mesmos fatos, mas com um enquadramento diferente, que mostra a presença constante
do homem perto dela. Segundo esta análise, poderíamos dizer que as duas metades do
filme apresentam uma observação que parte de fora: a de um potencial narrador
extradiegético que observa a vida dessas pessoas construindo, com seu olhar, as suas
subjetividades.

Quando, na segunda parte, o ponto de vista é transferido para o olhar e os


comportamentos do homem, muda totalmente nossa percepção a respeito dele. Esse
fenômeno é explicado por Carmona:
Por isso não deve se surpreender de que normalmente se tenda a identificar o ponto de
vista de um filme (de uma narração literária, de uma peça teatral, de um programa
televisivo etc.) com a expressão do julgamento ou opinião que o discurso formula sobre
o conjunto de personagens, elementos e situações que compõem o elemento diegético da
obra, e que são manipulados, enquanto pretexto, por meio de uma organização, de uma
disposição dos materiais com a finalidade, mais ou menos consciente, de chegar a
transmitir umas posições que, dessa maneira, são entregues à leitura do espectador
potencial [tradução nossa] (CARMONA, 2010: 198).

Por outro lado, um observador atento poderia flagrar que em alguns planos da
primeira parte do filme (onde supostamente só havia um observador externo construindo
a subjetividade da protagonista), fica manifesta a presença diegética de outro olhar, o de
alguém que segue a protagonista a certa distância. Essa presença é especialmente
percebida em um plano específico onde a protagonista está caminhando na feira e a

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câmera faz um travelling para filmá-la através de outra fileira da feira. As couves-flores se
interpõem na imagem, mostrando que ela está sendo observada clandestinamente. Só na
segunda parte do filme fica claro que aquele olhar pertencia ao homem, seu fiel
companheiro. Essa confusão de perspectivas foi apontada por Balázs como um fenômeno
normal:
A fisionomia de cada objeto num filme é objeto de duas fisionomias – uma é aquela
própria ao objeto, que é independente do espectador – e a outra é determinada pelo
ponto de vista do espectador e pela perspectiva da imagem. Num plano, as duas se
fundem numa unidade tão coesa que só um olho bastante treinado é capaz de distinguir
estes dois componentes dentro do próprio filme (BALÁZS, 2003: 98).

Outros elementos visuais mostram de alguma maneira as intervenções do


homem no entorno dela para ajudá-la a se desenvolver com autonomia na escuridão,
mudando e colocando as coisas ao seu alcance sem ela perceber. Aos olhos dos
espectadores mais observadores, esses detalhes poderiam parecer erros de continuidade,
pois, durante a primeira parte do filme, não é revelada a forma como essas mudanças dos
objetos acontecem.

Embora o espectador vidente comum possa não reparar nessas 'mudanças


misteriosas', por se tratar de detalhes muito sutis que fogem à percepção geral, elas são
fundamentais à construção da narrativa e oferecem ao espectador indícios de que a
segunda parte do filme não é outra coisa que a repetição da primeira, mas sob um outro
ponto de vista. Portanto, elas não podem ser omitidas na audiodescrição.

Dois exemplos dessas mudanças 'misteriosas' se dão quando aparece uma toalha
ao lado das peças de roupa que ela tinha deixado na barra do banheiro ao entrar no
chuveiro (mais na frente, o filme mostra que foi o homem quem deixou a toalha lá para
ela se enxugar quando saísse da ducha) e quando ela veste uma camiseta cinza ao invés
da blusa de listras rosa e preta que pegou do guarda-roupa (porque ele fez a troca da
blusa sem ela perceber). Detalhes como esses são as chaves para entender a narrativa,
mesmo que eles passem despercebidos, por parecer secundários, durante a primeira parte
do filme.

Também foi importante descrever o vestuário que os personagens usam em cada


momento, o lugar onde eles se encontram e a maneira como ela apalpa os objetos e os
lugares por onde transita, bem como os sentimentos que ele transmite quando olha para
ela.

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4. DESCRIÇÃO X INTERPRETAÇÃO

De acordo com Casetti et al. (2010), a análise fílmica tem a ver tanto com a descrição
quanto com a interpretação. Descrever significa “recorrer a uma série de elementos, um a
um, com cuidado e até o último deles” [tradução nossa] (CASETTI et al., 2010: 22). Os
autores explicam que consiste em um trabalho objetivo que se orienta pelo observado, e
não pelo observador. Já interpretar significa interatuar diretamente com o objeto e é uma
atividade subjetiva em que o observador se posiciona em um primeiro plano, “exibindo
com prepotência sua relação com o objeto” [tradução nossa] (p. 23).

No entanto, os autores também identificam certa fragilidade na dualidade com


que se rotula esses dois processos, pois, da mesma forma que a decomposição do texto
carrega o ponto de vista do observador, que é quem faz as escolhas do que e como deve
ser descrito, a recomposição também deve conter um princípio de objetividade, pois até a
reconstrução mais pessoal deve ser finalmente legitimada pelo próprio texto. Os autores
concluem dizendo:
Consequentemente, a análise revela-se estreitamente relacionada tanto à descrição
quanto à interpretação: cada uma de suas fases tem a ver com os dois procedimentos,
embora que em graus e modos diferentes. A ideia resultante é que devemos nos
enfrentar tanto a uma operação descritiva já orientada à interpretação como a uma
atividade interpretativa baseada na descrição [tradução nossa] (CASETTI et al., 2010: 23).

Conforme explicamos acima, na audiodescrição do filme foi necessário explicitar


o recurso da repetição das sequências para auxiliar o espectador na compreensão da
situação. No filme, a técnica que se empregou para marcar o ponto de transição da
primeira parte para a segunda (ou seja, para anunciar a repetição) foi a do dissolve (que
consiste em que a imagem se dissolve até a tela ficar branca e a seguinte imagem vai
aparecendo paulatinamente). É uma técnica frequentemente empregada para remeter o
espectador a um sonho ou a uma lembrança. Nesse caso, limitar-se a descrever esse
procedimento técnico em termos visuais pode não ser esclarecedor para a pessoa com
deficiência visual, especialmente para aquela que ainda não é uma assídua espectadora de
textos audiovisuais. Por esse motivo, optamos por explicitar em palavras a função dessa
transição (“As mesmas cenas do início se repetem, mas agora sob a perspectiva do
marido”), já que, como afirma Balázs, o espectador precisa adquirir uma cultura
audiovisual para fazer certas associações social e historicamente construídas:
Como sabemos estarem as coisas acontecendo simultaneamente e no mesmo lugar,
ainda que as imagens que desfilam perante nossos olhos obedeçam a uma sequência
temporal e mostrem o passar real do tempo?
Esta unidade e a simultaneidade das imagens evoluindo no tempo não é produzida
automaticamente. O espectador deve participar com uma associação de ideias, uma
síntese de consciência e imaginação aos quais o público de cinema teve, em primeiro
lugar, que ser educado (BALÁZS, 2003: 87).

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Também houve momentos em que consideramos narrativamente mais eficaz


explicar as ações do homem, para dar a entender que o motivo delas é ajudar a
companheira. Por exemplo, quando ele troca a camiseta dela para que vista a cinza e não a
listrada, poderíamos nos limitar a descrever a materialidade das imagens: “Ele levanta da
cama, pega uma peça de roupa no guarda-roupa, deixa-a ao lado da mulher e volta a
deitar”. Ao invés disso, optamos por adaptar a descrição para facilitar a compreensão do
espectador, orientando sua interpretação: “Discretamente, ele levanta e troca a camiseta
listrada por uma cinza. Volta a deitar-se. Ela veste a camiseta cinza”.

A mesma coisa acontece quando ela está cozinhando ovos. Aparentemente, ela
segue os procedimentos normais – acender o fogo, colocar manteiga, quebrar o ovo na
frigideira e colocar umas pitadas de sal. Mas a segunda parte do filme mostra que aquilo
que ela tinha botado era açúcar, e não sal. O equívoco na verdade foi do esposo, que, no
intuito de ajudá-la a achar o sal, colocou o pote a seu alcance, só depois percebendo que
tinha pegado o pote errado. Quando ela se afasta um momento do fogão, ele aproveita
para acrescentar umas pitadas de sal nos ovos.

Inicialmente, a descrição da cena foi a seguinte: “A mão esquerda segura um pote


de plástico e a direita bota sal nos ovos”. Na segunda parte do filme, quando a cena é
mostrada sob um outro ângulo, a confusão é explicada: “Sem ela perceber, ele coloca o
pote ao seu alcance. Ela leva o pote até o fogão e coloca umas pitadas no ovo. Ele, por trás,
percebe que deu o pote de açúcar. Quando ela se afasta, ele abre o pote de sal e coloca
umas pitadas no ovo.”

Porém, ao perceber que essa versão não ficou o suficientemente clara para o
consultor cego, uma segunda versão mais explicativa foi criada, antecipando informação e
explicitando desde a primeira parte que o conteúdo do primeiro pote era açúcar: “A mão
direita coloca açúcar nos ovos”. Essa estratégia, embora contradiga a norma de não
antecipar informação do filme, auxiliou na compreensão da cena, dando sentido à
explicação que viria na segunda parte.

5. MAIS ESTRATÉGIAS PARA O AUDIODESCRITOR

Hatim e Mason (1997) aplicam perspectivas pragmáticas à tradução audiovisual e se


interessam pelo significado interpessoal que é perdido no processo tradutório de textos
audiovisuais. De acordo com os autores, perder informação sobre os personagens é tão
importante quanto perder significados semânticos.

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Chaume (2004: 138) argumenta que esse tipo de problema é mais frequente em
outras modalidades de tradução, como a literária, na qual o leitor só dispõe da palavra
impressa para construir o significado. Para ele, a informação acústica e visual dos textos
audiovisuais serve como estratégia de reparação dos possíveis mal-entendidos sobre os
personagens. Porém, esse não é o caso quando o espectador depende da audiodescrição
para apreender as informações transmitidas pelo canal visual. Por esse motivo, sugerimos
que as estratégias de explicitação e explicação, embora influenciem a interpretação, sejam
consideradas como válidas no processo audiodescritor.

Afinal, acreditamos, como Nord (1991), que os elementos não verbais de um


texto são específicos de cada cultura e alguns desses elementos deverão ser adaptados
para sua recepção na cultura alvo. Portanto, devemos refletir sobre a possibilidade de que
os horizontes culturais das pessoas com deficiências visuais impliquem a necessidade de
adaptar, explicar ou interpretar certos signos convencionalizados na comunidade vidente
e que não fazem parte do inventário cultural delas.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as reflexões apresentadas, acreditamos que uma visão mais flexível da


audiodescrição deve ser construída para dar conta da complexidade dos processos
tradutórios nos quais se envolve o audiodescritor.

Cada texto audiovisual poderá ser abordado com um método mais familiarizante
ou estrangeirizante em função de fatores como a finalidade do texto, a caracterização do
público alvo, as preferências ideológicas do audiodescritor etc. A partir da escolha de um
método em detrimento do outro, umas estratégias de tradução se tornarão mais
apropriadas do que outras para a audiodescrição daquele texto. Nenhuma opção é a
correta, trata-se de escolher um dos múltiplos caminhos possíveis. Aí reside a dificuldade
de ensinar a traduzir ou a audiodescrever, ou mesmo de avaliar a qualidade de uma
tradução/audiodescrição. Aliás, de cada texto podem surgir tantas audiodescrições como
audiodescritores, e, ao mesmo tempo, a recepção de cada uma delas será realizada de
maneiras diferentes na mente de cada espectador.

Perante um universo tão diverso, acreditamos que a imposição de uma máxima


tão restritiva como a de vedar toda subjetividade da audiodescrição pode ser prejudicial.
No nosso entendimento, a complexidade do texto audiovisual e da sua relação com o
público coloca o audiodescritor perante um desafio que vai além da mera descrição
objetiva dos elementos narrativos, pois sua função mediadora é, antes de qualquer coisa, a

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que propicia o acesso de pessoas com deficiência visual a obras artísticas e culturais e sua
participação social como espectadores. Nesse sentido, a experiência estética dessas
pessoas deve estar permeada de uma série de percepções sonoras, rítmicas e sensoriais
coerentes com a obra em questão. Às vezes, explicar um evento pode ajudar a harmonizar
a audiodescrição com o texto audiovisual.

Em futuros trabalhos, pretendemos nos deter com mais profundidade nos tipos
de estratégias de tradução presentes na audiodescrição de filmes e programas televisivos.
Esperamos constatar a presença de estratégias que, mesmo usadas com cautela e em casos
muito pontuais, tendem mais para a interpretação do que para a descrição.

REFERÊNCIAS
BALÁZS, B. A face das coisas. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro:
Graal: Embrafilmes, 2003, p. 87-91.
________. Subjetividade do objeto. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de
Janeiro: Graal: Embrafilmes, 2003, p. 97-100.
CARMONA, R. Cómo se comenta un texto fílmico. Madrid: Cátedra, 2010.
CASTANY PRADO, B. Figuras III de Gérard Genette. Revista electrónica de estudios filológicos.
n.15, junho de 2008. Disponível em:
http://www.um.es/tonosdigital/znum15/subs/peri/peri.htm. Acesso em: 03/10/2011.
CHAUME, F. Cine y traducción. Madrid: Cátedra, 2004.
CASETTI F.; DI CHIO, F. Cómo analizar un film. Traducción de Carlos Losilla. Barcelona: Paidós,
2010.
HATIM, B.; MASON, I. The Translator as Communicator. London/New York, Routledge, 1997.
NORD, C. Text Analysis in Translation. Amsterdam: Rodopi, 1991.

REFERÊNCIA FILMOGRÁFICA
Um outro ensaio (2010 / 35 mm / color / 15 min) de Natara Ney. Raccord Produções
Cinematográficas. Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=um_outro_ensaio.

Helena Santiago Vigata


Doutoranda em Comunicação Social e mestre em
Linguística Aplicada (2011) pela Universidade de
Brasília (UnB), onde atua como Professora
Assistente do Bacharelado em Línguas
Estrangeiras Aplicadas ao Multilinguismo e à
Sociedade da Informação (LEA-MSI). Tem
experiência nas áreas de Tradução, Legendagem e
Ensino de Espanhol como Língua Estrangeira e
suas pesquisas focam principalmente em Tradução
Audiovisual, Acessibilidade Audiovisual e Ensino
de Línguas.

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