Professional Documents
Culture Documents
Construtivismo na prática
Ao derrubar os mitos que cercam a teoria inspirada em
pesquisadores como Piaget e Vygotsky, as aulas são
valorizadas e ganham significado
(texto
Ana Ligia Scachetti
Camila Camilo
Esta não é a primeira vez que você lê sobre construtivismo. Certamente ouviu
falar dele na faculdade, em cursos de formação continuada ou até mesmo em
conversas com colegas. Mas, em algum momento, parou para pensar o que, de
fato, ele é? Diante da mesma pergunta, alguns educadores responderiam que é a
teoria do biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), uma metodologia de ensino ou,
ainda, uma maneira alternativa de planejar as aulas. Não é nada construtivista
dar o conceito logo de cara, mas a verdade é que essas respostas estão
equivocadas e esclarecê-las pode significar ganhos importantes para sua prática e
para os alunos.
Comecemos por Piaget. Embora ele seja o mais famoso entre os estudiosos
dedicados a investigar o desenvolvimento da inteligência, não foi o único a
inspirar a concepção que é o foco desta reportagem. Outros nomes
compartilharam esse feito, como os psicólogos Lev Vygotsky (1896-1934) e Henri
Wallon (1879-1962). Cada um à sua maneira, os três se opuseram a teorias que
defendiam que o conhecimento é inato e a outras convencidas de que o que
sabemos é absorvido apenas do ambiente onde vivemos. "Eles romperam com a
crença em vigor ao propor que o conhecimento não começa nem no sujeito nem
no objeto externo a ele, mas na interação entre esses dois polos", afirma
Fernando Becker, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Algumas coordenadas que traduzem isso tudo para o dia a dia de quem atua na
escola estão presentes no livro The Essential Piaget (sem tradução em português),
de Howard E. Gruber e J. Jacques Vonèche, com prefácio do próprio Piaget.
Segundo Lino, os escritores discorrem sobre ações que caracterizam uma prática
construtivista. Entre elas estão a proposição de tarefas baseadas em um vasto
repertório, a compreensão da função docente nos debates em sala, a colocação
de perguntas e intervenções que levem a turma a pensar e a atuação como um
modelo para os estudantes.
Mito
O professor não intervém e o erro não é corrigido
Verdade
O docente problematiza o equívoco e o aluno busca respostas
Equívocos motivam ações sob medida como o olhar para nomes conhecidos
Ao menos duas vezes por semana, Larissa Gomes, da Escola Professor Vanderlan
Sampaio de Araújo, em Mundo Novo, a 292 quilômetros de Salvador, apresenta
enredos que encantam a turma do 1º ano. Isso acontece quando ela lê em voz
alta um dos mais de 50 livros da biblioteca de sala e faz intervenções cuidadosas
com vistas a levar todos a progredir. Tudo começa ainda antes da aula, quando
ela prepara propostas para as várias hipóteses de escrita. Esse planejamento
embasa os momentos em que a professora está com as crianças e, atenta para
deixá-las pensar e se expressar, faz comentários que provoquem avanços.
Cuidado semelhante é dado ao erro, diferenciado entre aquele que revela o que
se sabe e, portanto, deve ser material de trabalho da docente, e outros, como o
cometido por falta de atenção.
Mito
Os estudantes fazem o que querem
Verdade
O planejamento é baseado nos conhecimentos prévios de cada um
Por colocar o foco na relação entre o estudante e o saber, e por entender que a
aprendizagem é um processo individual, o construtivismo é visto algumas vezes
como justificativa para as crianças fazerem o que bem entendem e seguirem a
própria vontade. Para Sonia Barreira, diretora-geral da Escola da Vila, em São
Paulo, esse é outro grande mal-entendido: "O maior equívoco de todos é achar
que o construtivismo prescinde da figura do professor. Pelo contrário, é ele quem
organiza as situações para os alunos aprenderem".
Cada atividade tinha como norte uma pergunta. Para introduzir o experimento
que indagava "Flutua ou afunda?", a professora conversou com o grupo sobre o
que é flutuar e afundar. Os pequenos, então, escolheram objetos que puderam
encontrar por perto - de tampas de garrafas a folhas de árvores, frutas e
pedrinhas do jardim da escola - e, divididos em grupos, levantaram hipóteses. Em
geral, eles achavam que os grandes iriam para o fundo do recipiente enquanto os
menores ficariam sempre na superfície. A educadora levou um aquário para a
sala e conforme as crianças testavam suas ideias, observaram que o
acontecimento depende muito mais da forma do objeto do que do tamanho dele.
Ao final, meninos e meninas registraram suas constatações. Como ainda não
sabem escrever convencionalmente, a maioria deles desenhou enquanto outros
escreveram à sua maneira, o que estimula um procedimento real do dia a dia:
anotar e guardar informações que podem ser úteis depois.
As crianças testam as hipóteses e registram as conclusões dos experimentos
Mito
O conteúdo é menos importante
Verdade
O assunto fundamenta todo o trabalho
As relações entre professor, aluno e saber são, segundo o francês Guy Brousseau,
pesquisador da didática da Matemática, o cerne do trabalho em sala de aula. A
noção de que o conteúdo é menos importante nas práticas de inspiração
construtivista é um equívoco. De acordo com Brousseau, no modelo de ensino
aproximativo (ou construtivista), o aluno está em contato direto com o conteúdo e
o professor concebe situações para que isso ocorra. Essa organização do ensino
se diferencia dos modelos normativo, onde o foco está no assunto e na
transmissão dele do professor para o estudante, e incitativo, que tem as
motivações e interesses do aluno como norte. Como nessas outras concepções, o
foco no conteúdo é mais direto, tem-se a impressão de que no construtivismo ele
fica apagado, quando na verdade é o grande motivador das atividades
planejadas.
Antes de iniciar a aula do 4º ano, Rusvênia Luiza Batista tinha claro o objetivo do
trabalho e qual tema estava em jogo. Ciente de que a Geografia é indispensável
para compreender a formação do espaço e sua relação com a história e a
sociedade, a professora planejou com cuidado uma sequência didática para que a
garotada do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (Cepae) da
Universidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia, analisasse as mudanças no
território trazidas pela expansão da agricultura da região. "O mapa tradicional é
dado pronto, sem o reconhecimento da passagem do tempo. Queria que a turma
entendesse que a ampliação de um município se relaciona com a economia
desenvolvida ali", explica Rusvênia. A sequência teve o conteúdo como alvo e a
professora conseguiu aliar esse foco aos interesses da classe.
A turma localizou os bairros no mapa da cidade e fez pesquisas in loco
Mito
Só funciona com crianças
Verdade
Colabora com o aprendizado em qualquer idade
Eles têm mais de 18 anos. Alguns até já passaram dos 60. E estão estudando sob
uma abordagem construtivista. "Ser um educador com essa inspiração implica um
trabalho forte de planejamento e entendimento dos alunos para propor
atividades que os façam aprender considerando quem são e o que já
compreendem. Isso não tem necessariamente a ver com quantos anos têm",
argumenta Sylvia Xavier, professora de História da Fase 9 (equivalente ao último
ano do Fundamental) da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio Santa
Cruz, em São Paulo.
A aula de Sylvia sobre a política brasileira no século 20 é um exemplo de como o
construtivismo se traduz na EJA. Em grupos organizados para combinar idades e
níveis de leitura diferentes - para um se beneficiar do saber do outro -, a turma
analisou uma lista com os presidentes da república depois de 1930. A educadora
colocou perguntas que chamaram a atenção para aspectos como a duração da
Era Vargas (1930- 1945) e a existência de um interino (como os técnicos de futebol
conhecidos pelos alunos). Antes de fechar as respostas, houve muito debate,
sempre com a docente mediando, sem atrapalhar a expressão de ideias. Durante
a discussão, a classe se interessou pela ditadura militar (1963-1985) e lembrou
das manifestações que se referiram a esse regime no início de 2015. Isso
colaborou para o planejamento de novas aulas sobre o tema.
A teoria na prática
"O professor construtivista deve conhecer a matéria que ensina. Mas, por uma
razão diferente da que se imagina. Antes, tratava-se de saber bem para transmitir
ou avaliar corretamente. Agora, trata-se de saber bem para discutir com a criança,
para localizar na história da ciência o ponto correspondente ao pensamento dela,
para fazer perguntas ‘inteligentes’, para formular hipóteses, para sistematizar,
quando necessário."
Lino de Macedo, Ensaios Construtivistas (172 págs., Ed. Casa do Psicólogo,
tel.3003-4952, 44 reais)
Endereço da página:
https://novaescola.org.br/conteudo/3428/construtivismo-na-pratica
Links da página
http://abr.ai/intervencao