Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

  S484

Sergio Bernardes : (1919-2002) / Alfredo Britto ...[et al.] ;

Kykah Bernardes, Lauro Cavalcanti (Org.). – Rio de Janeiro :
ARTVIVA, 2010.
288 p. : il. color ; 28 cm.

ISBN 978-85-99616-09-3.

1. Arquitetos – Brasil. 2. Arquitetura – Brasil – Séc. XX.

I. Bernardes, Kykah. II. Cavalcanti, Lauro.

CDD 927.2

copyright@ 2010, desta edição ARTVIVA Editora

copyright@ 2010, família Bernardes
copyright@ 2010, dos autores

B
Este livro foi impresso na Primavera
de 2010, em papel couché fosco
150g/m2 ( miolo e capa),
na tipografia Franklin Gothic, com
tiragem de 1.000 Exemplares.
A CIVILIZAÇÃO TROPICAL E
O SEU CONTRÁRIO
Guilherme Wisnik
1.
Os rios sempre surgem na história da Huma-
nidade como caminhos naturais por onde se
conduziu a civilização. De certa forma, foram
bússolas dos progressos do Homem, indicando-
lhes direções, apontando-lhes roteiros para a
exploração da Terra. Através deles, o Homem
desbravou o interior dos Continentes, assentou
povoamentos, fez crescer cidades. Por isso, e
pelas riquezas que oferecem, os rios são um
dos mais exuberantes patrimônios universais.
Mas a intervenção do Homem sobre a naturali-
dade dos rios se fez muito mais em sentido pre-
datório, do que com o cuidado de protegê-los e
de preservar suas potencialidades. Preferiu-se
120
sempre exaurir os rios, sugando-os em tudo,
até matando-os, transformando-os em esgotos,
em depósitos de lixo. Provocada por esses e
por outros atentados ecológicos, a natureza
também mexeu com os rios, alterando o curso
de muitos deles, gerando as contradições dra-
máticas da seca e das enchentes, com suas
multidões de flagelados e desabrigados.1
Com essas sensatas considerações, Sergio
Bernardes inicia uma argumentação em favor
do seu projeto de potencialização dos recur-
sos hídricos do país através das “aquavias”:
16 anéis de água interligando as principais
bacias hidrográficas brasileiras ao longo de
P.121 - Sergio Bernardes apresentando Projeto Brasil.

121
Projeto Brasil

122
 Projeto Brasil

123
30 mil quilômetros, de modo a estabilizar o
regime de secas e cheias por todo o país, ser-
vindo também como leito para o transporte de
cargas e passageiros. A proposta das aqua-
vias, instrumento da criação de uma “primeira
civilização tropical”, segundo suas palavras,
integra um conjunto de ideias que formam o
chamado Projeto Brasil,2 no qual Bernardes
extrapola o campo do urbanismo projetando
o território em escala continental, com ênfase
evidente nas questões de infraestrutura e sus-
tentabilidade ecológica. Trata-se, certamente,
de uma de suas propostas mais ambiciosas, e
que hoje assume importância renovada diante
da emergência global da agenda que postulou
precocemente – de modo convicto, porém um
tanto quixotesco, e às custas de grande sacri-
fício pessoal – desde os anos 60.
Preferindo a alcunha autoproclamada de “inven-
tor social” à de arquiteto, Sergio Bernardes é
uma figura absolutamente singular no panorama
da arquitetura moderna brasileira. Talvez o her-
deiro mais legítimo do visionarismo épico de Le
Corbusier em suas propostas de grande escala
para as cidades latino-americanas (1929),
Bernardes foi também o maior intérprete e tra-
dutor local do pensamento técnico-geográfico
de Buckminster Füller – que chegou inclusive
a ser seu consultor especial no projeto para
o Hotel Tropical em Manaus, de 1968. Pois,
assim como Füller, Sergio Bernardes concebia
a atividade do arquiteto em um campo ampliado
capaz de conectar o menor objeto de design à
escala do planeta. Mas note-se que não se trata
exatamente da proposta bauhausiana de se
projetar componentes em série, desde a colher
até a cidade, através de módulos contínuos e
equivalentes. Pois Bernardes salta da colher
à Via Láctea com o mesmo desembaraço com
que, no filme 2001: uma Odisseia no espaço, o
124
osso atirado ao ar pelo selvagem se transforma
em sonda espacial. Ou, ainda, com a mesma
naturalidade com que os artistas americanos de
land art relacionavam fatos e símbolos ances-
trais à sensibilidade futurista do science fiction.
O projeto moderno de Sergio Bernardes é tardio,
e corresponde à intensidade utópica e escato-
lógica dos anos 60, com seu fervor tecnológico,
seu temor pelo Armageddon, e sua ambição
existencial e transcendente. Por isso, Sergio
Bernardes é o arquiteto brasileiro mais próximo
das questões postas pelas megaestruturas
daquele período, em que se destaca a irreverên-
cia cáustica do grupo inglês Archigram.
Heterodoxo também do ponto de vista político,
Bernardes se declarava um antirrevolucionário
convicto, acreditando mais no sentido evolutivo
da espécie humana do que na artificialidade
ilusória das rupturas históricas.3 Com base
nisso, deslocou a análise materialista do con-
flito como o motor da história para a constante
sincrônica da ecologia, na qual as contradições
aparecem não em razão de lutas sociais, mas
de utilizações irracionais da natureza, passíveis
de serem corrigidas através de uma melhor
conscientização geral e, consequentemente,
de uma ação corretiva do Estado: o famigerado
“poder central”.4 Daí que o seu discurso resulte
tão alheio ao teor político que dominou o debate
arquitetônico brasileiro nos anos 60 e 70, ainda
que carregado de instruções enfáticas para
uma verdadeira política nacional.5 Nada mais
distante, portanto, de uma poética do subde-
senvolvimento – e sua estética empenhada – do
que a ontologia a-histórica de Sergio Bernardes,
batizada por ele de “terrismo”.6 Acontece que a
sua atenção para a ecologia como um problema
sistêmico era também, a seu modo, política. Um
problema cujas implicações só hoje consegui-
mos avaliar melhor.

2.
Num país continental como o Brasil, as poten-
cialidades fluviais são deslumbrantes. Não serve
aplicar aqui modelos concebidos para outros
figurinos, se pelo percurso dos rios brasileiros
se pode traçar uma alternativa própria e origi-
nal que desenvolva o país como um todo, não
apenas em parcelas de privilégio e una a sua
dimensão territorial, superando os desencontros
regionais, distribuindo com equidade as riquezas
nacionais, acabando com a seca do Nordeste e
com as enchentes do Sul e ao mesmo tempo
oferecendo oportunidade para baratear o custo
do transporte de carga e de passageiros, para
resolver o problema da poluição ambiental e o
da produção de energia elétrica.7
Projeto Brasil
De forma mais intuitiva do que erudita, Sergio
Bernardes recupera com o Projeto Brasil uma
importante tradição de debates e propostas
para o Continente, que viam o transporte fluvial
como instrumento essencial para a sobera-
nia sustentável da América Latina. Desde a
lendária proposta de criação de uma Hidrovia
Norte–Sul, conectando através de barragens
com eclusas e canais artificiais no interior con-
tinental as bacias do Orinoco à do Prata, até
a construção efetiva de sistemas ferrofluviais
interligados, como a ferrovia Madeira–Mamoré
(1907–1912), vislumbrou-se a possibilidade
de desenvolvimento econômico do continente
através da potencialização técnica dos seus
recursos naturais, de modo semelhante ao
125
que outros países de dimensões continentais
vinham fazendo com sucesso.8 Com base nisso
é que engenheiros e intelectuais importantes,
tais como Euclides da Cunha, puderam pensar
o Brasil – na passagem do século XIX para o
XX – como a “Rússia americana”.9
Pretendendo reverter a ocupação predatória da
natureza pelo homem, Sergio Bernardes procu-
rou rever as bases do “pacto fáustico” moderno,
que associou o desenvolvimento industrial à
multiplicação de ferro e fumaça. Sua resposta,
no entanto, está distante do organicismo topo-
gráfico de hoje, reforçando, ao contrário, uma
racionalidade geométrica iluminista. Pois, com
seus anéis circulando em conjunto – como uma
nova engrenagem virtuosa que se impusesse ao
mapa do Brasil –, Bernardes submete o capri-
cho das águas “ao destino que a gente quer”,
diz ele.10 Daí a imagem que escolheu para o seu
projeto: o trópico civilizado. Algo afinal, tão belo
e quimérico quanto a “ópera na selva” de Fitz-
carraldo, mas que também não deixa de estar
na base do projeto civilizatório que animou a
construção de Brasília (1957–60).
Um pouco à maneira de Le Corbusier, porém de
modo ainda mais exagerado e idealista, Bernar-
des direcionou sua energia criativa para proje-
tos de grande escala e nunca encomendados,
que ele levava adiante com recursos próprios
para depois tentar convencer o governo de que
eram urgentemente necessários e plenamente
factíveis, a partir de uma visão estratégica e
não apequenada sobre o destino grandioso do
país.11 Nesse contexto, chega a ser curioso ler,
hoje, toda a sua enérgica – porém vã – defesa
do projeto que criou para a “Célula de Informa-
ção Submarina”, aparelho que rastrearia sem
descanso toda a costa brasileira recolhendo
dados sobre as profundezas, na forma heroica
de um “novo bandeirantismo, agora aquá-
126
tico”.12 Será que não podemos interpretar o
petróleo do Pré-Sal, recentemente encontrado
na bacia de Campos, como a preciosa muira-
quitã futura vislumbrada por Sergio com suas
ociosas células?
É interessante notar o quanto o contexto
recente tem atualizado, de modo imprevisto,
muitas das questões colocadas previamente
por Sergio Bernardes – e tidas até pouco
tempo como algo delirantes ou caducas. Misto
de professor Pardal e profeta de alguma reli-
gião sem Deus, Sergio Bernardes tornou-se,
com o tempo, uma espécie de caricatura da
razão. Ou melhor, de uma racionalidade levada
a extremos tão rigorosos e mirabolantes, e ao
mesmo tempo com recursos tão humanos e
amadores, que se tornou, ao final, crítica de
si mesmo e, de certa forma, irracionalista. É o
que faz de Sergio Bernardes um personagem
tão genuinamente brasileiro, e não um Apolo
em luta contra os bárbaros, nem um Descartes
equivocamente desembarcado no Brasil com a
tripulação de Maurício de Nassau.13
Os projetos territoriais do arquiteto carioca,
dito “inventor social”, mais do que nos impe-
lirem a decidir se seriam ou não factíveis, têm
a grande qualidade de trazerem à tona proble-
mas importantes de modo direto e clarividente.
Hoje, quando a discussão sobre a transpo-
sição do rio São Francisco aparece como um
tema nacional importante, o aumento do preço
do petróleo e o aquecimento global impõem
uma necessária revisão da opção rodoviarista
no mundo, e a escassez de água torna inevi-
tável a despoluição dos rios, o Projeto Brasil
de Sergio Bernardes desponta como exemplo
de um pensamento sistêmico e ambicioso
sobre a questão, carregando, além disso, uma
grande dose de lirismo. Seríamos hoje capazes
de enxergar essa “civilização tropical” funcio-
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nando, num futuro próximo, com seus anéis
girando e trocando água como numa engrena-
gem perfeita? Ou seria esse projeto, se tivesse
sido construído, um enorme fóssil dos tempos
de “Brasil grande”, abandonado na floresta,
afundando no charco do pantanal, e craquelado
sob o sol do sertão? Não é preciso decidir. A
história é cambiante, e os projetos verdadeira-
mente fortes são aqueles capazes de nos fazer
entender melhor a realidade, tanto pelo que
afirmam quanto por aquilo que negam. B
1  Sergio Bernardes. “Os caminhos da primeira civilização tro-
pical: um continente se transforma em país; o Brasil inteiro
ligado através de aquedutos”. Módulo Especial: Sergio Bernar-
des. Rio de Janeiro: outubro de 1983, p. 25. A revista é o catá-
logo oficial da exposição “Sergio Bernardes”, ocorrida no Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro, entre outubro e novembro
de 1983.
2  A designação abarca projetos que o arquiteto fez para a totali-
dade do território do Brasil. Num primeiro, feito entre os anos 60
e 70, depois de sobrevoar o país por “milhares de horas”, propôs
um rearranjo do território nacional criando 17 “ilhas” dominadas
por rios importantes, que seriam interligadas por vias fluviais
de navegação, criando uma nova divisão político-administrativa
para a nação. O segundo, dos anos 70, é a proposta já descrita
das aquavias. Ver Lauro Cavalcanti. Sergio Bernardes: herói de
uma tragédia moderna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004,
p. 55-56, e 82-83.
3  “Evolução é a naturalidade do Homem. Revolução é a falta
de naturalidade para receber a evolução”. Citada na abertura da
revista Módulo Especial, essa frase também aparecia na expo-
sição do MAM, em ambos os casos acompanhada da palavra
“revolução” com o R cortado.
4  Sergio Bernardes se dirige sempre à autoridade, ao governo,
ao “poder central”. Ver a esse respeito o seu livro Cidade: a
sobrevivência do poder. Rio de Janeiro: Guavira, 1975.
5  Uma política nacional de forte cunho protecionista, pregando
o bloqueio da entrada no país de moeda estrangeira, a proibição
da importação de produtos acabados, a cobrança de um tributo
aos municípios sobre a expectativa social etc. Ver Lauro Caval-
canti. Op. cit., p. 78-79.
6  “Ao pretender a Terra como bem de capital do povo, adminis-
trada não em sua posse mas em sua produtividade, revertendo
os benefícios diretamente para o Homem organizado em comuni-
dades autônomas, traçamos o caminho para implantação de uma
sociedade aberta capaz de gerar, por si própria, os mecanismos
de alteração do poder.” Sergio Bernardes, “Terrismo”, in Módulo
Especial, op. cit., p. 10.
7  Sergio Bernardes. “Os caminhos da primeira civilização tropi-
cal: um continente se transforma em país; o Brasil inteiro ligado
através de aquedutos”. Módulo Especial. Op. cit., p. 25-26.
8  Além de exemplos notórios como o da Holanda, a Rússia é
um país que, ao longo dos séculos 19 e 20, construiu impor-
tantes canais artificiais de navegação interligando grandes rios,
como o Volga-Don, e o Mar Báltico–Mar Branco.
9  Ver João Marcelo E. Maia. “Espaço e pensamento brasileiro:
a Rússia americana nos escritos de Euclides da Cunha e Vicente
Licínio Cardoso”. Dados – Revista de Ciências Sociais n. 1. Rio
de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro,
2007. <?>  Ver João Marcelo E. Maia. “Espaço e pensamento
brasileiro: a Rússia americana nos escritos de Euclides da Cunha
e Vicente Licínio Cardoso”. Dados – Revista de Ciências Sociais
n. 1. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de
Janeiro, 2007.
10  Sergio Bernardes. “Os caminhos da primeira civilização
tropical: um continente se transforma em país; o Brasil inteiro
ligado através de aquedutos”. Módulo Especial. Op. cit., p. 26.
11  Antipragmático por excelência, Sergio Bernardes foi cada
vez mais se desinteressando do seu bem-sucedido escritório de
projetos, e dedicando-se às ousadas propostas que ele mesmo
inventava. Por isso, criou em 1979 o LIC: Laboratório de Investi-
gações Conceituais, que financiou do próprio bolso, dilapidando
em nome do idealismo quase toda a fortuna familiar.
12  Sergio Bernardes. “Célula de Informação Submarina”.
Módulo Especial. Op. cit., p. 24.
13  Ver Paulo Leminski. O catatau. Curitiba: Travessa dos Edito-
res, 2004 (a edição original é de 1975).
129
SERGIO BERNARDES E O RIO
Alfredo Britto
Depois de um período inicial de experimentação
construtiva e belas soluções arquitetônicas que
lhe renderam láureas e prestígio, Sergio Bernar-
des abre, na década seguinte, seu olhar para a
complexidade da vida urbana.
Planejar me dá prazer. O mal-estar de viver no
feio me faz produzir coisas belas.1
A partir do final dos anos 50, “o mal-estar de
viver no feio” foi provocando aquele jovem cole-
cionador de prêmios a direcionar sua inquieta-
ção e invenção para a vida de seus semelhantes
na cidade. E o Rio de Janeiro, a cidade natal,
vai se tornando objeto de indissolúvel paixão:
130
“cidade planejada pela própria natureza e
esbandalhada por burocratas incapazes, o Rio
tem uma vocação universal e é planejada dentro
da maior mediocridade”,2 indignava-se.
Para melhor desempenhar esse desafio cria o
Laboratório de Investigações Conceituais – LIC,
em junho de 1978. Quer dizer, cria formal e
legalmente; porque, como acentua ele, o LIC já
existia, desde 1959, “como comportamento”.3
Aprofunda investigações e propostas inusitadas
para melhorar a qualidade de vida dos cariocas,
para melhor incorporar a paisagem privilegiada
da cidade ao cotidiano das pessoas, para tornar
 Plano de Sergio Bernardes para o município do Rio de Janeiro, 1983.
mais eficazes os sistemas de circulação e trans-
porte, impactados pela crescente velocidade
gerada por novas tecnologias. Foram mais de
quarenta anos (1959-2002) estudando a cidade,
formulando soluções, explorando rupturas do
convencional e do estabelecido, para devolver o
sentido produtivo e alegre do viver carioca.
Uma seleção dessas propostas veio a público
pela primeira vez, de forma articulada e contun-
dente, por iniciativa da antiga revista Manchete,
semanário de grande circulação nacional (“Rio
do futuro – antevisão da Cidade Maravilhosa no
século da eletrônica”, edição especial n. 678 de
17 abril 1965). As propostas iam se sucedendo
– O Aeroporto Livre Intercontinental; a Ponte
Píer, interligando o Caju no Rio a São Lourenço
em Niterói; o Centro de Equilíbrio da Cidade,
abrigando o Conjunto dos Três Poderes (judici-
ário, executivo e legislativo) na Baixada de Jaca-
repaguá; os Bairros Verticais – imensas torres
de um quilômetro de altura; o Palácio das Sete
Artes; os Centros Esportivos e Educacionais; a
Ponte Turística entre Rio e Niterói apoiada em
nove hotéis; os Anéis de Equilíbrio.
131
Anéis de equilíbrio
Surgida pela primeira vez, ainda que embrio-
nariamente, na edição da Manchete (1965),
esta proposta permanece sendo investigada
e detalhada.
Quatorze anos depois (1979), o LIC, já formal-
mente instalado, edita um tablóide inovador
denominado Ecologia. Na capa da edição
de estreia – Os Anéis de Equilíbrio do Rio
de Janeiro – Sergio Bernardes e Pedro Paulo
Lomba, este um especialista em florestas tro-
picais, parceiro de Sergio nessa proposição.
Em sua apresentação Sergio esclarece:
Um sistema circulatório com grandes anéis
de equilíbrio passando na altura da cota 100
em torno dos maciços da Tijuca e da Pedra
Branca, através do qual se possa fazer o
transporte de massa, o transporte viário e
pesado, a distribuição de energia, água, gás,
telefone, coleta e armazenamento de águas
pluviais. O anel da Tijuca terá cerca de 45 km
de extensão, o da Pedra Branca, cerca de 47
km e eles serão unidos por um anel menor,
o do Engenho Velho, aproximadamente com
17 km. [...] Tendo um anel de equilíbrio cer-
cando o núcleo da floresta tropical, a cidade
se ordenará então em dois movimentos: um
centrífugo (de dentro para fora) em direção
aos vales e ao mar, e o outro centrípeto (de
fora para o núcleo), com as pessoas atraídas
por uma melhor circulação, uma circulação
espontânea, fluida em todos os sentidos,
distendendo-se ao redor da floresta sempre
verde com todo o prazer que isto proporciona.
Circular pelo Rio, hoje, é sinônimo de tensão,
impedimento, dificuldade. Com os anéis,
passará a ser sinônimo de descontração,
passeio, curtição, desfrutar da paisagem.
A partir dessa reflexão Sergio Bernardes ante-
132
cipa uma constatação fundamental para a
engenharia de transportes da cidade:
A prática tem mostrado que, a cada vez que se
une um bairro a outro, por sistema de viaduto ou
túnel, não se resolve o problema dos bairros em
torno, mas apenas transferem-se os congestio-
namentos de um ponto para outro. Os anéis de
equilíbrio complementam tudo que a cidade fez
até agora no sentido de facilitar sua circulação
(túneis, viadutos, vias expressas, metrô). Os anéis
são sistematizadores do conjunto da circulação
linear. Embora não seja uma cidade linear, o Rio
tem sido tratado até agora como se o fosse. Hoje
essa cidade linear se ressente de uma falta de
sistema. Os anéis de equilíbrio viabilizam a circu-
lação estrangulada e fazem também com que as
soluções parciais já construídas (ou que virão a
ser construídas) se integrem nele. Gerarão uma
nova ecologia urbana.
Por ocasião do lançamento deste tablóide, um
confiante Sergio declarava ao Jornal do Brasil
(1º outubro 1979): “transformar em positivo
aquilo que é considerado negativo na cidade –
o seu relevo”.
Os “anéis de equilíbrio”, ainda retornam a público
em 1983, integrando um notável momento da
vida cultural carioca: uma mega exposição da
obra e pensamento de Sergio Bernardes no
Museu de Arte Moderna MAM.4 Nela percorria-
se “uma cidade sobre a linha de trem”. O espaço
ocupado pela malha ferroviária da cidade do Rio
de Janeiro surgiu para Sergio Bernardes como
uma oportunidade de reorganização urbana,
especialmente, para minorar uma grande dívida
do país – o deficit de habitação de caráter social.
Ele assim descrevia o projeto:
Sobre o leito dos 105 quilômetros de estradas
de ferro que cortam a cidade do Rio de Janeiro,
ocupando faixas de terra que variam e 25 a
40 metros de largura, poderia ser edificado um
mundo novo para a população favela – módulos
em que se integrariam a habitação, a educação,
o trabalho, o lazer, os serviço e o transporte.
Esse eixo polivalente brotaria em estrutura de
aço, formando telheiros como se fossem um
grande abrigo e alcançando 45 metros de altura,
correspondente à de um edifício de 14 andares.
Há espaço sobre a linha férrea para a constru-
ção de 105 módulos, cada um com 660 metros
de extensão, separados 210 metros um do
outro. É uma área, em toda extensão da estrada
de ferro, de 3,15 quilômetros quadrados, que
corresponde quase à metade de Copacabana.
Sergio fazia questão de afirmar: “Este não é
um projeto de remoção de favelas”. E comenta:
É uma proposta que vai muito além da simples
substituição do barraco por conjunto habitacio-
nal. É um exemplo prático de como se podem
alterar estruturas e implantar uma nova filoso-
fia de vida, de trabalho e de desenvolvimento
urbano, pois além de resgatar da lama parce-
las numerosas da população, abre-lhes também
perspectivas de promoção social, fazendo-as
crescer junto com a cidade, sem degradação.
Ninguém seria obrigado a se mudar para essas
habitações, que também poderiam ser cons-
truídas com perfil arquitetônico diferente, mas
com a mesma estrutura de serviços, em outros
Na próxima, Uma cidade sobre a linha férrea, Rio de Janeiro, RJ.
133
134
135
pontos da cidade, atendendo a favelas fora do
eixo ferroviário.
O eixo polivalente, como uma verdadeira cidade
sobre a linha de trem, representaria também
uma iniciativa de elevada significação social: a
redenção de pelo menos um terço da população
que hoje é favelada no Rio
Na exposição viajava-se pelo Porto Canal, par-
tindo de uma análise histórica do papel do
porto na estruturação e desenvolvimento da
cidade, Sergio Bernardes afirma:
nenhuma vocação econômica da cidade subs-
tituiu a de cidade portuária. E esta vocação é
geograficamente evidenciada: raro é o sítio que,
como o Rio de Janeiro, possui duas baías apro-
veitáveis separadas por apenas 61 km: a da
Guanabara e a de Sepetiba.
O Porto Canal propunha a interligação das
duas baías tendo por suporte os canais já
existentes de Sarapuí, do Guandu e o de São
Francisco. Uma nova hidrovia com vinte metros
de profundidade e 140 metros de largura, pas-
sando entre o maciço de Gericinó e a Serra do
Quitungo.
Em cada margem haveria reserva de uma faixa
de 300 metros de profundidade destinada às
atividades portuárias e retroportuárias.
Paralelamente às duas margens, a norte e a
sul, serão destinados 1.000 metros a corredo-
res industriais (5.800 ha). Entre as duas faixas,
haverá outra faixa de equipamentos com siste-
mas de despoluição.
O texto de apresentação ainda acentua o papel de
redinamização da função portuária do Rio,
mediante formação de uma zona polarizada
internacional, baseada na implantação e desen-
volvimento de um porto livre. Este porto livre
será destinado a 12 países sul-americanos e 30
países extracontinentais.
No âmbito do estado do Rio de Janeiro, além da
136
capital, o Porto Canal atravessaria os municí-
pios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João
de Meriti, Nilópolis, Rio de Janeiro e Itaguaí.
Estes municípios da Região Metropolitana se
tornarão cidades portuárias do Atlântico Sul.
A mudança geoeconômica se refletirá em novo
estilo a seus mercados de trabalho, a seus
setores industrial, comercial e de serviços e a
suas próprias culturas locais.
Lagocean I
O problema da renovação das águas das lagoas
Rodrigo de Freitas, da Tijuca, de Jacarepaguá
e de Marapendi, provocando frequente mor-
tandade de peixes e grave estado de poluição
hídrica, incentivou o arquiteto a ir ao encontro
de criativa solução
– o Lagocean, ligação permanente das lagoas
ao oceano.
A primeira abordagem apresentada na grande
exposição do MAM e denominada “Lagocean I”
objetivava a lagoa Rodrigo de Freitas.
Uma plataforma de 240 m de diâmetro locali-
zada na boca do canal do Jardim de Alá, no limite
entre Ipanema e Leblon; adentrando de 240
a 300 metros no mar, aumentaria a praia em
mais de 72 mil metros quadrados, oferecendo
em sua superfície uma marinha para atracação
de cerca de trezentos barcos e dois helipontos.
Em três pavimentos subaquáticos seriam ins-
talados espaços e lojas comerciais, jardins e
cerca de dezesseis salas de espetáculos de
teatro, música, cinema, literatura, dança e
artes plásticas.
Complementado o complexo,
seria construído na praia espaçoso estaciona-
mento subterrâneo com capacidade de cerca de
8 mil carros, um alívio na neurotizante busca de
vagas para veículos em dias de sol.
Porto Canal – Recuperação ecológica das baías, Rio de Janeiro, RJ.
Lagocean, Canal Jardim de Alah – Ipanema e Leblon, Rio de Janeiro, RJ, 1984.
Depois seriam construídos o Lagocean II e o
Lagocean III nas praias da Barra da Tijuca,
seguindo o mesmo modelo e acrescentando a
vantagem de se ampliarem as linhas de ligação
da cidade através do transporte marítimo.
Sergio prefeito
A visão cada vez mais abrangente dos desafios
de sua cidade e do próprio país o estimulou a
colocar a mão na massa.
Aceita o convite do prefeito de Nova Iguaçu,
Paulo Leone (PDT) e assume em 24 de maio
de 1984 a Secretaria de Planejamento e Coor-
denação Geral do município, a época com 1,7
milhões de habitantes e o mais alto índice de
criminalidade do país.
Ele já vinha há dois anos preparando um plano
geral para a área e levou para o novo posto um
conjunto de propostas inovadoras. Ao anunciá-
lo em sua posse, causou grande impacto divi-
dindo as opiniões e criando, de imediato, defen-
sores e detratores. “O pessoal de esquerda diz
que meu plano é fascista; e a direita o acusa
de comunista”.5
Seu objetivo era implantar o Plano Político Admi-
nistrativo Municipal – PPAM, resultado de pes-
quisas e dados coletados pelo satélite Landsat
entre 1972 e 1984, com ênfase na divisão do
território em “430 propriedades comunitárias.
Colocarei em prática um sistema de descen-
tralização administrativa, baseado na participa-
ção da população”6
“Quero a comunidade gerenciando a própria
vida administrativa / financeira”. Sergio Bernar-
des antecipava em alguns anos o orçamento
participativo adotado pelo PT em seus gover-
nos municipais.
A experiência na administração pública em
Nova Iguaçu, de curta duração, despertou seu
desejo de transformar seu Rio de Janeiro, a
partir de sua presença no comando da máquina
político / administrativa.
No ano seguinte, 1985, apresenta-se como
candidato a prefeito do Rio pelo Partido da
Mobilização Nacional (PMN) e anuncia o ponto
fundamental de sua plataforma: a reorganiza-
ção do município em 450 conselhos comunitá-
rios dotados de recursos próprios.7
No final da década inicial do século 21, alguns
problemas crônicos e estruturais da cidade do
Rio de Janeiro – transporte público, despoluição
da lagoa Rodrigo de Freitas e da baía de Gua-
nabara, desfavelização, reaproveitamento da
área portuária – adquiriram prioridade na ação
político-administrativa dos governos municipal
e estadual. Trinta, quarenta anos antes, Sergio
Bernardes apontava sua gravidade e oferecia
caminhos, diretrizes e soluções.
Soluções grandiosas, generosas, impactantes,
sempre buscando garantir a seus habitantes
melhores condições de vida, maior economia de
tempo, maior usufruto da beleza em sua cidade.
Por vezes ele deixava-se trair pelo prazer irre-
freável de um jogo de palavras8 ou tiradas de
efeito;9 para a época com menor rigor crítico
isso, certamente, funcionava.
Mas na história da arquitetura e urbanismo do
Brasil do século 20 não se tem notícia de um
pensamento tão inquieto, inventivo, generoso e
produtivo, em busca de melhores condições de
vida para seus semelhantes no espaço urbano.
B
1  SB em Jornal do Brasil/Revista de Domingo, Rio de Janeiro,
24 agosto 1997.
2  Em O Globo. Rio de Janeiro, 19 outubro 1970.
3  Em entrevista ao Jornal de Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro,
1º outubro 1979.
4  A revista Módulo lançou na ocasião uma edição especial que
se transformou no catálogo da exposição.
5  SB em O Globo, Rio de Janeiro, 4 junho 1984.
6  SB na revista Veja, junho 1984.
7  Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 4 agosto 1985.
8  “tenta-se fazer a convivência do homem predador da Natureza
com a Natureza predador do ser humano”. (Anéis de Equilíbrio,
item 1, das Vantagens básicas, 1979).
9  “quem estiver no Grajaú e quiser ir a Copacabana andará
15 minutos de carro e chegará ao local desejado, sem ter que
passar por dentro de qualquer outro bairro”. (Sobre os anéis de
equilíbrio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1º outubro 1979).
139
FILOSOFIA URBANA
Nos Estados de regime político-econômico
autocrático, as nações, assumindo todo o
poder, devolvem a colheita da poupança dos
indivíduos de maneira neutra e impessoal,
distribuindo-a pela média das necessidades
coletivas.
Nos Estados de regime econômico democrático,
o desenvolvimento está condicio­nado às micro-
ditaduras econômicas representadas pelas
grandes empresas nacionais, estrangeiras ou
multinacionais, cujos intérpretes e agentes,
junto ao Governo, estão na classe política. Na
melhor das hipóteses, o Estado tem sob sua
responsabilidade os empreendimentos de base
ou de segurança nacional.
Mas esse desenvolvimento é lastreado na
poupança dos cidadãos, recolhida através de
impostos e convertida em obras que satisfa-
çam a média das aspirações coletivas. Tanto
na primeira como na segunda forma, auto-
170
crática ou democrática, e ainda nos regimes
mistos, a base do desenvolvimento é o indiví-
duo com sua força de trabalho e seu tributo. A
contribuição individual é solicitada ou imposta
de forma pessoal e direta: “Você precisa con-
tribuir, o desenvolvimento depende de você”.
Mas a resposta do Estado, qualquer que seja
sua forma, é geral, neutra, indefinida, desapa-
recendo o indivíduo em nome da riqueza nacio-
nal. A pessoa do contribuinte, tão enfatizada na
hora da colheita, transforma-se em abstração
estatística na hora da prestação de contas.
Há sempre uma permanente insatisfação dos
cidadãos e, portanto, da sociedade, em relação
ao Estado, impossibilitando o atendimento das
necessidades individuais, que se avolumam
rapidamente. A ânsia de progredir, de se liber-
tar economicamente é enorme, e o indivíduo vê
no Estado o empecilho fundamental às realiza-
ções pessoais.
O que, neste trabalho, se apresenta são as dire-
trizes básicas para uma nova organização social
das populações das cidades, possibilitando
que elas se autodesenvolvam pela melhoria do
padrão econômico de cada um de seus habi-
tantes; as diretrizes para a minimização admi-
nistrativa do Estado, solicitado apenas para a
implantação da macroinfraestrutura, cabendo
às populações, organizadas em sociedades
anônimas, a administração e realização dos
serviços de microestrutura urbana. Trata-se de
uma oportunidade para que o político realize
mais, em menos tempo, para mais pessoas. E,
principalmente, a valorização direta e concreta
da capacidade de autorrealização do homem,
que poderá ver a aplicação de sua poupança
revertida em seu benefício pessoal e, como
consequência, em benefício da coletividade.
Eis a diretriz para o urbanismo – aquele que
não é paternalista, mas que pretende possibili-
tar ao homem a conquista dos instrumentos de
segurança e liberdade econômica.
Aceitando, passivamente, a definição de “arte
e técnica de organização e racionalização das
aglomerações humanas, tendo por finalidade
facilitar as relações e as funções, sob o ponto
de vista social, econômico e político das popu-
lações das cidades”, o urbanismo tem se
mostrado convencional, conservador, tímido e
desarmado para enfrentar e resolver a questão
que o mundo moderno coloca à sua frente:
criar e replanejar cidades para um mundo novo.
O desastre urbano continuará sendo fatal
enquanto o urbanismo se considerar e for visto
como intérprete e consequência dos pontos de
vista formulados pela Economia, pela Política,
pela Sociologia; enquanto não se sentir com
autoridade suficiente para questionar o conhe-
cimento contemporâneo e exigir daquelas e de
outras ciências uma total revisão de valores,
171
conceitos e atitudes.
Exigir, principalmente, uma posição de maior
humildade, humildade muito justificada pelo
fracasso na resolução a que se propuseram
aquelas ciências de, pelo menos, equacionar
os graves problemas que afligem o mundo de
hoje, colocado à beira de catástrofes fatais.
É natural que o urbanismo, sujeito a se movi-
mentar condicionado por uma visão estreita de
leis econômicas, políticas, sociológicas, gere
cidades que, como aquelas leis, envelheçam
precocemente.
Chamado a corrigir erros causados pelo cres-
cimento desordenado dos grandes centros, o
urbanista tem comprometido sua posição ao
aceitar a encomenda que lhe fazem de colocar
remendos na paisagem – implantar tecido novo
num organismo em decomposição.
A posição intelectualmente subalterna do
urbanista faz com que, nas melhores das
in­tenções, passe a considerar o homem uma
peça facilmente substituível do automóvel e
risque projetos partindo do traçado de pistas
de alta velocidade; ou, cedendo à teoria de
que o Homem nada mais é que um instru­
mento de consumo, faça seu projeto nascer e
partir do shopping-center.
Vale ressaltar a incorreta orientação adminis-
trativa do Poder como incluída no rol de entra-
ves que detém qualquer atividade humana.
Vê-se que é preciso uma reformulação global de
conceitos, princípios e métodos que regem as
ciências e o mundo de hoje. E nessa reformula-
ção é da maior importância reposicionar o urba-
nismo e o urbanista. Antes, porém, cabe pro-
curar as razões mais profundas que – gerando
os desentendimentos – afetam as estruturas
sociais sobre as quais o urbanismo se assenta.
Detenham-se esses primeiros raciocínios –
para uma possível teoria do conhecimento
172
urbano – sobre o conceito de tempo, atuando
no mesmo momento em velocidades diver-
sas e ocasionando, com isso, a turbulência
acionadora do permanente desentendimento
entre componentes da sociedade em qualquer
espaço físico que se localizem.
Assim, o espaço físico, preocupação primeira
do urbanismo convencional, passa a uma
importância de segundo grau. A tecnologia que
ele necessariamente invoca é uma considera-
ção a ser enfocada só depois de traçadas as
diversas diretrizes conceituadas que o urba-
nismo requer para se libertar dos limites a ele
impostos por ainda não ter conquistado sua
autonomia teórica. Pode-se detectar, de ime-
diato, a existência de três tempos correndo em
velocidades próprias.
O entendimento desses tempos pode fazer
com que cessem os atritos, e o processo do
desenvolvimento flua em sua velocidade ideal.
Chama-se Nominal ao tempo do indivíduo;
Escalar, ao do Poder; e Vetorial, ao das nações.
O Tempo Escalar é político, administrativo, buro-
crático, estatal, conservador, cessa de correr
ao fim de cada expediente, tem prazo certo de
extinção, limita sua velocidade pela satisfação
que tem a dar a cada atitude tomada, herme-
tiza-se na resolução de problemas, baseia cada
passo em conceitos preconcebidos e deles não
sai. Já o Tempo Nominal pertence ao indivíduo,
à sociedade, à tecnologia, não interrompe seu
fluxo ao fim de cada expediente, joga com toda
uma liberdade, sem futuro.
E enquanto não ocorre o acordo entre ambos,
não se pode estabelecer o Tempo Vetorial,
que impulsiona as nações. O fenômeno ocorre
em qualquer país, desenvolvido ou não, sob o
ponto de vista político, cultural ou econômico,
desde que exista uma legislação pouco ágil
dificultando a agilidade e independência dos
indivíduos. Deve-se deter agora na considera-
ção dos tempos em relação ao urbanismo, que
é a relação dos indivíduos e da sociedade com
o Estado. É preciso surpreendê-los em suas
velocidades díspares e fazer com que ambos
compreendam a natureza um do outro. A ótica
do Poder tem que ser mudada. O Estado precisa
passar a ser a sociedade como o somatório e
não a média estatística e fria dos indivíduos.
Disso, os próprios indivíduos têm de se conven-
cer. E também de que o Estado não dispõe dos
instrumentos para atender à veloz pletora de
solicitações de toda a população. Tanto para
o Estado quanto para os indivíduos, é preciso
ficar bem claro que o Estado – entenda-se, o
Poder – deveria apenas traçar os parâmetros
e fornecer a macroestrutura sobre a qual a
sociedade terá de erguer sua organização. O
Estado, canalizando assim o poderoso e veloz
influxo realizador da sociedade para os proje-
tos de transformação urbana, e não represando
seu potencial criativo, estará dando o passo
decisivo. Menos solicitado, terá de atender às
macrodemandas essenciais formuladas pela
filosofia dos parâmetros políticos, econômicos,
realistas. De fazer mais por menos, em menor
prazo, para mais gente.
O urbanismo é sempre resultado de macropla-
nejamento, exigindo soluções a curto prazo.
Essa constatação torna óbvia a necessidade
de estabelecer o equilíbrio entre as forças e
velocidade dicotômicas, expressas, na fla-
grante disparidade entre a agilidade individual
de realização e a agilidade estatal. Torna-se
óbvia a necessidade de criar o modelo que vai
permitir às entidades promotoras do giro de
capitais uma ação de retorno mais eficiente
pela rapidez. Então será possível encontrar-se
a forma de acumulação de capital permissora
de viabilização dos projetos urbanos.
As cidades podem ser feitas ou refeitas utili-
zando-se a poupança individual aplicada, dire-
tamente, na organização das populações em
sociedades anônimas que autopromovam o
desenvolvimento da co­munidade e a liberação
econômica dos seus membros.
A aplicação desse sistema permite corrigir-se
a dicotomia apontada entre o tempo escalar
da administração estatal e o tempo nominal
da sociedade, dos indivíduos. Isto quer dizer: o
perfeito equilíbrio entre a força e a velocidade
de ambos.
É conveniente ratificar: o urbanismo conven-
cional se tornou incapaz de resolver os proble-
mas que lhe foram apresentados porque se
converteu em vítima despreparada do choque
causado pela velocidade do seu tempo com
a do Estado e, mal refeito, procurou soluções
paliativas e acomodatícias, sem nunca atingir
o vértice do problema. Isso, aliado à aceitação
de definições parciais de suas funções, resul-
tou em sua impotência atual.
É preciso compreender que, sem redimensio-
nar o urbanismo e reposicionar o urbanista no
quadro das atividades do mundo moderno, não
será possível, mesmo com a detectação dos
motivos que geraram sua quase falência, dar
nenhum passo. Pode, à primeira vista, parecer
disparatado colocar o urbanismo no âmbito
das ciências biológicas e considerar o urba-
nista um profissional da Ecologia. No entanto,
o objeto de seu estudo é o homem, suas rela-
ções e integração no meio ambiente; ciência,
arte e técnica são meros instrumentos que o
urbanista manipula para cumprir sua tarefa e
não podem definir suas atividades. Se o objeto
do urbanista é o Homem e a criação de seu
habitat, o urbanismo não pode ser condicionado
por mecanismos econômicos e políticos, mas
deve ser a condicionante desses mecanismos.
173
Pode-se facilmente concordar com essa tese
se atentarmos para a necessidade do mundo
moderno de encontrar uma solução imediata
para salvaguardar o homem da ameaça fatal
que pesa sobre ele, causada pelo desequilíbrio
ecológico em todo o mundo. O gerador desse
desequilíbrio são as cidades, com sua insa-
ciável sede de expansão e consumo. É nelas
que o progresso acontece e é em nome do pro-
gresso que se violenta a Natureza, violentando
o próprio Homem, ameaçando a sua própria
existência. De imediato se percebe a respon-
sabilidade do urbanista. Essa responsabilidade
tem que ganhar autoridade e poder decisório,
pois o que poderíamos chamar de “urbeco-
logia” passa a ser o estudo capaz de tornar
viável a vida em nosso planeta. Evidentemente,
essa inversão posicional somente será válida
enquanto, sob o aspecto jurídico, econômico,
financeiro, administrativo e político, o con-
texto global não for levado a uma reciclagem
conceitual capaz de acionar a segurança das
populações, quando o urbanismo, então poderá
assumir o lugar correto, passando a ser uma
resultante, executando a arte-final no complexo
de atividades que estabelecem as infraestrutu-
ras nacionais.
Mas, como continuar na posição de arte-fina-
lista de proposições político-econômicas que
se comprazem em jogo desligado da verdade
humana da sociedade?
Desde que o Homem, condicionado pelo Poder,
começou a destruir a Natureza, na suposição
de que a sobrevivência dependia disso, a
Natureza se viu forçada a se voltar contra ele,
na tentativa de destruir essa doença que rói
suas entranhas. Para enfrentar a Natureza, a
primeira medida foi criar extensões do corpo
humano capazes de tornar suas forças e seu
raio de alcance mais fortes e poderosos.
174
À proporção que se deixava dominar pelo racio-
nalismo, a Natureza circundante passava a ser
vista como um objeto do qual, psicologicamente,
o Homem se desligava. Tornou-se impossível,
para a maioria das pessoas, a percepção da
grande unidade e, mais remota ainda, a ideia
de que, ao cortar uma árvore, comete-se uma
autodecepação. Esse isolacionismo cresceu
a ponto de o Homem deixar de perceber seus
liames com os semelhantes, os quais, como
objetos da Natureza, também passaram a ser
vítimas de sua agressão.
Essas considerações soam muito alto e como
necessárias à compreensão de que o urba­nista
tem à sua frente a mais digna das tarefas: res-
tituir ao Homem a possibilidade de restaurar,
através do meio ambiente, criado para ele viver,
a visão do mundo e da Natureza, da sociedade
e de si mesmo, como um todo indivisível. A
cidade é a mais complexa, requintada e inte-
gral extensão do Homem. Por isso podemos
considerá-la como um ser vivo que nasce, se
desenvolve, consome suas próprias energias,
até entrar em um processo de autorrejeição,
quando o crescimento cessa. Assim, não só
o processo de nascimento e crescimento das
cidades precisa ser previsto, mas também o
seu momento crítico.
Como a Biologia procura dar condições para
que o tempo de vida humana não tenha sua
duração reduzida por fatores degenerescentes,
precisamos planejar as cidades desde o seu
momento de fecundação para que tenham uma
vida mais longa e saudável, atenuando ou, na
hipótese ideal, anulando a possibilidade de
autorrejeição.
O homem e seus complementos tecnológicos
devem estar integrados ao meio am­biente de
tal maneira que jamais apareçam como indese-
jáveis e intrusos destruidores, para que o meio
ambiente, por ele mesmo criado, não se revolte,
não o combata, não o expurgue, não o destrua.
Um dado importante para a criação de cidades
sadias do modo mais permanente possível,
atravessando tranquilamente todas as fases
de seu crescimento, é lembrar que enquanto o
espaço urbano é sempre estático e limitável, o
tempo urbano é sempre vetorial. Um é passivo
e o outro se acumula sobre ele.
É da perfeita relação desse espaço-tempo,
nômino-escalar-vetorial, que pode nascer a
maior duração da cidade.
A limitação demográfica, dentro de espaços
específicos, é uma emergência. E tanto as lide-
ranças como o povo precisam ser conscientiza-
dos e informados das diretrizes para enfrentá-
la. A segurança e o controle urbanos foram
perdidos. O muro que cercava a cidade medie-
val – protegendo-a e limitando seu crescimento,
possibilitando um total controle administrativo
– precisa ser reerguido. Não mais um muro
de pedras, mas aquele que um novo conceito
urbano pode criar auxiliado pela tecnologia con-
temporânea que permite índices mais eleva-
dos de concentração, através da verticalização
construtiva, abrindo espaços para a dispersão
horizontal, desenvolvimento agroindustrial e
restauração das áreas verdes. O certo é que a
cidade não pode se expandir além do alcance
do braço administrativo, mesmo o ciberneti-
zado. Mas é preciso compreender a similitude
Homem-Cidade para que a tecnologia a ser
desenvolvida e aplicada se faça em termos da
mais alta humanização. A
Originalmente publicado no livro Cidade – A Sobrevivência do
Poder, Guavira Editores, 1975.

175
A CIDADE É UMA AMEBA.
NÃO CRESCE, SE ESPALHA
A cidade é como uma ameba. Não tem forma
definida, nem especificidade funcional. Como
um ser sem destino, não cresce, espalha-se ao
sabor das influências ambientais.
Não vive, sobrevive.
Mas a cidade, resultado da necessidade do
Homem de agregar-se, para distrair a sua solidão,
e de fixar-se, para melhor viver, não pode ser
uma célula hipertrofiada e sem razão. A exemplo
do Homem que a formou, a cidade tem de ser
um organismo, isto é, tem de ser composta de
órgãos que funcionem de forma harmoniosa e
interdependente. Tem de ter um objetivo defi-
nido, qual seja o de assegurar a qualidade de
vida dos que a constituíram e a mantêm.
A cidade tem de ser fisiológica, isto é, funcionar
de acordo com processos que asseguram a sua
vida e que são regulados de tal forma a manter-
se em equilíbrio.
Não pode ser imutável porque, se resulta da
vida, transforma-se continuamente. Mas, como
a vida, se renova, mantendo a sua integridade e
harmonia funcional.
Não sendo organismo, mas uma célula distró-
fica, a cidade sofre. Agoniza frequentemente. E
ao fazê-lo, torna infelizes os seus habitantes.
O repensar da cidade indica a necessidade de
se aceitar o seu objetivo de assegurar condições
para cada qual ter aí uma vida produtiva e feliz.
Para cada qual participar na vida da comunidade
(afinal, não é este desejo de participar, de parti-
lhar, de dar, que justificou a própria constituição
176
das cidades?), para cada qual trabalhar, descan-
sar, ter o lazer.
Não se pode aceitar, pois, a cidade como uma
célula gigante, nem como um aglomerado de
células. Há que se pensá-la constituída de uni-
dades sim, mas composta de órgãos, todos
básicos para a vida comum.
O desafio é buscar não o seu planejamento ou
sua ordenação através de planos urbanísticos,
mas, sim, definir um marco conceitual para sua
organização, propor um novo modelo urbano
que, aceitando o real, o modifique, tornando-o
funcional e, por isso mesmo, mais bem ajustado
às necessidades do Homem.
Ao observar uma cidade, não importa qual
seja, pois todas, de regra, se assemelham,
pode-se perceber que a malha urbana, hiper-
trofiada ao longo do tempo, acaba por perder
sua organicidade.
Abastecimento, circulação, serviços, comunica-
ções se tornam problemas de difícil abordagem
e solução. As ruas somam tráfegos que acabam
obstruindo a circulação, como se produzissem
verdadeiras tromboses vasculares.
O espalhamento urbano torna precária, senão
inviável, a administração de serviços indispensá-
veis para assegurar a qualidade de vida humana.
Os bairros, mal definidos, não constituem uni-
dades funcionais da cidade, mas réplicas delas
mesmas, como se fossem brotos endógenos
de ameba.
Mas o Homem, ser cujo limite é o próprio planeta,
não se adaptando especificamente a uma deter-
minada situação ou condição de vida, está adap-
tado a todas as situações e condições de vida do
planeta. Por isso mesmo não se sente inadap-
tado à cidade-ameba. Sente-se incomodado,
mas sobrevive com a ameba. Não é feliz, mas
luta por sua felicidade. Ao usar sua criatividade,
estabeleceu extensões, como o automóvel, o
telefone, o rádio, a televisão, procurando assim
melhorar a sua produtividade, a sua compreen-
são do meio que o cerca, a sua qualidade de
vida. Ao mesmo tempo, alargou a dimensão do
seu espaço, do seu intercâmbio com o mundo e
seus habitantes.
Com a compreensão plena dessa situação, há
que se propor um novo marco estrutural para a
cidade, constituída agora por comunidades que
se organizarão de acordo com os desígnios de
seus habitantes. Como partes de um mesmo
organismo, terão diferentes destinações que
se complementarão de modo natural, uma vez
que cada habitante existirá na decorrência de
seu relacionamento com o mercado de trabalho.
Mas para que façam parte desse todo, há que
se prever mecanismos de comunicação, de cir-
culação, de coordenação, de abastecimento. Há
que se prever, portanto, vias de comunicação
geral e vias de acesso a um conjunto de comu-
nidades. A cada comunidade ofertar-se-ão no
seu epicentro os serviços necessários ao seu
funcionamento, cabendo a cada uma organizar
a sua utilização.
Para isso, é preciso inserir na ameba gigante e
disforme o sistema arterial que assegurará a dis-
tribuição harmoniosa dos nutrientes requeridos,
o sistema nervoso que se responsabilizará pela
coordenação funcional. O sistema venoso que
garantirá a eliminação de excretas – o sistema
nervoso que se responsabilizará pela coorde-
nação funcional, constituindo as unidades fun-
cionais propostas. Tais unidades deverão ter
limites muito bem definidos através de instru-
mentos jurídicos precisos, de modo a configurar
uma comunidade que se autoadministrará. Cada
unidade deverá organizar seus serviços, sua
vida comum. À administração municipal central
da cidade competirá oferecer as pontas de ser-
viços. Como se fora um organismo, aí estarão
as terminações das artérias, veias, linfáticos,
neurônios, ou seja, acesso viário, energia, água,
dutos de informação etc.
Mas não basta criar um sistema viário e de
serviços na cidade. Há que se caracterizar as
comunidades – como uma mórula, ou seja,
conjunto de células embrionárias com carac-
terísticas comuns – para dominar a ameba. A
ameba, que se expande livremente no ambiente,
é bloqueada quando penetra em um tecido
animal qualquer e, para sobreviver, encista-se. A
comunidade fará a ameba se encistar, tornando-
a inofensiva. A caracterização de instrumentos
que definam seus limites evitará que a ameba
possa novamente movimentar-se.
Cada comunidade ou mórula organizará a sua
vida e administrará seus serviços de acordo
com os desejos de seus habitantes e com o
ajustamento de suas atividades ao seu poten-
cial produtivo. Desenvolver-se-ão novas lideran-
ças, criar-se-ão novos modelos de vida menos
dependentes de um poder central; dar-se-á opor-
tunidade à criatividade humana e conciliar-se-á o
desejo de o Homem ser livre.
A administração central, por sua vez, liberta da
responsabilidade de responder a tudo e a todos,
deixando de ser perseguida pelas pressões do
ter de fazer, poderá, então, oferecer o mais racio-
nal, a tecnologia melhor e mais apropriada. A
Original datilografado, 1979.
177