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Entrevista Ruy Fausto

Passado quase um ano, qual o seu balanço das manifestações de


junho?

Bom, eu escrevi dois artigos: um para a Fevereiro e um para a


Serrote. Eu acho que as manifestações são muito importantes. Há
muito tempo não havia manifestação, e essa é uma coisa muito séria,
que marca a política brasileira. Todo mundo fala disso, na esquerda e
fora da esquerda, no centro, enfim, é uma coisa que ficou. Agora eu
acho que há dois problemas: um é que a direita andou se metendo
[nas manifestações]; então há certa ambiguidade porque a direita
entrou e participou. O outro é a esquerda: o problema é a violência, os
black blocks, um pessoal que entra e faz violência. Isso é um desastre
porque arrebenta com as manifestações. É claro que, em alguns casos,
no mundo, a violência vale. Na Ucrânia houve violência e acabou
dando certo (ou relativamente). Mas no Brasil é um desastre e não tem
nenhum tipo de justificação. [E nem o fato de que a violência – e que
violência ! – inclusive e sobretudo a “de cima“, domina na periferia,
é um argumento para justificar as práticas violentas nas
manifestações] No Brasil, existe um pouco de gente porra louca e um
pouco de anarquistas; há uma ideologia anarquista; inclusive eu
conheço gente da USP que é anarquista e que acha que tem que cortar
fio... há essas coisas na universidade. Eu acho um desastre. E me
assusta porque a turma fica muito na defensiva diante disso. Não sei
se vocês viram a entrevista que a Fevereiro [aproveito para precisar:
falo em meu nome pessoal e não da Revista, que é de responsabilidade
de uma equipe de oito membros, eu sou apenas um desses oito]
publicou do Lucas, o rapaz do [Movimento] Passe Livre. O rapaz é
muito bom. Eu não o conheço pessoalmente, mas é muito bom. É
curioso, porque ele não é pela violência; ele não é um violento, pelo
contrário, o movimento deles é até um pouco ingênuo, com aquela
coisa das danças que é tudo muito bonito mas não dá pra fazer,
entende o que estou querendo dizer? Mas, com tudo isso, ele fica na
defensiva diante da violência: é como se ele admirasse os malucos lá e
o que eles fazem, o que é uma bobagem porque ninguém apoia a
violência, muito pouca gente topa a violência. Então a coisa me
assusta porque há uma espécie de mitologia da violência, que só pode
levar a um desastre, não vai levar a nada. Aí entra um tema mais geral
de que trato em artigos que estou escrevendo, mas já lanço a vocês: a
meu ver, há um otimismo geral – as pessoas pensam que estamos
caminhando para uma coisa, mas na realidade a gente não sabe bem
para onde se está caminhando. Evidentemente as manifestações são
positivas, mas não temos certeza sobre onde isso vai terminar. E se
não houver clareza sobre os objetivos, se o pessoal não ficar
consciente de que tem de evitar violência e tem de ser democrático,
essas coisas podem terminar mal. Eu acho que há uma ilusão, muito
marxista aliás, de que o “processo“, mais ou menos por si só, vai nos
tornar conscientes, o que é perigoso. Vocês viram a história da briga lá
na USP: veio um manifesto dos radicais assinado por alguns velhos
colegas meus e outros mais jovens, dizendo que as escórias vão ser
diluídas no processo etc. Mas a gente não sabe onde vai dar esse
processo. Pensam que, de um modo ou de outro, “estamos indo para o
socialismo?” Não, não estamos indo. Em princípio acho que, se
continuar assim, podemos ir – não para um totalitarismo, isso é
complicado atualmente – mas para um populismo autoritário, o que
não é muito melhor. Quanto à USP, é preciso dizer. Há ameaças à
Universidade, e não só pela direita. Diria que a universidade já está
ferida: uma das mais importantes áreas de uma universidade, a de
história contemporânea, está nas mãos de gente ultra-sectária, e
razoavelmente medíocre, que coopta sistematicamente seus cupinchas.
Dirão que isso existe por toda parte. Sim e não. Isto existe, em certa
medida, e sempre lutei contra. Mas aqui o problema não é só ético (o
que já é muito importante). É também político. Uma universidade sem
história contemporânea séria e crítica, que vá além da versão trosko-
leninista do que ocorreu no século XX, é um verdadeiro desastre. A
ignorância da massa discente sobre o que se passou no século passado
é impressionante. Ora, isto serve muito bem a certos grupos sectários.
É preciso por a Universidade em alerta, diante desse perigo, pior
ainda, dessa degradação grave que já atinge a Universidade.

No Brasil você acha [que há risco]?

Em todo lugar existe esse risco. Não digo que é certo, mas eu acho
que o pessoal o subestima ; na tradição marxista, a gente está
dominado pela ideia de que as direções finalmente não vão decidir Commented [1]: Leonardo da Hora: eu acho que esse
momento que ele delineia uma outra filosofia da
historia para o marxismo, fala do processo, etc., é um
nada, ou, pelo menos, que seu peso é adjetivo, quem decide é o ponto teorico fundamental na reflexao dele, pra pensar
a ruptura. Acho que poderia ser um dos destaques.
“processo“. Mas a experiência histórica – e eu ando mergulhado no
assunto comunismo agora – mostrou que foram as direções que
decidiram. Na realidade, as piores direções. China, Rússia: as direções
“fizeram“ o movimento histórico. Uma história de horror! História
de morticínios. Mas também se poderia considerar de outro jeito. É o
“processo“ sim que decide, mas o “processo“ (a tendência dominante)
não é aquela que o marxismo, muito otimista, indicava. O “processo“
não vai lá onde a gente pensa que vai. Isso significa que eu estaria
abandonando a ideia de revolução em geral (não falo de
revolução armada, isso é mais específico e, sem excluí-la em geral,
é muito problemático)? Não sei se o nome é “revolução“, mas eu
diria: a ideia de uma ruptura eu não abandono. Até pelo
contrário. Acho que, no fundo, todo verdadeiro processo
emancipatório se apresenta como uma verdadeira ruptura no (ou
com o) processo histórico. Num sentido muito mais radical do que
o marxismo pensava. Nós não estamos caminhando para uma
sociedade emancipada; a história, abandonada a ela mesma (mas
atenção: mesmo incluindo os movimentos tais como eles se
pensam atualmente) caminha em outra direção. Há uma inércia
da história, que é mais forte do que a que o marxismo supunha. O
que eu estou dizendo implica outra filosofia da história, uma
filosofia da história não marxista, que nunca foi a nossa, até aqui.
É um pouco o que eu tenho na cabeça. Em termos mais banais, eu
diria que o pessoal é muito otimista. A turma mais jovem está
animada, mas é preciso pensar de forma crítica: participe, mas tome
certa distância, senão a crítica é impossivel. Não caia no “oba-
obismo”, critique as coisas sem perder o movimento. O movimento
está aí, o movimento é sério; você não vai se afastar dele, mas não
acredite que as coisas vão terminar bem porque o processo está indo....
Isso vale para o caso das manifestações, vale também para os
problemas da USP.

Em entrevista concedida à Folha de São Paulo, em 25 de junho de


2006, você afirma que “apesar das aparências” as ações do MST
“não preparam um futuro melhor para os camponeses, nem a curto
prazo – porque não se trata de legítimos movimentos de pressão, mas
de ações violentas que prolongam o ciclo de violências – nem a longo
prazo”. Eu gostaria de comparar essa afirmação com outra feita por
um colega seu, o professor Michael Löwy, em texto de fevereiro de
2009, disponível no site preavis.org, em que ele afirma que o MST é
“não apenas uma expressão organizada da luta dos pobres do campo,
mas também a referência central para todas as forças da sociedade
civil brasileira [...] que lutam contra o neoliberalismo”. Gostaria que
você nos falasse sobre o papel dos movimentos sociais, especialmente
o MST, no contexto político brasileiro.
Sim. Precisaria ter todo um dossiê das lutas do MST e das outras
organizações também. O MST foi um dos movimentos, e dentro do
MST havia setores e tendências diferentes. A outra coisa a considerar
é a história do MST, mas eu não altero nada do que eu disse, eu
confirmo o que eu disse aí. Eles abandonaram o projeto de reforma
agrária antigo e agora têm um projeto que, parece, envolver a cidade.
O que eu acho? Bom, vamos tomar a luta anterior deles: era muito
violenta. Tinha uma base camponesa, nasceu de um movimento
cristão, estavam ligados a iniciativas da igreja, então houve muita
coisa aí dentro. Mas depois eles passaram para um esquema muito
violento de ocupações etc. e, ideologicamente, não eram
democráticos. Se vocês forem às escolas deles – eu conheço gente que
foi e participou de tudo – é uma coisa pró-Cuba do começo ao fim, e o
estilo é “cubano“ com culto disto e daquilo. Algo claramente pró-
castrista e nada democrático; eu acho isso muito ruim. Quanto aos
métodos eram violentos, muito duros, não creio que se deva fazer esse
tipo de coisa. Eles mudaram depois, um pouco, porque acho que não
deu certo. Eu não sei muito bem a história. Eles “enxugaram“ as
práticas antigas, parece, mas não sei se as abandonaram. Eles dizem
que ainda mobilizam não sei quantas pessoas etc. E agora lançaram
uma reforma popular, que seria uma coisa mais ampla. Tem um lado
positivo no discurso mais recente deles, que são os temas ecológicos.
Eles incorporaram os temas ecológicos, então estão contra a Monsanto
e isso é positivo, mas eu não creio que eles tenham mudado
ideologicamente. O esquema deles não é um esquema democrático.
É o esquema do populismo-“comunismo“ latino americano –
sempre foi esse; e eu acho que não é este o caminho. É preciso
abandonar esses esquemas, e marcar uma posição democrática. Se
se quer romper com o capitalismo, é para caminhar na direção de
uma sociedade democrática e não na de uma sociedade de tipo
cubana. Se for para isso, não é progresso. Se ganhassem
(ganharem?) melhorariam um pouco a situação de parte dos
camponeses, de parte dos operários, enfim, de gente que eles iriam
incorporar como burocratas. E, em compensação, arrebentariam com
o país. Acabariam com a liberdade, acabariam com tudo. O que estou
dizendo não é coisa de intelectual apenas, é fundamental para que
tudo funcione, inclusive là onde eles eventualmente introduziram
mudanças. Isso para mim é essencial. Quanto ao Michael Löwy ele é
meu amigo a vida toda. Ele é crítico, é ecologista. E, entretanto,
continua preso ao trotskismo. Michel é trotskista hoje! Eu fui
trotskista por volta de 1960. Bom, havia muita loucura, mas era uma
causa heterodoxa, minoritária e heróica de certo modo. Nós éramos
aquele 00000000,1 que dizia que Stalin era um bandido, coisa que
todo mundo admite hoje. Mas 99,9999% da esquerda, inclusive as
“cabeças pensantes”, admiravam o cara, para eles, Stálin era um gênio
e tal. E nós, éramos os reacionários, direitistas, liberais, ou pior do que
isto. Porque criticávamos Stalin... Hoje, acontece a mesma coisa, só
que a figura tutelar virou Lenin ou Mao. Mas ainda há stalinistas.
(Domenico) Losurdo, escreve livros que vão por aí..... Michel, claro, é
anti-stalinista. Mas continua trotskista. O que significa, mais ou
menos, ser leninista. E, sem dúvida, marxista. Esse fundo não só
marxista mas leninista-trotskista, ele mistura com ecologia – não dá.
Com relação a Cuba, ele continua com o esquema do apoio crítico, às
vezes se apoiando em Rosa Luxemburgo, mas isso não dá mais. Apoio
crítico a Cuba nos anos 50/60 poderia ser. Mas não hoje. Temos que
romper com isso. Inclusive na extrema esquerda existe gente que
reage e rompe com o castrismo, e o Michel, criticamente ou não,
continua preso a isso. Quando eu me encontro com ele, eu não discuto
porque a gente procura os pontos de convergência. No fundo eu acho
que deveríamos discutir, mesmo porque nossa relação de amizade é
muito boa. A gente nunca brigou em sei lá eu quantos anos, mas por
isso mesmo seria preciso discutir. Eu acho muito tradicional a posição
do Michael, ela não serve mais. Isso posto (voltando ao assunto) veja
o que o MST está fazendo. A história da ecologia é boa, mas eu não
confio nada no discurso do Stédile: não é um discurso democrático. É
bom não esquecer que não vivemos simplesmente sob o
“capitalismo”. Vivemos sob um capitalismo liberal-democrático, pois
há regimes capitalistas autoritários e regimes capitalistas
democráticos, ainda que a relação entre “capitalismo“ e “democracia“
seja em última análise, de tensão, mesmo, virtualmente pelo menos, de
contradição, o que em geral não se vê. Uma democracia capitalista
é uma democracia impura, mas ela é, no plano político, claro,
democracia apesar de tudo, e a democracia, impura embora, não
é mera forma. Sem projeto democrático, a gente vai cair em outra
forma que não é necessariamente de progresso. Mas a tradição
não concebe a ideia de regressão histórica, não vê como podemos
afundar.

Você considera relevante uma reforma política no Brasil? Se sim, em


que medida um projeto de uma esquerda democrática deve estar
entrelaçada a essa xreforma?
Claro. Só que o problema é muito técnico e tem uma porção de coisas
a resolver. Eu ouvi um pouco o que propuseram os partidos sobre isso.
Tem que combater o poder econômico e saber qual é a melhor
maneira: é o financiamento só pelo Estado? Não sei se isso não vai
carregar o Estado e ao mesmo tempo, por debaixo do pano, vão
continuar fazendo a mesma coisa. Será melhor outras formas de
controle? Bom, esse é um aspecto. O outro aspecto são os puxadores
de votos – será preciso neutralizar esse fenômeno, que desmoraliza as
eleições e todo processo democrático. Aí surgem várias soluções: ou o
voto distrital, ou o voto na legenda. Outro problema é o do suplente
de senador: esse é mais simples, teria que acabar com isso. Depois há
a questão das coligações. Isso tudo nos interessa. Agora, não vou
propor solução porque é muito complicado, e tem que ser bem
estudado.

Talvez pudéssemos reformular a pergunta. Não tanto com relação ao


conteúdo da reforma, mas a questão é como criar as condições para
que ela aconteça? Como a esquerda poderia avançar no sentido de
democratizar as instituições se as próprias instituições já se
estabeleceram como um status quo que não vai se mexer?
Sim. Mas pode se mexer aqui ou lá, e pode-se apresentar projetos mais
radicais, por exemplo, propondo complementarmente formas de
participação mais direta. Entretanto, se a reforma política é alguma
coisa, é claro que não é tudo. Precisaríamos pensar em reformas
econômicas. Uma coisa de que se fala pouco – temos que pensar
nisso seriamente – é a reforma fiscal. O sistema de imposto de
renda no Brasil é uma coisa de louco. O sistema francês já é
considerado injusto, mas o sistema francês é justíssimo perto do
brasileiro. O sujeito pobre paga quase o mesmo que um ricaço paga;
além da sonegação, isto é, paga o mesmo, se pagar. Então há coisas
muito sérias aa resolver, as mudanças políticas teriam que entrar nisso
tudo; é um pacote. A reforma política poderia sair talvez, há relativo
consenso em relação a alguns pontos, mas é muito mais difícil
introduzir a reforma fiscal. Conversando, uma vez, com a Conceição
[Maria da Conceição Tavares] ela me disse que em certa ocasião,
alguém tentou propor na Câmara uma reforma muito moderada, mas
ninguém topou, nem o PT, e ninguém quis mais mexer com isso. Não
sei se vale a pena fazer a campanha por outra constituinte. A reforma
tributária, pelo contrário, é uma bandeira que tem de ser desfraldada,
mesmo quando as possibilidades de êxito imediato são reduzidas.
Como você projeta o processo eleitoral e qual o significado para a
esquerda brasileira dessa atual correlação de forças que vão disputar
o pleito em outubro?
Bom, eu tenho a impressão de que a figura da Dilma é um mal menor
porque, se não fosse o mensalão, a gente teria talvez gente do tipo do
[José] Dirceu ou outro. Esses processos todos afastaram a turma
pesada do PT e o Lula escolheu a Dilma. Nessa turma aí, a Dilma não
é a pior de jeito nenhum. Para começar, ela é honesta, o que já é
alguma coisa. Isto posto, ela é limitada e não vai muito longe. Quantos
às suas possibilidades eleitorais, parece que ela pode se eleger no
primeiro turno e se não se eleger no primeiro, deve ganhar no
segundo, a não ser que os votos em branco vão todos para oposição. É
a única possibilidade, e não seria nada bom. Quanto a Marina [Silva],
eu vejo algumas qualidades nela, mas ela como vice do Eduardo
[Campos] não dá. O Eduardo Campos é muito ambíguo; tem uma
consultoria econômica muito de direita. Faz alianças com o [Jorge]
Bornhausen, coisa muito ruim. Mas eu não jogo fora a Marina; ela
tem um lado muito negativo que é a história de suas ligações com os
evangélicos, uma atitude conservadora com relação ao aborto etc. E,
no plano econômico, sua posição é, pelo menos, ambígua; ela tinha
um economista de esquerda como consultor, o Eli [José Eli da Veiga],
mas tinha também, e continua tendo o [Eduardo] Giannetti. Mas tem
um lado anticorrupção, é bastante exigente em matéria de acordos (
bom, ela topou o acordo com o Eduardo, mas não tinha muitas outras
saídas; além do que a história da recusa do registro [do Partido REDE
capitaneado por Marina] é muito suspeita). Então ela é anticorrupção,
preocupada com o problema das alianças, democrática, ecológica,
tudo coisas que faltam ao PT, e, em parte, também ao PSOL. Mas
como vice do Eduardo, não dá.

Inclusive, é interessante notar, tanto em redes sociais quanto fora


delas, um aparecimento cada vez mais agressivo do discurso de
direita, e até mesmo reacionário em alguns casos. Recentemente o
registro do partido Arena foi negado, mas só o fato de ele ser
pleiteado já é um sintoma importante. Eles queriam refundar o
partido da Ditadura. Foi negado.
Eles estão descontentes com os tucanos.

No entanto – esse ponto que eu queria abordar – esse ano você tem
uma diferença em relação às eleições anteriores porque Aécio Neves
será o candidato do PSDB e ele tem adotado uma postura bastante
mais agressiva do que as candidaturas do Geraldo Alckmin e José
Serra. Ele tem falado abertamente em ampliar a privatização, ele tem
falado abertamente em dar autonomia para o Banco Central, em
recuperar a taxa Selic para que o Brasil se torne primordialmente um
país interessante ao capital especulativo. Enfim, ele tem de fato
adotado uma plataforma muito mais aberta e muito menos tímida em
relação a Serra e Alckmin. O economista Armínio Fraga, futuro
ministro da Fazenda caso Aécio vença as eleições, disse que o salário
mínimo está muito elevado.
E o [Fernando Henrique] Cardoso topa isso tudo?

Sim. E ele tem inclusive entrado na campanha de uma forma muito


mais aberta, justamente para fazer uma espécie de defesa de legado
do seu mandato, que apanhou muito nos últimos anos do PT e que o
Serra e o Alckmin deixaram meio que escondido.
Se o balanço geral é ruim, é verdade que eles fizeram algumas coisas.
O assunto da reforma anti-inflação (que precede o governo Cardoso)
foi correta. Aquilo tinha de ser feito. (Se um governo insiste em baixar
uma inflação anual de 4% a 2%, trata-se provavelmente de uma
reforma neo–liberal, mas se a inflação anual é de 100% ou mais, a
coisa muda de figura. A inflação é um desastre para todo mundo, e
tem de ser sustada). Agora, no mais, houve lá uma febre neoliberal
muito negativa; as privatizações foram, em geral, um desastre. Acho
que o caminho liberal é muito ruim. Ele prolongará, se não agravar o
statu quo. E o statu quo não dá. Além do que, de alianças com os
grupos dominantes só podem sair propostas conservadoras. Mas eu
gostaria de ter um balanço crítico bem objetivo e preciso do governo
Cardoso, alguém teria de fazer isso, algo sólido no plano teórico-
crítico, e no plano indutivo, feito “na ponta do lápis“. Há vários textos
sobre o assunto, mas geralmente não suficientemente globais. Eu
gostaria de uma crítica muito mais precisa.

Você acha que o governo FHC ainda não teve um balanço histórico?
Eu gostaria de me informar melhor, mas tem algum bom livro crítico,
suficientemente abrangente, sobre isso? Eu acho que não tem. Para
mim, se o fanatismo privatizador é certamente um desastre, eu
gostaria de ter uma análise crítica precisa de cada uma das
privatizações, e do destino delas. Também análise das alternativas. E
dos outros aspectos dos governos Cardoso. Eu queria ter isso tudo
muito preciso, porque só assim a crítica é eficaz.
Mas uma coisa. Independentemente do juízo que se possa
fazer do governo Cardoso, na situação atual há um real perigo de que
a direita volta ao poder, com Aécio ou com outro. Quaisquer que
sejam os defeitos do PT – na medida em que ele não descambou para
um totalitarismo autoritário, o que não aconteceu – é muito melhor,
nas condições atuais, um governo petista do que um governo tucano
ou equivalente. As insuficiências da governança petista não seriam
atenuadas mas agravadas (desigualdade, condições de trabalho,
mesmo ecologia etc etc). Assim, é preciso lutar para que a direita, ou
mesmo o centro-direita, não volte ao poder. Por outro lado, me assusta
muito a direita e a extrema direita fortes. Esses jornalistas de extrema
direita estão na ofensiva, aproveitando as tolices da esquerda. Sob
pretexto de pluralismo, a Folha contrata gente notoriamente
extremista, e cujas ligações reais a gente desconhece. Um erro.

Reinaldo Azevedo ...


Dirão que exagero, mas se vê aí um estilo néo-nazista de crítica. Não
se ataca o que alguém escreveu, mas o fato de ser velho
(provavelmente, atacarão também visando o fato de alguém ser
doente – se for doente – ou de ser aleijado, se for aleijado). Ou ainda,
se ataca o pai e a mãe do fulano, em vez de atacar fulano, ou antes, de
atacar o que ele escreveu. Ou se compara o adversário a um animal, se
o reduz a um animal. Ou se bate na tecla do intelectual parasita. Tudo
isso é muito sintomático. Em parte, se sabe, isso converge bem com
as instruções que dá a Opus Dei. E é notoriamente de estilo
“nazistóide“ (um bom exercício, do qual se tirariam, estou certo,
resultados saborosos, seria comparar certo tipo de ‘crítica“, isto é, de
demolições do adversários, com as que fazia o Völkischer Beobachter
[orgão nazi]). Sobre o argumento do “velho“, a gracinha é explorar a
pseudo incompatibilidade entre ser velho e ser de esquerda. Dizia-se
que quem é velho e de esquerda é burro. Não gosto dessa linguagem,
mas já que se usa esse registro, vamos entrar nele um instante, eu
diria: então Marx velho era burro, Castoriadis no fim da vida era
burro, Edgard Morin é burro? Olha, o único asno nessa história é
quem profere essas enormidades. Abriu-se no Brasil, o que os
franceses chamam de um “créneau“, um campo aberto para a
“carreira“ (ou o carreirismo). Se alguém for um universitário médio,
ou , de preferência, medíocre, tem uma solução: declara-se “jornalista
de direita, ou pensador de direita“ ! E passa a oferecer um “novo“
produto jornalístico-intelectual. Uma sopa feita, em geral, com uma
mistura de Burke, pornografia, cinismo e bobageira. O sucesso,
inclusive financeiro, é garantido. Essa possibilidade apareceu em
grande parte, já disse, pelas insuficiências gritantes do discurso da
esquerda. Esse fenômeno não é nacional. Ele se insere, em parte pelo
menos, na ofensiva internacional dos neoconservadores (como ocorre
no Brasil, seus expoentes frequentemente vêm da extrema-esquerda, e
não por acaso, da extrema-esquerda mais porra-louca). Isso existe no
mundo inteiro. (A propósito dos neo-conservadores na França,
incluindo a Opus Dei, ver o livro coletivo dirigido por Juliette Grange
La Guerre des Idées, Paris, ed. Golias, 2013). A esquerda fica muito
na defensiva por causa das suas próprias confusões. Que os amigos
universitários de esquerda e extrema-esquerda pusessem nas suas
intervenções políticas, orais ou escritas, dez por cento do rigor que
têm os seus trabalhos universitários, e já estaríamos bem ! Mas até
aqui, quando se passa a falar de política, vale tudo (por caridade
fraternal, prefiro omitir os exemplos).

Qual seria a perspectiva mais profícua para compreender os eventos


que se seguiram na Ucrânia? Por um lado, há um viés democrático
que privilegia a legitimidade das manifestações que deram origem à
crise; por outro lado, há uma interpretação que vê nas manifestações
apenas mais um elemento que compõe a disputa de forças
geopolíticas no seio do país.
Eu acho que para entender isso, teria de que repensar o conjunto: o
bolchevismo e o resto, tudo aquilo que começa em 1917. Para pensar
bem, teria que começar daí. Mas seria muito longo, aqui, desenvolver
o problema desse modo. Poderíamos, simplesmente, começar da crise
atual. Digamos: o que representa esse [Vladimir] Putin e o seu
governo? Putin é um rouge-brun, uma mistura de stalinista e fascista,
uma coisa mais ou menos assim, um ex-oficial da KGB ligado a um
teórico néo-fascista e anti-semita (Diguine). Putin está dominado pela
ideia de que o fim da URSS foi a pior catástrofe do mundo. E está
provocando os pequenos países que surgiram da ruptura da URSS.
Ele tirou um pedaço da Geórgia, alegando que tinha russos lá, tirou
um pedaço da Moldávia e agora tirou um pedaço da Ucrânia. Claro
que o caso da Criméia é um pouco complicado, porque a Criméia foi
incorporada à Ucrânia, meio artificialmente, por Krushtschev. Mas de
qualquer maneira os métodos são os piores possíveis. O caso da
Criméia se liga a esss outros casos, e isso é essencial. Em geral eu
acho terrível esse personagem. Mas como ele chegou lá? O
encaminhamento pelos ocidentais da crise foi o pior possivel. O apoio,
quase incondicional, dado a [Boris] Yeltsin, um erro da maior
gravidade. Eles impuseram um tratamento de choque do FMI que
arrebentou com a classe média. Fizeram primeiro uma reforma
econômica, desvalorizam o dinheiro, todo mundo perdeu tudo, fora os
figurões que já tinham semi-privatizado ou que já tinham acumulado
muito dinheiro. Empobreceram a classe média e depois privatizaram.
Então, imediatamente criou-se (ou criaram) uma categoria de
oligarcas, muito prestigiados pela ideia de que com eles, já não
haveria perigo de uma volta ao “comunismo“. Mas o “comunismo“
já estava morto. Eles teriam que pensar nos outros perigos que havia
lá também. E todos entraram nisso, inclusive o Clinton e os
democratas; eles jogaram a carta Yeltsin, que é um aventureiro, um
sujeito péssimo. E o Yeltsin pôs o Putin lá, em troca de garantias em
seu favor. Ele entregou o governo a Putin e o primeiro ato deste foi
uma anistia, uma lei que não permitia mexer com ex-presidente. Então
puseram o Putin lá, e com isso erraram, porque essa política não foi só
ruim do ponto de vista democrático, foi ruim para também para os
interesses deles. Pondo no poder Putin e os oligarcas (Putin briga um
pouco com os oligarcas, mas globalmente defende os seus interesses,
ou, pelo menos, é aliado deles), os americanos achavam que tinham
investido no poder bons aliados. Mas não foi nada assim. Primeiro,
que capitalista briga com capitalista. Segundo, que o capitalismo que
nasceu lá é um capitalismo autocrático, violentíssimo, pior do que o
deles. O deles é ruim, violam direitos humanos etc., mas o lado Putin,
não se trata de violar princípios, eles não têm nenhum tipo de
preocupação, de princípio, é um modelo próximo de um néo-fascismo.
Entre o Obama e o Putin existe diferença. Claro que os europeus e
americanos não são inocentes, mas o que se deve mostrar como
responsabilidade deles é a história do Putin; eles têm
responsabilidade grave nessa história do Putin. Eles jogaram essa
carta porque achavam o cara seguro, com ele, não se voltaria ao
“comunismo“ etc (o que, na realidade, não seria boa coisa). Bom,
de fato não se voltou ao comunismo, só que agora tem-se um
modelo de governo pré-fascista.
Há sempre dois perigos numa situação, não um (refiro-me
particularmente ao stalinismo e ao néo-fascismo, não ao caso
ucraniano, onde também há ambiguidades, mas é outra coisa).
Essa é uma lição quase universal. – Do lado ucraniano tem fascistas
também. As coisas não são tão simples – tem lá o tal Bandeira, um
tipo que foi pró-nazista, nacionalista ucraniano que depois rompeu
com os nazis, os irmãos morreram em Auschwitz; é complicado, mas
ele era um pró-nazi. E, no movimento ucraniano, há alguns caras
desse tipo , mas até onde a gente sabe é minoria, são uns 2%. O
resultado das eleições de 25 de maio confirmam esse dado. Já o Putin
encarna plenamente o novo estilo. A herança que ficou do
bolchevismo foi o autoritarismo; o lado, digamos, positivo do
bolchevismo acabou; só ficou o pior lado, ficou o do autoritarismo e
da violência. É um homem da KGB, que há de criar problemas.
Agora, não creio que o Putin tenha grande força. No fundo, o que
está nascendo é a China, que é um novo capitalismo, a meu ver
pior que o americano. O americano não é acima de qualquer de
suspeita, mas [o chinês] é muito autoritário, semi-totalitário (não é
mais totalitário, mas agora acabaram de levar um sujeito para TV que
“confessou“ todos os seus crimes... ). Esse tipo [de capitalismo] tem
campos de trabalho etc etc, nenhuma preocupação com os direitos do
homem. “Bom, dirão, “direitos do homem“ é ideologia”. Não é só
ideologia. E além dos EUA, tem a Europa. Quando os americanos se
faschisaram, no caso Bush, o Chirac (pelo qual, deixe-se claro, não
tenho a menor simpatia) resistiu, a França resistiu, o governo francês
brigou bastante com os americanos. Só que hoje – falando da Europa
– há risco, o fascismo ganha terreno. Há o caso da Hungria. A
democracia está praticamente liquidada na Hungria, e o governo
húngaro está se ligando ao Putin. A acrescentar os progressos da
extrema-direita em paises como a França, a Holanda, a Dinamarca, a
Áustria, e outros mais. Na Hungria, há um movimento relativamente
forte que está ainda mais à direita que o governo. Um movimento
abertamente néo-nazista. Tudo isso é sério, mas o mais sério, em
termos de poder, é o [capitalismo] da China. No que vai dar esse
capitalismo chinês? Um capitalismo poderosíssimo que será o
primeiro do mundo talvez muito antes do que se pensou (em dez
anos, em cinco anos, já ?) Vocês já imaginaram o que é uma
situação em que a grande potência hegemônica no mundo (a que
dá as cartas e fornece os modelos), é uma potência em que ainda
se exibem prisioneiros políticos na TV, os quais confessam seus
crimes de lesa-partido urbe et orbe?). Pensem um pouco no que
isso significa.

Primeiro em que sentido?


Uma potência capitalista enorme, expansiva. Um certo politólogo de
esquerda, brasileiro, escreveu que a China não é “expansionista“ (ou
algo assim). Esse pessoal tem a cabeça no marxismo-leninismo dos
anos 1960 ! [A China] é “expansionista“. Os dirigentes chineses são
mais modernos que os americanos, eles têm bases, mas o problema
deles não são as bases, eles estão penetrando por todo lado,
penetrando na África, e logo passarão os americanos (não no PIB per
capita; per capita, acho que só em 2050, mais ou menos). Então é um
capitalismo com todas as coisas dos americanos e mais um regime
interno autocrático; não tem resistência. O americano, se tem Guerra
no Vietnã, tem briga lá dentro, tem estudante que fala. Por mais que o
regime americano esteja se tornando oligárquico – e, de fato, a
democracia americana está indo para as “cucuias”. Mas entre
oligarquia e (pós-) totalitarismo, há uma diferença. Claro que o
hegemonismo americano ainda comanda (em termos militares, com
folga, mas os chineses progridem rapidamente). Por outro lado, ele
ainda nos toca mais de perto (mas, aí também, os chineses avançam).
A situação não é nova. É preciso combinar a crítica do hegemonismo
americano, com o repúdio aos regimes pós- (ou quasi-) totalitários.

E a América Latina? Você considera positivas as experiências de


governos de esquerda na América Latina nos últimos anos? Caso
considere, você acredita que o atual cenário político regional tende a
aprofundá-las ou a retrocedê-las?
É tudo complicado, porque a gente quer radicalizar, mas em
geral, quando radicaliza, radicaliza mal, radicaliza sem
democracia, e aí não vale a pena. Não vale a pena porque
democracia é uma coisa da maior importância. E segundo porque
acabam se deteriorando também as eventuais “conquistas“. O
caso Chávez por exemplo. Veja a oposição de esquerda do Chávez, o
Teodoro Petkoff. O Chávez fez coisas lá, mas fez à maneira dele, tem
uma enorme corrupção interna, ele era antidemocrata. E agora tem
esse sujeito aí [Maduro]; ele é muito ruim, está reprimindo. Há uma
boa resistência, mas há também, aparentemente, uma extrema direita
mobilizada, o que complica a situação. Mas gostaria de ter mais
informações sobre a oposição democrática e de esquerda na
Venezuela O caminho dos Evo Morales, Rafael Correia etc não é o
nosso caminho, não é o bom. Não se deve fechar a porta quando eles
fazem alguma coisa útil ou correta. Fazem-se reformas, mas por um
caminho populista, no plano da política internacional com apoio a
Cuba, ao Ahmadinejad, ou outros (Assad !) do mesmo ou pior quilate.
Tudo isso é muito ruim. O Brasil é que não está tão ruim. O Brasil tem
democracia interna, vamos ver em que vai dar. Eu sou inteiramente
favorável a apoiar dissidentes, sempre que eles não sejam de extrema
direita. Se for do centro (centro esquerda, ou mesmo centro
simplesmente), apoia-se Foi assim na época da URSS, tem de
continuar a ser assim. Sou inteiramente contrário ao tipo de reação,
que se viu, no Brasil, de boa parte da esquerda, quando veio a
dissidente no Brasil, a blogueira [Yoani Sánchez]; caíram em cima,
não deixaram ela falar; isso eu acho o pior. Não a deixaram falar;
logo logo, não deixarão a gente falar. Que uma personalidade
política, qualquer que seja a sua posição (menos um nazi, mas mesmo
aí, não sei...) seja impedida de falar, na principal livraria da cidade,
pela intervenção violenta de uma turba de jovens energúmenos
fanatizados – uma parte dos quais, aliás, é a regra, estarão na
extrema direita, em dez anos – é alguma coisa da maior gravidade.
Observa-se que a mesma coisa vem ocorrendo em algumas
universidades do país, e não das menos importantes. “Ah, ela veio
com a direita”. Aí é preciso considerar. A direita sempre se valeu da
figura dos dissidentes. A solução não é jogá-los nos braços da direita,
mas apoiá-los, como faz a esquerda européia. Com isso, se esvazia
completamente o jogo da direita e da extrema-direita. Disseram que
Sanchez se deixou fotografar com deputados reacionários. Bom, mas
onde estavam os deputados “progressistas“? Eles simplesmente
haviam boicotado a reunião com ela... Outra coisa foi a famosa
entrevista em que ela teria sido “desmascarada“. O entrevistador, que
tem um doutoramento numa universidade parisiense e se passa por um
“especialista“, é na realidade um ativista e um ideólogo bastante
vulgar. Partidário de Putin. Aliás, ele é hispanófono, embora isso
apareça pouco. A entrevista que ele fez com ela, que aliás, parece que,
além de tudo, foi modificada ou falsificada, é menos uma entrevista
do que um interrogatório policial. Quanto à “participação“ dela em
insituições de direita e extrema-direita, até onde eu pude pesquisar,
houve foi uma colaboração (junto com uma centena de intelectuais
brasileiros, de direita, na maioria, mas de forma nenhuma de extrema
direita, em geral professores pró-tucanos que eu conheço muito bem,
no meio tem aliás gente de centro, bem conhecida) no blog de uma
dessas instituições, que, em quanto tal é mesmo de doer. Há um
núcleo de esxtrema-direita na instituição, mas até onde sei, Sanchez
não está associada a esse núcleo. Claro, melhor que não colaborasse, e
sem dúvida, de forma mais geral, a sua política do “que recuperem !“
é perigosa. Mas isso não legitima transformar a colaboração em blogs
(ou para blogs) em uma espécie de união ideológica e organizatória
com os chefetes da extrema-direita.... Salve erro, isso é uma
falsificação pura e simples. E se ela foi mais longe do que indiquei,
que se a critique. Quanto a fazer barulho pra tolher uma entrevista,
isso é um perigo… É coisa de estilo policial. É bom saber que
polícia não há só de direita, há também de esquerda. No século
XX, houve polícia de esquerda à vontade. E a polícia de esquerda
não reprimiu apenas a direita, é preciso lembrar disto, reprimiu a
esquerda que não foi brincadeira. É isso a polícia de esquerda. A
tendência nossa é radicalizar no Brasil; a gente é a favor da
radicalização, o que está certo; mas a radicalização vai cair na mão de
quem? Eu não sei, não tenho certeza. É por isso que eu acho que tem
que falar, discutir. Vocês teriam que formar novas direções. Cada vez
que eu vejo um personagem ou um grupo mais ou menos democrático
dentro do PT, eu me interesso; ou do PSOL, não importa. Eu
acompanhei com interesse o Haddad, que conheço bem, também o
Vladimir Safatle (quaisquer que sejam nossas divergências),
acompanho com interesse o [Márcio] Pochmann, acompanho com
algum interesse a Marina [Silva]. A gente vê o que pode dar. E depois,
se não der certo, se toma distância. Mas você acompanha, fala quanto
puder falar, faz jornal, blog, e vê o que vai dar. Não dá pra ser muito
otimista, mas também não é um pessimismo total o que se impõe,
porque ça bouge. Trocam-se ideias; vocês agora estão criando um
site.

O avanço das políticas de austeridade na Europa para combater os


efeitos da Crise de 2008 mostra a fragilidade da relação entre
capitalismo e democracia. Tendo em vista que até a França, país de
fortes instituições democráticas e de proteção social, também aderiu à
austeridade mesmo sendo governada pelo Partido Socialista, o que
você vislumbra para o projeto de União Europeia? Há espaço para a
radicalização democrática?
Eu acho que o governo Hollande vai muito mal. É mesmo senão
governo dos patrões, pelo menos governo “com vistas“ aos patrões, no
sentido de que só os patrões são os seus interlocutores. Isso posto, o
que daria para fazer? Há o [Jean-Luc] Mélénchon, que às vezes, faz
boas críticas. Ele fez uma marcha contra a austeridade, e se eu não
estivesse doente na ocasião, talvez tivesse ido. Só que o Mélénchon é
chavista, pró-China, contra os dissidentes. Não dá. Por outro lado, as
coisas são complicadas, técnicas, a gente tem que estudar esses nós da
economia. Mas tudo leva a crer que o projeto deles [do PS] é muito
ruim, é uma política da oferta, eles vão lá com os patrões pra negociar
algumas coisinhas, reduzir os gastos de Estado, pra todo lado. Mesmo
os keynesianos, os quais, como se sabe, não são nada revolucionários,
[Joseph] Stiglitz, [Paul] Krugman, acham que está tudo errado. Agora,
tem algumas coisas que são bem evidentes. Teria que mexer com a
Europa. Eu acho que a questão está muito mal colocada, ou que há
muito ambiguidade, quando se fala dos que são “a favor da Europa“ e
dos que são “contra a Europa“. A Europa é uma coisa, o governo
europeu é outra, como a França é uma coisa, o governo francês é
outra. O resultado das eleições européias foi péssimo, na França, e
bastante ruim, em geral. Salvou-se a Itália, a Grécia, e alguns outros
países. O crescimento da extrema-direita é um fato muito, muito
grave. Mas não se vai combater bem a extrema-direita, com a política
atual (refiro-me à França e ao socialismo europeu, em geral). Teria
que mexer com a Europa, tentar dar uma virada na Europa para tentar
impor uma outra política. 3% como limite da dívida é muito estreito.
Tem até um projeto para tentar tirar uma porção de coisas desses 3% –
não incluiria gastos de saúde, educação. São pequenas modificações,
aparentemente, mas importantes. E teria que democratizar a Europa,
fazer daquilo um verdadeiro governo. É estranho ter que obedecer a
Bruxelas? Sim e não. Se Bruxelas fosse um governo livremente eleito
etc. A França entraria nesse esquema e muito bem. Agora, Bruxelas
são funcionários limitados, neoliberais até o sangue. E sem
legitimidade. Por outro lado, teria de mudar a política nacional. Pelo
menos realizar o que haviam prometido: conversão energética, luta
contra o capitalismo financeiro, reforma tributária etc. Existem planos
concretos para dar uma solução pelo menos parcial ao problema do
desemprego (partilha das horas de trabalho, compensando a redução
do que pagariam as empresas por um auxílio do Estado, vindo das
caixas de indenização aos desempregados: em vez de admitir o
desemprego, e cobrí-lo com indenizações, se evita o desemprego,
através de um salário complementar que vem do Estado). Este é
apenas um exemplo. Há outras medidas que seria possivel tomar. Mas
o PS francês não sabe nada disto. Aderiu ao néo-liberalismo mais
pálido e sem imaginação. Com isto, não é de estranhar que não haja
mais do que 11% (!) de franceses que apreciem o governo Hollande, e
que a extrema-direita ganhe força. Mas é uma situação de urgência. É
preciso reagir, ou o Front National estará no poder, na França, em
2017 !

Bloco Filosofia no Brasil

8 – Faz sentido a busca pela constituição de um pensamento filosófico


brasileiro? No livro Conversas com Filósofos Brasileiros, quando
responde uma questão acerca da possível existência de uma filosofia
brasileira, você afirma que, apesar de um “formidável crescimento”
de “profissionais da filosofia”, resta ainda “uma distância entre a
seriedade universitária e a participação na vida do país”. Qual seria
o motivo dessa distância? Você enxerga um caminho para superá-la?
Dita desse jeito, a fórmula fica um pouco simplista. Houve um grande
progresso em Sociologia, Filosofia... Não tem nada que ver com o
meu tempo; nós éramos uns dez, se tanto! A gente contava nos dedos
os filósofos e sociólogos (filósofos no sentido de “profissional da
filosofia”, bem entendido). Houve um grande progresso, mas eu acho
que o pessoal fica entre uma filosofia e uma sociologia que aprende na
escola e, frequentemente, um certo tipo de militância de esquerda, na
mouvance do PT, do PSOL etc. E essas duas coisas não resolvem. É
preciso refletir sobre a realidade, pensar a história e tudo mais. Quer
dizer, de um lado eles têm Kant e Sartre ou Durkheim e Bourdieu, do
outro lado, as ideias políticas e sociais dos comitês do PT da cidade
“X”. Isso é insuficiente. Há de um lado a impregnação na
sociologia universitária ou na filosofia universitária. E, de outro,
uma espécie de militância mais ou menos cega (a militância é
fetichizada por eles, ao mesmo tempo em que, curiosamente, vêem
aí, um campo impuro, ao qual a teoria não deve descer). O que
fica no meio, e é o essencial, a reflexão, não vem, porque nem a
universidade, nem o comitê municipal do PT da cidade X, dá tal
coisa. Fica-se entre uma coisa e outra, e nenhuma das duas oferece
aquilo que se necessita. Há também um problema com a “estrutura“
das publicações no Brasil. A literatura política mais rica não aparece,
e as bibliotecas são insuficientes. Essa é aliás é uma das razões pelas
quais eu fiquei na França. Há também um problema com a
“sociabilidade cultural e intelectual“ no Brasil. Vocês querem fazer
site – ótimo! – e evitar o dogmatismo. Uma vez fiz uma crítica do
Fio da Meada, de Paulo Arantes; foi ele mesmo que insistiu para que
eu fizesse. Eu não gostei daquele livro, acho muito ruim. Mas ele
insistiu. Então eu comentei o Fio da meada e o Sentimento da
dialética. Fiz um grande elogio ao Sentimento da dialética e “meti o
pau” no Fio da meada porque achei muito ruim. E no final elogiei
muito a figura do Paulo. Houve apenas uma frase que saiu irônica sem
querer , que eu corrigi na republicação em livro. Pois a resposta deles
(tinham então uma revista) foi “não publicamos!”; não o Paulo, ele
quis publicar. Roberto Schwarz, também. Este, que fazia parte da
comissão alta da revista, falou, aliás, que esse negócio de socialismo
tem um lado muito bom e tem um lado sinistro: se vocês não publicam
este artigo, é o lado sinistro que vai ficar. Eu acabei publicando o
texto na Folha, outra versão em Lua Nova, e depois em livro. Eu
continuarei no mesmo estilo, mas tomando cuidado para não exagerar
a ironia. Com o Vladimir Safatle eu acabei fazendo um debate bom e
acho que ele gostou. Eu tinha feito um posfácio curto e irônico. E ele
ficou louco da vida, me atacou... Aí, uma vez que se instaurou esta
discussão, o que você vai fazer? Não responder não pode, mas se
responder entra lá uma certa revista “de cultura“ e não sei o quê! O
único jeito foi tomar aquilo bem a sério. Então eu me pus a estudar.
Escrevi um texto de umas 30 ou 40 páginas. O Vladimir não está de
acordo com tudo, é claro, mas diz que gostou. Tem bastante farpa,
mas muita análise, e pelo jeito o Vladimir ficou contente. Ele viu que
teve um cara que leu as coisas dele e disse “olha, a meu ver, isso
presta e isso não presta”. Continuamos amigos.

Mas foi publicado?

Saiu na Fevereiro. Saiu meio grande. O problema é que os textos


eletrônicos relativamente longos o pessoal lê pouco. Porque no fundo
a gente não discute nada no Brasil. A única discussão teórica que
teve foi a discussão do [Oswaldo] Porchat com o Bento Prado Jr.,
nosso falecido amigão. A Filosofia e a visão comum do mundo.
Mas fora isso, nada.

Só para entender: para você, o que falta para constituirmos um


debate de qualidade, filosófico e brasileiro, é de um lado uma falta de
infraestrutura (livros e bibliotecas) e, de outro, você acha que as
pessoas não gostam de discutir. É isso?
Um modelo bom aí é o modelo anglo-saxão. Na França, não se
discute muito e a gente copiou um pouco esse modelo. Sai algo e
dizem (em voz baixa): “É uma droga!”. No mundo anglo-saxão, até
onde sei, se discute à vontade. Eles discutem numa boa. Eu tenho
uma assinatura da New York Review of Books que eu recomendo
muito a vocês. É uma excelente revista. E o que tem de debate de todo
tipo! No mundo anglo-saxão você não blefa, nem erra impunemente.
A começar pelos erros de fato. A gente teria que desenvolver este
modelo do debate, de forma, conteúdo, tudo. Mas acho que tem de se
conter um pouco. Eu vou conter um pouco a ironia. Evitar a ironia
mais forte.

Para retomar a rica e frutífera experiência do seminário Marx


realizado em São Paulo, Paulo Arantes em seu livro Um
departamento francês de ultramar, afirma que havia três perspectivas
de leitura de Marx sendo gestadas naquele momento: Giannotti
“procurava trazer o marxismo para uma ontologia (regional) do ser
social; Bento Prado pensava em “fundá-lo através de uma
antropologia existencial”; e você planejava “uma reconstrução
lógico-filosófica da dialética”. Você concorda com a leitura de Paulo
Arantes? Se sim, em que medida a dialética ainda é capaz de
mobilizar o trabalho crítico?
É um pouco por aí. A dialética é uma coisa que ainda conta. Ela está
ficando pra trás, mas é algo que nunca resolveram. Eu estou tentando
reeditar o Marx: lógica e política, com outro título... Eu acho que
dialética é uma coisa muito séria que não foi compreendida... Na
França, então, não foi feito quase nada! Aliás, agora aparecem coisas.
Na Inglaterra houve algumas. Na França, tem esse livro de
[Christian] Laval e [Pierre] Dardot sobre Marx, coisa séria, só que
não o acho muito “quente” em matéria de dialética. É um trabalho
importante, mas não exatamente em termos de dialética.. Eu comecei
um curso na USP e acho que não vou continuar imediatamente. Mas
devo continuar ulteriormente. Era algo em torno de dialética e crítica.
De um lado a crítica, de outro a dialética. Enfim, há uma crítica
dialética, em certos momentos elas se cruzam A dialética envelhece,
mas, por outro lado, ainda está para ser feita. não foi feita. Avançou
um pouco mas não avançou tanto. Acho que no Brasil estamos na
ponta. Depois da Alemanha, deve ser o melhor. Só que parou em
certo momento, por causa daquelas brigas e outras coisas Deu na
praia. O discurso crítico sobre o que aconteceu no Leste é, em geral, Commented [2]: Paulo Eduardo Bodziak Junior: Incluir

pós-dialético. A dialética está muito ligada à crítica do capitalismo.


Acertou muito em certa época, mas ela ainda vale muito, e vai além
da crítica do capitalismo. Vale porque tem o tema das interversões, Commented [3]: hteixeira: hein?

vale como um certo modelo, mesmo que o objeto tenha mudado


muito. É formidável o que se tem para fazer, e aí teria que ter equipes
de jovens pra se encarregar de cada um desses temas
Para terminar duas questões sobre as quais eu não fui
perguntado. E depois delas, algumas considerações finais. Uma,
questão é de ordem mais geral, na realidade essencial, a outra é mais
conjuntural, mas, à sua maneira, muito importante, também.
Vocês não me fizeram nenhuma pergunta sobre ecologia. Isso é
sintomático. Uma questão tão séria quanto esta, continua em segundo
plano no Brasil. É preciso insistir: o problema ecológico é um
problema maior. Talvez o mais importante. Se houver novas
catástrofes ecológicas, e caminhamos, de forma crônica, para uma,
não haverá nem esquerda, nem direita, nem coisa nenuma a discutir.
Os problemas são dois. De um lado, o acúmulo de CO2, que está
alterando o equilíbrio ecológico do planeta, com consequências
imprevisíveis. É preciso se lançar seriamente na campnha contra a
fúria de destruição das nossas condições de vida, enquanto for tempo.
O segundo é o perigo nuclear. Os especialistas críticos dizem que há
grande probabiliade de uma nova catástrofe nuclear nos próximos dez
ou vinte anos, que poderia ocorrer inclusive no Brasil (fala-se pouco
sobre o que se sabe sobre as condições de (in)segurança da central de
Angra). Que se medite sobre o que aconteceu e acontece no Japão,
naçao que foi literalmente crucificada. E que não se diga: foi o
tsunami ! Lá foi o Tsunami, em Tcherobil foi falha humana, em Three
Miles Island o que foi? E as quase-catástrofes sobre as quais se faz
silêncio (o antigo acidente na Inglaterra, o quase-acidente perto de
Bordeaux no final do século)? Isto tudo tem que ser posto no tapete, e
discutido.
Segunda questão (de outra ordem, mas também, à sua maneira,
muito importante) para terminar. Já que estamos em plena Coba –
vocês não perguntaram nada a respeito das mobilizações – vai aqui a
minha saudação aos movimentos populares em torno da Copa. Eles
abrem um capítulo novo na história das mobilizações sociais no
Brasil. Qualquer que seja o seu destino, pode-se dizer, que, com eles,
as coisas não serão mais como foram até aqui.
Fechando essa entrevista, e resumindo o que disse sobre a
política de esquerda no Brasil e na Europa, acho que vivemos um
momento de refundação.da esquerda. Para dizer o que penso em
algumas fórmulas, que deenvolverei em outro lugar, acho que a
esquerda necessita de um movimento (incluindo partidos), montado
em quatro bases: 1) Anti-capitalismo sob a forma de mudanças
radicais do sistema (do tipo partilha do trabalho, reforma fiscal
radical, reformulação das exigências em termos de condições de
trabalho, a médio e longo prazo: cooperativas etc). O Estado conserva
os setores básicos da economia. Os economistas deverão elaborar
melhor um programa radical de mudanças. A observar: a social-
democracia européia, em boa parte, não é mais reformista, é adesista;
2) Exigência democrática sem concessões. Nem uma sombra de apoio
aos populistas, néo-autoritários, ou pós-totalitarios (os Castro, poder
chinês, ou populismo latino-americano [no caso dos latino-americanos
do tipo Bolivia, reconhecer, se for o caso, o lado positivo desta ou
daquela medida]); 3) Dimensão ética da políítica. Nenhum lugar para
amoralismos do tipo justificação de roubalheira “porque é para o
partido“. Recusa do bla-bla-bla contra o “moralismo“ etc. Para uma
política democrática, a moralidade administrativa, e geral, é uma
dimensão essencial; 4) Programa ecológico radical. Pelas energias
renováveis. Contra a as energias poluentes. Renúncia total ao nuclear
(isso vale também para países em que as energias alternativas são
mais dificeis de obter, e a fortiori para o Brasil, que tem imensos
recursos em energias limpas e sem periculosidade). Toda a verdade
sobre as condições da Central de Angra (características geológicas e
geográficas negativas, caráter obsoleto da central, etc etc). Eis aí, a
meu ver, os quatro pilares para uma renovação do projeto da esquerda.

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