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(Do livro didático: "Curso de Filosofia", Jorge Zahar Editor, 1986, 3ª Edição, Antonio Rezende
(org.), p. 223-229)
1. Introdução
2. O poder na modernidade
As sociedades modernas apresentam, segundo Michel Foucault, uma nova organização do poder.
Essa novidade aparece a partir do final do século XVIII e se caracteriza por transformações
radicais, dificilmente entendidas pela ótica tradicional da reflexão política.
Tradicionalmente, o poder é concebido como uma forma repressiva, portanto negativa, que emana
do Estado e de seus aparelhos. Para Foucault, se o poder dos Estados modernos fosse apenas
repressivo, a dominação capitalista, por exemplo, não seria tão eficaz. Se os mecanismos da
dominação fossem exercidos unicamente em sua forma violenta, pela opressão sobre os cidadãos,
os movimentos de libertação alcançariam êxito muito mais facilmente. A dificuldade maior é que o
poder moderno desenvolve mecanismos de dominação muito sutis e pouco conhecidos pelos
historiadores e filósofos políticos.
O poder é produtor de saber, de conhecimento. Por seu lado, também o saber engendra poder,
produz o que Foucault chama de efeitos de poder. Assim, poder e saber aparecem
necessariamente articulados na modernidade. E é nesse sentido que o poder é analisado por
Foucault como positivo e produtivo:
"( ... ) existe, e tentei fazê-la aparecer, uma perpétua articulação do poder com o
saber e do saber com o poder. Não nos podemos contentar em dizer que o poder
tem necessidade de tal ou tal descoberta, desta ou daquela forma de saber, mas
que exercer o poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e
as utiliza. Não se pode compreender nada sobre o saber econômico se não se
sabe como se exercia, quotidianamente, o poder, e o poder econômico. O
exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta
efeito de poder. ( ... ) O humanismo moderno se engana, assim, ao estabelecer a
separação entre saber e poder. Eles estão integrados, e não se trata de sonhar
com um momento em que o saber não dependeria mais de poder, o que seria
uma maneira de reproduzir, sob a forma utópica, o mesmo humanismo. Não é
possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não
engendre poder." ("Sobre a prisão", in Microfísica do poder, pp. 141-142)
"É preciso cessar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos:
ele "exclui", "reprime", "recalca", "censura, "discrimina", "mascara", "esconde".
Na verdade, o poder produz: produz o real; produz os domínios de objetos e os
rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter relevam
dessa produção." (Vigiar e punir)
A verdade, o conhecimento, a ciência nunca estão, portanto, acima ou separadas do poder: não
são transcendentes em relação a ele. Ao contrário de tradição filosófica, Foucault, seguindo ai uma
tematização próxima da que podemos encontrar em F. Nietzsche, acredita que um discurso de
verdade não se obtém como fruto de uma pesquisa "livre e desinteressada", mas sempre através
de um exercício de poder: a busca da verdade é sempre "interessada". Aquilo que Foucault chama
de seu projeto genealógico, - revelando nessa designação os referidos vínculos com a obra
fundamental de F. Nietzsche, A genealogia da moral (1887) - procura, justamente, fazer a história
da produção de verdade no Ocidente:
3. A analítica do poder
Assim, a questão do Estado (poder central, "macro") não é importante para Foucault, como
sempre foi para a tradição da filosofia política. Na genealogia, a compreensão do poder não se
restringe à soberania do Estado e de seus aparelhos, ponto central de onde emanariam formas
derivadas do poder:
"A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a
soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas
são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve
compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força
imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o
jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes, as transforma, reforça,
inverte; os apoios que tais correlações de força encontram uma nas outras,
formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que
as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral
ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da
lei, nas hegemonias sociais. ( . ) A condição de possibilidade do poder ( . ) não
deve ser procurada na existência primeira de um ponto central, num foco único
de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes. ( ... ) O poder
está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os
lugares ( . ). O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma
certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação
estratégica complexa numa sociedade determinada. ("História da sexualidade",
vol. I, A vontade de saber, pp. 88-89)
A analítica do poder não se localiza em algum ponto da estrutura social. Mas se o poder não se
centraliza no Estado, também não se encontra em outro lugar. Não é, ainda, propriedade,
privilegio de um indivíduo, de um grupo ou de uma classe. Não se nega, na analítica do poder, a
existência de classes sociais, da classe dominante. O interesse da análise não se restringe à
compreensão da exploração econômica. Ela quer compreender como uma classe não só se torna
dominante, mas assegura a permanência de sua dominação, fazendo-se "aceitar" pelos
dominados:
"Uma classe dominante não é uma abstração, mas também não é um dado
prévio. Que uma classe se torne dominante, que ela assegure sua dominação e
que esta dominação se reproduza, esses são efeitos de um certo número de
táticas eficazes, sistemáticas, que funcionam no interior de grandes estratégias
que asseguram essa dominação." ("Sobre a História da sexualidade", in
Microfísica do poder, p. 252)
À genealogia não interessam os objetivos globais e finais do poder, mas como funciona a
dominação em suas práticas reais, cotidianas, e em seus efeitos concretos. Interessa-lhe, por
exemplo, as formas múltiplas e difusas pelas quais o poder se exerce sobre os corpos, sobre os
comportamentos e sobre os sentimentos dos indivíduos, moldando-se e se tornando transmissores
de poder:
"O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só
funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de
alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se
exerce em rede. Nu suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão
sempre em posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação, nunca são o alvo
inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão." ("Soberania
e disciplina", in Microfísica do poder. p. 183)
Examinando, na ótica da analítica do poder, a rede difusa do poder nas sociedades modernas
ocidentais, Foucault distinguirá a existência de micropoderes de aspecto normativo, por oposição a
um modelo legislativo, característico do Estado medieval e clássico. O modelo legislativo é
repressivo: é o poder punitivo e coercitivo da lei.
A ordem normativa não pretende, como a lei, apenas reprimir; ela quer ver suas normas aceitas
pelos indivíduos. Não quer proibir, quer convencer. Essa aceitação garantirá o seu sucesso. Sua
tática é, portanto, a de convencer racionalmente e, assim, propor-se como uma alternativa mais
lúcida, escolhida pelos indivíduos e não imposta a eles por uma lei exterior às suas vontades.
Para isso, e na medida em que nas sociedades modernas o prestígio de verdade está com as
ciências, a estratégia normalizadora efetiva-se nos discursos e práticas científicas, em especial nas
ciências humanas. A aceitação de um modelo "normal" para os comportamentos está ligada à sua
legitimação, por exemplo, por uma ciência, como a psiquiatria ou a pedagogia.
"A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e
constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é
conforme à regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade e
subritetê-lois a uma perpétua pirâmide de olhares. ("O nascimento do hospital",
in Metafisica do poder, p. 106)
"Lá onde há poder, há resistência. ( ... ) Não existe, com respeito ao poder, um
lugar da grande Recusa - alma de revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do
revolucionário. Mas sim resistência, no plural, que são casos únicos: possíveis,
necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas,
arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou
fadadas ao sacrifício ( ... ) E é certamente a codificação estratégica desses pontos
de resistência que torna possível uma revolução, um pouco à maneira do Estado
que repousa sobre a integração institucional das relações de poder. (História do
sexualidade, vol. 1, A vontade de saber, pp. 91-92)
PALAVRAS-CHAVE
Lei - ordem da lei - Ao contrário da norma, a ordem da lei está relacionada à repressão, aos
códigos jurídicos. É o mecanismo característico da organização do poder nas sociedades feudais.
Sua fundamentação é o direito, ao contrário da norma, que se fundamenta na ciência. Para
Foucault, as análises de filosofia política ainda trabalham a partir dessa noção de lei, que não é
mais eficaz para o estudo das sociedades normativas modernas.
Poder - O poder, para M. Foucault, é entendido na sua distribuição no todo social e não, como
tradicionalmente o é, a partir de um centro do qual ele emanaria: o Estado, os aparelhos estatais.
Saber - Saber é um termo que designa, em Foucault, conhecimentos, discursos, sejam estes
científicos ou não. Tanto é um saber, por exemplo, a medicina quanto os conhecimentos
terapêuticos populares.
QUESTÕES
2 As sociedades disciplinares.