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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE


UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E
ENSINO

MEMÓRIA DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM

GRAMÁTICAS PEDAGÓGICAS: TENSÃO ENTRE A

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O REFORÇO DA NORMA

Aline Danielly Leal da Silva

Campina Grande, março de 2013.


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Aline Danielly Leal da Silva

MEMÓRIA DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM

GRAMÁTICAS PEDAGÓGICAS: TENSÃO ENTRE A

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O REFORÇO DA NORMA

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Linguagem e Ensino,
no Centro de Humanidades, da
Universidade Federal de Campina Grande,
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Linguística Aplicada na
área de Ensino-Aprendizagem de Língua
Materna.

Orientadora: Profª Drª Maria Angélica de


Oliveira

2013
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FOLHA DE APROVAÇÃO

_________________________________________________________________

Profª. Drª. Maria Angélica de Oliveira


(Orientadora - UFCG)

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Marco Antonio Margarido


(Examinador Interno - UFCG)

_________________________________________________________________

Profª. Drª. Fabiele Stockmans De Nardi


(Examinadora Externa - UFPE)
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SUMÁRIO

LISTA DE QUADROS ....................................................................................................... 6

RESUMO .......................................................................................................................... 7

RÉSUMÉ .......................................................................................................................... 8

INTRODUÇÃO.................................................................................................................10

CAPÍTULO I - GRAMÁTICA PEDAGÓGICA: UM LUGAR DE MEMÓRIA DA TRADIÇÃO


GRAMATICAL .................................................................................................................17

I. Noção de memória nos estudos discursivos .........................................................17

II. Definição de gramática pedagógica ......................................................................30

1.1 Gramática pedagógica a partir de um olhar teórico: lugar entre a “tradição” e a


“inovação”. .......................................................................................................................31

1.1.1 Discussão dos sentidos da palavra “gramática” ......................................................34

1.1.2 Estruturação da gramática pedagógica ...................................................................45

1.2 Gramática pedagógica a partir de um olhar discursivo: lugar entre a “produção” e a


“divulgação” de sentidos sobre língua. .............................................................................55

CAPÍTULO II - CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA: DEFINIÇÃO DO LUGAR DE


INTERPRETAÇÃO ..........................................................................................................65

2.1 Definição do objeto e do tipo de pesquisa ..................................................................65

2.2 Constituição do corpus: preparando as análises ........................................................69

2.3 Mo(vi)mentos de análise ............................................................................................79

CAPÍTULO III - O TRABALHO DA MEMÓRIA EM GRAMÁTICAS PEDAGÓGICAS:


REPRESENTAÇÕES DE LÍNGUA, GRAMÁTICA E ENSINO. .........................................82

3.1 Caracterização do Discurso da Gramática Pedagógica: lugar de confrontos


discursivos .......................................................................................................................82

3.2 Réplica à critica ao ensino de gramática tradicional: o desejo do “novo”. .................100

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................120

BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................................125

ANEXOS............................................................................. Erro! Indicador não definido.


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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: correlação entre a noção de gramática e atividades metalinguísticas


(TRAVAGLIA, 2006) ........................................................................................................43

Quadro 2: Gramáticas pedagógicas analisadas. ..............................................................69

Quadro 3: Organização geral das partes, seções e abrangência dos capítulos de GP1
(CEREJA & COCHAR, 2009). ..........................................................................................74

Quadro 4: Organização geral das partes, seções e abrangência dos capítulos de GP2
(ABAURRE & PONTARA, 2006) ......................................................................................76

Quadro 5: Organização geral das partes, seções e abrangência dos capítulos de GP3
(FERREIRA, 2011) ..........................................................................................................77
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RESUMO

Este trabalho tem por objetivo investigar a constituição da memória discursiva do


ensino de língua portuguesa em Gramáticas Pedagógicas (GP), a qual funciona como
espaço de constituição dos conteúdos gramaticais a ser trabalhados em sala de aula,
bem como dos caminhos metodológicos para o ensino desses conteúdos. Esse tipo de
gramática, por circular em contexto escolar, situa-se em um lugar de tensão discursiva:
de um lado, filiado à gramática tradicional, colocando-se como um instrumento
tecnológico de gramatização (AUROUX, 2009 [1992]) da norma padrão da língua
portuguesa; de outro, influenciado por posicionamentos advindos da ciência (no campo
dos estudos da linguagem e da pedagogia de línguas) e das políticas educacionais
(SILVA, 2006). Dessa forma, entendemos que a memória do ensino de língua
portuguesa, nessas materialidades linguísticas, constitui-se pela relação de sentidos
entre a FD da Gramática Tradicional e a FD da Linguística, relação essa que determina a
construção das representações de “língua”, “gramática” e “ensino” nesses compêndios.
Sob essas considerações, estabelecemos os seguintes objetivos específicos: (1)
Investigar as relações de sentidos resultantes do confronto discursivo entre a FD da
Gramática Tradicional e a FD da Linguística nas gramáticas pedagógicas analisadas; e
(2) Identificar as representações de “língua”, “gramática” e “ensino” construídas nessas
gramáticas. O corpus da pesquisa foi constituído por três GPs do ensino médio (volume
único), destinadas ao professor, a saber, (1) “Gramática Reflexiva: texto, semântica e
interação” (CEREJA & COCHAR, 2009); (2) “Gramática: Texto: análise e construção de
sentido” (ABAURRE & PONTARA, 2006); e (3) “Aprender e praticar gramática”
(FERREIRA, 2011). Para construção e análise dos dados, partimos dos pressupostos
teórico-metodológicos pertencentes ao campo de investigação da Análise de Discurso de
orientação pecheutiana. Foram mobilizadas, principalmente, as noções de memória,
sujeito e língua, discutidas por Pêcheux (2009 [1975]), Orlandi (1996; 2001) e Indursky
(2011). Sob essa perspectiva, as gramáticas pedagógicas são analisadas como objeto
simbólico e, portanto, enquanto nível de existência sócio-histórica, o que implica na
consideração das condições verbais de existência em uma conjuntura sócio-histórica
dada. Constatamos que as gramáticas analisadas se constituem pela relação polêmica
entre as FDs da Linguística e da Gramática Tradicional, o que é evidenciado na própria
estrutura, haja vista o manual do professor se apresentar como lugar de memória da
Linguística (assumindo o Discurso de Divulgação Científica) em um compêndio
historicamente relacionado à tradição gramatical. As análises das propostas didático-
pedagógicas, veiculadas pelos manuais, apontam o desejo do “novo”, que se constituiu
pelo processo de oposição/negação dos saberes vinculados à tradição que são
apontados pela Linguística como pontos problemáticos. A tomada sociológica do
fenômeno linguístico permite o reforço da norma linguística nos compêndios, uma vez
que, ao separar o sujeito pragmático da língua, retorna a representação de língua como
sistema autônomo. Assim, embora haja o desejo em apresentar uma proposta que se
baseia em saberes “sobre a língua”, as gramáticas analisadas veiculam
predominantemente saberes “da língua”.

Palavras-chave: memória discursiva; ensino de gramática; gramática pedagógica.


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RÉSUMÉ

Cette étude vise à étudier la formation de la mémoire discursive d'enseigner de


la langue portugaise dans les Grammaires Pédagogiques (GP), qui fonctionne comme un
espace de création de contenu pour être grammaticale travaillé dans la salle de classe
ainsi que des approches méthodologiques de l'enseignement de ces contenu. Ce type de
grammaire, par circulaire dans les écoles, est situés dans un lieu de tension discursive:
d'un côté, affiliés à la grammaire traditionnelle, se positionnant comme un instrument
technologique de grammatisation (Auroux, 2009 [1992]) du modèle standard langue
portugaise, de l'autre, découlant de placements influencé par la science (dans le domaine
des études de langues et de la pédagogie linguistique) et les politiques éducatives
(SILVA, 2006). Ainsi, nous comprenons que la mémoire de l'enseignement de la langue
portugaise, dans les matérialités linguistiques, il constitue dans le rapport la relacion des
sens entre la FD de la Grammaire Traditionnelle et de la Linguistique, une relation qui
détermine la construction des représentations de «langue», «grammaire» et
«enseignement» dans ces recueils. En vertu de ces considérations, nous avons établi les
objectifs spécifiques suivants: (1) Investiguer la relation entre sens résultant de la
confrontation entre la FD de la Grammaire Traditionnelle et de la Linguistique dans les
grammaires pédagogiques analysés, et (2) Identifier les représentations de « langue »,
« grammaire» et «enseignemente» construit dans ces grammaires. Le corpus de l'étude
était composée de trois GPs do Ensino Médio (volume unique), destiné a l'enseignant, à
savoir, (1) «Grammaire de réflexion: textes, de la sémantique et de l'interaction" (CEREJA
& COCHAR, 2009), (2) «Grammaire : Texte: analyse et construction du sens »(ABAURRE
& PONTARA, 2006), et (3)« Apprendre et pratiquer la grammaire »(FERREIRA, 2011).
Pour la construction et l'analyse des données, nous avons établi les postulats théoriques
et méthodologiques ayant trait au domaine de recherche de l'Analyse du Discours de
orientation dans les études de Pêcheux. Ils ont été mobilisés, en particulier, les notions de
mémoire, langue et sujet, discuté par Pecheux (2009 [1975]), Orlandi (1996, 2001) et
Indursky (2011). De ce point de vue, les grammaires pédagogiques sont analysés comme
objet symbolique et, par conséquent, alors que le niveau de développement socio-
historique existence, ce qui implique le compte rendu verbal des conditions d'existence
dans un contexte socio-historique. Nous notons que les grammaires sont analysés par la
relation controversée entre les FDs de Linguistique et de Grammaire Traditionnelle, qui
est mis en évidence dans la propre structure, compte tenu le manuel de l'enseignant est
présenté comme une lieu de mémoire de la Linguistique (en supposant le Discour
destinés à divulguer les connaissances scientifiques) dans un recueil historiquement lié à
la tradition grammaticale. Les analyses des propositions didactiques et pédagogiques,
diffusés par les manuels, soulignent la volonté de la «nouvelle», qui a été constitué par la
procédure d'opposition / refus de la connaissance liée à la tradition qui sont nommés par
les Linguistique comme les points chauds. L’approche sociologique de la langue permet
de renforcer la langue standard dans les manuels scolaires, car, en séparant la langue
pragmatique du sujet, renvoie la représentation de la langue comme un système
autonome. Ainsi, bien qu'il y ait la volonté de présenter une proposition qui est basée sur
la connaissance « sur la langue », les grammaires analysées principalement transmettre
des connaissances « de la langue ».

Mots-clés: mémoire discursive; enseignement de la grammaire ; grammaire


pédagogique.
9

Para Deus.
Para minha família.
Para Solon.
10

INTRODUÇÃO

Recentemente, assistimos na mídia uma discussão acalorada sobre a

distribuição, pelo Ministério da Educação (MEC), de um livro didático de português que

supostamente se propunha a “ensinar os alunos a falar errado”, a “defender o erro”, e até

a “alimentar o preconceito contra os que falam certo”. O livro “Por uma vida melhor”, de

Heloisa Ramos (2011), foi duramente criticado por apresentar enunciados de norma não-

padrão como enunciados possíveis da “língua portuguesa”, os quais poderiam ser

produzidos segundo adequação ao contexto de interação verbal, sem, no entanto, serem

considerados “erro” 1.

Estão em jogo, nessa discussão, saberes discursivos sobre o ensino de língua

portuguesa, mais especificamente, ao que concerne à abordagem dos conteúdos

gramaticais em sala de aula, saberes esses que delimitam os sentidos a serem

produzidos sobre o que, como e por que (não) ensinar gramática, bem como sobre os

valores sociais relacionados a essa prática. Para a Análise de Discurso (AD), saberes

discursivos diferentes (muitas vezes, contraditórios) relacionam-se diferentemente com a

ideologia, o que permite a produção de sentidos variados para uma mesma palavra

(ORLANDI, 2001). Assim, a representação de “língua”, colocada como objeto de ensino-

aprendizagem no livro didático em questão, modifica-se conforme a inscrição do sujeito

em uma Formação Discursiva (FD).

Sob essa perspectiva, os sentidos não existem em si mesmos, mas são

determinados ideologicamente. De modo complementar, podemos afirmar que as

palavras, nelas mesmas, não possuem sentidos, recebendo-os pela necessária inscrição

em uma FD, processo que “aciona” saberes produzidos anteriormente e alhures, os quais

1
Maiores informações sobre a discussão em torno da distribuição do livro “Por uma vida melhor”
para escolas públicas podem ser encontradas no Dossiê – livro didático, na página do MEC
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16649#.
11

modificam o modo como o sujeito produz significação (PÊCHEUX, 2009 [1975];

ORLANDI, 2001). O conceito de memória discursiva refere-se a esse conjunto de

saberes estabilizados no âmbito de uma FD, os quais, tendo sido repetidos com

persistência ao longo dos tempos, ganham regularização. Dessa forma, entendemos que,

quando se trata do ensino de português nas escolas, a memória discursiva sobre esse

ensino é determinante para o processo de constituição dos objetos didático-pedagógicos,

ou seja, é nessa e a partir dessa memória que os conteúdos a seres ensinados são

moldados.

No cenário brasileiro, o ensino de português foi constituído sob um projeto de

unicidade imaginária de língua, vinculado à ideia de nação/Estado (ORLANDI, 2002;

2006), o que permitiu o fortalecimento de uma língua-padrão, legitimada socialmente e,

por isso, considerada símbolo nacional. No caso da situação colocada sobre o livro “Por

uma vida melhor”, a inscrição linguística de outras possibilidades de uso do português

(que não o padrão), em um material didático que está, historicamente, relacionado à

gramática tradicional (isto é, à descrição e à normatização da língua nacional), produz um

deslocamento na rede de filiação de sentidos, seja sobre a língua legitimada a ser

descrita e ensinada na instituição escolar, seja sobre a construção de conhecimentos

linguísticos nesse tipo de material didático.

Em outras palavras, a presença, em materialidades discursivas que circulam na

escola, de fenômenos linguísticos registrados em variedades não-padrão deixa ressoar

outros discursos sobre língua e sobre seu ensino, os quais colocam-se como

concorrentes à tradição. O confronto discursivo entre as posições ideológicas sobre “a”

língua portuguesa e seu ensino, indiciado na situação enunciativa exposta, reflete um

contexto discursivo mais amplo que vem se constituindo na relação de oposição entre a

Gramática Tradicional e a Linguística, mais enfaticamente, desde o final da década de

1970 (cf. CASTILHO (1978; 1980), LOBATO (1978); ILARI (1990), KATO (1983); LUFT
12

(1985), FRANCHI, 1996 [1986]; GERALDI, 1985; 1991; POSSENTI, 1995; BRITTO 1997;

NEVES, 1990; ANTUNES, 2006).

Nosso trabalho, na ordem das discussões sobre o ensino de gramática,

recorrentes tanto na mídia quanto no meio acadêmico-escolar, tem por objeto de estudo

os saberes discursivos que constituem a memória sobre o ensino de língua portuguesa, a

qual funciona como espaço de constituição dos conteúdos a ser trabalhados em sala de

aula, bem como dos caminhos metodológicos para o ensino desse tipo de conteúdo. Para

tanto, analisamos três gramáticas pedagógicas (GPs) do ensino médio (volume único),

destinadas ao professor, a saber, (1) “Gramática Reflexiva: texto, semântica e interação”

(CEREJA & COCHAR, 2009); (2) “Gramática: Texto: análise e construção de sentido”

(ABAURRE & PONTARA, 2006); e (3) “Aprender e praticar gramática” (FERREIRA,

2011).

Tomamos a noção de memória conforme os estudos discursivos de orientação

pecheutiana, em que ela é apresentada como “um espaço móvel de divisões, de

disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização” e, assim,

“um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscursos” (PÊCHEUX,

2010, p.56). Está pressuposto a essa assertiva o fato de o processo de repetibilidade

sustentar tanto a regularização dos sentidos que se encontram em circulação no social

como os deslizamentos e transformações desses sentidos (PÊCHEUX, 2009 [1975];

2010), o que implica a porosidade das fronteiras entre as FDs, permitindo a migração de

saberes.

Escolhemos as GPs para análise por essa materialidade linguística apresentar-

se como lugar de memória2 do imaginário social de língua única, associado,

2
O conceito lugar de memória foi cunhado por Pierre Nora (1984). Trata-se de espaços de
retomada de um discurso regularizado e legitimado socialmente, os quais tornam possível o jogo
de repetição discursiva que alimenta o memorável em um grupo social, isto é, o que é da ordem
do “todos sabem, todos lembram”. Os lugares de memória se apresentam sob a forma de objetos,
instrumentos, instituições e documentos – constituídos no entrelaçamento do histórico, cultural e
simbólico (INDURSKY, 2011).
13

historicamente, à FD da gramática tradicional. Conforme Orlandi (2002), a construção de

saberes metalinguísticos articula-se às políticas linguísticas, pondo em jogo a relação

entre unidade e diversidade presente nos estudos sobre “a” língua e a constituição de

“uma” língua nacional relacionada a seus falantes e a seu ensino. Segundo a autora

(ORLANDI, 2002 p. 126) “não há política linguística sem gramática e, em sentido inverso,

a forma da gramática define o jogo das políticas linguísticas (administra a relação língua /

línguas)”. Dessa forma, entendemos que, atrelada à escola, esse tipo de gramática, de

orientação prescritivista, assumiu papel de referência na constituição de representações

sobre língua, assumindo a posição de um discurso fundador (ORLANDI, 1993).

Devido ao fortalecimento da Linguística, colocada como disciplina obrigatória a

ser oferecida nos cursos de Letras a partir de 1962, os compêndios gramaticais que

funcionam na escola passaram a ser inseridos em outras discursividades sobre língua. É

relevante salientar que, sustentado sob o critério de cientificidade, os saberes discursivos

inscritos na FD da Linguística adquiriram lugar de reconhecimento junto às políticas

educacionais para o ensino de língua, construindo seu discurso em oposição à tradição

gramatical. Sob esse contexto, segundo Pietri (2003), constitui-se no Brasil, a partir da

década de 1970, o Discurso da mudança nas concepções de linguagem e no ensino de

língua materna, o que influencia no modo como os conteúdos gramaticais são

trabalhados na escola.

Dessa forma, as GP situam-se em um lugar de tensão discursiva: de um lado,

filiadas à gramática tradicional, colocando-se como um instrumento tecnológico de

gramatização (AUROUX, 2009 [1992]) 3 da norma padrão da língua portuguesa; de outro,

influenciadas por posicionamentos advindos da ciência (no campo dos estudos da

linguagem e da pedagogia de línguas) e das políticas educacionais (SILVA, 2006). Essa

hibridez pode ser considerada como um efeito da própria situação de enunciação em

3
Estamos entendendo “gramatização” (AUROUX, 2009 [1992]) como o processo de descrição e
de instrumentação da língua na base de duas tecnologias: a gramática e o dicionário, pilares de
nosso saber metalinguístico.
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instituição escolar, que tem a produção de sentidos regulada por forças de naturezas

diversas: linguísticas, pedagógicas, políticas e culturais.

Sob essas considerações, o objetivo geral dessa pesquisa consiste em

investigar a constituição da memória discursiva do ensino de língua portuguesa nas

Gramáticas Pedagógicas (GP) em questão. Compreendemos que tematizar essa

memória prescinde a observação da relação entre posicionamentos ideológicos

concorrentes (no caso, os relacionados à FD da gramática tradicional e à FD da

Linguística), investigando o modo como eles se constituem discursivamente e os efeitos

de sentidos produzidos por essa relação, isto é, o grau de identificação e de

deslocamento dos sentidos sobre “língua”, “gramática” e “ensino”.

A partir dessas reflexões iniciais, duas perguntas foram formuladas a fim de

orientar nossa análise:

1. Que relações de sentido são resultantes do confronto entre a FD da Gramática

Tradicional e a FD da Linguística nas gramáticas pedagógicas analisadas?

2. Que representações de “língua”, “gramática”, e, consequentemente, de “ensino”

são construídas nessas gramáticas?

Esses questionamentos nos conduzem à reflexão sobre as implicações políticas

dos diferentes olhares sobre a língua e sobre gramática, os quais coexistem em contexto

escolar, influenciando as práticas de ensino-aprendizagem de língua portuguesa. Esse

trabalho mostra-se relevante, uma vez que, em situação de aprendizagem, os alunos não

estão em contanto apenas com saberes sobre a língua, mas com valores sobre os usos e

sobre os falantes. Assim, além de “aprender” uma língua, os cidadãos “aprendem”

avaliações sobre ela.


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No intuito de responder às questões propostas, estabelecemos os seguintes

objetivos específicos:

a) Investigar as relações de sentido resultantes do confronto discurso entre a FD

da Gramática Tradicional e a FD da Linguística nas gramáticas pedagógicas

analisadas.

b) Identificar as representações de “língua”, “gramática” e de “ensino” construídas

em gramáticas pedagógicas.

Partindo do pressuposto de que há sobre a língua um jogo de contraposições

entre tendências tradicionalistas e inovadoras (ROSENBLAT, 1989 apud LEITE, 2006),

que reflete a tensão necessária entre unidade e diversidade linguística, entendemos que

a produção de conhecimentos metalinguísticos constitui-se como um lugar privilegiado de

embate dessas forças, descortinando as concepções linguísticas vigentes em cada

época. Sob essa perspectiva, a noção de gramaticalidade é um ponto nodal na

constituição dos saberes metalinguísticos, uma vez que é ela que define a abertura ao

trabalho com a variação linguística ou reforço da norma.

O caminho que trilhamos para atingir os objetivos desse trabalho levou-nos a

organizar esta dissertação em três (03) capítulos, além desta Introdução e das

Considerações finais. Por considerar que, em AD, os conceitos teóricos e as

peculiaridades enunciativas e sócio-históricas do objeto significam para a análise,

explicitamos, inicialmente, o capítulo teórico e, posteriormente, os procedimentos

metodológicos e as análises. Cada um dos capítulos apresenta subdivisões que julgamos

necessárias para uma melhor organização das ideias no decorrer das discussões.

No Capítulo I, intitulado Gramática Pedagógica: um lugar de memória da tradição

gramatical, são apresentados os pressupostos teóricos que embasaram a análise das


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Gramáticas Pedagógicas. Ele está dividido em duas seções principais: a primeira

apresenta a categoria teórica memória discursiva, discutindo seus princípios e

funcionamentos no discurso; a segunda, por sua vez, apresenta uma definição ao que

chamamos de “gramática pedagógica”, observando, para tanto, o quadro teórico dos

estudos atuais sobre gramática e, posteriormente, às várias representações desse objeto

simbólico no processo de institucionalização do ensino de língua no Brasil.

No capítulo III, cujo título é Caracterização da pesquisa: definição do lugar de

interpretação, explicitamos os procedimentos metodológicos utilizados para construir e

analisar o corpus de nossa pesquisa, os quais foram definidos pela inscrição no campo

teórico da AD. Esse capítulo foi estruturado em três partes, a saber, (1) o objeto e o tipo

de pesquisa; (2) o processo de constituição do corpus; e, por fim, (3) os mo(vi)mentos de

análise dos dados.

No capítulo IV, intitulado O trabalho da memória em gramáticas pedagógicas:

representações de língua, gramática e ensino, apresentamos as análises das Gramáticas

Pedagógicas, que constituem o corpus desta pesquisa, a partir de duas categorias de

análise: 1) Caracterização do Discurso da Gramática Pedagógica pela explicitação, nas

materialidades discursivas, de pontos de relacionamento polêmico entre esses discursos;

e 2) Problematização da relação entre esses discursos na construção das

representações de “língua” e “gramática”, bem como de “sujeitos” de ensino. Esses

saberes constituem a memória sobre o ensino de língua nas gramáticas pedagógicas

analisadas, as quais estão diretamente relacionadas ao trabalho com língua nas escolas.
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CAPÍTULO I - GRAMÁTICA PEDAGÓGICA: UM LUGAR DE MEMÓRIA DA


TRADIÇÃO GRAMATICAL

O objetivo deste capítulo é discutir os conceitos teóricos que orientam a análise

das Gramáticas Pedagógicas que compõem o corpus desta pesquisa. Para tanto, ele foi

dividido em duas seções: (I) apresentação da categoria memória discursiva, discutindo

seus princípios e seus funcionamentos no discurso, conforme os estudos da Análise de

Discurso (AD) de orientação pecheutiana; e (II) definição da gramática pedagógica,

observando o quadro teórico dos estudos atuais sobre gramática e, posteriormente, as

várias representações desse objeto simbólico no processo de institucionalização do

ensino de língua no Brasil. Esses conceitos interagem entre si na medida em que a

gramática pedagógica apresenta-se como lugar de memória da tradição gramatical.

I. Noção de memória nos estudos discursivos

A noção de memória apresenta-se como relevante para os estudos sobre

discurso, uma vez que, nessa perspectiva, todo dizer é considerado em sua historicidade.

Não estamos nos referindo a uma “memória individual” de natureza cognitiva, mas uma

memória social, construída historicamente (PÊCHEUX, 2010). Trata-se de retomada de

saberes discursivos, os quais, tendo se constituído em outras práticas sociais de

linguagem, diferentes de si no tempo e no espaço, retornam a cada tomada de palavra.

Dessa forma, a memória integra as condições de produção dos sentidos, juntamente com

os sujeitos e a situação (ORLANDI, 2001).

O efeito de memória é um princípio do próprio funcionamento discursivo, uma

vez que todo discurso remete-se a outros (ORLANDI, 1996): se não retomados por

repetição, comentário ou implícitos, por meio da ausência necessária desses outros


18

discursos. Como ressalta Pêcheux (2009 [1975]), as fronteiras entre as formações

discursivas são fundamentalmente instáveis, construídas pela relação com outras

formações discursivas alojadas no interdiscurso (memória do dizer). Assim, a posição de

sujeito discursivo, dissimulando seu assujeitamento sob a aparência da autonomia, é

apresentada pela inscrição em uma formação discursiva dominante, a qual, por sua vez,

é determinada pela relação com outras formações discursivas. A memória, portanto,

constitui-se através da lembrança e do esquecimento de dizeres já-produzidos e, por

isso, ela é de natureza ideológica.

Muitos são os conceitos da AD referentes à noção de memória. Como aponta

Indursky (2011), nos textos fundadores, essa noção aparecia sob outras designações,

como, por exemplo, repetição, pré-construído, discurso transverso e interdiscurso.

Segundo a autora (op. cit., p.68), essas designações remetem, mais especificamente, a

diferentes funcionamentos discursivos através dos quais a memória se materializa no

discurso. O conceito memória discursiva só passou a figurar nos estudos da AD a partir

de Courtine (1981), que, revisitando a reflexão foucaultiana sobre enunciados,

especificamente na obra Arqueologia do Saber (2010), aponta a memória trabalhando no

âmbito de uma formação discursiva (FD).

A tarefa de discutir a noção de memória discursiva é desafiante, considerando

os diversos funcionamentos que a materializam no discurso, bem como os diferentes

conceitos teóricos a ela relacionados, que, de certo modo, apesar de estarem ligados por

essa noção, distanciam-se por suas peculiaridades e, por isso, exigem uma reflexão mais

cuidadosa. Muitos podem ser os caminhos para essa discussão, dessa forma, para efeito

de início, optamos por caracterizar dois princípios gerais de funcionamento da memória

no discurso, os quais podem contribuir para melhor entendermos a natureza dessa

noção, a saber, (1) o processo de repetibilidade dos sentidos e (2) o esquecimento

estruturante da memória do dizer (INDURSKY, 2011).


19

Esses princípios estão diretamente relacionados ao trabalho da ideologia na

materialidade linguística, o que já aponta a necessária interrelação entre a memória

discursiva e a produção de sentidos nas práticas sociais de linguagem. Em termos gerais,

o princípio (1) refere-se ao processo de repetibilidade de saberes discursivos, que se

inscrevem em uma matriz de sentidos, constituída no âmbito de uma Formação

Discursiva (FD). Aponta-se a determinação ideológica dos sentidos, o que implica o fato

de que eles preexistem ao discurso do sujeito. O princípio (2), em direção inversa, diz

respeito ao efeito de esquecimento da determinação ideológica dos sentidos pelos

sujeitos, os quais são afetados pela ilusão de ser origem do dizer (ORLANDI, 2001). Por

razões didáticas, esses princípios serão apresentados separadamente, a seguir.

(1) Processo de repetibilidade: regularização e desregularização de sentidos

Quando em AD remete-se ao processo de retomada de saberes discursivos, não

há, necessariamente, referência à repetição de construções linguísticas, embora isso seja

possível e, eventualmente, ocorra, mas sim à retomada de efeitos de sentido4. Parte-se

do pressuposto de que, ao produzir significação no interior de práticas sociais de

linguagem, os sujeitos se colocam em relação a redes de sentidos historicamente

constituídas, relação esta que afeta o modo como produzem significados em determinada

situação discursiva. Esses sentidos ressoam, portanto, em seu dizer. Desse modo, como

ressalta Orlandi (2001, p.32), o dizer não é propriedade particular, haja vista o já-dito nele

ressoar e o constituir.

Sob essa perspectiva, os sentidos não existem em si, nem estão

predeterminados por propriedades da língua, mas são determinados ideologicamente,

processo que ocorre por meio da necessária inscrição do sujeito em uma Formação

4
Orlandi (1996, p.70) denomina essa retomada como “repetição histórica”, a que inscreve o dizer
no repetível enquanto memória constitutiva (interdiscurso). É a memória (rede de filiações) que faz
a língua significar.
20

Discursiva (FD). Estamos compreendendo FD como conjunto de discursos que

materializa embates ideológicos postos no processo sócio-histórico em que o dizer está

sendo formulado, colocando o sujeito em relação a determinados saberes discursivos (e

não a outros), que interferem no modo como ele produz sentidos (PÊCHEUX, 2009

[1975]). Como podemos perceber o conceito de FD aparece diretamente atrelado ao de

sujeito.

Diferentemente dos estudos pragmáticos, o sujeito, no quadro teórico da AD,

não é visto como indivíduo, de natureza empírica, mas como posição discursiva, “que

carrega consigo marcas do social, do ideológico e do histórico e tem a ilusão de ser a

fonte do sentido” (GRIGOLETTO, 2005, p.1). Trata-se de um sujeito historicamente

determinado: afetado pela língua como sistema sintático passível de jogo (de equívocos e

de falhas) e pela história (passível de contradição), isto é, ele é atravessado pela

materialidade discursiva à medida que se constitui e constitui os sentidos. Questiona-se,

com isso, a ideia de sujeito central, origem do dizer. Como ressalta Orlandi,

ele [o sujeito] é materialmente dividido desde sua constituição: ele é sujeito à


língua e à história, pois para se constituir, para (se) produzir sentidos ele é
afetado por elas. Ele é assim determinado, pois se não sofrer aos efeitos do
simbólico, ou seja, se ele não se submeter à língua e à história, ele não se
constitui, ele não fala, não produz sentidos (ORLANDI, 2001, p. 49).

O sujeito discursivo, portanto, integra uma estância social e coletiva, assim,

quando toma da palavra, de sua voz ressoa toda uma conjuntura social, em que o coloca

em relação a outras vozes. Há um conjunto de elementos que são exteriores ao sujeito,

atuando na sua constituição, exterioridade essa que é “acionada” pelos saberes

discursivos vinculados a uma FD e não a outra. Assim, a memória, inscrita no âmbito de

uma FD, coloca-se como espaço em que são forjados os objetos de conhecimento sobre

os quais falará o enunciador (DE NARDI, 2003).

Segundo Pêcheux (2009 [1975]), o lugar do sujeito não é vazio, sendo

preenchido pela forma-sujeito: que é o sujeito do saber de uma determinada FD. Sob
21

esse direcionamento, é pela forma-sujeito que o sujeito se inscreve em uma FD

determinada, com a qual ele se identifica e que o constitui como tal. Assim, é partir do

funcionamento da estrutura discursiva forma-sujeito, aparecendo sob o efeito de

autonomia, que a ideologia dissimula o seu funcionamento na linguagem.

É relevante ressaltar que, para Pêcheux (2009 [1975]), a inscrição ideológica do

sujeito em uma FD é determinada pelas relações com outras FDs no interdiscurso, sendo

que a constituição da forma-sujeito é veiculada pela formação discursiva dominante.

Assim, toda FD é heterogênea, constituindo-se por outras FDs. É sob essa perspectiva

que se postula, em AD, a movência das fronteiras entre elas, as quais são redefinidas

pelas relações de sentido postas em jogo no contexto de formulação. Dessa forma, tanto

os sujeitos como os sentidos são efeito do funcionamento da ideologia na linguagem e

são de naturezas instáveis.

Dois desdobramentos são apontados por Orlandi (2001, p.43-44) a partir da

consideração da determinação ideológica dos sentidos: a) o discurso se constitui em

seus sentidos porque o dizer que o sujeito produz se inscreve em uma FD e não em outra

para ter um sentido e não outro. Dessa forma, as construções linguísticas nelas mesmas

não têm sentidos, eles são provenientes das FDs em que se inscrevem; b) é pela

referência à FD que podemos compreender os diferentes sentidos constituídos

discursivamente. Assim, uma mesma palavra pode significar diferentemente desde que

se inscreva em FDs diferentes.

Por um lado, esses desdobramentos permitem-nos observar a especificidade do

tratamento dado à língua pela AD, concebida como lugar de materialização dos

discursos. Sob essa perspectiva, o sistema linguístico é relativamente autônomo

(PÊCHEUX, 2009 [1975]), uma vez que nele inscreve-se a história, isto é, a exterioridade

não possui a objetividade empírica daquilo que está “fora da linguagem”, haja vista que

se constitui no próprio trabalho dos sentidos, atuando em textos enquanto discursos.

Sendo assim, as formulações linguísticas são consideradas como forma material, a qual,
22

por ser atravessada pela ideologia e se constituir historicamente, não é transparente,

nem literal, mas opaca, sujeita aos mal-entendidos e aos deslizamentos de sentido

(LEANDRO FERREIRA, 2000).

Por outro lado, é possível compreender que para ter acesso à materialidade

linguística, isto é, para trabalhar sua espessura linguística e histórica (sua

discursividade), é necessário explicitar os processos de significação que trabalham em

um texto, qualquer texto. Em outras palavras, é necessário observar o funcionamento

discursivo na materialidade linguística, processo que ocorre pela explicitação das

relações de sentido que se constroem entre as FDs. Como afirma Orlandi (1996, p. 80),

“a noção de funcionamento, estendida para o discurso, faz com que não trabalhemos

apenas com o que as partes significam, mas que procuremos ‘quais as regras que

tornam possível qualquer parte’”.

Após essas considerações, cabe pensarmos, inicialmente, como se constituem

as relações entre os sentidos dentro de uma FD e, posteriormente, as relações entre

FDs. No que concerne ao primeiro caso, os sentidos, inseridos no âmbito de uma FD,

estabilizam-se sob o processo de repetibilidade e constituem uma matriz de sentido:

sentidos e saberes constituídos em práticas discursivas, situadas social e historicamente,

são objeto de repetição, bem como de repetição da repetição até sofrerem o processo de

cristalização e se regularizarem dentro de uma FD (INDURSKY, 2011). Dentro da matriz

de sentido, por sua vez, diferentes palavras, expressões e enunciados mantêm entre si

relações de parafrasagem, isto é, umas retomam as outras, permitindo o retorno ao

mesmo espaço do dizer.

A nosso ver, as relações de parafrasagem funcionam como força centrípeta,

trazendo os sentidos para o núcleo de uma FD. Isso porque essas relações colocam os

limites da repetição dos sentidos: estabelecem ao mesmo tempo o que pode e deve ser

dito (repetido) no interior de uma matriz de sentido, bem como os sentidos que, nela, não

podem ser produzidos (INDURSKY, 2011). Entendemos, então, que as relações de


23

parafrasagem estão relacionadas ao processo de identificação do sujeito a uma FD, em

que formulações linguísticas, ao serem produzidas em determinado contexto sócio-

histórico, ressoam sentidos pertencentes a uma mesma matriz de sentido, a partir de

diferentes funcionamentos discursivos de retomada, tais como, implícitos, remissões e

efeitos de paráfrase5.

Assim, as relações de parafrasagem funcionam sob o efeito de memória e nunca

fora dele. A determinação histórica de uma matriz de sentido não significa,

necessariamente, que ela não pode mais se alterar. Como ressalta Indursky,

os sentidos, à força de se repetirem, podem acabar por se modificar, de modo


que as redes discursivas de formulação, formada a partir de um regime de
repetibilidade, vão recebendo novas formulações que, ao mesmo tempo em
que vão se reunindo às já existentes, vão atualizando as redes de memória
(INDURSKY, 2011, p. 76).

Como vimos anteriormente, as novas formulações podem retornar ao mesmo

espaço de dizer, garantindo o regime de repetibilidade dos saberes discursivos

relacionados a uma FD. Frequentemente, no entanto, elas permitem a movência dos

sentidos: produzem alterações nos sentidos cristalizados, provocando desestabilização

nos processos de regularização. Esse processo ocorre porque o sujeito de discurso pode

produzir movimentos de (des)identificação dentro de uma FD, isto é, “pode contra-

identificar-se com algum sentido regularizado ou até mesmo desidentificar-se de algum

saber e identificar-se com outro” (INDURSKY, 2011, p.71).

Esses movimentos ocorrem, porque as FDs não são consideradas como blocos

homogêneos, idênticos a si mesmos, funcionando automaticamente. Pelo contrário, as

suas fronteiras são fluidas, o que permite a migração de saberes e, consequentemente, a

contínua (re)configuração de suas relações com outras FDs, isto é, com a ideologia.

5
Utilizamos o conceito de paráfrase tal como postulado pela Análise de Discurso,
compreendendo-o como o funcionamento discursivo que permite o retorno ao mesmo espaço de
dizer, estando, assim, relacionado à estabilização dos sentidos (ORLANDI, 2001). Sob essa
perspectiva, afastamo-nos da concepção atribuída ao processo linguístico-textual, em que, em um
texto, diz-se um mesmo dizer diferentemente, sob outras palavras.
24

Dessa forma, as FDs são consideradas heterogêneas (COURTINE, 1982; ORLANDI,

2001), formadas pela relação com saberes advindos de outras FDs (alojadas no

interdiscurso), em que o que está em questão é uma relação de dominância.

A partir da consideração de FD heterogênea, Pêcheux (2009[1975]) apresenta a

noção de posição-sujeito, a qual aponta a relação de identificação entre o sujeito da

enunciação e o sujeito do saber (forma-sujeito). Esse conceito é relevante para

entendermos os processos semânticos que se instauram no funcionamento polêmico do

discursivo. Uma mesma forma-sujeito pode ocupar diferentes posições de sujeito no

discurso, construindo modalidades particulares de identificação (ressalta-se:

identificação, contraidentificação e desidentificação), as quais produzem efeitos

discursivos específicos (COURTINE, 1982).

Sob essas considerações, chegamos às seguintes reflexões em torno da noção

de memória para AD: é pelo processo de repetibilidade que há retomada/regularização

dos sentidos que vão constituir uma memória social. Esse processo, no entanto, permite

a atualização desses dizeres e, portanto, possibilita que os sentidos atravessem a

fronteira de uma matriz de sentido, inscrevendo-se em outras. É a partir desse princípio

que Pêcheux (2010) postula que a memória se constitui na aparente contradição entre

regularização e desvio de sentido. Ele a apresenta como “um espaço móvel de divisões,

de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização” e, assim,

“um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscursos” (PÊCHEUX,

2010, p.56).

Essa memória, no entanto, ao funcionar na constituição dos dizeres, reveste-se

pela ordem do não-sabido. Como podemos observar, a seguir, na discussão sobre o

princípio do esquecimento estruturante.

(2) Esquecimento estruturante: evidência dos sujeitos e dos sentidos


25

Como discutimos anteriormente, segundo os estudos de orientação pecheutiana,

o sujeito, ao instaurar-se no discurso, filia-se a redes de sentido, mas ele o faz sem ter

consciência desse processo (PÊCHEUX, 2009 [1975]). Essa filiação é determinada pela

relação estabelecida com a língua e com a história, postas em jogo em contexto de

produção de sentidos, e, por isso, está diretamente relacionada à interpelação ideológica

em uma FD. Remetemo-nos a essa inconsciência, efeito do funcionamento da ideologia

na linguagem, quando nos referimos ao princípio de esquecimento estruturante, o qual é

qualificado por “estruturante” por está na base do funcionamento da memória na

produção de sentidos e, por isso, estrutura todo e qualquer dizer.

Segundo Pêcheux (2009 [1975]), a ideologia e o inconsciente se articulam: são

estruturas-funcionamento que, de forma comum, dissimulam sua própria existência no

interior mesmo de seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências “subjetivas”,

nas quais o sujeito se constitui. O fato de não haver sentido sem interpretação atesta a

presença da ideologia funcionando na linguagem: diante de qualquer objeto simbólico,

somos levados a interpretar, indagando-nos sobre “o que isso quer dizer”, processo em

que os sentidos aparecem como evidência, como se eles já estivessem sempre lá. Há,

portanto, sob esse gesto, o esquecimento da determinação ideológica do sentido e do

sujeito (ORLANDI, 1996).

Segundo Pêcheux (2009 [1975]), existem duas formas de esquecimento no

discurso: o ideológico (o esquecimento número um) e o enunciativo (esquecimento

número 2). A primeira forma de esquecimento, da ordem do inconsciente, resulta do

modo pelo qual o sujeito é afetado pela ideologia: ao inserir-se em uma matriz de

sentidos no âmbito de uma FD, retoma sentidos preexistentes ao seu discurso, mas deles

se apropria sob a ilusão de ser origem do dizer. Em outras palavras, é preciso que, em

determinado momento, seja apagado da memória o que foi dito anteriormente por um

sujeito específico para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em

“minhas” palavras (ORLANDI, 2001, p.14).


26

A segunda forma de esquecimento, por sua vez, refere-se à maneira como é

formulado o dizer: quando enunciamos, construímos “nosso” dizer de determinada

maneira e não de outra, por entender que o que dizemos só poderia ser dito com aquelas

palavras, isto é, que só há uma forma de dizer o que pretendemos. Esse entendimento

está vinculado à ilusão referencial, responsável pela crença na relação direta entre o

pensamento, a linguagem e o mundo. Trata-se de um esquecimento semiconsciente,

uma vez que, muitas vezes, os sujeitos retificam o seu dizer a fim de especificar o que

pretendem enunciar. No entanto, é relevante reinteirar que, embora o sujeito procure

alternativas de construções para a delimitação dos sentidos em seu dizer, ele não tem

controle sobre esse processo.

O esquecimento número dois está relacionado à ilusão de transparência da

linguagem e, portanto, à da evidência dos sentidos, a que faz com que uma palavra

designe uma coisa. Sob essa perspectiva, apaga-se o caráter material da linguagem,

deixando ver como transparente aquilo que se constitui pela remissão a um conjunto de

FDs. A ideologia, portanto, determina os sentidos produzidos pelo sujeito, mas dissimula

o processo pelo qual a determinação é construída, pela mediação da relação necessária

entre linguagem e mundo. Nas palavras de Nardi,

é a dissimulação de uma determinação para sujeito e sentido que cria a


evidência que repousa sobre ambos, se de um lado é pela evidência de que eu
sou realmente eu que funciona o processo de interpelação-identificação, por
outro é a crença na transparência dos sentidos que faz com que um enunciado
diga sempre o que quer dizer, mero efeito ideológico, já que são as posições
sustentadas por aqueles que dizem as responsáveis pelo sentido do dizer,
fazendo com que os sentidos se movam conforme modificam-se as posições
que os sustentam (DE NARDI, 2003, p. 73).

Dessa forma, reafirmamos que a memória sustenta o dizer: situa o sujeito em

meio a redes de formulação já feitas, mas esquecidas, relação em que o constitui como

tal. Como afirma Orlandi (2001), o já-dito está na base do dizível, assim, toda tomada de

palavra retoma sentidos da memória, apesar de sobre ela o sujeito não ter controle. O
27

funcionamento da memória pelo esquecimento é fundamental para que o sujeito se

estabeleça em um lugar possível no movimento da identidade e dos sentidos, haja vista

que eles não retornam apenas, projetam-se em outros sentidos, constituindo outras

possibilidades dos sujeitos se subjetivarem.

Faz-se necessário, neste ponto da discussão, considerar as especificidades da

memória. Como ressaltamos até então, de um modo geral, a memória funciona no

discurso através da repetibilidade dos sentidos no tempo e no espaço e do esquecimento

de que essa memória afeta toda e qualquer produção de sentidos. No entanto, o recorte

da memória é diferente conforme o conceito que seja utilizado para referenciá-la:

interdiscurso, memória discursiva e memorável (INDURSKY, 2011).

O conceito de interdiscurso diz respeito ao conjunto de todos os sentidos já

produzidos, por vozes anônimas, já esquecidas, e, por isso, ele não é dotado de lacunas,

apresentando-se, assim, totalmente saturado. Em outras palavras, inscreve-se nele tudo

o que já foi dito anteriormente e alhures, constituindo, assim, “‘um complexo de

formações discursivas com dominante’ submetido à lei de desigualdade-contradição-

subordinação que caracteriza o complexo das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 2009

[1975], p.149). E é por comportar todos os sentidos que o interdiscurso se distingue do

conceito de memória discursiva formulado por Courtine (1981).

A memória discursiva, pelo contrário, é lacunar, refere-se aos enunciados que se

inscrevem em uma FD, ou seja, ela não está relacionada a todos os sentidos, como é o

caso do interdiscurso, mas aos sentidos inscritos em uma matriz de sentido, constituída

no âmbito de uma FD. Entendemos, então, que a memória discursiva é um recorte do

interdiscurso, reconfigurando-se conforme a relação estabelecida entre o sujeito e a

ideologia. Como ressalta Indursky, funcionam na memória discursiva não só os sentidos

autorizados pela Forma-Sujeito no âmbito de uma FD, mas também os sentidos que

devem ser refutados: “ao ser refutado um sentido, ele o é também a partir da memória
28

discursiva que aponta para o que não pode ser dito na referida FD” (INDURSKY, 2011, p.

87).

Os sentidos esquecidos ou refutados no âmbito de uma memória discursiva não

se apagam do interdiscurso. É relevante salientar que a memória é determinada e

circunscrita pelas relações de desigualdade-contradição e subordinação entre as FDs no

interdiscurso (PÊCHEUX, 2009 [1975]) e, por isso, possuem limites fluidos e reajustáveis,

reconstituindo-se sob o regime de repetibilidade de sentidos. Assim, a memória é

regionalizada e relativamente estável. É sob essa perspectiva que podemos falar em

memórias e, portanto, redes de memórias, bem como de movência dos sentidos dentro

de uma memória discursiva.

Por fim, faz-se relevante discutir o que é considerado como memorável pela AD.

Como vimos, a memória do dizer (interdiscurso) é constituída pelo esquecimento de

todas as enunciações já ditas e silenciadas pelas condições de produção. O memorável,

por sua vez, refere-se a saberes da ordem de “todos sabem, todos lembram”. Trata-se de

uma memória institucional, cujos sentidos são estabilizados socialmente, mantendo-se

vivos pela repetição com persistência através dos tempos. Esses discursos, fundadores

de um imaginário coletivo para um grupo social, são consolidados através da repetição

em lugares de memória6 (arquivos das instituições).

No caso das Gramáticas Pedagógicas que constituem o corpus dessa pesquisa,

entendemos que elas se constituem como lugar de memória do imaginário de língua

única em contexto brasileiro, imaginário esse vinculado aos dizeres da gramática

tradicional. Assim, essas gramáticas estão relacionadas à discursivização sobre língua

em contexto de independência, tomada como símbolo de nacionalidade e, por isso,

permitindo que saberes sobre ela possam circular em contexto escolar.

6
O conceito lugar de memória foi cunhado por Pierre Nora (1984). Trata-se de espaços de
retomada de um discurso regularizado e legitimado socialmente, que tornam possível o jogo de
repetição discursiva que alimenta o memorável em um grupo social, isto é, o que é da ordem do
“todos sabem, todos lembram”. Os lugares de memória se apresentam sob a forma de objetos,
instrumentos, instituições e documentos – constituídos no entrelaçamento do histórico, cultural e
simbólico (INDURSKY, 2011)
29

É desse modo que falamos de um discurso fundador que funciona na base de

um acontecimento discursivo: a ideia política de nação, a partir da formação dos Estados

independentes, está diretamente relacionada à gramatização e à prescrição de uma

norma padrão, assim, entendemos que os discursos estabilizados sobre língua

portuguesa contribuem para a constituição da identidade do Brasil como país, que se

apresenta pela diferenciação da metrópole Portugal.

O memorável, de modo semelhante à memória discursiva, é fundado pela

inscrição em uma FD, estando em contato com outros dizeres. Assim, o sujeito ao

inscrever-se em no discurso fundador sobre língua nacional (homogênea, estável e

monolítica), pode se relacionar diferentemente com ele, contraidentificando-se e até

desidentificando com ele e se identificando com outro. Devido à natureza das gramáticas

analisadas, partimos do pressuposto de que elas estabelecem movimentos de paráfrase

com esse discurso fundador, no entanto, o que está em questão é o grau de identificação

instaurado pelas posições-sujeito com esse discurso, uma vez que também aparecem

afetadas pelo discurso da Linguística.

A noção de pré-construído está relacionada à materialização do interdiscurso na

formulação linguística (intradiscurso). Segundo Pêcheux,

o “pré-construído” corresponde ao “sempre-já-aí” da interpelação ideológica


que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da universalidade
(o “mundo das coisas”), ao passo que a “articulação” constitui o sujeito em sua
relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo
que determina a dominação da forma-sujeito (PÊCHEUX, 2009 [1975]).

Há duas modalidades através das quais o pré-construído pode ser mobilizado:

(1) operação de encaixe sintático no interior do discurso do sujeito e (2) discurso

transverso (INDURSKY, 2011). No primeiro caso, o pré-construído mobiliza uma

operação sintática que sinaliza a fronteira entre o que veio de outro lugar (o pré-

construído) e o que foi produzido pelo sujeito do discurso. No entanto, esse

encaixamento produz o efeito de ser formulado em seu discurso.


30

Para Pêcheux, esse efeito resulta do trabalho da forma-sujeito que “tende a

absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece

como puro já-dito no intradiscurso” (2009 [1988], p. 69). No segundo caso, o discurso

funciona como o exterior ao discurso considerado e o implícito que ele constitui é

explícito alhures, isto é, o discurso transverso retoma um pré-construído que foi

produzido em outro lugar e que, no discurso dele, é apropriado, ressoando

metonimicamente, como um implícito.

II. Definição de gramática pedagógica

La grammaire normative et pédagogique apparaît au XIXe siècle, avec la


necessité d’enseigner la langue française écrite, son orthographe, et la langue
française parlée, selon les normes de la tradition centralisatrice de la France;
l’objectif est alors une volonté unificatrice sur le plan linguístique (DUBOIS,
7
1994, p. 226 apud SILVA, 2006) .

A gramática como compêndio que descreve e instrumenta uma língua por meio

de metalinguagem, desde sua origem, esteve atrelada ao ensino de línguas.

Especificamente a partir do processo de gramatização das línguas vernáculas europeias,

o ensino com base nesse compêndio aparece intrinsecamente relacionado à

institucionalização de uma língua pátria, considerada oficial e reconhecida como norma

para o bom uso do idioma (AUROUX, 2009 [1991]).

Essa função política instaurou um lugar privilegiado desse compêndio em

contexto escolar - tal como podemos perceber na epígrafe acima, relacionada ao ensino

do francês, o qual aparece orientado pelo desejo de unificação sobre o plano linguístico.

No Brasil, a gramática em uso pedagógico assumiu um papel análogo, contribuindo para

a constituição de uma língua nacional que nos definisse como pátria independente, em

7
A gramática normativa e pedagógica aparece no século XIX, com a necessidade de ensinar a
língua francesa escrita, sua ortografia, e a língua francesa falada, segundo as normas da tradição
centralizadora da França; o objetivo é, então, o desejo de unificação linguística. (tradução nossa;
grifo do autor)
31

contexto sócio-histórico de formação da República no país – em início do século XIX

(ORLANDI, 2002).

Os sentidos sobre língua e sobre ensino de língua, materializados nessas

gramáticas, sofrem modificações conforme o contexto sócio-histórico de produção; isto

implica dizer que a relação que esse tipo de compêndio gramatical estabelece com os

sujeitos de ensino e com as políticas linguísticas e educacionais é de caráter movente. A

própria palavra “gramática” pode adquirir sentidos variados em épocas diferentes, em

tendências e em autores diferentes, influenciando no modo de estudar e produzir

conhecimentos sobre a língua (ORLANDI, 2002).

Desse modo, nessa seção, propomos uma definição de “gramática pedagógica”

a partir da problematização dos sentidos produzidos sobre ela, referindo-se, inicialmente,

ao quadro teórico dos estudos atuais sobre gramática (subseção 2.1) e, posteriormente,

às várias representações desse objeto simbólico no processo de institucionalização do

ensino de língua no Brasil (subseção 2.2).

1.1 Gramática pedagógica a partir de um olhar teórico: lugar entre a “tradição” e a


“inovação”.

O objetivo dessa subseção é situar a gramática pedagógica no quadro teórico

dos estudos linguísticos que problematizam as abordagens sobre o conhecimento de

natureza gramatical, buscando, com isso, perceber qual é a perspectiva de trabalho

sobre a língua que é predominante nesses compêndios. Em seguida, objetivamos

enfatizar as peculiaridades desse tipo de compêndio gramatical, explicitando suas

principais características organizacionais e funcionais.

A gramática pedagógica pode ser nomeada alternativamente como “gramática

didática”, “gramática escolar” e/ou “gramática prática”, constando, em todas as fórmulas

alternativas de nomeação, a referência à sistematização do ensino de língua,

principalmente, em âmbito escolar. Isto sugere que, nesses compêndios, haja um


32

tratamento didático do conteúdo gramatical, que de natureza estritamente teórica passa a

ser prática - por meio da presença de exemplos e de exercícios sugeridos.

Optamos pelo termo qualificado por “pedagógica” por fazer referência, mais

diretamente, ao processo de ensino-aprendizagem que tem por base a interação entre

aluno e professor - sujeitos de ensino que se constituem como os principais destinatários

dessas obras. Nesse processo, esse tipo de gramática se constitui como um dos

principais instrumentos de ensino, servindo como ponto de partida para as atividades

escolares ou como material de consulta.

O termo “gramática pedagógica”, no entanto, tem ampla circulação em obras de

língua portuguesa, utilizado, muitas vezes, para designar objetos de características

variadas e concorrentes. Destacamos, como exemplificação, a publicação da gramática

de autoria do linguista Marcos Bagno, Gramática Pedagógica do Português Brasileiro

(2011), que se coloca em oposição ao estudo prescritivista da norma padrão. Esse

compêndio propõe-se a uma descrição do “português brasileiro” a partir de dados

empíricos, analisados conforme os fundamentos da Linguística.

Temos então, nesse caso, uma gramática intitulada como “pedagógica”, a qual é

posta em oposição aos pressupostos teórico-metodológicos da tradição gramatical. Essa

proposta assemelha-se à abordagem gramatical de outros compêndios como a Pequena

Gramática do Português Brasileiro (CASTILHO & ELIAS, 2012), a qual se propõe a

desenvolver outros caminhos de reflexão sobre a língua, especialmente, considerando a

sala de aula de português. Vejamos o trecho, a seguir, retirado da Apresentação dessa

gramática, feita pelos autores:

Esta não é uma gramática tradicional, de uma língua supostamente engessada.


Não oferecemos aqui, como é usual nos manuais de língua portuguesa,
respostas a perguntas que os alunos não formulam. No lugar disso, invertemos
o jogo, começando pela formulação de perguntas, para as quais juntos
buscaremos as respostas. O tratamento da língua materna tem esse objetivo
maior entre seus falantes: provocar indagação, desenvolver o espírito crítico
que se espera do cidadão de uma democracia (CASTILHO & ELIAS, 2012, p.
14; grifo nosso).
33

Esse trecho mostra-se relevante para nossa reflexão, uma vez que apresenta

marcas discursivas de oposição entre a gramática pedagógica de filiação com a

Linguística e a que circula na escola como material didático, associada à tradição

gramatical. Os autores definem pela negação esse distanciamento (“esta não é uma

gramática tradicional”), apontando a mudança de objeto de estudo: não “uma língua

supostamente engessada”, baseada em uma norma escrita literária, mas a “língua

materna”, que o aluno já tem domínio. Como consequência, muda-se também a

metodologia: a formulação de perguntas e a busca conjunta de respostas em detrimento

da oferta de “perguntas e respostas que os alunos nem formulam”.

Essa oposição construída discursivamente remete para a existência de

gramáticas pedagógicas de viés prescritivista, regularmente postas como lugar de

referência para o trabalho com os componentes gramaticais, isso é, em contexto escolar,

o estudo prescritivista ainda é o centro das atividades com os componentes gramaticais.

Sob essas considerações, entendemos que as gramáticas pedagógicas, de um modo

geral, assemelham-se quanto à natureza “prática”, vinculadas ao processo de ensino-

aprendizagem (e por isso criam situações de reflexão e de resolução de questões), mas

diferenciam-se entre si conforme a inscrição em diversas filiações de sentidos sobre

língua e sobre gramática (tradição ou linguística), fato que determina as funções que

esses compêndios assumem quanto à atividade escolar.

Mesmo em referência aos estudos prescritivistas, o termo “gramática

pedagógica” pode ser utilizado para designar materialidades diversas: ora relacionado à

presença de exercícios sobre conteúdos gramaticais, cujo público-alvo é alunos do

ensino fundamental e médio (cf. PRESTES & PEIXOTO, 2006), ora sendo empregado

para designar genericamente gramáticas normativas, como, por exemplo, as de autoria

de Bechara (2003), de Cegalla (2005) e de Cunha & Cintra (2008) - pelo fato de

descreverem a “língua” estudada na escola.


34

Neste trabalho, estamos entendendo como gramática pedagógica os

compêndios gramaticais que ocupam, na escola, o lugar de instrumento didático-

pedagógico e, portanto, veiculando um conhecimento legitimado para ser ensinado nesse

contexto. Além disso, essas gramáticas, por seus fins escolares, sofrem influência de

orientações curriculares específicas, sofrendo regulação tanto dos conhecimentos

científicos produzidos sobre língua, quanto dos documentos parametrizadores do ensino

de português (SILVA, 2006).

Em decorrência, a constituição desse tipo de obra - em relação a objetivos,

estrutura e conteúdos - diferencia, ao menos parcialmente, de outras gramáticas

prescritivistas, inclusive da “gramática de referência”. Destacamos a presença do “manual

do professor” nas gramáticas pedagógicas analisadas, mecanismo que age na produção

de sentidos sobre língua, passíveis de serem produzidos em sala de aula. Assim, há,

nesses compêndios, além do estudo da metalinguagem, a preocupação com o

desenvolvimento das capacidades de uso da língua, processo colocado como um dos

principais objetivos do ensino de português.

Para melhor entendermos a configuração da gramática pedagógica, faz-se

relevante situarmos sua posição teórica em relação aos outros tipos de gramáticas

existentes, apresentadas pelos estudos linguísticos. Partimos da indagação sobre o lugar

que essa gramática ocupa quanto ao tipo de abordagem da/sobre língua. Essa

explanação, a nosso ver, ajuda-nos a compreender o funcionamento desse instrumento

na escola. Vejamos.

1.1.1 Discussão dos sentidos da palavra “gramática”

Não há possibilidades de construir uma definição para “gramática pedagógica”,

sem antes delimitar o sentido de “gramática” que estamos entendendo quando

enunciamos essa expressão. A definição dessa palavra vem sendo bastante discutida
35

pelos estudos linguísticos. Obras como a de Geraldi (1985), O texto na sala de aula, e a

de Franchi (2006 [1991]), Mas o que é mesmo “GRAMÁTICA”?, há muito já evidenciavam

a não correspondência (obrigatória) entre “gramática” e prescrição de regras da língua

padrão.

Segundo Franchi (2006 [1991]), esse termo pode ser usado também para referir-

se a um sistema de princípios e de regras que todo falante possui e que lhe permite a

construção de expressões em determinada língua. “Gramática”, portanto, é um termo

que possui certa plasticidade, utilizado, atualmente, para referir-se a estudos linguísticos

de diversas naturezas, os quais, por sua vez, apresentam-se relacionados a atividades

diversas com e sobre a linguagem.

Tantas são as categorizações (e os sentidos) de “gramática” quanto são as

perspectivas teórico-metodológicas adotadas. Nesse texto, não nos propomos a resenhar

a multiplicidade de estudos sobre esse conteúdo; optamos, em vez disso, por focalizar

nossa apresentação em “macrocategorias”, as quais enquadram genericamente todos os

tipos de gramática. Além disso, essas categorizações aparecem com frequência nos

estudos sobre o ensino do conteúdo gramatical produzidos no Brasil, inclusive em

algumas das próprias gramáticas pedagógicas analisadas.

Travaglia (2006) apresenta os vários tipos de gramática, organizando-os

segundo dois eixos principais: o primeiro está relacionado aos conceitos de gramática

existentes no estado de arte da Linguística; o segundo eixo, por sua vez, distingue as

gramáticas segundo a explicitação da estrutura e do mecanismo de funcionamento da

língua. Como veremos adiante, esse eixos estão inter-relacionados, fato que permite uma

gramática ser categorizada simultaneamente por ambos.

O primeiro eixo propõe três categorizações: (I) a gramática normativa, (II) a

gramática descritiva e (III) a gramática internalizada (ou competência linguística

internalizada do falante). A gramática normativa (ou tradicional) é o tipo mais recorrente

em âmbito escolar, por isso, é a principal referência dos professores e dos alunos quando
36

o assunto é o aspecto gramatical da língua. Já as outras gramáticas estão relacionadas,

principalmente, aos estudos da Linguística.

A gramática normativa (I), como o nome já aponta, distancia-se das outras por

seu caráter prescritivo: por um lado, o estudo da língua restringe-se a norma padrão

escrita, baseada no uso de escritores consagrados; por outro, os usos dessa variação

são descritos como normas que devem ser seguidas para expressar-se “correto” e

“claramente”, em contrapartida, todos os usos que não se enquadram nesse padrão são

considerados “erro”.

Essa perspectiva, diferentemente do que poderíamos supor, não ignora o

processo da variação da língua: reconhece-o, mas, por considerá-lo como manifestação

da “corrupção” da língua, justifica a necessidade de combatê-lo, a favor de “preservar” o

que se considera ser a língua “correta”. Sob essa perspectiva, a “língua” apresenta-se em

correspondência à sua norma padrão, e os usos linguísticos que divergem dessa norma

são apresentados, por exemplo, como vícios de linguagem e como solecismos [erros

contra as regras de sintaxe].

Segundo Travaglia (2006, p.25), a depreciação das outras variedades

linguísticas baseia-se em fatores não estritamente linguísticos, tais como: purismo e

vernaculidade, classe social de prestígio (de natureza econômica, política e cultural),

autoridade (gramáticos e bons escritores), lógica e tradição. Umas das críticas mais

ferrenhas a esse posicionamento é o fato de que a determinação de um modo de falar

como sendo “melhor” implica na depreciação dos falantes de variações não prestigiadas -

que usam a língua de modo diferente.

Sob a perspectiva normativista, é possível construir enunciados como, por

exemplo, “os alunos não sabem língua portuguesa” e “os brasileiros maltratam sua

língua”. Assim, “saber gramática” implica dizer que alguém domina as normas propostas

pela tradição tanto nocionalmente quanto operacionalmente (FRANCHI, 2006 [1991]),


37

processo este que depende da escolarização do sujeito, por ser entendida a escola como

o lugar privilegiado para esse trabalho com a língua.

A gramática descritiva (II), diferentemente da anterior, pode trabalhar com

qualquer variedade da língua (TRAVAGLIA, 2006), uma vez que reconhece que toda

variação possui regularidade e está apta para construir sentidos nas comunidades

linguísticas em que circulam. Desse modo, a linguagem na modalidade oral também

passa a ser objeto teórico de análise. No entanto, é relevante ressaltar que nem todas as

variedades linguísticas são descritas, privilegiando-se assim as de maior prestígio social.

Entendemos que a principal diferença entre as perspectivas descritas acima é o caráter

avaliativo da gramática normativa.

Além disso, frequentemente, as gramáticas descritivas podem ser construídas

sob a orientação de várias correntes linguísticas, sendo intituladas diferentemente, tais

como: gramática estrutural, gerativa-transformacional, estratificacional, funcional, etc. Por

conseguinte, essas gramáticas constroem conhecimentos diversos sobre a língua,

variando conforme o ponto de vista adotado.

O que elas possuem em comum (e o que as definem como tal) é a aptidão em

construir um sistema de noções a partir do qual descrevem os fatos de uma língua,

permitindo a associação de cada expressão dessa língua a uma descrição estrutural e o

estabelecimento de suas regras de uso – distinguindo, assim, o que é gramatical do que

não é (FRANCHI, 2006 [1991]).

Ainda segundo esse autor, “saber gramática” significa ter a capacidade de

distinguir nas expressões de uma língua, as categorias, as funções e as relações que

entram em sua construção e, a partir delas, descrever sua estrutura interna, avaliando

sua gramaticalidade. Essa noção é relevante, uma vez que é a partir dela que as

estruturas linguísticas são consideradas como pertencentes ou não “à” língua. Esse

saber, como no caso da gramática normativa (I), também está relacionado ao

aprendizado sistematizado dos conhecimentos sobre a língua.


38

Por fim, a gramática internalizada (III) se distingue das apresentadas

anteriormente por não se constituir como um construto teórico, mas como o saber

linguístico que o falante de uma língua possui e desenvolve nos limites de sua própria

dotação genética, em condições apropriadas de natureza social e antropológica

(FRANCHI, 2006 [1991]). Sob essa perspectiva, todo falante nativo do português sabe

falar esse idioma e sabe sua gramática.

Desse modo, “saber gramática” não está condicionado, necessariamente, por

processos de escolarização, mas pelo desenvolvimento progressivo das atividades

linguísticas do falante, isto é, pela construção de hipóteses sobre o que seja a linguagem

e sobre seus princípios e regras, feitas e aceitas pela comunidade linguística de que o

falante participa. Essa gramática refere-se ao conjunto de regras de funcionamento da

língua e, por isso, é o objeto de estudo das gramáticas (I e II), sobretudo desta última.

O segundo eixo de categorização das gramáticas, apresentado por Travaglia

(2006), possui por critério de proposição a explicitação da estrutura e do mecanismo de

funcionamento da língua. Haveria, assim, três tipos principais, a saber: (a) gramática

implícita; (b) gramática explícita ou teórica; e (c) gramática reflexiva. Essas categorias

estão diretamente relacionadas à distinção entre atividades linguísticas, atividades

metalinguísticas, e atividades epilinguísticas (GERALDI, 1991).

A gramática implícita (a), como o nome já aponta, é a competência linguística

internalizada do falante; é o seu saber linguístico, o que o permite reconhecer e usar

elementos (unidades, regras e princípios) de todos os níveis de constituição e

funcionamento da língua - fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático e

textual-discursivo (TRAVAGLIA, 2006). É relevante ressaltar que os elementos dessa

gramática ultrapassam os limites do nível estritamente gramatical, haja vista que o uso

desse nível varia conforme o conhecimento sobre as práticas de uso da língua.

Por conseguinte, a competência linguística do falante (ressalta-se: falante,

escritor / ouvinte, leitor) envolve aspectos de natureza textual e discursiva. Trata-se,


39

portanto, da capacidade de produzir sentidos, desenvolvendo o tópico discursivo (tema /

assunto) conforme os objetivos de determinadas situações de interação comunicativa.

Esse saber, por sua vez, é inconsciente - feito automaticamente pelo sujeito.

Por essas características, essa gramática internalizada está relacionada às

atividades linguísticas, entendidas como “atividades de construção e/ou reconstrução do

texto que o usuário realiza para se comunicar” (TRAVAGLIA, 2006, p.34). Não há, nessas

atividades, explicitação dos mecanismos linguísticos mobilizados no trabalho de

construção textual. A língua é o meio para comunicação (e único fim). Em contexto

escolar, o uso automático da língua, a partir de atividades linguísticas, é atribuído à

gramática de usos (NEVES, 2002; TRAVAGLIA, 2006).

A gramática explícita ou teórica (b) relaciona-se ao conjunto de estudos

linguísticos que busca explicitar a estrutura, a constituição e o funcionamento da língua

(TRAVAGLIA, 2006), isto é, tornam-se consciente os mecanismos linguísticos dominados

pelos falantes, mecanismos esses que subjazem a interação linguística. Trata-se, então,

de um construto teórico produzido a partir de atividades metalinguísticas, isto é, aquelas

em que a língua é usada para analisar a própria língua, construindo um conjunto de

elementos apropriados para falar sobre a linguagem – metalinguagem.

Diferentemente da gramática implícita (a), essa gramática põe a língua como

meio e fim da produção de sentidos, sendo, portanto, ao mesmo tempo, instrumento de

análise e objeto teórico (tema / assunto). Em decorrência, a metalinguagem é condição

para a representação, construção e manipulação de saberes linguísticos (AUROUX, 2002

[1992]). Enquadram-se, nessa categoria, as gramáticas normativas e as gramáticas

descritivas (apresentadas anteriormente, respectivamente I e II).

A gramática reflexiva (c) diferencia-se das anteriores por evidenciar mais o

processo de construção de sentidos sobre língua do que os resultados. Trata-se da

gramática em explicitação (TRAVAGLIA, 2006), resultando, portanto, da observação e da

reflexão sobre o conhecimento intuitivo que o falante possui sobre a língua (gramática
40

implícita), na busca em compreender a constituição e o funcionamento desse saber

linguístico.

Diferentemente da gramática implícita (a), nesse tipo de gramática, as atividades

sobre a língua são problematizadas considerando a adequação ao contexto de produção

de sentidos, processo esse em que os conhecimentos dominados pelo falante passam a

ser explicitados (consciente ou inconscientemente). Desse modo, há uma predominância

de atividades epilinguísticas, consideradas como “aquelas que suspendem o

desenvolvimento do tópico discursivo (ou do tema ou do assunto), para, no curso da

interação comunicativa, tratar dos próprios recursos linguísticos que estão sendo

utilizados, ou aspectos da interação” (TRAVAGLIA, 2006, p. 34).

A categorização das gramáticas nesse segundo eixo (proposto por TRAVAGLIA,

2006) está em concordância quanto às acepções de “gramática”, propostas por Besse

(1997, p. 619 apud SILVA, 2006), que distingue “trois acceptions posées comme

fondamentales, parce que renvoyant à trois types de conaissance grammaticale

differents”8. Há, portanto, na base dessa classificação gramatical, uma diferenciação

entre o conhecimento intuitivo da língua, que o falante possui, e o reconhecimento, feito

pelo linguista e/ou pelo gramático.

Devido à importância dos três tipos de conhecimento gramatical para o

entendimento de gramática nessa perspectiva, faz-se necessário discutirmos,

brevemente, a relação entre as atividades linguísticas (AL), epilinguísticas (AE) e

metalinguísticas (AM), de que esses conhecimentos resultam respectivamente. Embora

tenham peculiaridades que as diferenciem, essas atividades não se excluem, pelo

contrário, mantém uma relação de continuum. Nesse texto, destacaremos três relações

específicas.

A primeira diz respeito à condição de existência das AL na composição dos

processos que constituem as duas outras atividades (AE e AM): os fatos da língua

8
“três acepções postas como fundamentais, porque se referem a três tipos diferentes de
conhecimentos gramaticais”. (tradução nossa)
41

observados e problematizados por essas últimas só são possíveis de ocorrer devido ao

saber linguístico do falante, isto, é de sua gramática internalizada. Dito de outro modo, os

objetos das AE e das AM resultam das AL dos falantes.

A segunda relação explicita o caráter tênue dos limites entre as AL e as AE,

principalmente, ao que se refere ao critério de consciência (cf. GERALDI, 1991). Como

vimos anteriormente, aquelas se caracterizam pela inconsciência, isto é, pela reflexão

automática sobre a língua, sem um trabalho de explicitação sobre ela; estas, por sua vez,

estão relacionadas ao processo de explicitação da reflexão sobre a língua. No entanto, as

AE também podem ser inconscientes (TRAVAGLIA, 2006).

Trazemos para essa reflexão a discussão feita por Auroux (2002 [1992], p.17)

sobre as AE, que aponta esse dois caracteres (consciência e inconsciência) como sendo

complementares e, portanto, não excludentes. Por um lado, o fator inconsciência está

relacionado a não-representação dos saberes epilinguísticos - “não sabemos o que

sabemos”. Desse modo, “esse saber” seria “inconsciente como saber” devido à ausência

de um meio para falar da linguagem, isto é, um sistema de notação ou metalinguagem.

Por outro lado, o fator consciência estaria relacionado à possibilidade desse saber ser

manipulado sob a forma de relações conscientes com seu objeto, como, por exemplo, as

correções, repetições, jogos de linguagem e etc.

A terceira e última relação a ser destacada põe em jogo o caráter de

continuidade entre as AE e as AM. Essas últimas têm como condição de existência um

trabalho de observação e de explicitação da constituição e do funcionamento de uma

língua. Desse modo, as AE estão na base da construção de elementos de representação

metalinguística. Segundo Auroux (2002 [1992], p.17), “o saber linguístico não rompeu

senão esporadicamente com a consciência epilinguística” 9.

9
Segundo Auroux (2002 [1992], p.17-18), “essa ruptura acontece quando gramáticos postulam
elementos não manifestos para explicar fenômenos observáveis ou no domínio do
comparativismo, no século XIX, com as leis fonéticas e as reconstruções”.
42

Destacamos duas relações de continuidade entre essas atividades, tal como

posta por Auroux (2002 [1992], p.17): uma está relacionada ao fato de que, embora a

construção de metalinguagem ponha um limite entre o saber epilinguístico e o

metalinguístico, o primeiro não para com o aparecimento do segundo; a outra relação

aponta “a elaboração de procedimentos codificados (jogos de linguagem etc.) para

manifestar a consciência epilinguística”. Essa elaboração é importante porque é condição

para o saber metalinguístico que não traz automaticamente um conteúdo novo sem que

ele esteja manifestado em procedimentos codificados.

Faz-se relevante, neste texto, refletir sobre o último ponto levantado pelo autor,

uma vez que é problematizada a concepção de metalinguagem. Auroux (2002 [1992])

ressalta que o saber do gramático (o saber metalinguístico) não necessariamente deve

ser representação do saber inconsciente (os saberes linguísticos e epilinguísticos),

apontando o caráter de construto teórico daquele tipo de saber.

Desse modo, nem todo aparecimento da metalinguagem – exigindo, para isso, a

existência do emprego cotidiano dela - constitui necessariamente o tipo de saber

metalinguístico em sentido estrito, o que atribuímos, por exemplo, à tradição gramatical;

sentido esse definido por três critérios externos (AUROUX, 2002 [1992], p.17): i)

transmissão tradicional específica; ii) ligação com as artes da linguagem; e iii) normas de

adequação das asserções controladas pelas discussões, e mesmo protocolos explícitos

(consistência lógica, exemplos canônicos, fatos).

Esse último critério contribui para uma restrição excessiva ao sentido de saber

metalinguístico e é, a partir dele, que retomamos nossa reflexão sobre “gramática”. Trata-

se de um saber construído que, na maioria das vezes, está relacionado a teorias

linguísticas e seus respectivos métodos de análise sobre a língua. Desse modo, as

atividades metalinguísticas sofrem influência de um determinado ponto de vista sobre a

língua e, por conseguinte, tantas são as gramáticas quanto são as perspectivas dessas
43

atividades sobre a língua: gramáticas descritivas, prescritivas, históricas, comparadas,

geral, universal etc.

Os tipos de gramática citados acima e suas atividades metalinguísticas refletem

um contexto sócio-histórico-ideológico, isto é, a maneira de uma sociedade compreender

os fatos em determinados momentos de sua história, o que contribui para a regulação e a

afetação do uso da linguagem nessa sociedade (TRAVAGLIA, 2006). Essas gramáticas

constituem compêndios gramaticais e, dessa forma, apresentam-se como um produto

cultural.

Diante do exposto sobre a categorização das “gramáticas” e sobre os tipos de

atividades linguísticas que nelas se desenvolvem, colocamo-nos a seguinte indagação:

qual o lugar da “gramática pedagógica” nos dois eixos de categorização gramatical

apresentados? A primeira consideração a se fazer diz respeito à sua função escolar,

atrelada à consciência linguística do falante (AUROUX, 2002 [1992]). Assim, a gramática

pedagógica se constitui como um instrumento didático que privilegia atividades

metalinguísticas e, portanto, apresenta-se como um produto cultural.

Para melhor situá-la nos estudos apresentados anteriormente, retomamos, no

quadro a seguir, as categorias gramaticais, que estão relacionadas às atividades

metalinguísticas.

GRAMÁTICAS QUE PRIVILEGIAM ATIVIDADES METALINGUÍTICAS

Eixo 1- conceitos de gramática Eixo 2 – explicitação da estrutura e do


funcionamento da língua

Gramática normativa
Gramática explícita – teórico / metodológica
Gramática descritiva
Quadro 1: correlação entre a noção de gramática e atividades metalinguísticas
(TRAVAGLIA, 2006)
44

A gramática pedagógica pode ser situada nos dois eixos de categorização.

Quanto ao conceito de gramática (eixo 1), ela dialoga, primordialmente, com a orientação

normativista. Embora haja estudos de cunho descritivo sobre a língua nesse tipo de

compêndio, há uma predominância da prescrição da norma-padrão (SILVA, 2006), norma

essa que se tornou oficial - considerada como legítima para representar a língua de uma

nação.

Essa associação do normativismo às práticas escolares tem origens históricas.

Consideremos, principalmente, o momento Pós-Renascimento, em que a gramática se

estende do seu campo da filologia (que é seu lugar de origem) ao domínio das línguas,

inclusive a das línguas maternas. Segundo Auroux (2002 [1992], p. 36), nesse período, “a

gramática torna-se simultaneamente uma técnica pedagógica de aprendizagem das

línguas e um meio de descrevê-las”.

É relevante ressaltar que desde o período helenístico na Grécia antiga, a

gramática assumia um caráter normativo, funcionando como instrumento pedagógico de

perpetuação de uma cultura de prestígio (NEVES, 2002), no entanto, esse caráter

pedagógico sofreu modificações ao longo do tempo (AUROUX, 2002 [1992]). Antes

relacionado a uma etapa de acesso à cultura escrita, uma vez que as crianças gregas ou

latinas que frequentavam a escola já sabiam sua língua, o ensino da gramática passou

paulatinamente a relacionar-se com o ensino de uma “língua de cultura”, diferente da

falada pelas crianças europeias que tinham acesso à escola10: primeiro o latim na Europa

do século IX (uma segunda língua que elas deveriam aprender) e, posteriormente, a

língua-padrão dos Estados Modernos (o que constituía uma obrigação para os cidadãos).

O caráter pedagógico que estamos nos referindo remete à prescrição de usos da

língua padrão, os quais se apresentam sob a forma de um conjunto de regras para falar e

10
Desde a Idade Média, o latim era a língua de toda intelectualidade e erudição, vinculada ao
mundo cristão. Quanto aos vernáculos (várias línguas faladas na Europa Ocidental), só pouco a
pouco vieram a ser escritas (WEEDWOOD, 2002). Assim, as crianças de classes sociais
abastadas, únicas que tinham acesso ao processo educacional, aprendiam uma língua escrita (de
cultura) diferente das que conheciam em contexto familiar, usadas na modalidade oral.
45

escrever corretamente. A gramática passou a ser um meio de “preservar” a “pureza” da

língua materna oficial, ocupando o centro da educação linguística. Por seu funcionamento

na escola, durante muito tempo, o compêndio tradicional de gramática passou a ser

sinônimo de gramática pedagógica.

Quanto à explicitação da estrutura e do funcionamento da língua (eixo 2), a

gramática pedagógica enquadra-se no título de gramática explícita, constituindo-se assim

um construto teórico sobre a língua. Isso implica a consideração de determinada visão

sobre língua e sobre seu ensino. Embora seja, predominantemente, de natureza

normativista, a gramática do tipo pedagógica possui peculiaridades próprias, estando em

processo de diferenciação do compêndio tradicional de referência. Dessa forma, pode

incluir outros tipos de gramática – como a teórica e a descritiva.

Partimos da hipótese de que toda gramática pedagógica enquadra-se sob o

conceito de gramática normativa, mas, em sentido estrito, nem toda gramática normativa

é do tipo pedagógica. Os compêndios da gramática tradicional de referência e da

gramática pedagógica utilizada atualmente em nossas escolas possuem aspectos

estruturais e funcionais diferenciados, em função de uma constituição discursiva diversa -

uma vez que sendo um construto que se situa em contexto escolar sofre regulação de

discursos sobre língua e sobre ensino de língua.

1.1.2 Estruturação da gramática pedagógica

A estruturação das gramáticas pedagógicas sofre influência de dois fatores

concorrentes: (1) a filiação histórica à tradição gramatical; e (2) o funcionamento em

âmbito escolar, o que define seu caráter prático e regula os sentidos sobre língua e

gramática, legitimados por políticas linguísticas e educacionais que orientam o ensino.

Pretendemos, a seguir, apresentar a organização desse tipo de gramática a partir da


46

discussão dos fatores apresentados acima, utilizando, sempre que possível, recortes de

nosso corpus para a exemplificação.

Quanto à filiação à tradição, a gramática pedagógica reproduz uma estrutura

relativamente fixa, seja em relação à apresentação e definição dos conteúdos, seja ao

modo de apresentá-los. Segundo Auroux (2002[1992], p. 66-67) uma obra gramatical

possui pelo menos três elementos: “a) uma categorização das unidades; b) exemplos; c)

regras mais ou menos explícitas para construir enunciado (os exemplos escolhidos

podem tomar seu lugar)”.

Sob esse direcionamento, os conteúdos trabalhados são recorrentes, mantendo

relativa estabilidade11. Seriam eles: “ortografia / fonética (parte opcional), partes do

discurso, morfologia (acidentes da palavra, compostos, derivados), sintaxe

(frequentemente muito reduzida: conveniência e regime), figuras de construção”

(AUROUX, 2002 [1991], p. 67). Esse autor ainda aponta a presença de paradigmas

completos (sob a forma tabular) como rigorosamente equivalente a um conjunto de

regras que podem ter por si só a função de gramática12.

Referindo-se, especificamente, às gramáticas pedagógicas, o estudo de Silva

(2006) elenca os seguintes conteúdos, apresentados como recorrentes: “a ortografia, a

fonética, a morfologia, a sintaxe, a semântica; a comunicação, a pragmática, a estilística,

a história da língua” (p. 61). Podemos inferir, a partir dessa constatação, que há uma

ampliação dos objetos trabalhados nas gramáticas de uso escolar, contemplando

abordagens não estritamente gramaticais sobre a língua, como por exemplo, a da teoria

da comunicação e a da pragmática.

Entendemos que essa ampliação de abordagem pode estar relacionada ao seu

contexto de publicação, uma vez que sofre influência dos objetivos de ensino de língua.

11
Segundo AUROUX (2009 [1992], p. 101), “entre todas as disciplinas científicas, a gramática é
sem dúvida a que possui vocabulário teórico próprio mais estável e mais antigo: trata-se das
categorias gramaticais, e, mais especificamente, das classes de palavras ou partes do discurso”.
12
Segundo Auroux (2006 [1991], p. 66-67), os paradigmas completos não figuravam no corpus
dos gramáticos greco-latinos clássicos. Seu aparecimento está atrelado à pedagogia de línguas e
é nessa função que eles apareceram progressivamente nas gramáticas dos vernáculos europeus.
47

Silva (2006) enfatiza que a gramática pode englobar disciplinas como a Lexicologia, a

Semântica ou a Estilística. A partir da observação de nossos dados, acrescentamos a

esse quadro de possibilidades, teorias com filiação à Linguística, como por exemplo, a

Sociolinguística, a Linguística Textual, as Teorias de Gênero Textuais e Análise de

Discurso.

Em todas as gramáticas pedagógicas, por nós analisadas, os capítulos iniciais

foram destinados, de um modo geral, à discussão sobre linguagem, língua e variação

linguística13. A consideração de uma concepção de língua intrinsecamente variável e em

funcionamento põe na ordem das discussões conteúdos como: variações linguísticas e

suas implicações teóricas (norma, gíria, dialetos, registros, adequação e inadequação

linguística); intencionalidade discursiva (trabalho dos interlocutores com a linguagem); e

texto e discurso (efeitos de sentido; intertexto e interdiscurso).

Vejamos, brevemente, como esses conteúdos são listados nos índices das

gramáticas pedagógicas analisadas:

Recorte I

Gramática Pedagógica I (CEREJA & MAGALHÃES, 2009)

13
É relevante salientar que, segundo Silva (2006), nos capítulos iniciais algumas gramáticas
pedagógicas discutem (elas próprias) a constituição das partes fundamentais da gramática escolar
(tradicional). Essa discussão é recorrente nas gramáticas que constituem o nosso corpus.
48

Esse recorte (I) evidencia conteúdos de natureza textual e discursiva, abordando

metalinguagem específica, que filia essas gramáticas às teorias linguísticas. Por um lado,

“textualidade”, “intertexto”, “coerência” e “coesão” são conceitos provenientes da

Linguística Textual e, por outro, “intertexto” e “interdiscurso” estão relacionado à Análise

de Discurso. Os recortes II e III (a seguir) apresentam conteúdos relacionados ao

processo comunicativo, retomando uma metalinguagem que se afasta da perspectiva

tradicional.

Recorte II Recorte III

Gramática Pedagógica II (ABAURRE &


PONTARA, 2006)

Gramática pedagogia III (FERREIRA, 2011)

Essas gramáticas mobilizam conceitos como “funções da linguagem” (elementos

da comunicação) e “interlocutores”, apontando uma preocupação com o processo

comunicativo, indo, além, portanto, de uma abordagem descritiva da língua. No entanto,

essa abordagem é de natureza periférica, uma vez que os capítulos nucleares das
49

gramáticas escolares são os relacionados a “Fonética e Fonologia”, “Morfologia” e

“Sintaxe”, tal como explicitado por AUROUX (2009 [1992]).

Essa característica das gramáticas pedagógicas é descrita pelo estudo de SILVA

(2006), que aponta o capítulo de morfologia (partes do discurso) como o mais extenso,

ocupando, em média, mais de um terço de cada volume analisado. Esses compêndios

são comparados a verdadeiros tratados de morfossintaxe, cujos objetos privilegiados

para a descrição são os “sons”, as “palavras” e as “frases” (estes últimos

prioritariamente).

No que diz respeito à apresentação dos conteúdos gramaticais, Auroux (2009

[1992]) discute o modo como, tradicionalmente, as gramáticas constroem os exemplos, a

categorização das unidades e as regras de uso da língua (normas). Segundo esse autor,

os exemplos possuem espantosa estabilidade no tempo: reencontrados, muitas vezes,

pelo procedimento de tradução, de língua a língua. A constituição de um corpus estaria

na base do processo de gramatização, uma vez que se apresenta como o núcleo da

língua normatizada.

Além disso, esses exemplos, sendo construtos teóricos, haja vista que, mesmo

quando não são fabricados, eles provêm de citações ou de excertos de um corpus,

testemunham sempre determinada realidade linguística (AUROUX, 2009 [1992]). Desse

modo, optar por constituir um corpus com base na literatura lusitana ou na literatura

brasileira ou ainda com base em dados orais dos principais centros urbanos do Brasil

evidencia visões diferentes do que seja determinada língua normatizada.

Em outras palavras, os exemplos utilizados nas gramáticas constroem

determinada língua como “homogênea” e passível de ser circunscrita, correlacionada ao

imaginário de “língua” politicamente autorizada a ser descrita. No dizer do autor, “eles [os

exemplos] podem não somente disfarçar a ausência de certas regras, como quando

necessário, podem ser invocados contra as regras e a descrição morfológica, ou ainda


50

servir posteriormente para justificar outras descrições ou regras” (AUROUX, 2009 [1992],

p. 67).

O caráter de construto teórico é reforçado pela categorização das unidades

linguísticas, o que supõe dois procedimentos: uso de termos teóricos e uma

fragmentação da cadeia da fala. Segundo esse autor (op. cit., 2009 [1992]), não podemos

desvincular esses processos, uma vez que “recortar” é o mesmo que “classificar”. Além

disso, a fragmentação, em si, configura-se como uma representação teórica da língua,

sendo, portanto, suscetível de ser considerada verdadeira ou falsa.

O estudo da gramática está diretamente relacionado à análise da cadeia falada

de uma língua, em que o principal objetivo desse procedimento é chegar ao nível da

palavra. Duas práticas recorrentes, construídas para essa finalidade, constituíram-se

paralelamente, as quais são logicamente distintas: (a) uma decomposição linear; e (b)

uma repartição das partes em função de propriedades imbricadas (AUROUX, 2009

[1992]).

Assim, no primeiro caso, parte-se a cadeia em frases, a frase em sujeito e

predicado, o sujeito em palavras etc. A conexão das partes de mesmo nível obtidas pela

decomposição resulta em uma expressão linguística. No segundo caso, por sua vez, as

proposições são divididas em proposições principais e incidentes, as palavras em nomes,

verbos etc. Sob essa última perspectiva, haveria classificação14 de unidades de níveis

diferentes. Em oposição ao primeiro caso, a reunião das partes de mesmo nível não daria

uma expressão linguística, mas a extensão da classe superior.

Ainda segundo o autor (op. cit., 2009 [1992]), os gramáticos, embora tenham

começado pelo primeiro procedimento, mostraram rapidamente interesse pela

classificação das formas nas diferentes categorias, possibilitando, a partir das

propriedades categoriais, enunciar regras válidas para um conjunto não finito de formas.

É relevante salientar que a preocupação em classificar “formas” retardou, no processo de

14
Formalmente, uma classificação supõe oposições dicotômicas.
51

construção das gramáticas, o interesse em explicar as categorias que correspondem a

“funções”, as quais apareceram tardiamente nas gramáticas, como por exemplo: a noção

de “sujeito” no início do século XII e a de “complemento” em meados do século XVIII.

Como podemos observar, a cadeia falada é observada ao nível da frase,

desconsiderando os funcionamentos linguísticos de nível textual-discursivo. O foco

estaria, portanto, na “forma”, observada separadamente da produção de sentidos e do

funcionamento em textos. Por conseguinte, o uso dos termos teóricos estaria, na maioria

das vezes, relacionado às partes do discurso (classes de palavras), suas definições e

propriedades. Essa informação é relevante para o nosso trabalho uma vez que a

gramática pedagógica, apresentando metalinguagem tradicional, retoma o olhar sobre a

língua privilegiando a “forma”, separada dicotomicamente do “sentido”.

No entanto, não podemos desconsiderar a presença de termos mais globais,

como, por exemplo, palavra e enunciado, e de unidades maiores que a frase, tais como

período e discurso (entendido como unidade complexa constituída por períodos). No que

concerne aos termos mais globais, ao contrário das classes de palavras, eles são

raramente discutidos e, por conseguinte, há uma limitação dos fenômenos linguísticos

acessíveis à observação, coincidindo com uma abordagem essencialmente morfológica.

No que concerne às unidades maiores que a frase, esses termos são

mobilizados quando se fala em aspectos empíricos, isto é, como unidade de análise.

Conforme observou Orlandi (2002) em estudo à gramática expositiva de Eduardo Carlos

Pereira – gramático de presença marcante no ensino da língua nacional, o texto não

aparece senão como pressuposto, unidade feita, pronta, ou resultado da expressão. Não

há uma consideração do texto como “objeto de explicação, ou unidade de análise, nem

mesmo prática a ser trabalhada, ensinada” (p. 177). Assim, texto é pretexto para as

atividades sobre língua e estilo15.

15
Não podemos desconsiderar, nessa discussão, o fato de que todo ensino sistematizado
apresenta vieses de artificialidade. Desse modo, o trabalho com o texto em sala de aula, mesmo
considerando as situações de produção para a produção de sentidos, tem como principal objetivo
52

No entanto, o estatuto da noção de “texto” vem se modificando nos estudos de

natureza gramatical, ao menos no que diz respeito aos discursos sobre o ensino de

língua materna. A título de exemplificação, observemos um trecho dos Parâmetros

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio16 (PCNEM), de língua portuguesa:

A interação é o que faz com que a linguagem seja comunicativa. Esse princípio
anula qualquer pressuposto que tenta referendar o estudo de uma língua
isolada do ato interlocutivo. Semelhante distorção é responsável pelas
dificuldades dos alunos em compreender estaticamente a gramática da língua
que falam no cotidiano.
Em geral, as ações escolares são arquitetadas sob a forma de textos que não
“comunicam” ou são interpretados de forma diferente entre educadores e
educandos. Há estereótipos educacionais complexos e difíceis de serem
rompidos, como no caso do ensino das classificações apriorísticas de termos
gramaticais.
Nada contra ensiná-las, O problema está em como ensiná-las, em razão do ato
comunicativo. A gramática extrapola em muito o conjunto de frases justapostas
deslocadas do texto. O texto é único como enunciado, mas múltiplo enquanto
possibilidade aberta de atribuição de significados, devendo, portanto, ser objeto
também único de análise/síntese. (BRASIL, 2000, p. 18-19)

Como podemos perceber, a noção de “texto” passa a ser o centro do ensino de

gramática, inclusive sua presença tem o poder de legitimá-lo, trazendo-o para longe dos

“estereótipos educacionais complexos e difíceis de serem rompidos”. A necessidade de

legitimação faz com que as gramáticas pedagógicas anunciem o trabalho com e a partir

do texto, noção materializada em dois dos três títulos dos compêndios analisados: GP1 –

“Gramática Reflexiva: texto, semântica e interação”; GP2 – “Gramática: texto: análise e

construção de sentido” 17.

Além dos elementos discutidos até então (exemplos, categorização das

unidades), as gramáticas apresentam regras mais ou menos explícitas para construir

descrever e explicá-lo, colocando-o em lugar de objeto de ensino-aprendizagem. Essa posição


assumida é própria do contexto escolar, consequentemente, a transposição didática de um gênero
textual faz com que ele não seja apenas meio de comunicação. Nas palavras de SCHNEUWLY
(2012), o ensino de gêneros textuais “implica uma ‘ficcionalização’ da situação de comunicação”.
16
Disponível no site http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf
17
Por questões metodológicas, caracterizamos as três gramáticas pedagógicas analisadas nessa
dissertação como: GP1 – “Gramática Reflexiva: texto, semântica e interação” (CEREJA &
COCHAR, 2009); GP2 – “Gramática: texto: análise e construção de sentido” (ABAURRE &
PONTARA); e GP3 – “Aprender e praticar gramática” (FERREIRA, 2011). (ver quadro 2, capítulo
III)
53

enunciados. Essas regras podem ser entendidas como prescrições (diga..., não diga...;

diz-se...), as quais são possuem nenhum valor de verdade, ou como descrições (na

língua L..., é enunciado correto; eles dizem...) (AUROUX, 2009 [1992]).

Como ressaltamos na seção anterior, as gramáticas de natureza prescritiva (em

que as gramáticas pedagógicas estão inseridas) também possuem natureza descritiva,

havendo, assim, uma relação de continuidade entre a constituição dos tipos de regras.

Sob esse pressuposto, Auroux (op. cit., 2009 [1992], p. 68) afirma que “toda gramática

equivale pois a um corpus (mais ou menos explícito) de afirmações suscetíveis de serem

verdadeiras ou falsas. É por aí que ela é uma descrição linguística”.

Com base no que foi dito até então, entendemos que a visão da gramática

tradicional sobre a língua privilegia a forma, considerada como abstrata, isto é, não são

considerados (nem desejados – por opção teórica), nesse tipo de estudo da língua, os

processos discursivos responsáveis pela produção de sentido. Trata-se de um estudo da

organização da língua, em detrimento da ordem (ORLANDI, 2006)18. A língua, por

consequência, é “reduzida” ao conjunto de regras, apagando todo o tipo de

heterogeneidade.

Além dos elementos recorrentes à tradição gramatical, diga-se: exemplos,

categorização das unidades e regras para a construção de enunciados, ou seja, a

exposição teórica, as gramáticas pedagógicas apresentam exercícios, Boxes

pedagógicos (resumindo a unidade ou trazendo informações polêmicas ou

complementares) e seções destinadas à resolução de questões dos exames de admissão

ao ensino superior (vestibulares e Exame Nacional do Ensino Médio) e dos concursos

18
Como discutido no Capítulo 1 desta dissertação, há uma diferença entre ordem e organização
quando se considera os estudos discursivos. Segundo Orlandi (1996, p. 45), ordem se refere à
materialidade simbólica, isto é, os processos discursivos materializados na língua, os quais
produzem sentidos. Assim, considerar a ordem ultrapassa a observação do “ordenamento
imposto” ou a “organização enquanto tal”: para além da classificação, importa-se com o
funcionamento da linguagem.
54

públicos. A presença desses elementos é um fator que determina a natureza prática

desses compêndios.

Em todas as gramáticas analisadas foi possível perceber a presença de seções

que se propõem a trazer atividades - ora como exercícios de fixação de conceitos e da

terminologia, ora com base em textos, considerando a língua em uso. Essa última

proposta é evidenciada nas titulações das seções: “A categoria gramatical na construção

do texto” (GP1 – CEREJA & MAGALHÃES, 2009); “Uso das n (classe gramatical) /

pratique” (GP2 – ABAURRE & PONTARA, 2006); e “Da teoria à prática” (GP3 –

FERREIRA, 2009).

Além disso, é relevante salientar que as gramáticas pedagógicas analisadas

apresentam um manual do professor19 acoplado ao compêndio gramatical (estudo teórico

e exercícios). Não estamos entendendo-o como adendo, mas como parte constitutiva

das gramáticas que funcionam em contexto escolar e que têm como principais

interlocutores os estudantes e os professores nas disciplinas de Língua Portuguesa. Esse

material pedagógico influencia diretamente no modo como a gramática é usada em sala

de aula e, portanto, é um mecanismo de controle do discurso. Desse modo, acreditamos

ser imprescindível sua análise como constituinte do objeto simbólico: gramática

pedagógica.

Em suma, compreendemos que a gramática pedagógica apresenta três tipos de

materialidade, as quais funcionam de modo inter-relacionado: a exposição teórica, os

exercícios e o manual do professor. Os dois primeiros foram produzidos tendo em vista o

aluno como principal interlocutor; o último, por sua vez, tendo em vista o professor.

Percebemos, a partir da discussão sobre a estruturação das gramáticas

pedagógicas, a presença concomitante da “tradição” e da “inovação” nos estudos

gramaticais: em relação àquela, a partir do tipo de fragmentação e de categorização dos

objetos gramaticais, bem como da predominância dos capítulos sobre fonética/fonologia,

19
Além do manual do professor, há indicações pedagógicas ao longo do livro, direcionados ao
docente. Essas indicações só ocorrem em gramáticas pedagógicas produzidas para o professor.
55

morfologia e sintaxe em sua constituição; em relação a esta, a partir da discussão sobre

variação da língua (ressaltando a abordagem de conteúdos com filiação na Linguística) e

da pretensa mudança do estatuto do texto, que aparece como desejado a ser objeto de

análise20.

Essa constatação dialoga com os resultados do estudo de Silva (2006) que

afirma haver, no discurso gramatical escolar, além da formalização de uma norma

explícita, uma nova tendência emergindo que atribui destaque às competências textuais e

às capacidades de comunicação em contexto, relativizando, assim, a hipervalorizarão da

norma ou mesmo colocando-se como de abordagem não normativa. Nas palavras do

autor,

há desde sempre, no discurso gramatical escolar e especificamente nestas


discussões, dois dilemas e forças antagônicas que se opõe: a tradição
(gramatical) e a inovação (linguística); o programa oficial em vigor (que
representa os discursos reguladores) e as fontes científicas (representantes
dos discursos teóricos) (SILVA, 2006, p. 355).

Em nosso trabalho, considerando o processo de modificação do estudo

gramatical em contexto escolar, procuramos compreender o que significam essas

alterações, bem como, se haveria possibilidades dessas gramáticas proporem uma

ruptura maior com a representação tradicional de gramática, tal como apontada em

Auroux (2009 [1992]).

1.2 Gramática pedagógica a partir de um olhar discursivo: lugar entre a “produção”


e a “divulgação” de sentidos sobre língua.

Abordar a “gramática pedagógica” sob um olhar discursivo significa considerá-la

em sua historicidade. Partindo do pressuposto de que os sentidos não estão na língua,

esperando por um “receptor” que os decodifique, mas resultam da relação entre língua e

20
Falamos em “pretensa mudança do estatuto do texto” por entender que o sujeito não tem o
controle sobre seu dizer. Para a Análise de Discurso, a relação do sujeito com o simbólico é da
ordem do não-sabido. Assim, nas gramáticas analisadas, há uma vontade em erigir o texto a
objeto de análise.
56

história (PÊCHEUX, 1987; ORLANDI, 2001), entendemos que a titulação “gramática

pedagógica” pode significar diferentemente, segundo seu funcionamento em determinado

contexto de enunciação. Por conseguinte, muitas podem ser suas configurações

discursivas mediante as funções que assumem com relação às políticas linguísticas.

Sobre esse último ponto, é importante ressaltar que a gramática e o dicionário

são instrumentos linguísticos (AUROUX, 2009 [1992]) e, como tal, permitem a descrição

e normatização de determinada realidade da língua. Esse processo está diretamente

relacionado à constituição de uma língua nacional, e, portanto, aparece veiculado a

políticas linguísticas. Segundo Orlandi (2002), não há políticas linguísticas sem

gramática, e, por conseguinte, a forma da gramática define o jogo das políticas

linguísticas, isto é, a administração da relação tensa língua versus línguas.

No Brasil, a constituição da língua nacional e sua posterior consolidação

ocorrem a partir de um jogo complexo entre o papel legislador do Estado e o papel

regulador da instrução e da tradição gramatical (GUIMARÃES & ORLANDI, 1988). Desse

modo, a presença da gramática pedagógica na instituição escolar apresenta-se como um

dos modos de acesso a essa língua normatizada, determinando, assim, a língua que se

fala (na relação entre unicidade x variedade), com que estatuto, quando e onde. Além

dos sentidos regularizados que constituem o imaginário de unicidade linguística, decorre

desse jogo, o próprio lugar discursivo da gramática pedagógica.

Interessamo-nos, especificamente, nesta subseção, pela mudança de

posicionamento dessas gramáticas no processo de construção de conhecimentos sobre

língua no Brasil, passando inicialmente de lugar discursivo de “produção” de

conhecimentos metalinguísticos para um lugar de “divulgação”. É mister observarmos

que, decorrente desse deslocamento, modificam-se as relações entre os saberes

produzidos e os sujeitos de ensino, fato que influencia no funcionamento das práticas de

ensino de língua em sala de aula.


57

Reportamo-nos, inicialmente, ao momento de construção das primeiras

gramáticas brasileiras de português, no século XIX, focalizando as de caráter

pedagógico. Segundo Guimarães & Orlandi (1988), esse momento está relacionado à

constituição da língua brasileira: a relação entre unicidade e diversidade não é mais

construída tendo como referência o português lusitano, em que o português falado no

Brasil seria uma de suas variações; mas relaciona-se à diversidade concreta produzida

em nosso território.

Nessas condições, a gramática “é instrumento de legitimação, dá foros à

universalidade, significa o direito à unidade (imaginária) constitutiva de toda identidade”

(ORLANDI, 2002, p.128). É sob esse pressuposto que podemos compreender a relação

entre a construção de conhecimentos metalinguísticos no Brasil e a constituição de sua

língua oficial, símbolo de identidade nacional: a disjunção da língua passou a ser

fundamentada por um pensamento gramatical próprio, que estabelece uma ruptura com

os estudos gramaticais de filiação portuguesa.

Orlandi (2002) apresenta Júlio Ribeiro, autor de Gramática Portuguesa (1881),

como lugar de referência absoluto na produção de gramáticas no Brasil: “ao recusar a

tradição estabelecida por J. S. Barbosa e ao definir a gramática como ‘exposição

metódica dos fatos da linguagem’ estabelece a ruptura que será mencionada por todos

os gramáticos quando querem fundar uma filiação de gramática brasileira” (p. 131).

Um aspecto a ser ressaltado é a filiação dessas gramáticas produzidas à ciência

da linguagem: por um lado, as que foram produzidas no Rio de Janeiro possuem como

filiação predominante a gramática histórica; e, por outro lado, as produzidas em São

Paulo, a gramática filosófica. A gramática de Júlio Ribeiro, a título de exemplificação,

apesar de também mencionar a autoridade do comparatismo, filia-se ao tratamento da

gramática geral, considerando a linguagem como expressão do pensamento – tendência

essa predominante em São Paulo (ORLANDI, 2002).


58

Apesar de situarem-se quanto a autores estrangeiros, como, por exemplo, W. D.

Whitney (precursor da linguística estrutural do século XX), os gramáticos não apenas os

repetem, mas os ressignificam. Esse posicionamento coloca os gramáticos em posição

de autoria na construção de conhecimentos sobre a língua (e, portanto, a gramática

apresenta-se como lugar discursivo de “produção”). Nas palavras de Orlandi,

ser autor de gramática no século XIX no Brasil é assumir a posição de um


saber linguístico que não reflete meramente o saber gramatical português.
Nesse momento, o da irrupção da República, não basta que o brasileiro saiba
sua língua, é preciso que, do ponto de vista institucional, ele saiba que sabe.
(...) A gramática, dessa perspectiva, é o lugar que se institui a visibilidade
desse saber legítimo para a sociedade. (...) Ser autor de gramática é ter um
lugar de responsabilidade como intelectual e ter uma posição de autoridade em
relação à singularidade do português do Brasil. (ORLANDI, 2002, p. 157),

É relevante salientar que a fundação de escolas e a organização de cursos, no

Império e no final desse período, são ações vinculadas à constituição do pensamento

linguístico brasileiro, com fins a institucionalizar a relação do brasileiro com a sua língua

(um bem social comum). Desse modo, a presença da gramática nesse contexto

materializa a junção entre as políticas linguísticas e as orientações do ensino de língua.

Um fato importante é o de que as primeiras gramáticas foram produzidas por

professores: Júlio Ribeiro (Colégio Culto à Ciência – Campinas, SP), João Ribeiro

(Colégio Pedro II – Rio de Janeiro), Maximino Maciel (Colégio Militar do Rio de Janeiro),

Pacheco Silva e Lameira de Andrade (para uso dos ginásios, liceus e escolas normais -

RJ) e Eduardo Carlos Pereira (Ginásio Oficial, SP).

Esse fato permite-nos afirmar que o gramático e o professor de português, nesse

momento, estão em posição se sujeitos autorizados a produzir conhecimentos sobre a

língua. Em determinados contextos, a antologia de textos e a gramática colocavam-se os

principais instrumentos de ensino de português em sala de aula, cabendo ao professor

elaborar exercícios didáticos (MEDEIROS, 2008).


59

Dentre os autores mencionados, Eduardo Carlos Pereira merece destaque pelos

objetivos, mais diretamente, pedagógicos em sua gramática, o que está subjacente a sua

adoção como referência no ensino de língua nas escolas. A Gramática Expositiva (1907),

de sua autoria, apresentou 102 edições até a instituição do decreto que estabelece a

Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB). Destacamos duas características dessa

gramática: o tratamento conciliador entre filiações diferentes sobre língua e o tratamento

normativo da língua.

A primeira característica se refere ao conflito entre a gramática filosófica (escola

tradicional) e a gramática histórica (nova corrente). O autor se propõe a dar lugar à

relação entre as duas disciplinas sem confundi-las ou sem pôr uma ou outra em

exclusividade. Apesar disso, segundo Orlandi (2002), ele situa sua gramática na tradição

filosófica e dá lugar complementar à gramática histórica. Essa proposta é justificada pelo

autor em função da perspectiva pedagógica, tal como podemos observar no trecho a

seguir:

Isto tudo [vinculação das duas correntes de estudo da gramática] porque “para
satisfazer as exigências racionais do ensino expositivo basta seguir-se a
opinião criteriosa de Brachet, isto é, basta ministrar a abordagem histórica ao
alcance do aluno, suficiente para a clara inteligência dos fenômenos atuais...”.
(ORLANDI, 2002, p. 144-145)

Desse modo, podemos afirmar que o caráter pedagógico das gramáticas que

funcionam na escola modela a gramática expositiva (de referência) a seus fins, e, desse

modo, constitui-se discursivamente de modo peculiar, autorizando a heterogeneidade

discursiva. A outra característica também estruturante é a abordagem prescritiva da

língua, que se estabelece como relação com a língua na escola. Segundo Orlandi (2002,

p. 146), essa perspectiva está relacionada ao entendimento de gramática como “ciência

das palavras e suas relações, ou a arte de usar as palavras com acerto na expressão do

pensamento”. É a filiação à tradição filosófica da gramática que permite a construção de

dizeres sobre correção, arte e pensamento.


60

No início do século XX, o Estado brasileiro já se definiu com suas políticas em

relação a Portugal, bem como definiram-se as nossas diferenças linguísticas: em 1897 foi

fundada a Academia Brasileira de Letras e na década de 1930 o ensino superior foi

organizado, pela criação de Faculdades. Além disso, são firmados acordos ortográficos,

símbolos de independência política no domínio da língua nacional.

A produção de gramáticas, em grandes quantidades, não se diferencia quanto a

filiações teóricas, mas quanto a aspectos descritivos e analíticos, decorrendo em uma

profusão de nomenclaturas. Segundo Orlandi (2002), essa profusão é, em certa medida,

índice da perda de importância sócio-histórica do trabalho do gramático, tal como se

apresentava no século passado. Sob a proposta de homogeneizar a terminologia para

fins de ensino de língua é instituído o decreto da Nomenclatura Gramatical Brasileira

(NGB), em 1957/1958.

Esse decreto cristalizou a gramática, reduzindo-a a uma nomenclatura fixada o

que fez com que o gramático perdesse seu estatuto de autor, ou pelo menos, uma forma

de autoria. Nas palavras da autora,

as diferentes e variadas posições dos gramáticos do século XIX que tomavam


cargo da responsabilidade de um saber sobre a língua – com as diferentes
filiações teóricas, trabalhando as diferenças entre gramática geral, gramática
histórica, gramática analítica, gramática descritiva etc. – são desautorizadas
pelo Estado brasileiro. No século XX, há transferência desse lugar de invenção
para os linguistas: onde o lugar de autor de gramática é esvaziado de sua
importância pela NGB se situa o linguista como produtor de conhecimento
científico sobre a língua. Daí em diante, o saber do gramático deve ser
caucionado pelo linguista. (ORLANDI, 2002, p. 193)

Desse modo, a gramática pedagógica, com o decreto da NGB, modifica seu

lugar discursivo, passando de lugar de “produção” de conhecimentos sobre língua para

lugar de “divulgação”. Sob esse estatuto, prescinde da legitimação da ciência da

linguagem para se constituir como espaço de discussão de saberes metalinguísticos de

natureza gramatical. Assim, nesse processo, o gramático deixa de ser autoridade para

produzir discursos sobre língua e coloca-se no lugar discursivo de divulgador. Do mesmo


61

modo que a uniformização da nomenclatura gramatical no Brasil determinou a mudança

do lugar social da gramática pedagógica, influenciou na constituição imaginária do

professor de português, que, antes produtor de conhecimentos, agora é reprodutor.

Há a construção de uma relação dicotômica entre escola e universidade, em que

a primeira passa a ser lugar de divulgação de saberes sobre a língua e a universidade,

lugar de produção de conhecimentos. No que concerne ao plano de produção do saber e

de sua função social considerado na relação com a questão da NGB e com o ensino

superior, precisamos considerar a arregimentação de sentidos na relação entre três

disciplinas: a filologia, a linguística e a gramática tradicional (ORLANDI, 2002).

Historicamente, é nos estudos gramaticais da língua portuguesa que se constitui o ensino

de língua, os quais estão voltados para a normatização do uso da língua, visando sua

uniformidade.

Nesse processo, a linguística não se coloca explicitamente como interessada ao

ensino de línguas, colocando-se mais como parceira dos que praticam o ensino da língua

na escola do que como protagonista. Há, nesses estudos, a mesma sustentação de

unidade da língua, agora não mais pela terminologia, mas por uma metalinguagem com

foros de cientificidade. Sob essa perspectiva, os estudos linguísticos ressaltam o aspecto

do conhecimento (ciência da linguagem) e a gramática, o do saber que subjaz o uso

social da língua padrão (arte de dizer). Como afirma Orlandi (2002), a relação entre

conhecimento e saber põe-se permanentemente na unicidade do imaginário da língua (e

do Estado).

A relação de contraposição dessas disciplinas coloca, na universidade, de um

lado, a filologia românica na relação com os estudos linguísticos gerais; e, de outro, a

filologia portuguesa com os estudos da língua portuguesa e de sua gramática. É

relevante salientar que na história do ensino universitário brasileiro, em São Paulo, a

Linguística teve origem relacionada à Filologia Românica, enquanto a Filologia

Portuguesa acolhia os estudos da gramática portuguesa. Essa relação coloca-se como


62

contraditória, pois, ao mesmo tempo em que permitiu o desenvolvimento da gramática

descritiva, ofereceu sustentação teórica para a inscrição da gramática portuguesa no

quadro das disciplinas universitárias.

Desse modo, é sob essa contradição que se coloca o sistema escolar: de um

lado a legitimação pela Linguística, que cauciona a gramática no sistema escolar em

termos de metalinguagem e de cientificidade; de outro, a presença sempre grande da

gramática tradicional via terminologia da NGB. Com o desenvolvimento dos estudos

sociolinguísticos e o fortalecimento da Linguística no Brasil, integrado obrigatoriamente

aos cursos de Letras desde 1967, o campo de estudos científicos sobre a linguagem

passa a ser evocada a se engajar socialmente e, por isso, passa a preocupar-se com o

ensino de língua.

As discussões sobre essa preocupação, principalmente a partir da década de

1970, constituem o que Pietri (2003) denominou de discurso de mudança na concepção

de língua e de ensino. Decorre desse discurso, construído em relação às políticas

educacionais, a construção dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), documentos

parametrizadores que se colocam como mecanismos de controle do discurso sobre

língua na escola e, por conseguinte, dos materiais didáticos que nela circulam, incluindo

gramáticas pedagógicas.

Compreendemos que essa política pedagógica influencia a constituição de

instrumentos linguístico-pedagógicos, engajados na construção de abordagens que aos

poucos procuram se distanciar da tradição: considerando o texto como o ponto de partida

para os estudos gramaticais, procura-se enfatizar as diversas realizações da língua, em

seus aspectos múltiplos. Aparece, sob esse objetivo, o manual do professor como parte

constitutiva do compêndio, como lugar de divulgação das teorias linguísticas que

orientam o ensino de gramática contextualizada. Nessas gramáticas pedagógicas em

questão, os autores, também produtores de livros didáticos, filiam-se à linguística, à


63

literatura, às letras e à metodologia de ensino, isto é, a formação desses autores afasta-

se da Filologia.

Faz-se relevante pensar na significação da presença dos manuais dos

professores (MP) nas gramáticas pedagógicas. Durante muito tempo no Brasil, os

principais instrumentos didáticos para o ensino de língua materna eram as gramáticas e

as antologias (SOARES, 2006). Essas gramáticas, embora de funcionamento escolar,

possuíam apenas exposição de uma gramática normativa, sem apresentar comentários

pedagógicos, nem propostas de exercícios a serem desenvolvidas pelos alunos. As

antologias, por sua vez, estavam restritas à apresentação de trecho de autores

consagrados, sem incluir nada mais além deles. De certa forma, essa organização do

material didático permitia mais autonomia ao professor no trabalho em sala de aula.

Os livros didáticos, tal como conhecemos, só começaram a ser produzidos a

partir dos anos 1950 do século XX, passando a ocupar lugar privilegiado em sala de aula.

Esse recurso didático reunia, em um mesmo compêndio, conhecimentos gramaticais,

textos para leitura e, sobretudo, exercícios diversos – de vocabulário, de interpretação, de

redação e de gramática (SOARES, 2006). Além disso, esses materiais didáticos

apresentavam, cada vez mais, orientações metodológicas para o ensino de língua em

sala de aula (BUZEN & ROJO, 2005).

A gramática, no entanto, continuou em funcionamento nas aulas de língua,

colocando-se como material de referência da norma padrão. Atrelada ao processo

político de constituição da língua nacional, ela é posta em lugar privilegiado na escola

(ORLANDI, 2002). Sob esse contexto, o compêndio gramatical “falava por si próprio” –

seja pelo seu objeto legitimado, a norma padrão, seja pelo método de abordagem desse

objeto – a correção gramatical. As normas prescritas assim como leis não precisavam ser

discutidas, mas obedecidas.

A presença do MP nessas gramáticas coloca-se na contramão da “obviedade”

dos sentidos sobre língua e sobre ensino, veiculados pela tradição, abrindo espaço para
64

a discussão da abordagem teórico-metodológica proposta pelas GP, relativizando, assim,

a legitimidade dos dizeres “dados” e “inquestionáveis” da gramática tradicional; e, em

decorrência, relativizando a legitimidade das ações pedagógicas dos professores que têm

por base essa gramática, pondo, portanto, objeto e sujeito de ensino em discussão.

É relevante salientar que, paralelamente, a esse tipo de gramática descrita ainda

continuam sendo publicadas gramáticas escolares de orientação normativa, filiadas a

Filologia, como é o caso da Gramática Escolar da Língua Portuguesa (2010), do autor

Evanildo Bechara, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de

Filologia. A publicação dessa gramática coloca-se como relevante para o nosso estudo,

uma vez que, mesmo prescritivista, rompe com algumas nomenclaturas outorgadas pela

NGB. Outras gramáticas, no entanto, sob esse mesmo rótulo surgem filiadas

exclusivamente à linguística, colocando-se em oposição à tradição.

As gramáticas pedagógicas filiadas exclusivamente à linguística, na maioria das

vezes, propõem-se como material de referência, mas não como instrumento de ensino-

aprendizagem direcionado para o uso do aluno, isto é, como material didático. Assim,

essas gramáticas possuem como público-alvo, especialmente, os professores. Optamos,

em nosso trabalho, por analisar as gramáticas pedagógicas que funcionam como

instrumento de ensino-aprendizagem por entender que além da tradição gramatical elas

sofrem influência dos PCN, isto é, das políticas educacionais e, por isso, colocam-se

como lugar de contradição.

Esses documentos parametrizadores estão vinculados a uma perspectiva

enunciativa de língua, opondo-se, portanto, ao formalismo da linguística estrutural e ao

da gramática tradicional. Assim, eles, regulando a produção de material didático,

influenciam a construção de gramáticas pedagógicas, as quais aparecem sob o rótulo de

“ensino renovador”, construindo uma metodologia de ensino que pretende partir do texto.

Propõe-se o estudo da gramática não mais como centro do processo de ensino, mas

como meio para o ensino da língua para o desenvolvimento da competência discursiva.


65

CAPÍTULO II - CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA: DEFINIÇÃO DO LUGAR


DE INTERPRETAÇÃO

Todo conhecimento é uma realidade histórica, sendo


que seu modo de existência real não é a atemporalidade
ideal da ordem lógica do desfraldamento do verdadeiro,
mas a temporalidade ramificada da constituição
cotidiana do saber. (AUROUX, 2009 [1992], p. 12)

Explicitamos, neste Capítulo, os procedimentos metodológicos utilizados para

construir e analisar o corpus de nossa pesquisa: Gramáticas Pedagógicas (volume único)

para o ensino médio, destinadas ao professor. Apresentamos a seguir: (1) o objeto e o

tipo de pesquisa; (2) o processo de constituição do corpus; e, por fim, (3) os

mo(vi)mentos de análise dos dados.

2.1 Definição do objeto e do tipo de pesquisa

A “gramática” se configura atualmente como um dos pontos mais polêmicos

quando o assunto é o ensino de língua. A preocupação em torno dessa temática

transparece em conversas de professores do Ensino Básico, que, muitas vezes, colocam-

se como atordoados sobre a quantidade de informações veiculadas pela mídia e por

trabalhos acadêmicos21. A profusão de opiniões, na maioria das vezes antagônicas,

produz um efeito de instabilidade sobre esse tipo de ensino, o que influencia no

funcionamento das práticas discursivas a partir e sobre língua portuguesa em sala de

aula.

Considerando o contexto atual de estudos sobre o ensino de língua materna,

constituídos pelo embate ideológico entre as disciplinas da Gramática Tradicional e da

Linguística (PIETRI, 2003), debruçamo-nos sobre gramáticas pedagógicas (doravante

GP) utilizadas para o ensino de português no Brasil. A seleção desse material para a

21
Um exemplo significativo desse conflito é a discussão em torno da publicação do livro “Por uma
vida melhor” de Heloisa Ramos (2011), mencionado na Introdução desta dissertação.
66

análise se justifica pela sua natureza cindida, funcionando ao mesmo tempo como

compêndio gramatical (referência de saberes sobre a língua) e instrumento de ensino-

aprendizagem: por se constituir como um compêndio gramatical veicula-se

historicamente à tradição gramatical e por ser apresentado como instrumento de ensino-

aprendizagem22 sofre influência da produção de conhecimentos científicos sobre língua

(ou seja, da Linguística) e de documentos parametrizadores do ensino.

Devido a esse lugar de entremeio na produção e na divulgação de

conhecimentos sobre língua (determinado pelo seu funcionamento em instituição

escolar), entendemos que esse tipo de gramática sinaliza o confronto discursivo entre

essas disciplinas na proposta didático-pedagógica de abordagem do conteúdo

gramatical. Partimos do pressuposto de que a constituição do saber metalinguístico está

diretamente relacionada à representação de língua, constitutiva de nossa nacionalidade,

e ao modo como produzimos conhecimentos sobre nossa realidade (ORLANDI, 2002).

Sob esse prisma, o compêndio gramatical, que veicula saberes metalinguísticos,

coloca-se como um lugar privilegiado para a investigação das relações de sentido entre o

discurso da Gramática Tradicional e o da Linguística e, por conseguinte, para a

identificação das representações de “língua”, de “gramática” e, consequentemente, de

“ensino”, resultantes desse imbricamento, constitutivo dos objetos simbólicos estudados.

Entendemos que essas relações de sentido são determinantes para a

construção da memória do ensino de língua nessas gramáticas, saberes que, na maioria

das vezes, subjazem a abordagem dos conteúdos gramaticais em instituição escolar.

Essa investigação se justifica na medida em que permite refletirmos sobre as implicações

políticas dos diferentes olhares sobre língua e sobre gramática, os quais coexistem em

22
Essas gramáticas possuem o manual do professor como parte constituinte. É nessa
materialidade linguística em que são apresentadas as propostas de ensino do conteúdo
gramatical. Por ser lugar de divulgação científica e material de apoio pedagógico (NÓBREGA,
2008), os manuais assumem um discurso prescritivista influenciado pelos estudos científicos sobre
a linguagem.
67

contexto escolar e influenciam a constituição de discursos e de sujeitos de ensino em

sala de aula.

A abordagem metodológica das Gramáticas Pedagógicas foi construída com

base nos pressupostos da Análise de Discurso francesa (AD) que tem seus fundamentos

em Michel Pêcheux. Sob essa perspectiva, a GP se coloca como materialidade discursiva

(PÊCHEUX, 2012), isto é, enquanto nível de existência sócio-histórica. Por conseguinte,

a investigação dos objetos de ensino-aprendizagem prescinde da referência às condições

verbais de existência das gramáticas analisadas em uma conjuntura sócio-histórica dada.

Parte-se do pressuposto de que a constituição do saber gramatical se estabelece sobre

uma rede metafórica de sentidos que lhe serve de apoio, fato este que permite considerar

a GP como um objeto simbólico, lugar em que língua e história enlaçam-se na produção

de dizeres (PÊCHEUX, 2009 [1988]).

Com essa pesquisa, acreditamos estar contribuindo para o trabalho dos

professores em sala de aula, uma vez que a problematização desse instrumento de

ensino-aprendizagem, veiculador de práticas a partir e sobre linguagem, é um fator

imprescindível para a reflexão sobre as práticas de ensino (principalmente o de

gramática). O olhar de investigação que considera o funcionamento discursivo pode

ainda contribuir para se pensar as posições que o docente assume diante do processo de

ensino de língua materna e os efeitos de sentido que as possíveis posições produzem

nos sujeitos-aprendizes.

Nossa pesquisa possui natureza qualitativa, de cunho descritivo-interpretativista

(MOITA LOPES, 1994; MOREIRA & CALEFFE, 2006). Retomamos Auroux (2009 [1992]),

na epígrafe do capítulo, para reafirmarmos nosso entendimento de conhecimento como

“realidade histórica” e, portanto, como construção cultural. Por conseguinte, os

procedimentos metodológicos de investigação não se apresentam definidos a priori, mas

são constituídos na interface entre a construção do corpus e os dispositivos teóricos

mobilizados pelo analista a cada trabalho. Segundo Orlandi (2001, p. 63), “decidir o que
68

faz parte do corpus já é decidir acerca das propriedades discursivas” do objeto em

análise.

É relevante salientar que a delimitação do corpus em AD não segue critérios

empíricos, mas teóricos (ORLANDI, 2001). A preocupação em estudar os discursos

constitutivos do ensino de gramática nos orientou para a construção de um corpus de

arquivo, constituído por documentos que, historicamente, vêm ocupando nas escolas o

lugar legitimado para o trabalho com conteúdos gramaticais: gramáticas pedagógicas23.

Não pretendemos a exaustividade do objeto empírico, haja vista que, sob a perspectiva

discursiva, ele é inesgotável: todo discurso se estabelece na relação com um discurso

anterior e aponta para outro, não havendo, assim, discurso fechado, mas um processo

discursivo do qual pode se recortar e analisar diversos estados (ORLANDI, 2001).

Sob essa perspectiva, para melhor caracterizar os dados analisados,

mobilizamos os conceitos de arquivo (FOUCAULT, 1986) e de fonte histórica (LE GOFF,

1997), os quais estão inter-relacionados. Esses conceitos, comumente, apontam para a

inscrição das gramáticas pedagógicas em um conjunto de formulações retrospectivas e

prospectivas, as quais a configuram como um ponto nodal em uma rede de relações.

Essa metáfora aponta para a impossibilidade de existência de sentidos originais

na produção enunciativa desses documentos, uma vez que, nesse processo, há uma

(re)tomada de sentidos produzidos anteriormente, seja negando-os, seja modificando-os

(BAKHTIN, 1987). Sob esse argumento, o arquivo, para Foucault,

é o que faz com que todas as coisas ditas não acumulem indefinidamente em
massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura
e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se
agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo
relações múltiplas (FOUCAULT, 1986, p. 149).

23
Embora tenha perdido espaço em sala de aula para o livro didático de língua portuguesa,
gramáticas do tipo pedagógica possuem grande influência no ensino de língua, seja funcionando
como instrumento de ensino-aprendizagem, lugar de discussões e de resoluções de exercícios,
seja como material de consulta. Além disso, é relevante salientar que muitos dos autores de
gramáticas pedagógicas também produzem livros didáticos (como é o caso das gramáticas
analisadas), fato que nos permite interpretar uma vinculação entre esses materiais didáticos.
69

Essas relações, por sua vez, determinam os documentos analisados como fonte

histórica, os quais, constituídos a partir de relações sociais e ideológicas entre os sujeitos

da língua (LE GOFF, 1997), integram um arquivo de uma determinada época. Em suma,

as gramáticas pedagógicas são documentos que evidenciam o processo de construção

de saberes na sociedade e os posicionamentos dos sujeitos envolvidos no contexto de

produção em contexto sócio-histórico determinado.

Quanto ao trabalho do pesquisador na constituição e na análise do corpus, é

preciso considerar que não há descrição sem interpretação, então o próprio pesquisador

está envolvido no processo de investigação. Desse modo, entendemos que o analista

não procura o “sentido verdadeiro” na materialidade linguística e histórica, mas constrói

um gesto de interpretação (ORLANDI, 1996).

Diante dessas considerações, apresentamos, na seção a seguir, o processo de

constituição do corpus, procedimento significativo para a pesquisa, uma vez que se trata

do trabalho do analista sobre as gramáticas pedagógicas em questão e está

intrinsecamente relacionado às análises.

2.2 Constituição do corpus: preparando as análises

Foram analisadas três gramáticas pedagógicas de volume único (livro do

professor), destinadas ao Ensino Médio. O quadro, abaixo, apresenta-as sumariamente:

Ano de Nível de
Título Autor(es)
publicação ensino

GP1 Gramática: texto, reflexão e uso. 2008 Cereja & Magalhães Médio

Gramática: texto: análise e


GP2 2006 Abaurre & Pontara Médio
construção de sentido

GP3 Aprender e praticar gramática 2011 Mauro Ferreira Médio


Quadro 2: Gramáticas pedagógicas analisadas.
70

Essas Gramáticas Pedagógicas foram distribuídas para professores de

português pela Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (ABRELIVROS)

com o intuito de que eles as avaliassem e, posteriormente, adotassem-nas para uso em

escolas. Essa entidade civil (fundada em 1991) representa as editoras de livros

educativos junto aos governos estaduais e federais, a fim de acompanhar o

desenvolvimento dos programas nacionais de Livros Didáticos24. Essas gramáticas,

portanto, estão vinculadas à política nacional de distribuição de material didático, fato que

as legitima a circular na escola.

Como nossas perguntas de pesquisa foram construídas em torno do confronto

discursivo entre Gramática Tradicional e Linguística, selecionamos compêndios que se

inscrevessem em uma perspectiva de trabalho com a “gramática contextualizada”. A

presença do “texto” nesse tipo de gramática já sinaliza heterogeneidade discursiva,

evidenciando contradições de natureza sócio-histórica. A categoria “texto” aparece

silenciada no discurso da tradição gramatical (ORLANDI, 2002), categoria essa tomada

pela Linguística como principal objeto de análise da língua e, por isso, considerada como

um dos principais elementos de oposição à tradição.

Um olhar preliminar sobre os dados permitiu identificarmos a filiação desses

compêndios ao ensino de “gramática contextualizada”: inicialmente, no tocante à

construção dos títulos, em que a GP1 e a GP2 veiculam expressões como “texto”,

“reflexão”, “uso” e “construção de sentidos” (Ver quadro 2), as quais apontam para a

inscrição ideológica na disciplina da Linguística; posteriormente, no que se refere à

presença de seções destinadas a relacionar os conteúdos teóricos apresentados à

construção de sentidos de textos – “Semântica e interação” (GP1); “Usos de (categoria

gramatical estudada em cada capítulo)” e “Pratique” (GP2); e “Da teoria a prática” (GP3).

Outro ponto de confronto discursivo foi observado na materialidade linguística

das GP analisadas: a caracterização da língua como prática social (em funcionamento). A

24
http://www.abrelivros.org.br
71

gramática tradicional, historicamente, apresentou-se como o lugar de estudo na norma

padrão da língua portuguesa, exemplificando esses usos com base em frases isoladas de

textos canônicos da literatura. Sob essa perspectiva, observam-se, exclusivamente, as

estruturas da língua escrita padrão, desvinculadas do contexto de produção.

A consideração da língua em uso implica na observação dos fenômenos de

variação linguística e, por conseguinte, na contraposição à exclusividade da norma

padrão como referência aos estudos sobre gramática. Sob essa perspectiva, a escolha

das estruturas gramaticais estaria relacionada à adequação ao contexto de enunciação:

fator que possibilita o trabalho, em sala de aula, com estruturas não pertencentes a essa

variação conforme adequação à produção de textos em situações comunicativas

variadas. Desse modo, além da modalidade escrita formal, esse tipo de gramática abre

espaço para estruturas recorrentes na oralidade25.

Apesar dessas GP enfatizarem a importância da aprendizagem da norma escrita

padrão, ao se colocarem sob uma perspectiva variacionista de língua, inscrevem-se em

uma posição de conflito com a tradição. Em todas as gramáticas que compõem o nosso

corpus, os capítulos iniciais estão destinados à problematização de “língua”, “gramática”

e “variação linguística”. Assim, antecede o estudo dos conteúdos gramaticais, a

discussão de conceitos como “variedades linguísticas (padrão e não-padrão)”,

“adequação e inadequação linguística”, “gêneros textuais”, “inter(ação)”, “comunicação” e

“dimensão discursiva da linguagem”.

Tanto a proposta de ensino de “gramática contextualizada” como a consideração

do fenômeno da variação linguística colocam as GP analisadas em uma relação de

contraposição à perspectiva tradicional de ensino de língua. Faz-se relevante salientar

que esses posicionamentos sobre língua e sobre ensino de gramática estão vinculados à

discussão teórica sobre a mudança no ensino de português no Brasil, especificamente,

no que diz respeito ao ensino de gramática (PIETRI, 2003).

25
Esse posicionamento dialoga com a proposta do livro “Para uma vida melhor”, de Heloisa
Ramos (2011)
72

Construímos a hipótese de que esses posicionamentos, funcionando em

gramáticas pedagógicas, historicamente filiadas à tradição, podem ser resultantes da

influência de documentos parametrizadores do ensino (PCNEM, 2000; OCEM, 2006),

determinando a construção e a distribuição dos materiais didáticos pela ABRELIVROS.

Desse modo, a presença dos discursos da Linguística (materializados nesses

documentos) funcionaria como legitimadora do ensino de gramática e, por conseguinte,

da GP como instrumento de ensino-aprendizagem nas aulas de português.

Durante o processo de constituição do corpus, deparamo-nos com exemplares

de GP de cunho mais tradicional funcionando em âmbito escolar, cuja proposta de

trabalho com a gramática normativa restringia-se a um viés estrutural. No entanto, devido

aos objetivos de pesquisa, interessou-nos, especificamente, as gramáticas que

materializavam pontos de resistência ao imaginário social de língua única (relacionado à

concepção formalista de língua). Como relatamos anteriormente, selecionamos as que

apresentavam a abordagem de conteúdos gramaticais no texto e a consideração da

heterogeneidade constitutiva da língua.

Quanto ao nível de ensino das GP, optamos pelas direcionadas ao Ensino

Médio, porque é nessa etapa de ensino que o trabalho com a metalinguagem gramatical

se tornaria mais incisivo. Essa ideia se justifica pela compreensão de que o ensino da

metalinguagem, em si mesmo, não deve ser o centro das atividades linguísticas em sala

de aula, mas deve funcionar como instrumento de reflexão sobre os processos de leitura

e de escrita. Segundo os PCN,

se o objetivo principal do trabalho de análise e reflexão sobre a língua é


imprimir maior qualidade ao uso da linguagem, as situações didáticas devem,
principalmente nos primeiros ciclos, centrar-se na atividade epilinguística, na
reflexão sobre a língua em situações de produção e interpretação, como
caminho para tomar consciência e aprimorar o controle sobre a própria
produção linguística (BRASIL, 1997, p.31).
73

Sob essa perspectiva, o ensino da metalinguagem adquire importância quando

os alunos já possuem capacidade de lidar com os aspectos reflexivos da língua, estando

aptos a selecionar os recursos linguísticos e as estruturas gramaticais adequados às

atividades de produção (oral e escrita). Espera-se que essas habilidades sejam

desenvolvidas no Ensino Fundamental, o que justificaria um trabalho mais aprofundado

dos saberes metalinguísticos no nível de ensino subsequente. Isso implica na

metalinguagem como instrumento e como objeto de estudo.

Após justificarmos o processo de seleção das GP que constituem o corpus desta

pesquisa, faz-se relevante descrevê-las, mais detalhadamente. Elas são constituídas de

duas partes principais e complementares: (1) o manual do professor e (2) o compêndio

do aluno. Essa descrição se coloca como importante para o nosso trabalho, haja vista

que pode auxiliar no entendimento dos recortes que fizemos no corpus para a construção

das análises (procedimento apresentado na seção 3.3).

No que concerne à descrição geral dos manuais do professor (1), observamos

que, nas GP analisadas, eles possuem organização semelhante, relacionada à função

desse gênero textual como recurso teórico-metodológico que aponta caminhos para o

uso, em sala de aula, do material didático elaborado (NÓBREGA, 2008). Desse modo,

essa parte da GP é construída tendo como principal interlocutor professores de

português, apresentando aspectos didáticos e pedagógicos dos conteúdos gramaticais.

De modo geral, os manuais do professor apresentaram: (a) fundamentos

teóricos sobre “língua”, “gramática”, e “ensino de língua”, discutidos ao longo do texto ou

materializados em glossário, bibliografia e/ou sugestões de leitura; (b) procedimentos

metodológicos para abordagem dos conteúdos gramaticais em sala de aula, incluindo

sugestões de distribuição dos conteúdos ao longo do ano letivo; (c) respostas aos

exercícios propostos; e (d) estrutura da obra e dos capítulos.

A análise do manual do professor é muito relevante para nossa pesquisa, uma

vez que, pela explanação de conceitos teóricos e metodológicos que fundamentam a


74

proposta didática da GP, ele veicula mais explicitamente a sua filiação ideológica a uma

rede de sentidos26. Além disso, por estar direcionada ao docente, a construção de dizeres

sobre os conhecimentos gramaticais é feita diferentemente em relação ao compêndio do

aluno, colocando-se como um instrumento de divulgação científica (NÓBREGA, 2008)27.

No que concerne à descrição geral da estruturação dos compêndios gramaticais

direcionados aos alunos (2), observamos que, nas GP analisadas, eles possuem pontos

de contato entre si, os quais significam para nossa análise. Por questões didáticas,

apresentamos esses compêndios separadamente. A GP1, “Gramática Reflexiva: texto,

semântica e interação” (CEREJA & MAGALHÃES, 2009), é composta por 35 capítulos,

distribuídos em 5 unidades e em seção intitulada Apêndice (capítulo 35). Vejamos no

Quadro 3, que segue, a distribuição dos capítulos e seções no interior dessas 5 unidades.

Seções
Unidades Capítulos Seções principais
complementares
A comunicação:
1 linguagem, texto e 1º ao 3º - Introdução do capítulo por
discurso. um texto
2 Fonologia 4º ao 6º - Conceituando
Morfologia: a palavra e - Exercícios - Boxes
3 7º ao 16º
seus paradigmas. - A categoria gramatical na
17º ao construção do texto
- Contraponto
4 Sintaxe: a palavra em ação
31º - Semântica e interação
Semântica e estilística: 32º ao - Em dia com o vestibular
5
estilo e sentido. 34º
APÊNDICE 35º
Quadro 3: Organização geral das partes, seções e abrangência dos capítulos de GP1
(CEREJA & COCHAR, 2009).

Como podemos observar no quadro 3, apresentado anteriormente, as “seções

principais” são recorrentes em todos os capítulos da GP1, seguindo uma ordem fixa:

após a introdução do capítulo por um texto, elemento motivador para o início do trabalho,

26
É importante ressaltar que explanações desse tipo também aparecem ao logo do compêndio
gramatical em letras destacadas na cor vermelha e com fonte menor.
27
É relevante considerar que devido ao seu papel institucional de regulação de sentidos sobre
língua e sobre ensino de língua o manual do professor pode funcionar como um cerceamento da
voz do professor. A proposta construída nesses objetos aparece sob a ordem do prescrito, como
algo que tem de ser seguido, diminuindo os espaços para a interlocução.
75

segue-se, respectivamente, a seção “Conceituando”, em que o conceito gramatical

aparece formulado, e a seção “Exercícios”. Em seguida, são apresentadas as seções “A

categoria gramatical na construção do texto” e “Semântica e interação”, ambas

pretendendo aprofundar o estudo do conteúdo gramatical, a primeira considerando o

texto e a segunda o discurso.

É relevante salientar, no entanto, que a seção “Em dia com o vestibular”, embora

recorrente, só aparece no término de cada unidade e, por isso, refere-se a todos os

capítulos (da unidade) concomitantemente. Essa última seção é composta por questões

objetivas e discursivas dos principais vestibulares e exames avaliativos do país, como o

Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). As “seções complementares”, por sua vez,

constituem-se como textos paralelos que dialogam com o texto-base e, por isso, não

seguem uma ordem fixa.

Na descrição ora apresentada, estamos considerando os boxes laterais como

“seções complementares” devido a sua recorrência em todos os capítulos. No entanto,

faz-se importante ressaltar que a presença desses boxes não é obrigatória. Destacamos

a ocorrência da seção complementar “Contraponto” por ocupar lugar de confronto

discursivo, evidenciado pela própria titulação. Essa peculiaridade é apresentada pelos

autores no manual do professor da GP1 e apresenta-se vinculada a conteúdos

gramaticais, que suscitam explicações diversas. A título de exemplificação, observemos o

trecho posto a seguir:

Além desses tipos de boxe, há um novo boxe chamado Contraponto, que


contrapõe diferentes pontos de vista acerca de algumas das normas da
variedade padrão ou de alguns aspectos da descrição gramatical. Às vezes,
são pontos de vista da linguística que diferem dos da gramática tradicional; às
vezes são pontos de vista sobre os quais há divergência entre os próprios
gramáticos (CEREJA & COCHAR, 2009, p. 12 e 13).

A GP2, “Gramática: texto: análise e construção de sentido” (ABAURRE &

PONTARA, 2006), está organizada em 8 unidades, no interior das quais se distribuem 30


76

capítulos. Cada capítulo, por sua vez, subdivide-se em 6 seções fixas, conforme

podemos conferir no Quadro 4, a seguir:

Seções
Unidades Capítulos Seções principais
complementares
1 Linguagem 1º ao 3º
2 Linguagem e sentido 4º ao 6º
- Boxes laterais:
Introdução aos estudos - Introdução: texto de
3 7º ao 10º (1) Boxe de
gramaticais abertura 28
informação ;
4 Classes de palavras 11º ao 20º - Apresentação da teoria
(2) Tome nota;
Introdução ao estudo da - Atividades
5 21º ao 22º (3) Lembre-se;
sintaxe - Usos de
(4) De olho na
Sintaxe do período - Pratique
6 23º ao 26º fala;
composto - Prepara-se: vestibular
(5) Cuidado com
A articulação dos termos na e ENEM
7 27º ao 28º o preconceito.
oração
Aspectos da convenção
8 29º ao 30º
escrita
Quadro 4: Organização geral das partes, seções e abrangência dos capítulos de GP2
(ABAURRE & PONTARA, 2006)

Conforme podemos observar no Quadro 4 acima, as seis seções principais são

partes constituintes de todos os capítulos. Tal como no compêndio da GP1, existem na

GP2 seções destinadas a relacionar a categoria gramatical estudada à produção / análise

de textos, quais sejam: Usos de (conteúdo gramatical trabalhado no capítulo) e Pratique.

É importante dizer que, além das seções principais, o compêndio gramatical descrito

apresenta duas seções especiais: O português no mundo (ao final do Capítulo 7) e

Coesão e coerência: a articulação textual (ao final do Capítulo 15).

No que diz respeito às seções complementares, ressaltamos o caráter polêmico

dos boxes De olho na fala e Cuidado com o preconceito. O primeiro apresenta e comenta

estruturas típicas da oralidade do português, fato desconsiderado usualmente pela

tradição gramatical. O segundo boxe, por sua vez, denuncia comportamentos

preconceituosos, resultantes de posicionamentos puristas sobre a língua. Ambas as

perspectivas são construídas no contraponto da linguística à tradição.

28
Segundo os autores, esse boxe é apresentado ao longo dos capítulos e amplia alguma
informação apresentada na teoria. Aparece sempre em verde.
77

A GP3, “Aprender e praticar gramática” (FEREEIRA, 2011), é constituída por 6

partes e 35 unidades de estudo. No que diz respeito a sua estruturação, é relevante

salientar que, nesse compêndio, há uma mudança de nomenclatura em relação às

anteriores: o que antes era denominado de “unidade”, agora é “parte”; e o que era

“capítulo” passou a ser “unidade”. Essa mudança, no entanto, é apenas superficial, não

interferindo na lógica organizacional comum às GP anteriores. Cada unidade é

estruturada em 5 seções principais, vejamos no Quadro 5, abaixo:

Seções
Partes Unidades Seções principais
complementares
- Boxes:
1 O universo da linguagem 1º ao 4º
(1) Fique atento
- Abertura da unidade
A palavra: seus sons e (2) Observação
2 4º ao 7º - Exposição teórica
grafia (3) Complemento(s)
- Síntese da unidade
teórico(s)
3 Morfologia: 8º ao 19º - Exercícios de fixação
(4) Para que saber?
- Da teoria à prática
4 Sintaxe 20º ao 33º (5) O que dizem os
- Em dia com o
linguistas
vestibular
5 Pontuação 34º (6) Resumindo o que
você estudou
6 Se você quiser MAIS 35º
Quadro 5: Organização geral das partes, seções e abrangência dos capítulos de GP3
(FERREIRA, 2011)

O quadro 5, exposto acima, segue a mesma lógica de organização dos Quadros

3 e 4, apresentados anteriormente, o que permite os compararmos a fim de

compreendermos os pontos de contato entre as GP analisadas. Todos os compêndios

gramaticais expõem conteúdos vinculados à tradição gramatical, tais como: fonologia,

morfologia, sintaxe etc. No entanto, é recorrente a presença de capítulos iniciais que

trazem à discussão a linguagem de um modo mais amplo (isto é, de natureza não

estritamente gramatical), incluindo aspectos comunicacionais, textuais e discursivos.

Essa coexistência de conteúdos, filiadas tanto à Linguística quanto à Gramática


78

Tradicional, é relevante para nossa pesquisa, na medida em que coloca as GP em

questão como lugar de heterogeneidade discursiva29.

Outro ponto de heterogeneidade, relevante para nossa análise, é a presença de

atividades, em todos os compêndios analisados, que se proponham a trabalhar gramática

a partir do texto. No Quadro 5, como podemos observar, temos a seção Da teoria à

prática. Segundo o autor, nela “os exercícios baseiam-se, principalmente, em

proposições da gramática textual, da análise do discurso, da semântica e da pragmática”

(manual do professor, p. 4). Assim, a presença dessa categoria “texto” nos exercícios

significa a inscrição da linguística na teoria tradicional.

Por fim, ressaltamos a presença, em todos os compêndios, de boxes que,

postos ao longo do texto-base, acrescentam informações, destacam aspectos

particulares ou chamam a atenção para curiosidades da língua. Alguns deles colocam-se

como contraponto à teoria gramatical exposta. No caso da GP3, temos a seção

complementar intitulada O que dizem os linguistas. O próprio funcionamento

“complementar” desses boxes é significativo, uma vez que os coloca fora do texto-base

de teoria tradicional. Logo, não totalmente pertencendo a ele, abre espaço para

contrapontos.

Finalizamos esta seção refletindo sobre os processos de seleção e de descrição

das gramáticas pedagógicas analisadas (apresentados anteriormente). Subjaz a esses

processos o critério de heterogeneidade discursiva, constituída na relação de oposição

entre as disciplinas Gramática Tradicional e Linguística, as quais influenciam as práticas

de ensino de língua na escola. Inicialmente, interessou-nos gramáticas publicadas após

os PCN, que, funcionando na escola, além da tradição gramatical, são influenciadas

pelos conhecimentos científicos sobre língua veiculados pelas políticas educacionais.

29
Conforme discussão apresentada no Capítulo I, todo discurso é heterogêneo, constituindo-se
por meio da relação com outros discursos, seja retomando-os ou silenciando-os (INDURSKY,
2011). No caso das GPs analisadas, os conteúdos gramaticais são construídos pela relação entre
a FD da Gramática Tradicional e a FD da Linguística. Dessa forma, entendemos esse discurso
como heterogêneo.
79

A descrição dessas gramáticas foi feita observando-se pontos de confronto

discursivo entre essas disciplinas de linguagem. No tocante ao manual do professor,

observamos o caráter de divulgação científica, o que o veicula aos estudos científicos

sobre linguagem. Em relação ao compêndio gramatical, destacamos como relevantes

três pontos principais: (1) a inserção de conteúdos filiados à Linguística (língua; variação

linguística; discurso); (2) a presença de exercícios que se propõem a trabalhar gramática

contextualizada; e (3) o funcionamento de boxes ao longo do texto-base que

problematizam a teoria da gramática tradicional.

A seguir, apresentaremos as categorias de análise da pesquisa e o modo como

as organizamos na dissertação.

2.3 Mo(vi)mentos de análise

A observação acurada dos dados levou-nos à construção de três movimentos de

análise: (1) descrição dos saberes discursivos em confronto, na constituição do Discurso

da Gramática Pedagógica; (2) observação do imbricamento desses saberes na

formulação do dizer, a partir da consideração da noção de pré-construído; e (3)

compreensão do efeito de memória sobre o ensino de língua produzido na proposta de

ensino de gramática.

Esses mo(vi)mentos, imbricados entre si, colocaram-se como complementares

para a constituição das nossas duas categorias de análise: a primeira (I), de modo mais

amplo, propõe a caracterização do Discurso da Gramática Pedagógica, explicitando, nas

materialidades discursivas, pontos de relacionamento polêmico entre esses discursos; e

a segunda (II), por sua vez, problematiza a relação entre esses discursos na construção

das representações de “língua” e gramática, bem como de “sujeitos” de ensino.

Entendemos que essas representações estão diretamente relacionadas à projeção do


80

que se compreende por ensino dos conteúdos gramaticais na escola e, portanto, à

memória do ensino de língua no âmbito dessas materialidades linguísticas.

Para sistematização de análise, apresentamos no Capítulo III, duas seções,

intituladas, respectivamente, como (I) Caracterização do Discurso da Gramática

Pedagógica: lugar de confrontos discursivos; e (II) Réplica à crítica ao ensino de

gramática tradicional: o desejo do novo. Esses saberes constituem a memória sobre o

ensino de língua nas gramáticas pedagógicas analisadas, as quais estão diretamente

relacionadas ao trabalho com língua nas escolas.

Ao inscrevermo-nos no campo de investigação da AD, estamos considerando

não a análise de trechos de texto, mas a análise de Sequências Discursivas (SD), isto é,

sequências em que o discurso materializa-se na linguagem, e, portanto, constituem-se

como enunciado material, produzido pela interpelação do indivíduo em sujeito. Devido as

peculiaridade das partes das gramáticas, propomos a seguinte exibição dos dados, a

qual seguirá uma sistematização padronizada:

 No que concerne às SD referentes aos manuais do professor (MP).

SD1 - A obra Gramática reflexiva, voltada a professores e alunos que aspiram


a um ensino renovado de língua portuguesa, confirma e atualiza as opções
metodológicas e didáticas da edição anterior. (MP1, p.4, grifo em itálico dos
autores.).

O código MP1 significa que a sequência está situada no Manual do Professor da

Gramática Pedagógica 1. Por analogia, MP2 refere-se à GP2 e MP3 à GP3. A referência

à página é posta na sequência.

 No que concerne às SD referentes às Gramáticas Pedagógicas (GP), compêndios

gramaticais do aluno.
81

SD2

(GP2, capítulo 5, p.76)

As orientações direcionadas ao professor no compêndio gramatical (em cor

vermelha ao lado das questões dos exercícios) seguem o mesmo padrão, das SD

pertencentes ao compêndio gramatical, indicando, respectivamente, a gramática

analisada, a seção e a página.


82

CAPÍTULO III - O TRABALHO DA MEMÓRIA EM GRAMÁTICAS


PEDAGÓGICAS: REPRESENTAÇÕES DE LÍNGUA, GRAMÁTICA E ENSINO.

Este capítulo tem por objetivo apresentar a análise feita às Gramáticas

Pedagógicas (GP) que constituem o corpus desta pesquisa. Tomamos por investigação a

memória discursiva do ensino de língua portuguesa que se materializa nas gramáticas

analisadas, a qual subjaz o processo de constituição da proposta didático-pedagógica e,

portanto, dos objetos de ensino-aprendizagem nesse tipo de materialidade discursiva.

Observamos a constituição dessa memória a partir das relações de sentido entre

a Formação Discursiva (FD) da Gramática Tradicional e a da Linguística, investigando o

modo como essas relações ocorrem discursivamente e quais os efeitos produzidos por

elas. Para tanto, foram formuladas duas categorias de análise: (I) Caracterização do

Discurso da Gramática Pedagógica pela explicitação, nas materialidades discursivas, de

pontos de relacionamento polêmico entre esses discursos; e (II) Problematização da

relação entre esses discursos na construção das representações de “língua” e

“gramática”, bem como de “sujeitos” de ensino.

3.1 Caracterização do Discurso da Gramática Pedagógica: lugar de confrontos


discursivos

As Gramáticas Pedagógicas analisadas foram entregues a professores pelo

Ministério da Educação (MEC) e circulam em escolas de Ensino Médio como material

didático. O lugar discursivo ocupado por esse tipo de compêndio gramatical em contexto

escolar o legitima a (re)produzir sentidos sobre “língua”, bem como sobre os sujeitos que

falam “essa” língua. Isso significa que apenas conteúdos gramaticais legitimados

socialmente são passiveis de ser produzidos nessas materialidades, haja vista a

definição desses conteúdos resultar de um conjunto de discussões teóricas sobre língua,

relacionado a políticas linguísticas e educacionais em âmbito nacional e regional.


83

No cenário brasileiro, as gramáticas que circulam na escola, geralmente de

orientação prescritivista, foram relevantes para a constituição de uma língua nacional

(ORLANDI, 2002) e, por isso, os saberes produzidos por elas assumiram a posição de

um discurso fundador sobre língua, presente na memória coletiva dos brasileiros. Esses

saberes estão na base do memorável, permitindo a constituição de um imaginário de

língua única, homogênea e monolítica. É a partir desse imaginário que se constrói a

representação de “língua” estável e fechada em si mesma, que precisa ser “preservada”

e, portanto, “higienizada”.

Os conhecimentos metalinguísticos produzidos pela gramatização da língua

considerada oficial, repetidos insistentemente por essas gramáticas, sustentam essas

avaliações sobre “a” língua portuguesa no Brasil. Pensamos, por ora, na abordagem feita

por esses compêndios à sintaxe de concordância nominal: ao postular que os termos que

determinam o núcleo de um sintagma nominal concordam com ele em número e em

gênero, excluem-se da “língua” os fatos linguísticos a que as regras formuladas não se

aplicam. Sob essa perspectiva, a concordância não redundante, isto é, marcada apenas

no primeiro determinante, como por exemplo, no sintagma “As menina bonita”, é

considerada “erro” e, portanto, esse enunciado é visto como agramatical pela perspectiva

tradicional.

A normatização dessas regras, que pretende apagar a variação inerente à

língua, por consequência, produz sentidos que excluem os falantes que usam essas

estruturas “desvalorizadas”, permitindo a construção de “máximas” como “os jovens não

sabem português” e “a língua portuguesa é difícil”. É relevante ressaltar que esses

saberes da ordem de “todos sabem, todos lembram” (INDURSKY, 2011) criam efeitos na

própria identidade do brasileiro: o recorte da língua na extensão da norma padrão escrita

e literária permite a criação do imaginário de que “o português falado no Brasil resulta da

corrupção do português europeu” e, assim, “os brasileiros falam de modo errado o

português”. Sob essas considerações, os conteúdos metalinguísticos formulados nessas


84

gramáticas estão relacionados à memória institucional sobre o ensino de língua

portuguesa e, consequentemente, sobre “a” língua portuguesa.

O retorno à Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) (1958/59)30 é indício de

que as GP funcionam como lugar de memória da tradição, uma vez que, assim, retomam

no interdiscurso os sentidos repetidos e regularizados sobre a descrição da norma

padrão e sua consideração como principal e único objeto de ensino. Na Portaria nº 36,

que instaura a NGB, recomenda-se a metalinguagem apresentada no ensino

programático da Língua Portuguesa e nas atividades que visam à verificação do

aprendizado, nos estabelecimentos de ensino, bem como nos exames de admissão,

adaptação, habilitação e seleção. Isso significa que a escola se coloca como espaço de

divulgação das políticas linguísticas e, por consequência, os materiais didáticos que nelas

funcionam.

No entanto, os compêndios analisados, produzidos e publicados recentemente

(2006-2011), também sofrem influência das políticas nacionais da educação31 que,

através dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) (BRASIL,

2000), propõem uma “reorientação” do ensino de língua portuguesa, com base em

pressupostos teórico-metodológicos da Linguística. No que concerne à abordagem do

conteúdo gramatical, esses documentos parametrizadores abrem a possibilidade de se

trabalhar estruturas linguísticas que não se enquadram na norma padrão, embora que,

por justificativas de ordem econômico-social, essa norma continue sendo objeto de

ensino-aprendizagem.

Dessa forma, as GP situam-se em um lugar de tensão discursiva: de um lado,

filiadas à gramática tradicional, colocando-se como um instrumento tecnológico de

30
Cf. Capítulo I (seção II).
31
É relevante salientar que as políticas linguísticas e educacionais são de caráter movente,
determinadas pelas relações sócio-históricas que estruturam a sociedade. Assim, não podemos
desconsiderar que a NGB é um ato da política educacional, uma vez que busca orientar as
atividades da disciplina Língua Portuguesa nas escolas, no entanto, o direcionamento dessa
política é modificado com a publicação dos PCN (1998) e PCNEM (2000). Nesses documentos, o
ensino de gramática, sob a titulação de Análise Linguística, passa a ter caráter instrumental para o
ensino de leitura e produção de textos.
85

gramatização (AUROUX, 2009 [1992]) da norma padrão da língua portuguesa; de outro,

influenciadas por posicionamentos advindos da ciência (no campo dos estudos da

linguagem e da pedagogia de línguas) e das políticas educacionais (SILVA, 2006). A

observação do contexto de produção das GP analisadas é relevante para nossa análise,

porque ele conduz à formação de um Discurso sobre o ensino de língua portuguesa

através da relação polêmica entre saberes inscritos em Formações Discursivas (FD)

concorrentes (COURTINE, 2006): FD da Gramática Tradicional e FD da Linguística.

No tocante ao tratamento dos conteúdos gramaticais, essas FD se diferenciam

pela noção de gramaticalidade, isto é, pelo que define as construções linguísticas como

pertencentes (ou não) à língua. Para a Gramática Tradicional, a língua pode ser

representada pela norma-padrão. Isto significa que os usos que não estejam incluídos

nessa norma não fazem parte da língua e, por isso, são considerados como “erro”

gramatical. A língua passa a ser definida pelas regras prescritas pela tradição, as quais

devem ser seguidas em sua plenitude para se comunicar “corretamente”.

Para a Linguística, pertencem à língua portuguesa todas as variedades

sociodialetais registradas no Brasil. A norma-padrão, assim, é uma das variantes da

língua e seu uso está vinculado à adequação ao contexto de produção. A noção de

gramaticalidade, sob essa perspectiva, é mais ampla, e refere-se à característica da

língua que possibilita um falante compreender o outro que compartilhe das mesmas

correlações entre significados e sequências de sons. Assim, a construção de uma

sentença compreensível por outros é a demonstração desta característica, mesmo que

essa sentença não se alinhe à norma-padrão32.

32
É relevante salientar que ocorre a agramaticalidade quando não são respeitadas características
essenciais que possibilitam a comunicação, por exemplo, não obediência de ordem obrigatória
entre os elementos ou omissão de elementos indispensáveis. Há, assim, uma diferença discursiva
entre “erro” e “agramaticalidade”. Por conseguinte, o modo de trabalho com a língua é
diferenciado, cabendo à predominância da prescrição quando se remete ao “erro” e à descrição
quando se considerada “adequação ao uso”.
86

No que concerne à abordagem do conteúdo gramatical no ensino de língua, as

FD em questão se diferenciam pela delimitação do objeto de análise. A Gramática

Tradicional aborda a língua a partir da fragmentação estrutural, seja a partir de palavras,

seja a partir de sentenças (cf. Capítulo I). Sob essa orientação, é desconsiderado o

estatuto do texto nos estudos gramaticais, bem como a relação entre sua materialidade

linguística e o contexto de produção. Por causa disso, a Linguística acusa a tradição de

artificializar o estudo da língua, desconsiderando seu uso. Em contrapartida, propõe o

trabalho dos conteúdos gramaticais na constituição do texto, observando o

funcionamento desses conteúdos na produção de sentidos.

Segundo Pêcheux (2009 [1975]), a forma-sujeito de uma FD dominante, a qual

se institui sob a aparência de autonomia, é determinada pelas relações entre as FDs no

interdiscurso, sujeito à lei de desigualdade-contradição-subordinação. Sendo assim, as

relações interdiscursivas não ocorrem de modo pacífico e tranquilo, mas são marcadas

por uma constante polêmica. As FDs em questão nesse trabalho definem-se por

oposição, constituindo seus limites pela noção diferenciada de gramaticalidade, o que

resulta em formas divergentes de compreensão do fenômeno linguístico. Essa

heterogeneidade é observada, principalmente, no tratamento de pontos polêmicos, isto é,

de aspectos gramaticais que são concebidos diferentemente no âmbito de cada uma

dessas FD.

Um exemplo significativo desse confronto, observado no corpus desta pesquisa,

é o tratamento dado à categoria gramatical de “grau". Nas gramáticas analisadas,

observamos a retomada dos conhecimentos metalinguísticos postulados pela NGB, que

considera a variação de grau pelos substantivos, sob três formas: o normal, o

aumentativo e o diminutivo. Esse ponto, tal como abordado, coloca-se em confronto com

estudos vinculados à Linguística, que negam a variação de grau nessa classe gramatical,

afirmando se tratar não de flexão, mas de derivação sufixal.


87

A SD331, por trazer a metalinguagem proposta pela NGB, materializa saberes

sobre a língua inscritos na Formação Discursiva (FD) da Gramática Tradicional.

SD1

(GP2, Capítulo 12, p.186)

Como podemos observar na SD1, a língua é descrita como possuindo classes

gramaticais que são consideradas “variáveis”, dentre as quais o “substantivo” flexiona-se

em grau sob dois processos: o “sintético” (acréscimo de sufixo) e o “analítico” (acréscimo

de adjetivo). A nomenclatura oficial cria o efeito de memória do discurso da tradição

gramatical. No entanto, nas gramáticas analisadas, esse mesmo conteúdo, apesar de ser

descrito, aparece problematizado, seja por comentários para o docente (no Manual do

professor e em inscrições nas margens do livro), seja ao logo da explanação para o

aluno. A SD2, a seguir, apresenta uma observação para o professor.

SD2

(GP2, Capítulo 12, p.186)

33
Sequência Discursiva.
88

A considerar que Celso Cunha é um gramático de orientação tradicional e

apropria-se de um dizer da Linguística (o fato de que não há flexão em grau nos

substantivos), entendemos que a SD2, acima, aponta a porosidade dos limites entre a FD

da Gramática Tradicional e a FD da Linguística na constituição da forma-sujeito das GP

analisadas. Há, nesse caso, uma migração de saberes discursivos que, inicialmente

inscritos na FD da Linguística, atualizam a matriz de sentido constituída no âmbito da FD

da Gramática Tradicional. A esse funcionamento discursivo, está pressuposto o fato de

que “os sentidos, pelo trabalho que se instaura sobre a Forma-Sujeito, podem atravessar

as fronteiras de uma FD onde se encontram, e deslizarem para outra FD, inscrevendo-se,

por conseguinte em outra matriz de sentido” (INDURSKY, 2011, p.71).

É relevante salientar que a SD1 e a SD2 foram retiradas da mesma GP, mas

apenas na SD2 (comentário para o professor) há “reformulação” na descrição dessa

categoria gramatical. Esse fato é significativo, uma vez que aponta o caráter de

relevância dessa informação para a proposta didática da GP, contida no Manual do

Professor, mas que, contraditoriamente, coloca-se como lugar periférico na teoria

gramatical, não figurando, assim, como objeto de ensino exposto para o aluno. Como

veremos adiante, essa contradição pode estar relacionada à função discursiva do manual

do professor, que, ao apresentar a proposta didática da obra gramatical, inscreve-se no

Discurso de Divulgação Científica (NÓBREGA, 2008) e, assim, funciona como lugar de

memória do discurso da Linguística.

Quando a problematização dos sentidos sobre a variação de grau nos

substantivos aparece ao longo do compêndio gramatical, ao qual o aluno tem acesso, ela

também se constitui como informação secundária e complementar. Na SD3, a seguir,

essa problematização aparece contida no boxe “Contraponto”.


89

SD3

(GP1, Capítulo 9, p. 120)

O lugar reservado à discussão sobre a descrição do grau dos substantivos, nas

GPs, é significativo. O boxe, apresentado na SD3, apesar de ser um lugar de destaque

no corpo do compêndio gramatical (por ser colorido e possuir enquadre), destina-se a

abordar conteúdos que são complementares e, por isso, não são “essenciais”. Não

desconsideramos que a presença desse boxe se coloca como ponto de heterogeneidade

nas GPs, mas entendemos que os conteúdos a ele vinculados, por assim aparecer, não

ocupam o espaço reservado à descrição “da língua”. Isso produz sentidos, na medida em

que possibilita a continuação do “destaque” atribuído à metalinguagem tradicional nas

GPs, a qual se encontra em “lugar ordinário”, ou seja, no “lugar de sempre”.

Esse gesto de interpretação aparece também na descrição desse boxe, feita no

Manual do professor da GP1. Vejamos a SD4, a seguir:

SD4 - (...) há um novo boxe chamado Contraponto, que contrapõe diferentes


pontos de vista acerca de algumas das normas da variedade padrão ou de
alguns aspectos da descrição gramatical. Às vezes, são pontos de vista da
linguística que diferem dos da gramática tradicional; às vezes são pontos
de vista sobre os quais há divergência entre os próprios gramáticos.
Entendemos que o papel do professor e do livro didático na escola não é
reproduzir fielmente, sem questionamentos ou críticas, o que determina
uma tradição gramatical cheia de problemas, lacunas e contradições
(MP1, p.13, grifo nosso).
90

A SD4, ao justificar a presença desse boxe ao longo da gramática, constitui-se

na trama de discursos concorrentes e antagônicos, criando um efeito de contradição. O

enunciado “trazer pontos de vista da linguística que diferem dos da gramática tradicional”

aponta para o pré-construído de que nessas gramáticas a metalinguagem tradicional tem

lugar de destaque, sendo preciso trazer saberes da Linguística a fim de se construir um

ensino “crítico” de português. Em seguida, a teoria gramatical, a mesma que é objeto de

ensino na GP1 (por ser lugar de abordagem da tradição), é caracterizada como sendo

“cheia de problemas, lacunas e contradições”.

Assim, apesar da teoria da gramática tradicional ser problematizada, ela não

deixa de ser trabalhada na GP1 (nem nas outras GPs). Embora faça um questionamento

dos sentidos inseridos na memória da tradição gramatical (“cheia de problemas, lacunas

e contradições”), esse sujeito nela se inscreve. Entendemos, portanto, que a presença do

discurso da Linguística a partir desse tipo de boxe termina por reforçar a hegemonia da

tradição gramatical nas GPs, uma vez que a existência desses boxes nessas

materialidades só se justifica por essa razão, isto é, pela hegemonia da tradição. O

sujeito, embora indique simpatia com os saberes da Linguística, aparece afetado pela

memória do ensino tradicional de língua, na qual os materiais didáticos aparecem como

“reprodutores” de conhecimentos da gramática tradicional.

A relação entre os saberes da FD da Linguística e da FD da Gramática

Tradicional, muitas vezes, ocupam o mesmo espaço de enunciação, ao longo da

explanação dos conteúdos gramaticais no compêndio destinado aos alunos. No entanto,

mesmo que os conteúdos, sob o olhar da Linguística, apareçam figurando no espaço de

descrição gramatical, os conteúdos vinculados à tradição não deixam de ser formulados.

As SD5 e SD6, a seguir, situadas na GP3, apresentam a teoria sobre a flexão de grau

nos substantivos:
91

SD5

(GP3, Unidade 11, p. 245)

SD6

(GP3, Unidade 11, p. 245)

Na SD5, o sujeito identifica-se com o discurso tradicional sobre o grau dos

substantivos: “o substantivo pode, portanto, apresentar-se no grau aumentativo e no

grau diminutivo” (grifo do autor). Logo em seguida, na mesma página, problematiza-se o

grau como flexão do substantivo (“Por que o ‘grau’ não é uma flexão do substantivo?”),

apontando que a formação do grau nessa classe de palavras “não é um processo de

flexão, inclusive porque ela não ocorre por meio de desinências”. Os sentidos

materializados nessas duas SD se contradizem, criando um lugar de tensão entre as FD

relacionadas.
92

Entendemos que os sentidos sobre a flexão de grau nos substantivos,

construídos segundo a NGB, embora interrogados em todas as GP analisadas, como

observamos nas SD2, SD3, SD6, ainda possuem legitimidade social no Brasil (aparecem

como referência para provas de concursos e de vestibulares, bem como em manuais de

língua) e, por isso, não podem ser esquecidos, sob a pena de perder a credibilidade de

funcionar como instrumento de descrição da norma padrão e, por conseguinte, de ser

utilizado como material didático. A partir de nossa experiência pedagógica, constatamos

o prestígio da tradição gramatical, a qual é procurada por estudantes e profissionais a fim

de “melhor” escrever e entender “a” língua portuguesa.

Retomamos, neste ponto, a polêmica construída pela mídia em torno do livro

“Por uma vida melhor” de Heloisa Ramos (cf. Introdução), cuja legitimidade de ser

trabalhado em sala de aula foi questionada pelo fato de, nele, terem sido materializados

dizeres que defendem o uso de estruturas de variação não-padrão em adequação à

situação de produção e, assim, essas estruturas não podem ser consideradas como

“erro” gramatical. Em outras palavras, a polêmica foi construída pelo deslocamento de

sentidos sobre gramaticalidade dos fatos linguísticos, os quais, influenciados pelos

estudos científicos sobre a língua, problematizam o saber gramatical, historicamente

determinado para funcionar nos materiais didáticos.

É relevante salientar que, embora os sentidos sobre língua veiculados pela

gramática tradicional terem sido naturalizados na memória social, os sentidos

“esquecidos” não deixam de atuar nessa memória, seja como oposição, seja como

resíduo no interior desse discurso predominante (INDURSKY, 2011). As FD que

constituem essa memória do ensino de língua definem suas fronteiras pela incessante

relação de diferença. Dessa forma, construiu-se, em contrapartida à crítica ao livro, um

simulacro de “irresponsabilidade social” atribuído à Linguística: permitir a descrição e uso

de sentenças de norma não-padrão em um livro didático é ensinar o “erro” aos alunos e,

assim, comprometer a preparação de cidadãos para crescer social e profissionalmente.


93

Ao mesmo tempo que os saberes da tradição gramatical são impelidos a

funcionar em materiais didáticos, por força da escola cumprir a missão de ensinar a

norma padrão da língua portuguesa aos cidadãos, a presença dos saberes da Linguística

se faz imperativa em reposta à crítica ao ensino tradicional, predominante na disciplina

Língua Portuguesa, crítica essa endossada pelos baixos índices apresentados nas

avaliações em grande escala no Brasil (cf. MARCHELLI, 2010)34. Dessa forma,

“reproduzir fielmente, sem questionamentos ou críticas, o que determina uma tradição

gramatical” (SD4, p.90-91) é estar contribuindo para um ensino “passivo” e “ineficiente”.

Compreendemos, então, que os conteúdos de ensino formulados e as propostas

de abordagem desses conteúdos nas gramáticas analisadas se definem pela

contraposição de memórias discursivas sobre o português e seu ensino nas escolas. É

relevante salientar que essa relação de alteridade e de heterogeneidade discursiva, em

que as FDs se constituem e se identificam perante o outro, ocorre mediante a construção

de representações por meio das quais esse outro é lido e interpretado. Em outras

palavras, além de representações diferentes (diga-se: divergentes) de língua e de ensino,

as FDs em questão nas GP se definem pela construção de saberes sobre o discurso

concorrente.

Como mencionamos anteriormente, construíram-se, sob o domínio da FD da

Linguística, dizeres sobre a imprecisão teórica do discurso tradicional, pautado por

critérios não científicos, e sobre a ineficácia do ensino da gramática normativa, que

desloca o estudo da língua de seu funcionamento efetivo, por privilegiar sentenças soltas

ao texto como objeto de análise35. Em contrapartida, em movimento de “resistência” à

crítica recebida, sob a extensão da FD da Gramática Tradicional, circulam sentidos sobre

34
São programas de avaliação em grande escala o SAEB, o ENEM, o PISA etc. (BRASIL, 2008).
Para maiores informações ver material disponibilizado pelo MEC, o qual apresenta as matrizes de
referência, tópicos e descritores desses exames, disponível em:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/saeb_matriz2.pdf.
35
Esses dizeres entre outros, como aponta Pietri (2003), dialogam com o Discurso da mudança
nas concepções de linguagem e no ensino de língua materna, formulado a partir da década de
1970.
94

a disciplina Linguística assumir o lugar do “tudo é possível”, em que se defende o

endosso de falar “errado”, na moda do “politicamente correto”.

Nas três gramáticas analisadas, observamos a recorrência de saberes

discursivos sobre o preconceito linguístico, tanto nas orientações para os docentes

(Manual do professor), quanto ao longo do compêndio gramatical, principalmente nos

capítulos introdutórios que tematizam questões gerais sobre linguagem e língua, tais

como: “linguagem verbal e não verbal”, “variação linguística”, “comunicação”, “texto”,


36
“gêneros textuais”, “funções da linguagem” e “discurso” . A presença dos saberes sobre

“preconceito linguístico”, nas GPs analisadas, é significativa, haja vista a problematização

da prescrição da norma-padrão dentro do próprio compêndio gramatical, que, como

vimos, é predominantemente prescritivista.

A SD7, a seguir, é um recorte das sugestões de encaminhamento dos conteúdos

em sala de aula, apresentado no Manual do professor da GP3.

SD7 - É importante que o professor enfatize o seguinte conceito, que é


fundamental na sociolinguística: linguisticamente, não existe uma forma mais
certa, mais errada, mais feia ou mais bonita de falar. Trata-se de diferentes
realizações da língua portuguesa que ocorrem em diferentes situações de
comunicação envolvendo diferentes falantes.
Ao final das atividades desta unidade [Unidade 2: Variações Linguísticas],
espera-se que os alunos estejam conscientes da importância de não
estigmatizar falantes que utilizam variedades linguísticas diferentes das
que eles próprios utilizam, ou seja, tenham um posicionamento linguístico
livre de preconceitos em relação a outras variedades sociodialetais (MP3,
p.6, grifo em itálico do autor e grifo nosso em negrito).

O primeiro aspecto relevante a ser observado na SD7 é a vinculação explicita à

“sociolinguística”, retomando, assim, sentidos inscritos na matriz de sentido da FD da

Linguística, como, por exemplo, o fato de que “linguisticamente, não existe uma forma

mais certa, mais errada, mais feia ou mais bonita de falar”. Esse enunciado ao ser

formulado se coloca em oposição ao pré-construído de que a gramática tradicional

considera estruturas da norma padrão como “correta” e “bela” e, por conseguinte,

36
Ver descrição da estrutura das gramáticas pedagógicas analisadas no Capítulo I, em que os
capítulos iniciais desses compêndios foram apresentados.
95

“estigmatiza” os falantes que utilizam as variedades diferentes dessa norma. Assim, os

saberes materializados sobre o preconceito linguístico marcam uma contraidentificação

da forma-sujeito à gramática tradicional.

Sendo assim, nessa formulação, ressoa transversalmente o discurso da tradição

gramatical, aparecendo sob a forma de um implícito. A observação desse enunciado

(SD7) é relevante para nossa análise, uma vez que sinaliza outras formas de

funcionamento da memória discursiva no dizer das gramáticas analisadas:

diferentemente da retomada da metalinguagem tradicional (SD1 e SD5), a qual é

legitimada pela memória institucional de ensino de língua portuguesa, os saberes

discursivos retomados na SD7, embora também apareçam sob o efeito de memória,

constroem-se sob a ilusão de terem sido formulados no discurso do sujeito. A presença

do pré-construído sobre a imagem do discurso gramatical, caracterizado como

assumindo uma posição preconceituosa, também ressoa na SD8, a seguir:

SD8

(GP2, Capítulo 5, p.76)

O Boxe “Cuidado com o preconceito!” aparece ao longo dos capítulos na GP2,

quando o conteúdo gramatical da norma-padrão distancia-se de estruturas equivalentes,


96

produzidas em contextos informais, geralmente, de registro oral37. A noção de

preconceito linguístico está atrelada à representação social do sujeito que fala a língua.

No caso específico da comunidade brasileira, há de se levar em consideração o fato de a

língua-padrão escrita (de prestígio) estar diretamente vinculada à classe dominante.

Disso decorre a estigmatização das variedades não-padrão e de seus falantes,

frequentemente, dentro de nossa sociedade.

Nesse boxe, o uso de uma piada em contexto de ensino de língua desvela a

escola como um dos principais lugares de produção de estigmatização à língua e aos

sujeitos. O primeiro ponto a ser observado é a distância entre a língua falada pelos

alunos e a ensinada pela professora: “bicicreta” e “prástico” em oposição à “bicicleta” e

“plástico”, por exemplo. O segundo ponto, por sua vez, é a metodologia focada na

tradição, retomada pelo ensino da classe gramatical dos verbos, que produziria essa

estigmatização, tanto pela atitude prescritivista “Não se diz ‘bicicreta’, e sim ‘bicicleta’”,

quanto pelo trabalho da metalinguagem tradicional sem considerar os conhecimentos

linguísticos prévios dos alunos.

Mais especificamente, as SD7 e SD8 são construídas a partir da retomada da

crítica à tradição, a qual, em contexto brasileiro, está relacionada ao “fracasso escolar”:

com a democratização do ensino, reuniram-se, nas escolas, alunos pertencentes a

comunidades linguísticas variadas, as quais, na maioria das vezes, distanciam-se da

variedade padrão, sendo assim, a abordagem prescritivista da língua se coloca como um

dos principais agentes de “exclusão”, sendo responsabilizada pelos altos índices de

evasão e pela baixa qualidade de ensino (LEITE, 2006). Entendemos que esse tipo de

37
É relevante salientar que boxes semelhantes a esse são postos ao longo da GP2, como o “De
olho na fala”, em que são apresentadas e comentadas estruturas típicas da oralidade, que, apesar
de não corresponderem às prescrições da gramática normativa, são consagrados pelo uso (MP2,
p.8).
97

boxe38 aparece como réplica às críticas feitas, em cenário nacional, à abordagem

excessivamente prescritivista da tradição gramatical.

Neste ponto da análise, pretendemos enfatizar o fato de que a própria

organização das GPs analisadas é efeito da relação polêmica entre essas FDs,

constitutivas da memória do ensino de língua. Diferentemente das gramáticas teóricas de

referência, as gramáticas analisadas trazem o manual do professor (MP) junto ao

compêndio, colocando-o em relação de complementaridade com a exposição teórica e

com os exercícios propostos. Estamos o compreendendo não como apêndice, mas como

parte constitutiva da GP, uma vez que sua presença está relacionada ao trabalho com a

língua nas outras partes do compêndio.

Trata-se de um material de apoio pedagógico que explicita a orientação teórico-

metodológica da gramática e traz sugestões de abordagem dos objetos de ensino-

aprendizagem em sala de aula. Além disso, nesse espaço de enunciação, os autores das

gramáticas sugerem respostas aos exercícios, relacionados ao trabalho prático com os

conteúdos gramaticais. Por trazer a descrição das teorias que embasam o material

didático e indicações de leitura para o docente, o MP inscreve-se no discurso de

divulgação científica (NÓBREGA, 2008), atrelado à apresentação de noções inscritas na

FD da Linguística, isto é, da “ciência da linguagem”.

Dessa forma, a presença do MP, nas GPs, é significativa, uma vez que são

postas em relação duas materialidades de orientação discursiva oposta: de um lado,

sentidos sobre a língua legitimados sob o critério de cientificidade e, de outro, sentidos

construídos em torno da arte do “bem falar”, naturalizados na memória social dos

brasileiros. É dessa relação contraditória que ocorre a construção discursiva dos

conteúdos gramaticais, apresentados como objeto de ensino-aprendizagem no material

didático em questão.

38
Incluímos nessa reflexão todos os boxes complementares postos ao longo das gramáticas
pedagógicas analisadas, tais como “Contraponto” (GP1), “Cuidado com o preconceito?” e “De olho
na fala” (GP2), e “O que dizem os linguísticas?” (GP3). Esses boxes foram descritos no Capítulo II,
na seção de constituição do corpus.
98

Desse modo, não se trata apenas de uma gramática tradicional que circula na

escola, mas de uma nova materialidade que se constitui por processos discursivos

específicos, relacionados ao seu funcionamento como instrumento didático-pedagógico.

Há, nos manuais, a presença dos saberes cientificamente legitimados, os quais justificam

a circulação das próprias GPs em âmbito escolar, saberes esses divulgados pelas

políticas educacionais39. Sob essa perspectiva, o MP funciona como lugar de controle de

discursos linguísticos e pedagógicos que circulam na escola. Por conseguinte, as

sugestões pedagógicas apresentadas por ele ganham peso de prescrição.

A partir das considerações sobre o contexto de produção das GP e sobre sua

natureza polêmica, entendemos que o sujeito-autor das gramáticas inscreve-se em um

determinado lugar discursivo, o qual está determinado pelas relações de verdade e de

poder institucional que ele representa socialmente: escola, ciência e políticas linguístico-

educacionais. No entanto, a mesma forma-sujeito do discurso da Gramática Pedagógica,

ao materializar os saberes vindos do interdiscurso, pode ocupar diferentes posições de

sujeito no discurso, ora se identificando com o saber da Gramática Tradicional, ora com o

saber da Linguística.

Primeira síntese intermediária

Nas Gramáticas Pedagógicas, a memória do ensino de língua portuguesa se

constitui pela relação polêmica entre a Formação Discursiva (FD) da Gramática

Tradicional e a da Linguística, as quais delimitam suas fronteiras pela relação de

39
É relevante salientar que a construção de manuais do professor segue as orientações do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) (NÓBREGA, 2008), instituído em 2004 com fins a
melhorar a qualidade dos materiais didáticos na rede pública de ensino. Desse modo, a presença
de manuais do professor nas gramáticas pedagógicas vincula a construção dessas gramáticas a
programas de avaliação do ensino. Apesar de não serem avaliadas pelo PNLD (a avaliação é
39
restrita a livros didáticos ), as gramáticas pedagógicas sofrem influência de seus critérios de
avaliação.
99

oposição, diferenciando-se quanto à representação de língua e quanto à proposta de

abordagem dela, na disciplina de Língua Portuguesa. Está pressuposto o fato de que

todo discurso é heterogêneo e se constitui por outros discursos. A sua aparente

autonomia é efeito da ideologia.

Para a tradição, a extensão da língua coincide com a norma-padrão e, assim,

tudo o que não pertence a essa norma é considerado “erro”. A abordagem da língua é

feita sob a fragmentação da formulação linguística em palavras e sentenças. Para a

Linguística, a língua abrange todas as variedades sociodialetais e o uso do padrão está

relacionado à adequação a situação de produção. Construiu-se, sob essa perspectiva, a

necessidade de erigir o texto como objeto de análise da língua.

Além disso, essas FDs se distinguem mutuamente através das representações

construídas sobre o discurso opositor, as quais resultam do modo como esse discurso é

interpretado e lido. Um exemplo significativo é a imagem da tradição gramatical atrelada

ao preconceito linguístico, por privilegiar uma postura essencialmente prescritiva. Essa

imagem, por sua vez, produz a necessidade de modalização do discurso tradicional que

funciona na escola, a partir da apropriação de sentidos inseridos no âmbito da

Linguística. É por isso que as gramáticas tematizam o processo de variação linguística

nos capítulos iniciais.

A relação polêmica entre essas FDs aparece nos enunciados através da

inscrição “explícita” (uso de metalinguagem e referenciação teórica), bem como através

de implícitos, pela retomada do pré-construído, que se materializa na linguagem sob o

efeito de ser produzido no discurso do sujeito. A própria estrutura das gramáticas aponta

a relação polêmica entre essas FDs, haja vista o manual do professor apresentar-se

como lugar de memória da Linguística em um compêndio historicamente relacionado à

tradição gramatical.
100

3.2 Réplica à critica ao ensino de gramática tradicional: o desejo do “novo”.

Como foi indicado na seção anterior, o efeito de memória sobre o ensino de

língua nas gramáticas pedagógicas se constitui mediante a relação polêmica entre a FD

da Gramática Tradicional e a da Linguística, as quais podem, muitas vezes, coexistir na

construção de um mesmo conteúdo gramatical (ex.: categoria de grau nos substantivos).

Nesta seção, investigamos como essa memória se constitui na proposta pedagógica,

divulgada no manual do professor, lugar esse em que são apresentados, aos docentes

da disciplina Língua Portuguesa, os pressupostos teórico-metodológicos que subjazem

as obras analisadas.

Devido ao seu lugar de divulgação científica e de apoio metodológico,

entendemos que é no MP onde se justifica a abordagem dos conteúdos gramaticais ao

longo do compêndio, por meio da explicitação do que está sendo entendido como

“língua”, “gramática” e “ensino de gramática”. Dessa forma, é nessa materialidade

simbólica que os sujeitos-autores das GPs apontam, sob o efeito de aparente autonomia

e transparência, suas filiações teórico-epistemológicas e as implicações pedagógicas

dessas escolhas para o trabalho em sala de aula.

Nas três gramáticas analisadas, a proposta de ensino do conteúdo gramatical

coloca-se vinculada a uma “nova” perspectiva, posta como não coincidente com a

abordagem de orientação tradicional, historicamente repetida nesse tipo de compêndio. É

relevante pensarmos, inicialmente, como o “novo” é tratado nos estudos discursivos de

orientação pecheutiana. Sob esse viés, não existe produção inédita dos sentidos, uma

vez que toda formulação de linguagem (intradiscurso) retoma o interdiscurso, ou seja,

dizeres ditos anteriormente e alhures, os quais, esquecidos, ressoam a cada tomada de

palavra sob a ilusão de terem sido produzidos no instante da enunciação (PÊCHEUX,

2009 [1975]; ORLANDI, 2001).


101

Dessa forma, toda e qualquer proposta de ensino que se categorize como “nova”

assim o faz por meio da relação com o que se é considerado “velho”, através de

movimentos de identificação, que podem interrogá-lo ou até negá-lo. Em outras palavras,

a repetibilidade está na base da produção discursiva: sustenta ao mesmo tempo a

regularização dos sentidos que se encontram em circulação no social e sua

desregularização e transformação (INDURSKY, 2011). Por ser lugar de memória da

tradição gramatical, entendemos que os sujeitos das GPs analisadas retornam ao

discurso fundador sobre língua e ensino de língua, mas se relacionam com ele

diferentemente por materializar o desejo pelo “novo”.

Em relação a isso, indagamo-nos sobre o modo como é construída essa

“renovação” do ensino, se haveria (ou não) rompimento com o “velho”. As sequências

discursivas (SD), a seguir, apresentam, sumariamente, as propostas de ensino de

gramática apresentadas nos MPs analisados:

SD9 - A obra Gramática reflexiva, voltada a professores e alunos que aspiram


a um ensino renovado de língua portuguesa, confirma e atualiza as opções
metodológicas e didáticas da edição anterior.
Com um enfoque diferente do que é dado pela gramática tradicional, que
se volta quase exclusivamente à classificação gramatical (morfológica e
sintática), esta obra não se propõe eliminar esse tipo de conteúdo, mas
redimensioná-lo no curso de Língua Portuguesa e incluir uma série de
outras atividades com a língua, que levam à aquisição de noções da maior
importância, tais como enunciado, texto e discurso, intencionalidade linguística,
o papel da situação de produção na construção de sentidos do enunciados,
preconceito linguístico, variedades linguísticas, semântica, variações de
registro (graus de formalidade e pessoalidade), etc. (MP1, p.4; grifos em itálico
dos autores; grifo em negrito nosso).

SD10 - Todo o estudo de gramática do português desenvolvido neste livro se


fundamenta na análise de textos associados a um contexto. Esperamos, assim,
resgatar o caráter discursivo da linguagem, que prevê a interação entre
interlocutores diferentes e reconhece intenções específicas a partir das
escolhas linguísticas realizadas por tais interlocutores. (...) A aprendizagem de
gramática normativa deverá ser feita, portanto, dentro da perspectiva maior
que define o desejo de conhecer as diversas possibilidades de organização
da língua e os contextos em que tais possibilidades são ou não aceitável.
(MP2, p.4 - 5).

SD11 - A proposta desse livro é desenvolver um curso teórico-prático de


gramática escolar que, conciliando as diferentes abordagens de ensino de
Língua Portuguesa e as diferentes formações acadêmicas dos
102

professores, atenda às expectativas dos alunos relativamente à ampliação de


suas competências linguísticas e, simultaneamente, ofereça-lhes a
possibilidade de sistematizar a base teórica dos conhecimentos linguísticos
necessários à continuidade de sua vida escolar. (MP3, p.3).

As SD9, SD10 e SD11, acima, referem-se respectivamente aos MP1, MP2 e

MP3. Em todas as sequências e, portanto, em todos os MPs, propõe-se um “ensino

renovado de língua portuguesa” que apresenta a tradição gramatical como ponto de

partida: na SD9, é proposto um enfoque diferente para a Gramática Tradicional, e,

portanto, nega-se a exclusão da metalinguagem historicamente atrelada a ela (“esta obra

não se propõe eliminar esse tipo de conteúdo”); na SD10, afirma-se o trabalho a partir da

“gramática normativa”; e, na SD11, é proposto “um curso teórico-prático de gramática

escolar”, isto é, de abordagem prescritivista atrelada à tradição. Ao mesmo tempo que

essas propostas retomam a tradição gramatical, elas se colocam como diferentes a ela.

As marcas linguísticas selecionadas pelos sujeitos-autores para apresentar a

proposta de ensino das GPs, inicialmente, levam-nos a entender três movimentos de

“pretensa” retomada e “transformação” do “velho”, os quais consistem, respectivamente,

em: (1) redimensionamento, (2) ampliação e (3) conciliação de saberes. Utilizamos o

adjetivo “pretensa” para qualificar esses movimentos por entender que o sujeito do

discurso não tem controle sobre seu dizer, haja vista a sua inscrição em uma FD como

condição para a produção dos sentidos. Assim, para a Análise de Discurso, o sujeito é

assujeitado ideologicamente e disso não tem consciência (ORLANDI, 2001).

No primeiro caso (SD9), é proposto redimensionar os conteúdos da gramática

tradicional no curso de Língua Portuguesa para “incluir uma série de outras atividades

com a língua”. O verbo “redimensionar” aponta para a construção de outras dimensões

para o ensino de gramática, o que, necessariamente, não a desterritorializa. A pretensão

de “incluir” outras noções, por sua vez, não garante esse redimensionamento,

principalmente porque as noções postas como relevantes não modificam diretamente o


103

processo de gramaticalização da língua, e, portanto, do recorte que é feito dela para a

produção de saberes metalinguísticos.

Na SD10, por sua vez, é proposto o ensino de gramática normativa sob uma

“perspectiva maior”, isto é, ampliando-o, por pretender trabalhar esse tipo de conteúdo a

partir da “análise de textos associados a um contexto”. Semelhantemente a proposta do

MP1 (SD9), o sujeito da SD10 propõe manter a gramatização da norma padrão como

referência para o uso “da língua”, mesmo que argumente que esse uso seja determinado

pelo contexto de produção. A “ampliação” do ensino gramatical é proposta pelo

reconhecimento do “caráter discursivo da linguagem”, colocando, assim, em relação duas

dimensões da língua: a sistêmica e a pragmático-interacional40. Entendemos que se

pretende modificar mais o modo como esse conteúdo é trabalhado em sala de aula do

que sua constituição.

Por fim, na SD11, o movimento de reorientação do ensino de gramática se faz

pela proposta em conciliar “as diferentes abordagens do ensino de Língua Portuguesa e

as diferentes formações acadêmicas dos professores”. Em seguida, no mesmo MP, os

sujeitos-autores, ao tratar de uma seção de exercícios, intitulada “Da teoria à prática”,

exemplificam as diferentes abordagens já mencionadas. Vejamos a SD12.

SD12 - Os exercícios dessa seção baseiam-se, principalmente, em


proposições da gramática textual, da análise de discurso, da semântica e
da pragmática, sem, no entanto, fazer uso da terminologia específica
desses ramos da Linguística. Trata-se de um conjunto de exercícios que,
considerando os limites e os objetivos de um curso escolar de gramática,
buscam estabelecer relações objetivas entre o tópico teórico estudado e
aspectos práticos e funcionais de textos de diferentes gêneros,
prioritariamente literários, publicitários, humorísticos e informativos, ou seja,
aqueles com os quais o estudante tem maior contato em sua vida cotidiana.
(MP3, p.4, grifo em itálico do autor; grifo em negrito nosso).

40
Como veremos adiante, a noção de “discurso”, como efeito de sentidos entre interlocutores
(PÊCHEUX, 2010 [1969]), tal como é apresentada na AD, não é contemplada nas propostas de
ensino formuladas. A língua aparece como sistema estável e os sentidos são produzidos por
propriedades da língua.
104

A SD12 é relevante para a descrição da proposta do MP3, na medida em que

elenca as “diferentes abordagens do ensino de Língua Portuguesa”, apontadas

anteriormente (na SD11). Como podemos perceber, o ensino de gramática aparece

influenciado por teorias diversas, vinculadas à Linguística: “gramática textual”, “análise de

discurso”, “semântica” e “pragmática”. É relevante salientar que essas tendências

teóricas não tomam a descrição da língua como objetivo de estudo, pelo contrário,

consideram aspectos que ultrapassam os limites das regras gramaticais da língua, ora

focalizando a produção de textos (estrutura, interlocutores, situação de produção), ora a

construção de sentidos nesses textos (processos semânticos e discursivos).

Dessa forma, entendemos que a “ausência” de uma teoria vinculada à

Linguística que descreve os fatos da língua diferentemente da tradição, isto é, a partir de

outros princípios e procedimentos de descrição, (re)coloca os estudos tradicionais de

gramática no centro das atividades didático-pedagógicas sobre língua em sala de aula –

por, assim, se constituir como única referência para as atividades com esse tipo de

conteúdo. A vinculação entre as tendências teóricas mencionadas e a tradição, a nosso

ver, parte da tentativa de trazer o texto para os estudos gramaticais da tradição, não

como ponto de partida para a descrição, uma vez que a perspectiva tradicional não o

considera para isso, mas como objeto de análise para reflexão sobre os usos linguísticos.

O termo “conciliação” é significativo, uma vez que aponta o desejo de apagar a

heterogeneidade discursiva das diversas perspectivas teóricas sobre língua, que, muitas

vezes, são “inconciliáveis” por conceber língua e sujeito diferentemente e, por isso,

tratarem de objetos de investigação também diferentes. É relevante salientar que essa

vontade de “conciliação” se constrói sob a ilusão de um trabalho que contempla a língua

em sua totalidade e, por isso, coloca-se como “completo”. Escapa ao sujeito a

incompletude da língua e, por consequência, a incompletude dos sentidos, em que

ambos são afetados pela história. Assim, o ato de “conciliar” não está na alçada do
105

sujeito, haja vista a relação entre essas teorias ocorrer pelo funcionamento de processos

discursivos.

Embora a “conciliação” de saberes seja recorrente no discurso pedagógico,

como podemos observar historicamente em gramáticas que circulam na escola41, as

quais vinculam elementos da estilística (verso, rima) e da semântica (figuras de

linguagem) a conteúdos morfossintáticos, essa “conciliação” se faz regulada pelos

“limites e objetivos de um curso escolar de gramática”. Dessa forma, não são quaisquer

teorias que são “conciliadas”, nem quaisquer relações que são construídas entre elas: os

dizeres produzidos nas GPs, a partir da multiplicidade de abordagens teóricas, são

determinados pela relação que essas abordagens estabelecem com a FD da Gramática

Tradicional.

A partir das considerações iniciais sobre as propostas de ensino nas gramáticas

analisadas, apresentadas nas SD9, SD10 e SD11, compreendemos que a FD da

Gramática Tradicional apresenta-se como dominante, construindo-se pela relação com a

FD da Linguística. “Redimensionar”, “ampliar” e “conciliar” são movimentos de construção

da proposta de ensino, nas GPs analisadas, que tomam a tradição gramatical como

denominador comum. Em verdade, isso é o que as caracteriza como tal: gramáticas que

circulam na escola. Tanto é que as gramáticas de estudos predominantemente filiados à

Linguística não funcionam ainda como material didático, apenas como material de apoio

ao professor.

Mais do que se relacionar com os saberes discursivos sobre língua, inscritos na

FD da Linguística, as propostas de ensino de gramática, veiculadas nos MP, são

definidas pelo jogo de simulacros entre esses discursos, isto é, pelo modo como são lidos

e interpretados pelo outro a que se opõe. Dessa forma, o desejo de “renovação” do

41
A busca em conciliar diferentes abordagens de ensino é um procedimento comum em
instrumentos de ensino-aprendizagem que circulam na escola, inclusive foi um dos artifícios
utilizados na construção da gramática expositiva de Eduardo Carlos Pereira, o qual une a
gramática histórica à filosófica (ORLANDI, 2002).
106

ensino de gramática se constrói em réplica à crítica feita a esse ensino em contexto dos

estudos científicos sobre linguagem, principalmente a partir da década de 1970, com a

institucionalização da disciplina Linguística nas universidades. Sob essa perspectiva, faz-

se necessário dispormos de um outro olhar para as SD9, SD10 e SD11.

Na SD9, a expressão “ensino renovado” significa mediante a retomada no

interdiscurso de saberes sobre a crítica ao ensino de gramática normativa nas escolas: o

fato de esse ensino, repetido constantemente nas disciplinas de Língua Portuguesa,

aparecer problematizado nas discussões da Linguística, visto como insuficiente para

cumprir com os objetivos do ensino de língua e, por consequência, precisar ser

modificado (“redimensionado” e “ampliado”).

Em outras palavras, essa expressão se ancora no pré-construído, inscrito na FD

da Linguística, de que o ensino tradicional de gramática se coloca como “ineficiente”, fato

posto como “transparente” pela divulgação de dados oficiais sobre os baixos índices

alcançados pelos alunos nas avaliações em grande escala, especificamente, nas

atividades que requerem habilidades de leitura e escrita. O conceito de pré-construído é

tomado nos estudos pecheutianos como a retomada do interdiscurso em um dado

discurso, aparecendo como se tivesse produzido no momento da enunciação, isto é, é

um sentido que “fala antes, em algum lugar” que se apresenta na formulação como

reconhecido e partilhado.

É a retomada desses dizeres sobre a crítica ao ensino de gramática tradicional,

nos enunciados analisados, que permite a inscrição de teorias da Linguística que

colocam o texto como objeto de estudo (SD12), e, por conseguinte, possibilita a produção

de propostas de “conciliação” entre essas teorias e a tradição. Dessa forma, o pré-

construído irrompe, como memória discursiva, na formulação do dizer, fornecendo-lhe a

matéria-prima na qual o sujeito se constitui como ‘sujeito falante’, isto é, trazendo traços

do que o determina ideologicamente. Segundo Pêcheux (2009 [1975], p. 151), “o ‘pré-


107

construído’ corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a

‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma de universalidade (‘o mundo das coisas’)”.

Como vimos anteriormente (cf. Capítulo I), a gramática tradicional não considera

o “texto” como objeto de análise para a construção dos saberes metalinguísticos, mas o

faz a partir da fragmentação da realidade linguística em unidades menores como a de

palavra e de sentença. Sob essa consideração, construíram-se saberes, no âmbito da FD

da Linguística, sobre a “artificialidade” dessa abordagem que desconsidera o processo de

interação verbal e que, por isso, o estudo dela, isoladamente, em sala de aula “não é

suficiente para que os alunos aprendam a ler e a escrever”.

É, portando, em reposta a esses dizeres, que são construídos discursos sobre a

“necessária” análise da gramatica normativa a partir de “textos associados a um

contexto”, considerando-se, assim, “o caráter discursivo da linguagem” (SD10); e sobre a

“necessária” inclusão de outras noções metalinguísticas, tais como “enunciado”, “texto e

discurso”, “intencionalidade linguística” e “o papel da situação de produção na construção

dos enunciados” (SD9). Essas palavras mantêm entre si relações de parafrasagem, que

as colocam na matriz de sentido construída no âmbito da FD da Linguística.

Em suma, nos MPs analisados, as propostas de ensino “renovado” de gramática

se constituem por relações de contradição entre a FD da Gramática Tradicional e a da

Linguística. Há, nessas materialidades discursivas, saberes que interrogam o ensino da

gramática normativa divulgado em materiais didáticos e, consequentemente, nas aulas

de Língua Portuguesa, apesar de, ao mesmo tempo, propô-lo como base para a proposta

didático-pedagógica, recuperando seus saberes através da apresentação da

metalinguagem tradicional.

Neste ponto da análise, para entendermos como a proposta de “renovação” do

ensino de língua é construída nos MPs, faz-se relevante observamos o modo como a

relação polêmica entre tais FDs se materializa na definição do que se entende por

“ensino de gramática”, o que, a nosso ver, está diretamente relacionado com as


108

representações de “língua” e de “gramática”, bem como com as de “sujeito” de ensino:

aluno e professor. É a partir disso que podemos interpretar os efeitos de sentido

produzidos por essa relação discursiva para o ensino de Língua Portuguesa nas escolas.

A representação de língua nas Gramáticas Pedagógicas se constitui na tensão

entre a consideração da variação linguística e o estudo da norma-padrão. A proposta de

“renovação” do ensino de gramática está diretamente atrelada ao questionamento da

representação de língua que fundamenta os estudos tradicionais. Vejamos a SD13,

abaixo:

SD13 - A língua, nesta obra, não é tomada como um sistema fechado e


imutável de unidades e leis combinatórias, mas como processo dinâmico de
interação, isto é, como um meio de realizar ações, de agir e atuar sobre o
outro. (MP1, p. 4).

O enunciado em negrito, na SD13, é construído a partir da negação da noção de

língua “como um sistema fechado e imutável de unidades e leis combinatórias”. Essa

proposição que é negada refere-se a uma visão formalista de língua, em que a gramática

normativa estaria incluída. No contexto dos estudos linguísticos no Brasil, essa visão

sobre língua é posta em crise: por não considerar a exterioridade da língua como

constitutiva dela, essa perspectiva restringe o ensino de língua à aprendizagem de regras

finitas, descontextualizadas de qualquer situação de produção.

Esse enunciado (SD13), por meio da negação, põe em relação saberes

divergentes sobre língua, inscritos nas FDs da Gramática Tradicional e da Linguística.

Trata-se de um enunciado dividido, que, como afirma Courtine (2006), forma-se na

tensão que liga processos discursivos inerentes a duas FDs antagônicas, materializando

linguisticamente essas contradições interdiscursivas, bem como as fronteiras entre esses

domínios de saber. Em outras palavras, o funcionamento discursivo da negação permite

a construção de enunciados divididos entre duas posições-sujeito (PS).

A PS1 refere-se ao pré-construído de “língua como um sistema fechado e

imutável de unidades e leis combinatórias”, inscrito na FD da Gramática Tradicional; a


109

PS2, por sua vez, constitui-se pelo acréscimo do advérbio de negação “não” à formulação

inscrita na PS1 e, dessa forma, coloca-se em negação/oposição ao pré-construído que

ancora essa formulação. O advérbio “não” é o índice linguístico que sinaliza a

interrogação do sujeito aos saberes da FD da Gramática Tradicional e sua identificação

com a FD da Linguística.

A forma-sujeito na SD13 se constitui pela retomada, na memória, de dizeres do

discurso concorrente e antagônico (o da tradição gramatical), os quais divergem dos

saberes sobre língua que constituem a matriz de sentido no âmbito da FD da Linguística.

A retomada desses sentidos é significativa para a constituição do sujeito, uma vez que,

ele se afirma sob o efeito de verdade ao colocar-se em contraste com saberes de outra

FD, à qual se opõe, isto é, identifica-se com o oposto da tradição gramatical e assim

coloca-se como diferente dela.

A relação de oposição entre essas FDs, que se constitui no interdiscurso,

materializa-se, na SD13, como o pré-construído de que a concepção de língua para a

tradição gramatical, centrada na prescrição da norma-padrão, limita-se a referenciar uma

porção determinada da língua, excluindo outras possibilidades de uso cabíveis conforme

o contexto de produção verbal e, assim, por não considerar a língua como “processo

dinâmico de interação”, não se legitima mais para fundamentar os trabalhos sobre língua

em sala de aula. Dessa forma, a relação polêmica entre essas FDs no interdiscurso,

apontada pela crítica aos pressupostos teórico-metodológicos da tradição, aparece como

um dizer posto e compartilhado.

A abordagem sobre língua feita pela tradição é considerada pelos estudos

teóricos da Linguística como uma das responsáveis pela dificuldade dos alunos

brasileiros em ler e escrever textos, mesmo depois de anos estudando “a” gramática do

português na escola. A crítica a essa representação de língua serve de suporte para a

formulação de outros enunciados, como, por exemplo, “a língua como processo dinâmico

de interação” e “meio de realizar ações, de agir e atuar sobre o outro”. Essas formulações
110

ampliam o espaço de trabalho com a língua nas GPs, permitindo abordar elementos

tradicionalmente considerados como “externos” a ela.

A negação funciona discursivamente trazendo o discurso do outro (INDURSKY,

1997), o da Gramática Tradicional, para o espaço do discurso um, o da Linguística. A

coexistência desses discursos mediante o conflito instaurado na formulação é efeito de

sentido resultante do trabalho do sujeito na língua, que, a partir da inscrição necessária

na ideologia, contraidentifica-se com a FD da Gramática Tradicional. São esses

enunciados divididos que materializam, no discurso dos MPs analisados, a crítica (a

oposição) à tradição gramatical.

A oposição ao caráter imanente da língua aponta para as teorias sobre o

funcionamento da linguagem que consideram os aspectos sociais e/ou culturais do

contexto de produção de sentidos, atribuindo aos interlocutores o papel de “construir” o

sentido na interação. Trata-se de uma postura de tomada Sociologista dentro da FD da

Linguística. Essa tendência pode ser observada nas SD9 e SD10 pela inscrição de

expressões como “interação entre interlocutores diferentes”, “intenções específicas a

partir das escolhas realizadas por tais interlocutores”, “processo dinâmico de interação”,e

“meio de realizar ações, de agir e atuar sobre o outro”.

A consideração dos elementos contextuais como condicionantes do ato

comunicativo abre espaço para a discussão sobre o fenômeno da variação linguística nos

MPs analisados. Isso porque a noção de “variação” designa a existência de diferenças

linguísticas no modo como uma comunidade emprega sua língua (FARACO, 2002):

diferentes falantes falam de maneiras diferentes; e uma mesma pessoa fala de uma

maneira em uma situação e de maneira diversa em outro contexto de enunciação. Sob

essa perspectiva, a língua se modifica conforme o contexto de uso, fato que se coloca em

oposição à noção de língua como “sistema fechado e imutável”.

SD14 – Outro conceito estruturador da visão de língua portuguesa que embasa


esta obra é o de variação linguística, apresentado no primeiro capítulo.
Julgamos indispensável que o aluno compreenda que não existe uma só
111

variedade de português e que a norma culta (ou variedade padrão) é


apenas um dos diferentes sistemas em que a língua se organiza. (MP2, p.
4).

A SD14 apresenta o conceito de “variação linguística como estruturador da visão

de língua portuguesa” na obra em questão. Essa apresentação, semelhantemente à

SD13, constitui-se pela relação de contraste entre duas posições-sujeito, postas em jogo

pelo funcionamento discursivo da negação. Na construção “que não existe uma só

variedade de português”, a PS1, que se refere à formulação do enunciado na afirmativa

(“existe uma só variedade de português”), está atrelada à FD da Gramática Tradicional:

com o processo de gramatização das línguas vernáculas, a variedade padrão passou a

ser identificada como a própria língua e, sob esse viés, todos os usos que não se

enquadram nessa norma são considerados “erro” linguístico.

A PS2, por sua vez, inscreve-se na FD da Linguística por meio da negação da

primeira formulação (PS1). O desenvolvimento dos estudos sociolinguísticos permitiu a

construção de outros dizeres sobre a norma-padrão, colocando-a como “apenas mais um

dos diferentes sistemas que a língua se organiza” (SD14). Apresenta-se como “evidente”

o pré-construído de que toda língua modifica-se no tempo e no espaço e, sob essa

perspectiva, a variação linguística é um elemento básico no comportamento linguístico de

todos os falantes, sendo o propulsor da mudança linguística.

Em decorrência dessa tomada sobre a língua, abre-se a discussão sobre a

noção de “preconceito linguístico”, posta como consequência da abordagem prescritivista

de gramática: a avaliação sobre os fatos da língua, categorizados como “correto” ou

“errado”, transcendi aos falantes que utilizam essas estruturas. Assim, para a tradição, os

falantes que fazem uso da norma-padrão se comunicariam de modo mais “eficiente” e

“bonito” dos que dela não fazem uso. Estão em jogo, nessa discussão, além de saberes

sobre língua, saberes sobre os seus falantes.

SD15 - Esperamos que tal conceito nos ajude a desfazer, desde o início do
estudo das estruturas do português, a ideia preconceituosa de que há
112

formas melhores ou piores. Para que o aluno possa de fato entender as


consequências do reconhecimento da existência de diferentes variedades do
português, as discussões e as análises propostas nesta obra baseiam-se no
princípio da adequação ao contexto em que a língua está sendo utilizada. É
a identificação desse contexto que permite considerar adequada ou não uma
construção linguística específica. (MP2, p. 4).

SD16 - Contribuir para que o aluno desenvolva uma visão não preconceituosa
em relação às variedades linguísticas divergentes da variedade padrão.
(MP3, p.3; grifo em itálico do autor)

As SD15 e SD16 materializam a preocupação em desenvolver nos alunos “uma

visão não preconceituosa em relação às variedades linguísticas divergentes da variedade

padrão” (SD15), processo que prescinde que se desfaça, “desde o início do estudo das

estruturas do português, a ideia preconceituosa de que há formas melhores ou piores”


42
(SD16) . A construção dessas formulações está atrelada à retomada, na memória, de

que a língua-padrão ensinada na escola e os valores sobre ela fazem parte do imaginário

social dos brasileiros. Por conseguinte, a escola aparece como lugar de funcionamento

do preconceito linguístico, fato esse que implica a necessidade de se “desfazer” tal

realidade.

Em relação às considerações sobre língua materializadas nos MPs, é relevante

salientar que, apesar de apontar para aspectos relacionados ao funcionamento da

linguagem, o modo como esse funcionamento é caracterizado retorna à ideia de “língua

como código”, da qual essas considerações propõem se afastar. Entendemos que o

deslocamento entre as representações de língua postas em jogo na enunciação, pela

relação polêmica entre a FD da Gramática Tradicional e a da Linguística, ocorre pela

mudança no que se entende ser a relação do sujeito com a língua. No entanto, por

ambas as perspectivas conceberem a separação entre eles (língua x sujeito), retonam à

representação de língua como instrumento de comunicação.

Conforme os saberes filiados à tradição gramatical, a língua é um sistema

autônomo, homogêneo e imanente, o que significa que os sentidos decorrem das

42
Essa preocupação justifica o trabalho com os aspectos gerais da linguagem e, dentre eles a
variação linguística, nos capítulos introdutórios das gramáticas pedagógicas analisadas. (cf.
Capítulo II).
113

relações internas entre os elementos linguísticos. O sistema linguístico, compartilhado

por determinada comunidade de uso da língua, estaria virtualmente à disposição dos

sujeitos para que eles possam dele se utilizar para se comunicar. Dessa forma, o sujeito

está fora da língua e, portanto, não pode modificá-la. A língua aparece delimitada a um

conjunto finito de regras que corresponde às prescrições da norma-padrão. O sujeito,

assim, usa a língua mediante determinações das regras gramaticais prescritas e, assim,

os usos que “desobedecem” à prescrição são estigmatizados.

No que concerne à perspectiva de cunho sociologista assumida pelos MPs

analisados, por sua vez, o sujeito “opera” sobre a língua (SD13) e, assim, o uso que dela

se faz não é estritamente determinado pelas regras gramaticais, uma vez que é

influenciado pela situação de produção. Vejamos como esses sujeitos são apresentados

nas SD17, SD18 e SD19, a seguir:

SD17 - Com essas mudanças, espera-se que o aluno deixe de ser capaz
apenas de descrever a língua, particularmente no que se refere às normas da
variedade padrão, e passe efetivamente a operar a língua como um todo, isto
é, apropriar-se de recursos de expressão, orais, e escritos, e utilizá-los de
forma conscientes. (MP1, p. 4; grifo em itálico dos autores).

SD18 - Esperamos, assim, resgatar o caráter discursivo da linguagem, que


prevê a interação entre interlocutores diferentes e reconhece intenções
específicas a partir das escolhas linguísticas realizadas por tais interlocutores.
(...) Também é essencial que fique claro, desde o princípio, que os falantes
podem produzir intencionalmente certos efeitos de sentido ao optarem
pelo uso de determinadas palavras ou ao organizá-las de uma certa forma
e não de outra. Quando fazem isso, explicitam o grau de conhecimento que
têm das estruturas da língua, ainda que esse seja um conhecimento intuitivo.
(MP2, p. 4-5).

SD19 - Desenvolver a habilidade de leitura funcional – prática - do aluno,


buscando torná-lo mais capaz de associar o conteúdo linguístico de um texto
com o conhecimento de mundo (conhecimento pragmático), de maneira a
compreender eficientemente textos de caráter prático (informativos,
publicitários, instrucionais etc.) que circulam no meio social do qual ele, aluno,
participa. / Tornar o aluno mais apto a identificar aspectos discursivos
explorados pelo texto, determinando os objetivos e as intencionalidades do
enunciador. / Desenvolver a habilidade de escrita funcional do aluno,
oferecendo-lhe oportunidades de, nas respostas de grande parte dos
exercícios propostos, redigir pequenos textos , por meio dos quais ele comenta,
justifica e/ou levanta hipóteses a repeito de um fato linguístico. (MP3, p.3; grifo
em itálico do autor).
114

A representação de sujeito construída nos manuais é a de sujeito pragmático,

aquele que aparece como fonte e responsável pelo dizer. Na SD17, espera-se que o

aluno, a partir da proposta de ensino construída, “passe efetivamente a operar a língua

como um todo, isto é, apropriar-se de recursos de expressão, orais, e escritos, e utilizá-

los de forma conscientes”. Sob essa perspectiva, o sujeito usa a língua a favor de cumprir

seus objetivos de comunicação. A língua, igualmente à perspectiva anterior, refere-se a

um conjunto de formas abstratas e finitas, que se coloca a disposição para que o sujeito

dele se “aproprie”. Então sujeito e língua aparecem separados em ambas as FDs

materializadas nos MPs.

Não podemos desconsiderar que a representação de língua, sob um viés

sociologista, recorta o fenômeno linguístico diferentemente da tradição, como

observamos nas SD15 e SD16, passando a permitir a abordagem de usos que não se

enquadram na norma-padrão. Sob essa perspectiva, a língua possui um caráter mais

amplo do que a prevista pela tradição. No entanto, em ambas as perspectivas, a língua

está pronta, cabendo ao sujeito ou a ela se adaptar ou dela se apropriar para produzir

enunciados. Entendemos que, embora tentem se afastar da concepção de língua como

código, os sujeitos instituídos nos MPs dela se aproximam, por não considerar essa

relação como imbricada e constitutiva.

Sob a perspectiva da AD, teoria a qual nos filiamos para construir essas

análises, faz-se relevante pensar sobre a representação de sujeito de comunicação. Para

tanto, faz-se relevante retornarmos à SD18, em que os falantes são apresentados como

capazes de “produzir intencionalmente certos efeitos de sentido ao optarem pelo uso de

determinadas palavras ou ao organizá-las de uma certa forma e não de outras”. O sujeito

é assujeitado ideologicamente e se constitui pela relação com a língua e a história. Dessa

forma, ele não se apropria dos elementos linguísticos, mas é afetado por eles.

Entendemos que o sujeito não tem controle sobre o dizer, uma vez que isso é

efeito da interpelação ideológica do sujeito em uma formação discursiva, em que, ao


115

mesmo tempo que determina os sentidos, dissimula o seu próprio funcionamento. Trata-

se, nesse funcionamento do sujeito pragmático, do funcionamento dos dois

esquecimentos apontados por Pêcheux (2009 [1975]). O primeiro diz respeito ao

esquecimento enunciativo: “uso de determinadas palavras ou ao organizá-las de uma

certa forma e não de outra” (SD18). O sujeito acredita que suas palavras só podem ser

construídas de determinado modo. A língua aparece em ilusão de aparência. O segundo

se refere ao esquecimento discursivo: “podem produzir intencionalmente certos efeitos de

sentido”. O sujeito não escolhe em que redes de filiação de sentidos se inserir, uma vez

que esse é um processo ideológico.

Embora seja mencionada a preocupação com o “caráter discursivo da

linguagem” (SD9), essas gramáticas não consideram a língua atravessada pela história,

em que assim ela é lugar de funcionamento de discursos. Assim, não se considera que a

incompletude da língua, sendo apresentada como “transparente”, capaz de transportar os

sentidos que os sujeitos pretendem construir. A própria noção de variação linguística

pode ser problematizada. A noção de “variação” pressupõe a existência de uma norma.

Dessa forma, por não ser trabalhada a heterogeneidade constitutiva da língua e do

sujeito de discurso, essa proposta não trabalha a diversidade linguística, mas apenas

uma de suas manifestações na língua.

Embora a intenção dos sujeitos sejam apresentar uma nova proposta do ensino

de gramática, eles retomam a tradição. A gramatica posta como objeto de estudo é a

mesma gramática circunscrita pela tradição, o que é apresentada sob o efeito de

evidência: “a gramática” (a determinação delimita a gramática estudada, mesmo que ela

seja apenas uma realidade linguística da língua). A metalinguagem utilizada também é

um reforço de que a noção de língua da tradição figura nas gramáticas. Como já

apontamos anteriormente, a noção de gramaticalidade nessas gramáticas incluem na

língua determinados usos, excluindo outros. Entendemos que há, nessas abordagens o

reforço da norma.
116

Assim, os estudos “sobre a língua” aparecem em determinadas partes das

gramáticas, prevalecendo, no entanto, o estudo “da língua”. Um exemplo significativo é o

título “Aprender e praticar gramática”, em que ele refere-se à gramática que tem de ser

aprendida na escola: gramática teórica, prescritivista. As noções de “aprender” e

“praticar” aponta para a artificialidade dessa linguagem, distante dos usos dos sujeitos,

que dela precisam. “praticar” retoma a noção tradicional de repetição, “decoreba”, o que

se afasta da noção de reflexão.

Busca-se mudar a abordagem desse conteúdo gramatical a partir da noção de

texto.

SD17 - Por isso, se desejamos que os alunos sejam capazes não só de


analisar estruturas linguísticas, mas principalmente de compreender como
elas participam da construção do sentido do texto, não podemos basear
nosso estudo em exemplos isolados. O foco do trabalho com as estruturas
do português precisa ser o texto, entendido aqui do modo mais amplo possível.
Acreditamos ser esse o caminho para que os alunos reconheçam a importância
do estudo da língua. (...)
Acreditamos que essa perspectiva metodológica traz, para o âmbito do Ensino
Médio, o verdadeiro significado de uma reflexão sobre as formas gramaticais
que parte de sua função nos textos. O texto não é, assim, utilizado como um
mero pretexto para ilustrar ‘casos’ gramaticais; é considerado o princípio e
o fim do estudo realizado. (MP2, p.5)

SD18 - Assim o trabalho linguístico não pode se limitar ao nível da frase (o


que significa que às vezes, não se possa trabalhar com a frase). Deve, no
caso, ser considerado o domínio do texto e, mais que isso, o do discurso, ou
seja, o texto considerado no contexto em que se dá a produção do enunciado
linguístico, já que se fala e a forma como se fala estão diretamente
relacionados com aspectos situacionais como para quem se fala e com que
finalidade. (MP1, p.4)

Novamente essa abordagem é construída pela negação dos pré-construídos da

gramática tradicional, retomando a crítica feita à tradição em relação ao trabalho com

frases isolada do uso (“o trabalho linguístico não pode se limitar ao nível da frase”), ou a

partir do texto como fonte dessas estruturas (pretexto) (SD18), desconsiderando os

efeitos de sentido desses elementos no texto. Em outras palavras, problematiza-se o

estudo dos conteúdos gramaticais isolados das atividades de leitura e de escrita. A noção
117

de estudo de gramática para a FD da Linguística retoma a noção de análise linguística

metodologia de ensino posta nos PCN, em que a gramática é de caráter instrumental.

Concluímos a análise ora apresentada pela comparação entre os saberes sobre

“língua”, “gramática” e “sujeito” e a abordagem de um aspecto da concordância verbal em

exercício do Capítulo 27. Esperamos com isso entender qual a representação de ensino

construídas nas GPs.

SD19

(GP2, Capítulo 27, p.522)

Pela proposta do exercício podemos, à primeira vista, vinculá-la a uma “nova” proposta

de abordagem dos conteúdos gramaticais, uma vez que traz o texto à discussão e introduz o

conceito de “adequação”. No entanto, um olhar mais atento aponta a coexistência de noções como

“correção” linguística. Não são explicitadas a situação de produção do texto, nem uma reflexão
118

sobre o porquê os usos questionados estão sendo considerados inadequados. Vejamos a

sugestão de resposta para esse exercício.

SD20 – questão 14. A inadequação está no fato de o verbo dever, na locução


verbal formada com o verbo haver, estar conjugado no plural (deveriam). O
correto seria: deveria haver.
 O fato de o verbo dever estar associado a haver. O verbo haver, quando
usado no sentido de existir, é impessoal e deve permanecer, por isso, na 3ª
pessoa do singular. No texto, ele é o verbo principal (no Infinitivo) da
locução verbal composta pelo verbo auxiliar dever. Nesse caso, o auxiliar
também é usado impessoalmente, devendo permanecer, portanto, na 3ª
pessoa do singular.
 O correto, nesse caso, é obtiver. Professor: há, no texto transcrito, além
das inadequações exploradas na atividade, outras que poderiam ser
destacadas para os alunos. Em primeiro lugar, seria interessante explicar
o fato de termos incluído a expressão sic nas passagens “em relação a [sic]
perseguição” e em “volta a [sic] sociedade” para indicar a ausência do
acento indicativo da crase, já que os alunos só verão esse assunto no
Capítulo 29. Também seria importante mostrar a redundância presente no
trecho “oito media oito”. (MP2, p. 88 – respostas aos exercícios, Cap. 27)

Entendemos que há, nesse caso, apenas substituição da noção de “erro” (criticada pelos

estudos da Linguística) para a noção de “inadequação”. No entanto, há o mesmo processo de

higienização da língua, em que o que prevalece são as regras prescritas pela tradição. Há a busca

pelo controle da língua: seja pela sistematização dos usos que são ensinados na escola, seja pelo

sujeito que opera sobre ela. Essas considerações nos conduzem a entender a representação do

ensino vinculada ao ensino “da língua”, posta como condição para o desenvolvimento social do

aluno.

SD21 – Trata-se de exercícios de resolução mais rápida e direta e, em certa


medida, alinhados a uma abordagem mais tradicional do ensino de
gramática, que, por sua recorrência em concursos e processos de seleção aos
cursos superiores, inclusive de universidades públicas, não pode deixar de ser
contemplada em uma obra didática comprometida com a continuidade da vida
escolar do estudante. (MP3, p. 4).

A relação polêmica entre os discursos analisados colocam o professor como

diretamente atrelado à tradição. Precisando “modificar” sua prática.

SD22 - Faz aproximadamente três décadas que a linguística chegou às


universidades brasileiras e se integrou aos estudos de linguagem. Isso quer
dizer que a absoluta maioria dos professores de Língua Portuguesa que
estão ativos na vida profissional teve um contato mínimo que seja com
essa área do conhecimento científico.
119

Entretanto, se fizermos uma retrospectiva e examinarmos o que de concreto


mudou nas aulas de Língua Portuguesa das escolas de todo o país durante
esse período, veremos que o saldo é muito pequeno. (...)
Não é difícil compreender as razões desse fenômeno. Ao concluir o curso de
Letras, o recém-formado professor de Língua Portuguesa ingressa no mercado
de trabalho e passa a integrar uma estrutura de ensino – seja na rede pública,
seja na rede particular – fortemente fincada na tradição, o que significa, no
tocante ao ensino de língua, especificamente, uma adesão às práticas
cristalizadas de ensino de gramática. (MP1, p. 8)

Entendemos que o manual do professor por entender o professor “em adesão às

práticas cristalizadas do ensino de gramática”, considerando que “a absoluta maioria dos

professores de Língua Portuguesa que estão ativos na vida profissional teve um contato

mínimo que seja com essa área do conhecimento científico” o manual se coloca como um

lugar de divulgação científica que se propõe a auxiliar na formação continuada dos

professores.

Do modo como é posta a proposta do ensino, observamos uma tomada

prescritivista sobre o que “deveria” ser o ensino de língua, cerceando a autonomia dos

professores. Como podemos observar na SD20, são indicados inclusive os elementos

linguísticos que dever ser discutido no texto apresentado (“seria interessante explicar o

fato de termos incluído a expressão sic nas passagens “em relação a [sic] perseguição” e

em “volta a [sic] sociedade” para indicar a ausência do acento indicativo da crase, já que

os alunos só verão esse assunto no Capítulo 29. Também seria importante mostrar a

redundância presente no trecho “oito media oito”)


120

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nessa pesquisa, objetivamos investigar a constituição da memória discursiva do

ensino de língua portuguesa nas Gramáticas Pedagógicas (GP). Como essa gramática,

que circula na escola, coloca-se influenciada pelos discursos da Gramática Tradicional e

da Linguística, observamos as relações de sentido constituídas entre as respectivas

Formações Discursivas (FD). É efeito dessas relações a constituição das representações

de “língua”, “gramática” e “ensino”, conceitos esses que embasam a proposta de

abordagem teórico-metodológica apresentada pelas materialidades simbólicas

estudadas.

Sob essa perspectiva, formulamos duas questões de pesquisa: (1) Que relações

de sentido são resultantes do confronto entre a FD da Gramática Tradicional e a FD da

Linguística nas gramáticas pedagógicas? (2) Que representações de “língua”, “gramática”

e, consequentemente, de “ensino” são construídas nesses compêndios? Sob o

direcionamento dessas indagações, organizamos as discussões teóricas sob dois eixos

complementares: no primeiro, abordamos a noção de memória para o quadro teórico da

Análise de Discurso (AD) de orientação pecheutiana; no segundo, apresentamos as

principais características estruturais e funcionais que definem as gramáticas analisadas

como diferentes das gramáticas teóricas de referência.

As reflexões teóricas e a descrição dos dados apontaram para a constituição de

um objeto simbólico heterogêneo, constituído pela oposição entre a FD da Gramática

Tradicional e a da Linguística. Sob essa perspectiva, propomos duas categorias de

análise: Caracterização do Discurso da Gramática Pedagógica: lugares de confrontos

discursivos (seção 3.1) e Réplica à crítica ao ensino de gramática tradicional: o desejo do

“novo” (seção 3.2). De um modo geral, discutimos o contexto de produção das

gramáticas analisadas, observando os efeitos de sentidos resultantes da relação

polêmica entre as FDs na proposição da abordagem de ensino de conteúdos gramaticais.


121

Compreendemos, a partir da primeira categoria de análise, que mais do que um

confronto entre concepções divergentes de língua, essas FDs mobilizam saberes sobre o

discurso opositor. Em outras palavras, a proposta de ensino de conteúdos gramaticais se

constitui por um jogo de simulacros: o que a Gramática Tradicional entende ser a

Linguística; o que a Linguística entende ser a Gramática Tradicional; e como ambos se

veem após observar o olhar do outro sobre si. A relação polêmica entre essas FDs

ocorre, principalmente, nos casos em que as estruturas gramaticais são descritas e

explicadas diferentemente por essas disciplinas, tal como exemplificado pelo tratamento

dado ao grau dos substantivos.

Os saberes discursivos sobre língua, inseridos na FD da Gramática Tradicional,

são dominantes, haja vista a metalinguagem utilizada para descrever a língua nela se

inscrever. É sob essa perspectiva que as GPs funcionam como lugar de memória da

tradição gramatical, privilegiando a descrição da norma padrão escrita e colocando-a

como referência de uso. Dessa forma, a gramática normativa é posta como objeto de

estudo em todas as GPs. No entanto, esses saberes podem sofrer modificações pelo

atravessamento dos saberes da Linguística, principalmente, quando os conteúdos

gramaticais que são tratados situam-se em zona de contradição entre essas disciplinas.

A influência da Linguística na “revisitação” da tradição ocorre devido ao

funcionamento dessas gramáticas em instituição escolar, cujos saberes são regulados

pelas políticas nacionais de educação. Como consequência à crítica ao ensino de

gramática normativa nas escolas, o discurso da prescrição linguística, posto como

“problemático” e “insuficiente”, para legitimar-se, apresenta-se no mesmo espaço

discursivo que os saberes sobre a variação linguística e, consequentemente, sobre o

preconceito linguístico. Este ponto é relevante para a reflexão ora construída, uma vez

que coexistem em um mesmo compêndio saberes vinculados a uma abordagem

prescritivista (metalinguagem tradicional) e saberes que criticam essa abordagem

(preconceito linguístico).
122

Do jogo de simulacros entre esses discursos, observamos, nas GPs, o

movimento discursivo de réplica às críticas feitas à Gramática tradicional pela Linguística,

cujo efeito de sentido é o desejo de “renovação” do ensino de língua. Enfatizamos a

análise de recortes do manual do professor (MP) por ele ser a parte da gramática em que

se materializam as justificativas teórico-metodológicas da proposta de ensino de

gramática. O desejo do “novo” se constituiu nas gramáticas pelo processo de

oposição/negação dos saberes vinculados à tradição que são apontados pela Linguística

como pontos problemáticos, saberes esses relacionados à concepção de língua e sua

abordagem em sala de aula.

A representação de língua, nas GPs, coloca-se pela tensão entre a consideração

da variação linguística e o reforço da norma. Nas propostas de ensino (veiculadas nos

MPs), são negados os pré-construídos de língua da tradição gramatical com base no

privilégio da norma-padrão, isto é, na consideração de que só é aceitável de ser

produzido aquilo que se enquadra nas regras gramaticais prescritas. A oposição aos

saberes gramaticais permite a construção de saberes como “a língua não é um código”,

“a norma-padrão não é a língua portuguesa”, uma vez que “a norma-padrão é apenas

umas das variedades linguísticas”.

No entanto, no mesmo espaço de enunciação, a consideração “da” língua e “da”

gramática restringe as possibilidades de usos do português e permite a retomada da

norma como centro da língua, igualando-se a ela. Instaura-se a tensão entre “os estudos

sobre a língua”, os quais aparecem sob o efeito de verdade nos manuais do professor, e

“os estudos da língua”, os quais se inscrevem no discurso das GPs como ponto de

resistência da tradição gramatical. A referenciação definida para a expressão gramática

(“a gramática”) aponta que mesmo que se diga estar permitido trazer alguns usos que

não se encaixam na norma padrão, ao logo do compêndio, essa reflexão não pode ser

feita de outra forma senão periférica e complementar.


123

Essa tensão se complementa pela pretensão em trabalhar a gramática a partir

do texto: há-se o desejo de trabalhar o texto nos estudos linguísticos, mas, como vimos

nas análises, essa ideia é proposta para ser desenvolvida de modo acoplado ao estudo

da gramática tradicional, isto é, propõe-se trabalhar o texto a partir de uma concepção de

língua que não considera a multiplicidades de usos da língua. Sob essa perspectiva, a

nosso ver, o texto aparece como lugar de aplicação do conhecimento gramatical, em que

movimentos de higienização são frequentes. É relevante salientar que o próprio

tratamento do texto nas gramáticas restringe-se a seções específicas.

Para entendemos a representação de ensino, fez-se relevante observarmos

como são construídos os sujeitos de ensino. A partir de uma tomada de língua de

natureza sociológica, o aluno é caracterizado como sendo um sujeito pragmático, aquele

que opera sobre a língua conscientemente. Há a separação entre língua e sujeito, fato

que nos leva a entender a persistência da representação de língua como “sistema

autônomo de leis finitas”, em que, pronto e acabado, está à disposição do falante de uma

determinada comunidade linguística para a comunicação.

Não podemos desconsiderar que, pelo funcionamento de saberes inscritos na

FD da Linguística, houve um deslocamento no sentido atribuído à língua: o sujeito, sob

essas perspectiva, “opera” com a língua, usando-a como instrumento de comunicação,

diferenciando-se da tradição gramatical, uma vez que para ela o sujeito é determinado

pelas regras de prescrição da norma padrão. A diferença consiste no fato de que, para a

gramática tradicional, para todas as situações de uso é imprescindível utilizar a língua

padrão e, para a linguística, o uso da norma linguística vai variar com situação.

Dessa forma, o recorte da realidade linguística apresentada pela linguística

possui maior extensão. No entanto, temos de falar em graus de deslocamentos e não de

rompimento com a tradição gramatical. A partir do olhar da AD, a língua, em ambas as

perspectivas, não é considerada como materialidade simbólica. O trabalho feito com a

variação linguística não permite, necessariamente, o trabalho com a heterogeneidade


124

linguística. A palavra “variação”, em si, já aponta para a norma, uma vez que só há

variação de algo que é posto como “a língua”. A representação de língua resulta da

tentativa em unificar algo que é naturalmente disperso, heterogêneo e mutante.

O professor, por sua vez, aparece como aquele está atrelado à prática de ensino

de gramática tradicional por ela mesma e precisa modificar sua prática. O manual do

professor ao trazer os pré-construídos que formulam a proposta tradicional de ensino e

negá-los tenta contribuir para a “formação” dos professores. Essa atitude se desenvolve

tanto pelo tom prescritivista da proposta, quanto das referências para o trabalho com o

texto, quanto às propostas pedagógicas, gramática em que a liberdade do professor

aparece cerceada.

A segunda consideração, por sua vez, refere-se à relação entre a divulgação de

conceitos teórico-acadêmicos e a formação dos professores. Assim, a inscrição de

fundamentos teóricos e a apresentação de referências bibliográficas (bem como de

indicações de leitura), mais do que apresentar os fundamentos das gramáticas,

funcionam como material de referência para os professores, colocando-os em contato

com os saberes linguísticos legitimados pelas políticas educacionais.


125

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