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Unidade II
5 O EXERCÍCIO FÍSICO NAS SOCIEDADES MODERNAS
A Educação Física moderna sofreu influências dos pensadores iluministas do século XVII e
XVIII. Dentre eles se destacou Jean Jacques Rousseau (1712-1778), cuja obra colaborou com a
criação de um novo método educacional e uma nova visão de homem. Rousseau afirmava que a
criança deveria ser educada livre das influências negativas dos pais e das instituições da sociedade,
sobretudo da Igreja, grande condutora ideológica da época. Para Rousseau, a educação deveria
estar na autonomia da vontade e na razão. Rousseau valorizava, em seus preceitos educativos, a
formação moral e física do jovem. Essa condição abriu espaço para o desenvolvimento da Educação
Física e influenciou um grande número de estudiosos e pedagogos em diversos países da Europa,
culminando com o surgimento das Escolas Ginásticas (MARINHO, 1980).
Johann Basedow (1723-1790) era um professor alemão que desenvolveu seu próprio sistema
de ensino baseado nas ideias de Rousseau. A educação deveria ser livre de influência religiosa e as
crianças deveriam ser tratadas como crianças em vez de adultos pequenos. A carga excessiva de
atividades físicas era parte do sistema. Ele incluiu um dia de 10 horas, com cinco horas de aulas,
três horas de esgrima, equitação, dança e música e depois duas horas de trabalho manual ligada
a um ofício. A escola empregava Basedow na década de 1770 como seu primeiro professor em
Educação Física, e ele pode, assim, ser considerado como o primeiro professor moderno ginástica.
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FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Figura 20
A ginástica sueca foi implantada por Per Henrik Ling (1776-1839) e teve influência dinamarquesa.
Ling desenvolveu uma ginástica essencialmente educativa e social, exaltando os benefícios à saúde e a
serviço à pátria via ginástica de preparação militar. Ling procurou estabelecer rumos científicos para a
prática dos exercícios físicos, a fim de regenerar o povo sueco (RAMOS, 1982; MARINHO, 1980).
Figura 21
Ling criou um sistema de ginástica constituído por quatro divisões principais: pedagógica, médica,
militar e estética. O autor destacou em sua obra as duas primeiras divisões. A ginástica pedagógica era
destinada a pessoas saudáveis e tinha como objetivos o domínio pleno do corpo e o desenvolvimento
da saúde. A ginástica médica objetivava o tratamento de certas enfermidades, mal funcionamento de
órgão e problemas posturais.
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Unidade II
A ginástica de Ling destaca-se pela sistematização precisa dos exercícios e pela organização de
princípios (RAMOS, 1982):
Após o estabelecimento dos princípios, Ling criou os diferentes exercícios do sistema, obedecendo‑se
ações articulares anatômicas e princípios fisiológicos. O programa incluía em sua base movimentos
envolvendo apenas o corpo, depois iam-se incluindo implementos, tais como saltos sobre o cavalo,
rolamentos, paradas de mãos, caminhada sobre a parada de mãos, subidas em cordas, escadas, esgrima
e natação (RAMOS, 1982).
Figura 22
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FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Em 1813, Ling fundou o Instituto de Estocolmo, o Real Instituto Central de Ginástica, hoje Escola
Superior de Ginástica e Desportos, órgão que formou e ainda hoje forma milhares de jovens professores,
instrutores e continuadores de sua obra.
Ling ainda desenvolveu um elaborado método de ginástica escolar, dividido em faixas etárias e
guiado de acordo com os seguintes objetivos:
• Conscientizar a prática esportiva e estimular a continuidade da vida ativa após a idade escolar.
Para a criança de 7 a 9 anos (fase escolar elementar), a ginástica pedagógica de Ling prescreve
exercícios fáceis e motivantes. Os jogos são destaque nessa fase, movimentos analíticos e funcionais
são desenvolvidos na forma de brincadeiras. Nessa fase é contraindicada a sobrecarga excessivamente
intensa, é usada a “sessão estoriada”, na qual, através de elementos simbólicos, desenvolve-se um “conto
do movimento”.
As crianças de 10 a 12 anos (fase intermediária) recebem um trabalho mais ativo e exigente, porém
sem mudanças bruscas de exercícios e níveis de exigência. Os exercícios são mais intensos, porém de
curta duração.
Dos 13 aos 15 anos (fase superior), a intensidade dos exercícios aumenta bastante, as adaptações
devem ser adequadas a cada aluno.
Dos 16 aos 18 anos os níveis de destreza, a intensidade e a complexidade dos movimentos aumenta
bastante e o trabalho se iguala ao treino do ginasta adulto (RAMOS, 1982).
O festival aconteceu em 1939, com 7.399 participantes vindos de 20 países e, além do festival,
aconteceu um congresso mundial sobre atividade física, que teve participação de 1.500 instrutores. A
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segunda Lingiada foi realizada em 1949, com a participação de 14.000 ginastas, dobrando o número de
participantes em relação à primeira (PATRÍCIO; BORTOLETO, 2015).
Durante a assembleia geral da Federação Internacional de Ginástica (FIG), que aconteceu paralelamente
à segunda Lingiada, o holandês Johannes Heinrich François Sommer fez uma proposta para a realização
de um festival mundial sob a responsabilidade da FIG. Já na Assembleia de 1951 o festival foi inserido no
programa oficial de eventos, com o nome de “Gymnaestrada” (PATRÍCIO; BORTOLETO, 2015).
A primeira Gymnaestrada foi realizada em 1953, em Roterdã (Holanda), inspirada nas Lingiadas
comentadas anteriormente. Essa primeira edição do evento contou com a participação de quase 5.000
ginastas de 14 países. A Gymnaestrada, atualmente denominada World Gymnaestrada (Ginastrada
Mundial), é o mais importante evento internacional de Ginástica Para Todos (GPT), amplamente
denominada Ginástica Geral (GG), organizado pela FIG, com uma participação de 55 países, somando um
número de participantes duas vezes maior do que os Jogos Olímpicos, com cerca de 19.000 ginastas. É
realizada de quatro em quatro anos e teve sua XV edição em 2015, em Helsinque, na Finlândia (PATRÍCIO;
BORTOLETO, 2015).
Na França, a ginástica foi introduzida primeiro pelo general espanhol Francisco Amoros
(1769‑1848), que lutou nas tropas de Napoleão e depois se naturalizou francês. Amoros reconheceu
a existência de quatro tipos de ginástica na França, cada qual com a sua função: a ginástica civil ou
industrial, que tinha por objetivo fortalecer os cidadãos para o cumprimento de suas tarefas e trabalhos;
a ginástica militar, utilizada na preparação dos contingentes do Exército; a ginástica médica de cunho
higienista, atendendo às necessidades da saúde da população; e a ginástica funambulesca, praticada
por malabares em apresentações cênicas e circenses, sendo esta condenada pelo autor por considerá-la
desnecessária (GRIFI, 1989; MARINHO, 1980).
O autor utilizava uma gama enorme de exercícios: marchar, trepar em cordas, escada e trapézios,
equilibrar, saltar, levantar, transportar, correr, lançar, nadar, mergulhar, escorregar, patinar, esgrimir,
dançar, tiro, cavalo, jogo com bola, boxe. Amoroso elaborou sucessões e alternância de exercícios; a
elaboração das sessões de treinamento se assemelham ao circuit training.
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FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Outro importante autor da ginástica francesa foi Geórges Démeny (1850-1917). Pedagogo e
cientista, estudou profundamente a cinesiologia dos movimentos humanos, dirigiu o laboratório de
pesquisas da Escola de Joinville e auxiliou a elaboração do Regulamento dos Exercícios Físicos do Exército.
Foi autor de diversas obras, entre elas Bases Científicas da Educação Física, Mecanismo e Educação
dos Movimentos, Danças Ginásticas e Educação e Esforço. Suas obras acentuaram sua característica
extremamente militar. Seu método previa a execução de exercícios ginásticos completos, contínuos
e cíclicos. Tinha profundo embasamento mecânico e fisiológico, foi grande defensor da prática da
ginástica pelas mulheres combinada com a dança.
Figura 23
Georges Hébert (1875-1957) foi oficial da Marinha francesa e criador do Método Natural de
Ginástica. Iniciou seus estudos na Escola de Fuzileiros Navais de Lorient (1906), dirigiu o colégio de
Atletas de Reims (1913), fundou um centro de Educação Física feminina, estimulou a prática de exercícios
por crianças e jovens e foi autor de várias obras, entre elas: Treinamento Completo pelo Método Natural;
A Lição Padrão de Treinamento Completo Utilitário; Guia Prático de Educação Física; O Código de Força;
A Educação Física Feminina e a Educação Física Viril; e Moral pelo Método Natural (RAMOS, 1982).
Na Marinha, Hébert viajou pela Oceania e observou muitos povos nativos bastante robustos que
viviam em grande contato com a natureza, usando a plenitude de seus esforços físicos para interagir e
sobreviver ao meio ambiente hostil.
Hébert criou então um método baseado em suas observações e objetivos na busca pelo retorno ao
contato com a natureza. Seu método, extremamente utilitário, dividia os exercícios naturais em dez
famílias: marchar, correr, saltar, quadrupedar, trepar, equilibrar, levantar, lançar, defender-se e nadar. Foi
contrário ao esporte, à ginástica sueca e aos aparelhos artificiais. Seu método tinha por lema: “Ser forte
para ser útil” (RAMOS, 1982).
O método natural grupa os exercícios naturais em uma lição em que as sequências são repetidas
no decorrer de um percurso preparado ou natural. Os esforços são progressivos, conjugados e nunca se
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realizam movimentos isolados. O método natural busca formar o atleta completo, com o desenvolvimento
pleno da força, potência, agilidade, resistência e velocidade.
O método natural de Hébert foi base para a criação de uma manifestação contemporânea de
movimento bastante original, que possui milhares de praticantes no mundo todo, o Parkour.
O Parkour é uma modalidade de prática de ginástica livre que tem por objetivo cumprir percursos
urbanos com obstáculos da forma mais eficiente possível. Para isso são utilizadas técnicas de corrida,
saltos, escaladas, aterrissagem e rolamentos. O Parkour foi criado na França, na década de 1990, por
David Belle, que aperfeiçoou os movimentos praticados por seu pai, Raymond Belle, que foi da brigada
de bombeiros de Paris. Raymond Belle nasceu em 1939, na Indochina. Era um de uma família de nove
irmãos, com um pai francês e mãe vietnamita. Aos 7 anos foi enviado para viver em uma escola militar
francesa, em Dalat, sendo treinado e educado como um garoto soldado. David relembra de seu pai lhe
contando os tipos diferentes de treino que fazia sozinho à noite, em adição aos exercícios obrigatórios.
Eram várias rotas ou “percursos”, alguns focados em resistência, agilidade, elasticidade e silêncio ou
furtividade, buscando o fortalecimento físico e mental.
Raymond, reconhecido por sua condição física, tornou-se oficial junto aos bombeiros de Paris,
aprendendo a tarefa de salvar e sendo reconhecido em sua profissão. Em razão de sua aptidão física,
destacou-se entre os demais, agregando a equipe de bombeiros de elite, que era solicitada para as
missões mais difíceis e perigosas de salvamento. Integrado ao regime parisiense de bombeiros militares,
Raymond foi treinado no Methode Naturalle, de Georges Hébert. O treinamento de Raymond se estendeu
aos treinamentos militares de salvamento, conhecidos como parcours du combattant, ou percurso
militar de obstáculos (STRAMANDINOLI; REMONTE; MARCHETTI, 2012).
David Belle nasceu em 29 de abril de 1973, filho de Raymond e Monique Belle, cercado por uma
família que se destacava nos esportes. Por essa influência, David Belle desenvolveu o gosto pelas práticas
como atletismo, ginástica olímpica, escalada e artes marciais, e sua dedicação foi intensificada aos 15
anos. Para ele, o esporte deveria ser útil, acima de tudo. Portanto, o desenvolvimento da resistência e da
agilidade por meio da prática deveria ser utilizado na vida. David Belle mudou-se para Lisses, uma área
suburbana de Paris, e foi nessa época que conheceu outros jovens, que, futuramente (em 1997), seriam
chamados de Yamakasi (STRAMANDINOLI; REMONTE; MARCHETTI, 2012).
O Parkour surgiu não apenas por influência do pai, Raymond, mas também pelas experiências
esportivas que o jovem David Belle vivenciou. Ele continuou o legado de seu pai, passando a dedicar-se à
progressão por meio do movimento, sendo o conceito mais importante sua ideia de que todo treinamento
deveria ser aplicável à vida real e ajudar a resolver problemas ou situações extremas. Seu treino era
uma simulação do que poderia acontecer a qualquer momento, criando situações de salvamento e
treinando-as de forma específica. Eficiência, velocidade, eficácia, longevidade e controle se tornaram
focos do seu treino e, eventualmente, mais situações se tornaram fáceis de resolver (STRAMANDINOLI;
REMONTE; MARCHETTI, 2012).
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FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
David Belle decidiu desenvolver a arte que praticava formando, em 31 de maio de 1997, a primeira
associação Yamakasi (termo de origem africana, significando corpo forte, espírito forte), composta por
David Belle, Sébastien Foucan, Yann Hnautra, Frederic Hnautra, Charles Perrière, Malik Diouf, Guylain
N’Guba-Boyeke, Châu Belle-Dinh e Williams Belle, tendo como objetivo disseminar a arte e atribuir
nomes aos principais movimentos que hoje constituem a base do Parkour. Procurou dar um nome e
rumo à prática que vinha a realizar, já há alguns anos, juntamente com colegas de infância.
Dentre todos, o consenso foi que chamariam “Parkour” aos percursos que faziam na procura do
caminho mais útil entre dois pontos (STRAMANDINOLI; REMONTE; MARCHETTI, 2012).
O Parkour se desenvolveu de forma extraordinária através da divulgação dos vídeos de seus praticantes
na internet, também passaram a produzir filmes e documentários para canais de TV. Os praticantes
passaram a participar de filmes cinematográficos, sendo que o próprio David Belle se dedicou a alguns
filmes. Esses filmes ajudaram a arregimentar uma legião de praticantes em todo o mundo. No entanto,
o Parkour possui uma condição tradicional de prática livre e se nega a ser transformado em mercadoria
ou a se transformar apenas em modalidade de exibição. É, antes de mais nada, uma filosofia de vida em
busca do movimento eficiente e do contato com o meio (MARQUES, 2010).
Durante a grande expansão do Parkour no início dos anos 2000, David Belle e Sébastien Foucan
tomaram rumos diferentes. Belle permaneceu mais fiel ao utilitarismo do Parkour, a filosofia de
movimento eficiente para vencer percursos. Já Foucan passou a desenvolver uma prática mais artística,
envolvendo elementos acrobáticos como saltos mortais durante a transposição dos obstáculos. Para
Belle, esses movimentos são inúteis e desnecessários, mas reconhece que, sendo uma arte livre, o
desenvolvimento do freestyle é uma consequência natural dos jovens, assim como ocorreu com o skate
e patins (MARQUES, 2010).
Observação
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Unidade II
Figura 24
Chamado de Turnvater, pai da ginástica, é a figura mais representativa da escola alemã. Foi um
homem bastante vigoroso, praticava diversas modalidades, tais como esgrima, luta e ginástica. Esta
última era sua atividade predileta, com destaque para a barra fixa. Jahn era um homem forte, justo e
correto. Esteve sempre preocupado em promover uma vida limpa e pura para o povo alemão. Seu discurso
pregava resistência à invasão estrangeira, ainda ressentido pelas invasões napoleônicas (RAMOS, 1982).
O sistema ginástico de Jahn era cheio de exercícios que exigiam muita aplicação de força e
dispêndio de energia. Criou um instituto de ginástica na cidade de Haseiheide, próximo a Berlim.
Em outras cidades do país foram erguidas escolas similares com o intuito de estimular o sentimento
patriótico nos jovens. A ginástica vigorosa de Jahn preparava os jovens para os esforços necessários
na guerra. Esse método, que misturava uma vigorosa ginástica e um doutrinamento nacionalista, foi
chamado por Jahn de Turnkunst.
Jahn publicou sua obra prima, A Arte da Ginástica Alemã, em que descreveu toda a estrutura de seu
método dividido em cinco capítulos: Exercícios gímnicos; Jogos gímnicos; Construção e instalação de
um campo de ginástica; Modo de praticar os exercícios; e Bibliografia da arte ginástica. Os exercícios
ginásticos foram ordenados em 17 famílias: marchar, correr, saltar, tomar impulso no cavalo, equilibrar,
exercícios de barra, exercícios de paralela, trepar, arremessar, puxar, empurrar, levantar, transportar,
esticar, lutar, saltar arco e pular corda (RAMOS, 1982).
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FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
O autor teve uma vida conturbada. Devido à atitude revolucionária dos praticantes do Turnkunst,
foi tido como perigoso, foi preso e depois absolvido. Mais tarde foi reconhecido e condecorado.
Sua ginástica evoluiu com movimentos mais elaborados e foi responsável pela gênese da ginástica
artística moderna.
Apesar dos grandes avanços pedagógicos, científicos e higienistas provocados pela evolução das
escolas ginásticas europeias, foi sensível a importância dada ao uso dos exercícios com objetivos
militares. As instituições educacionais e militares passaram a utilizar métodos ginásticos na preparação
de Exércitos e na propagação ideológica e nacionalista. Essas prerrogativas políticas e militares das
escolas ginásticas permaneceram no século XX, acompanhando o desenvolvimento da Educação Física
pelo mundo.
Lembrete
O esporte moderno foi regulamentado na Inglaterra no início do século XIX e teve sua origem
em jogos populares e em atividades recreativas praticadas pela nobreza britânica. Naquele período,
a Inglaterra passou por uma fase de grande organização social e evolução econômica em função das
transformações geradas pela Revolução Industrial, que teve início por volta de 1770.
Nas primeiras décadas do século XIX, a Inglaterra consolidou-se como principal potência imperial
colonizadora em todo o planeta, situação que permaneceu até meados do século XX. A rainha Vitória
ocupou o trono inglês durante o século XIX (1837-1901). Adotou uma política predominantemente
burguesa, impulsionando o liberalismo. Essa fase ficou conhecida como Era Vitoriana (VICENTINO;
DORIGO, 2013).
como as trade unions, venceram a resistência do empresariado e obtiveram sucessivas melhorias nas
condições de trabalho (legislação trabalhista, redução da jornada de trabalho, melhores salários), bem
como maior espaço na vida política inglesa (VICENTINO; DORIGO, 2013).
Segundo Pilatti (1999), a revolução industrial alterou a forma de entender o tempo, dando mais
urgência e exatidão às ações. O ritmo de vida passou a seguir o compasso da produção fabril, foi instalado
o estado de busca permanente pelo acúmulo de capital com objetivo de vida, o que posteriormente
resultou na ideia de como usufruir desse capital, aproveitar algum momento de não trabalho, que foi
chamado de tempo livre.
Os jogos populares ingleses eram amplamente praticados nessa época, configurando uma atividade
cultural que destoava do processo civilizatório que ocorria na sociedade. Eram atividades extremamente
violentas, sem regras, sem número definido de participantes, sem tempo ou campo de jogo bem definidos.
Praticamente tudo era permitido para se alcançar a meta adversária. Com isso, os jogos causavam
sérias lesões, tumultos, brigas, depredações e atos de vandalismo, sendo tachados como imorais, por
fomentar o vício e a bebida, e como improdutivos, pois incitavam o ócio, provocando faltas no trabalho
(GONZÁLEZ, 1993).
Nas escolas aristocráticas, public schools, os jogos eram praticados nos períodos de tempo livre dos
estudantes, criando um grande problema, pois sua violência e vulgaridade comprometiam a imagem
do tradicional sistema de ensino britânico. Os jovens praticantes machucavam-se seriamente, geravam
tumultos, brigas e invasões de propriedades privadas, os garotos mais jovens sofriam abusos dos alunos
veteranos (GONZÁLEZ, 1993).
Figura 25
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FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
A direção das tradicionais escolas britânicas, entre elas Eton, Harrow, Rugby, Westminster, Shrewsbury,
Charterhouse, St. Paul e Merchant Taylor, iniciaram movimentos de reforma nas atividades praticadas
no tempo ocioso dos alunos, mantendo-os dentro dos pátios e campos de propriedade da escola e não
mais em bares, propriedades privadas e locais públicos, onde geravam tumulto.
Os alunos tinham garantido, tradicionalmente, o direito de desfrutar de seu tempo livre como
desejassem, pois se acreditava que esta liberdade era muito importante para a formação dos futuros
líderes sociais. Entretanto, em função dos constantes incidentes envolvendo os alunos e a prática de
jogos populares, as escolas tentaram impor regras para a utilização do tempo livre, aumentando a
vigilância sobre as atividades. Como resposta à imposição das regras e à proibição dos jogos, os alunos
realizaram inúmeras rebeliões em várias escolas britânicas. Em alguns casos, essas rebeliões chegaram
a ser repreendidas pelo Exército.
A regulamentação das atividades do tempo livre e dos jogos praticados pelos alunos das public
schools só ocorreu efetivamente após a realização de assembleias, encontros e cursos envolvendo
diretores, professores e alunos. Nessas assembleias foram definidas as técnicas corporais e esportivas
que deveriam ser permitidas ou proibidas. O pedagogo Thomas Arnold, que assumiu a direção do
Colégio de Rugby, em 1828, é considerado um grande colaborador no processo de regulamentação e
pedagogização das práticas esportivas (GONZÁLEZ, 1993).
Foi no ambiente das escolas inglesas que foram determinadas as regras e as características básicas
de diversas modalidades esportivas, entre elas o futebol, o rúgbi e o críquete. O esporte regulamentado
nas escolas não se limitou apenas a uma prática regrada nos períodos de tempo livre dos alunos, foi
investido como valor educativo e se transformou em parte central do currículo escolar. Os campos
de jogo se converteram em verdadeiros meios educativos, onde se exaltava a virilidade, adquiria-se
honradez e coragem e se fomentava o espírito de equipe e de liderança (GONZÁLEZ, 1993).
Desde sua origem, o esporte foi direcionado à função educativa. Isso ocorreu porque o esporte
concentra, em sua essência, características da sociedade em que está inserido, reproduzindo-as em suas
dinâmicas. Assim, pode ser utilizado como instrumento educativo, transmitindo valores importantes à
formação do cidadão apto ao convívio em sociedade (BRACHT, 1997).
podiam se entreter de forma controlada e civilizada. Da mesma forma, as igrejas construíram campos e
incentivaram a prática esportiva regulamentada como forma de aproximar os homens de Deus.
A partir da década de 1870, os ex-alunos do sistema educacional das public schools começaram
a colocar em prática aquilo que haviam aprendido. Reuniram-se e discutiram formas distintas de
jogo, criaram clubes, associações, federações, comitês, órgãos do governo e uma ampla normatização
legal autônoma, desenvolveram um conjunto de redes de instituições e hierarquias esportivas, que
organizaram competições locais, regionais, nacionais e internacionais.
Esse grande movimento de institucionalização do esporte fez com que o fenômeno ganhasse força e
autonomia, solidificando-se na sociedade britânica do século XIX e expandindo-se para todo o mundo.
A regulamentação das atividades esportivas, assim como sua organização institucional, ocorreu em
paralelo ao processo civilizatório da sociedade inglesa, controlando os níveis de violência através das
regras e adaptando as características do esporte às características da sociedade capitalista industrializada
(ELIAS; DUNNING, 1992).
Assim, nota-se a força do movimento esportivo ao transformar não apenas o ambiente escolar
aristocrático, como também toda a sociedade inglesa no século XIX e depois se expandindo para todo
o mundo no decorrer do século XX. O esporte moderno, nascido como componente curricular da
escola aristocrática britânica, irradiou-se para todas as partes do globo, ganhando diversas aplicações,
significações e características, porém sempre é citado em todas as sociedades em que se desenvolve
como um elemento fundamental no processo educativo de crianças e jovens, auxiliando na socialização
e na transmissão de valores importantes ao convívio social.
No último quarto do século XIX, com o desenvolvimento das atividades esportivas e o surgimento de ligas
e campeonatos, nasceu a figura do espectador esportivo. Foram construídos estádios que abrigavam grande
número de torcedores. O crescimento do número de espectadores fez com que o esporte fosse utilizado como
forma de alienação dos trabalhadores que, aos sábados, após o expediente, dirigiam-se em massa aos estádios
para assistir aos jogos das equipes formadas em suas respectivas fábricas. As fábricas fundaram diversas
equipes compostas por seus operários. A disputa esportiva entre as empresas gerou a ideia de fidelidade
entre o trabalhador e a fábrica através dos laços de afetividade proporcionados pela tensão emocional
provocada nos embates esportivos. A discussão esportiva desviava a mente dos trabalhadores de problemas
empregatícios e de organizações sindicais. Os operários que se destacavam nas equipes esportivas recebiam
benefícios, horários para treinar, dias de folga e bonificações (BRACHT, 1997; GONZÁLEZ, 1993).
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Em fins do século XIX, o esporte arrastava multidões aos estádios. Surgiu então o interesse jornalístico
sobre os jogos e competições esportivas. A princípio, os jornais se limitaram a noticiar os resultados,
mas, com o aumento do interesse dos leitores pelas seções esportivas, foram criados novos espaços,
crônicas, colunas e entrevistas que formataram uma nova linguagem jornalística, dando espaço para
o crescimento da discussão popular do esporte no cotidiano. Os órgãos governamentais perceberam o
poder de abrangência do esporte e passaram a fazer uso de suas estruturas. Ocorreu a estatização de
entidades esportivas, o que trouxe ao esporte o sentimento de patriotismo e representação nacional,
sobretudo com a convocação de seleções para a disputa de campeonatos internacionais. O Estado
usurpou do esporte valores como prestígio político e econômico internacional (GONZÁLEZ, 1993).
A Inglaterra se firmou no século XIX como a grande potência imperial do mundo. Amparada por um
imenso poder econômico proveniente da grande produção industrial e também pela soberania militar de
sua Marinha, a Inglaterra expandiu seu domínio por todas as partes do globo. Essa posição possibilitou
a exportação de tecnologia e empresas para suas áreas coloniais, sobretudo nas áreas têxteis, de energia
elétrica e ferroviária. Junto a essas empresas foi exportado para o mundo todo o modelo esportivo
inglês. Esse fato favoreceu a difusão cultural junto aos países dependentes da Inglaterra (RUBIO, 2001).
Saiba mais
O esporte moderno surge em associações que passaram a organizar competições com regulamentação
precisa, com fundamentação hierárquica institucional (clubes e federações) e, sobretudo, com a ideia de
quantificação dos resultados, mensuração dos recordes, cronometragem exata e produção de conhecimento
(ciência) para o aperfeiçoamento do desempenho. Esses elementos estavam todos sendo desenvolvidos da
mesma forma nas indústrias, visando ao aumento da produtividade e do lucro (BROHM, 1982).
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Unidade II
Brohm (1982) destaca quatro fatores responsáveis pelo desenvolvimento do esporte moderno:
Dentro de um esforço para uma definição sociológica para o fenômeno do esporte moderno, Brohm
(1982) afirma que o esporte deve ser entendido como um “fato social” e que suas relações sociais
englobam quatro dimensões:
• Sistema cultural, cujo objetivo é registrar a evolução dos resultados das realizações corporais
humanas, buscando contínua superação.
• Espaço para relações humanas sociais, buscando a colaboração e o esforço para a melhoria do
rendimento e para a busca da vitória.
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Essa classificação do esporte moderno segue, implicitamente, princípios dentro de uma nova concepção
ética: o princípio do rendimento; o sistema de hierarquia institucional; o princípio de organização legal
e burocrática; e o princípio da publicidade, transparência e igualdade. Tais características são típicas da
sociedade industrial (BROHM, 1982).
A palavra esporte é originária de “desport”, que vem do francês antigo e significava prazer, diversão.
Na Inglaterra, a palavra passou a ser associada às atividades lúdicas praticadas no tempo ocioso da
nobreza e das classes aristocráticas. Por volta de 1830, essas atividades da nobreza e também alguns
jogos populares tidos como vulgares e violentos foram regulamentados nas escolas aristocráticas
inglesas e, por volta de 1860, passaram a constituir um sistema institucionalizado de práticas esportivas
desenvolvidas em clubes e associações (GONZÁLEZ, 1993).
Registros apontam para a realização de jogos e competições desde 800 a.C. na Grécia,
também realizadas no período de expansão romana e durante a Idade Média. Essas atividades
foram relatadas como violentas e brutais, se comparadas ao esporte que é praticado atualmente.
A questão do uso da violência pode ser associada ao nível de desenvolvimento civilizatório de
cada sociedade onde a prática competitiva esteve inserida. A violência exercida nas atividades
e disputas era proporcional ao grau de tolerância do uso da violência das sociedades (ELIAS;
DUNNING, 1992).
A ética dos jogadores, as normas, as regras da competição e a realização propriamente dita dos
jogos antigos diferiam em muitos aspectos das características do esporte moderno. Atualmente, as
regras das competições esportivas, das lutas e dos jogos são amplamente codificadas, racionalizadas e
oficializadas. O processo de regulamentação esportiva acompanhou as características da organização
formal da sociedade (ELIAS; DUNNING, 1992).
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Unidade II
O uso da violência no esporte segue esta lógica. No período em que as atividades competitivas não
eram muito regulamentadas, o uso da violência era mais permitido. Havia, na Grécia Antiga, uma luta
chamada pancrácio, que fazia parte dos Jogos Olímpicos Antigos. Nessa luta, a única regra existente
não permitia que se matasse o seu oponente, o perdedor era aquele que desistia ou não apresentava
mais condições físicas para lutar. O pancrácio ocasionava, com frequência, fraturas, lesões e até a morte
dos competidores. A punição para o atleta que matasse seu adversário era apenas a desclassificação da
competição (ELIAS; DUNNING, 1992).
Nesta modalidade os combatentes usavam todo o corpo; eles podiam arrancar os olhos uns dos
outros, podiam puxar pelos pés, pelas orelhas, pelo nariz, podia-se quebrar os dedos e ossos do braço,
estrangular. Era permitido sentar-se sobre o adversário e golpear seu rosto, pisotear o adversário. Os
ferimentos eram tão severos que não era raro que acontecesse alguma morte.
Figura 26
A ética do povo grego era pautada no enfrentamento agonista. Nele, não eram moralmente aceitas
a fuga, a defesa e a esquiva. A educação do jovem era voltada tanto para a guerra quanto para a
competição, e tão honroso quanto vencer um adversário era ser derrotado por um oponente valoroso
em uma luta franca (ELIAS; DUNNING, 1992).
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FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
A ética inglesa do jogo limpo (fair play) não tem origem militar, sendo oriunda do comportamento
límpido e honesto dos cavalheiros britânicos (gentleman = sportsman). A tensão emocional, que na
idade antiga ocorria em função da violência e da brutalidade da disputa competitiva, na Inglaterra foi
substituída pela expectativa gerada pelas apostas feitas sobre o combate, que agora havia se tornado
menos violento em função das regras institucionalizadas (ELIAS; DUNNING, 1992).
Lembrete
Assim como o modelo esportivo britânico desenvolvido nas escolas aristocráticas, o desenvolvimento
da filosofia educacional chamada Olimpismo é uma evidência histórica da função formativa do esporte.
Sua discussão se justifica para que se possa compreender que, desde os seus primórdios, o esporte teve
objetivos voltados para a educação de crianças e jovens e ainda hoje merece esse crédito.
No final do século XIX, o pedagogo humanista Pierre de Coubertin foi incumbido de buscar
novos modelos para a educação na França. Após uma série de viagens pela Europa e pelos Estados
Unidos, Coubertin retornou a seu país determinado a implantar uma teoria pedagógica inspirada
principalmente pelo sistema educacional inglês e também sob forte influência da obra do arqueólogo
alemão Ernest Curtius, que havia encontrado ruínas da Grécia clássica em escavações realizadas em
1952 (CARDOSO, 2000).
81
Unidade II
Figura 27
Coubertin inspirou-se em estudos, viagens e visitas a escolas de diversos países para desenvolver
suas ideias de educação humanista via prática esportiva. Sobretudo, baseou-se no modelo educacional
britânico após uma minuciosa visita à escola de rúgbi. O estudioso francês também ficou bastante
impressionado com a prática esportiva desenvolvida junto às universidades norte-americanas, em
viagem realizada em 1890 (HENRY, 1955).
Do modelo educacional inglês, Coubertin absorveu os valores pedagógicos do esporte para a formação
de cidadãos honrados e líderes enérgicos. O esporte tinha por preceitos a competição, a regulamentação
das atividades e o jogo limpo (fair play) (HENRY, 1955). As escavações na Grécia revelaram a educação
helenística denominada Paideia. Essa educação visava, sobretudo em Atenas, à formação global do
homem, aliando conhecimentos de filosofia, de gramática e musicais à prática de exercícios ginásticos
e atividades atléticas (SOUZA, 1975).
A ideia de instauração dos Jogos Olímpicos modernos surgiu após o conhecimento e o estudo
detalhado das descobertas arqueológicas da cidade de Olímpia, na Grécia, revelando toda a
história dos mais importantes jogos da antiguidade clássica, seus valores culturais, religiosos e
a sublime capacidade de promover a paz entre os povos gregos durante o período em que era
realizado (HENRY, 1955).
Coubertin reteve da obra de Ernest Curtius os princípios que levaram os antigos gregos a realizarem
os Jogos Olímpicos: a celebração da paz e o ideal puro da luta pela vitória em busca de ser o melhor e
aproximar-se dos deuses. Coubertin incluiu o esporte nas escolas francesas através de um amplo projeto
pedagógico, que contemplou a restauração dos Jogos Olímpicos (GODOY, 1996).
O educador francês de origem nobre Barão Freddy Pierre de Coubertin não mediu esforços para
colocar suas ideias em prática e organizou, em 1894, um grande congresso em Paris, na universidade
de Sorbonne. No congresso foram discutidos temas envolvendo o amadorismo esportivo, a educação
via prática esportiva, foi fundado o Comitê Olímpico Internacional (COI) e planejado para dali a dois
82
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
anos a restauração dos Jogos Olímpicos, que seriam realizados em Atenas, na Grécia, berço dos jogos da
antiguidade (HENRY, 1955).
A retomada dos Jogos Olímpicos já havia sido discutida anteriormente e alguns eventos chegaram a
ser promovidos sem sucesso após as descobertas arqueológicas alemãs por volta de 1850. No entanto,
a revitalização dos jogos somente ocorreu após os esforços de Coubertin. Para ele, os Jogos Olímpicos,
realizados a cada quatro anos, seriam apenas mais um elemento educativo, que geraria a compreensão
e a paz entre os jovens de todo o mundo. O Barão estava mais interessado no poder educacional
do esporte, conforme havia estudado no modelo inglês. No entanto, os Jogos Olímpicos ganharam
reconhecimento internacional como um grande encontro onde os atletas de todo o mundo podiam
confrontar suas performances máximas, assim, os outros intentos educacionais do Olimpismo ficaram
em segundo plano (BINDER, 2001).
Segundo Coubertin, o pedagogo inglês Thomas Arnold, diretor do Colégio de Rugby na década de
1830, havia colocado as coisas de tal forma que o jovem inglês, ao penetrar à vida adulta, encontrava-se
em um mundo que lhe havia sido familiar na escola e assim não era empurrado para a complexa vida
moderna a partir de um mundo escolar irreal, associado com sombrias figuras da história, conforme
ocorria com a maioria dos garotos franceses (HENRY, 1955).
Em 1894 ocorreu, na Universidade de Sorbonne, um grande congresso esportivo reunindo dois mil
delegados de 12 países. Sob a organização do Barão de Coubertin, o congresso abordou diversos temas do
esporte, dos quais tiveram destaque o anúncio oficial da restauração dos Jogos Olímpicos, a discussão sobre
amadorismo e profissionalismo e a nomeação de um Comitê Internacional encarregado da restauração dos
Jogos (Comitê Olímpico Internacional). Por ocasião do congresso, foi definido, para 1896, em Atenas, a
realização da primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna (COUBERTIN, 1965).
De acordo com a definição contida na Carta Olímpica, o Olimpismo é a filosofia de vida que exalta e
combina, de forma balanceada, as qualidades do corpo, da mente e da alma. A carta ainda declara que,
ao misturar esporte, cultura e educação, o Olimpismo visa criar uma forma de viver baseada no prazer
encontrado no esforço, no valor educacional do bom exemplo e no respeito pelos princípios éticos
fundamentais (OSWALD, 1999).
83
Unidade II
O ideário olímpico lançou, em 1896, a Carta Olímpica, que tinha por principais objetivos
(BINDER, 2001):
• Promover o desenvolvimento das qualidades físicas e morais, que são a base do esporte.
• Educar a juventude através do espírito esportivo para um melhor entendimento e amizade entre
os povos, ajudando a construir um mundo melhor e mais pacífico.
• Unir os atletas do mundo a cada quatro anos em um grande festival esportivo, os Jogos Olímpicos.
Em 23 de junho de 1894, o Comitê Olímpico Internacional (COI) foi criado no congresso realizado por
Coubertin, em Paris. O COI teve como uma de suas metas, desde a sua fundação, promover o Olimpismo.
A Carta Olímpica, divulgada no mesmo congresso, afirma que o objetivo do Olimpismo é engajar todos
os esportes a serviço de um desenvolvimento harmonioso do homem, com a missão de estabelecer
uma sociedade pacífica, concebida com a preservação da dignidade humana. A meta do movimento
olímpico seria contribuir para a construção de um mundo melhor e mais pacífico, através da educação
dos jovens pela prática do esporte, sem qualquer tipo de discriminação com um espírito olímpico, o que
subentende a compreensão mútua entre os povos, o espírito de amizade, a solidariedade e o fair play,
jogo limpo (OSWALD, 1999).
Nota-se que, em sua gênese, o movimento olímpico tinha uma grande preocupação educativa e de
transmissão de valores benéficos à construção de uma vida harmoniosa. As questões filosóficas eram
supervalorizadas e a realização da competição olímpica era apenas um detalhe do amplo contexto
pedagógico do Olimpismo.
Figura 28
84
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Nem todos os estudiosos do Olimpismo dão a Pierre de Coubertin os créditos exclusivos pelo
renascimento dos Jogos Olímpicos, pois outros esforços já haviam sido realizados nesse sentido e outros
idealistas também defendiam a causa dos jogos. Coubertin provavelmente emprestou a ideia de outras
iniciativas. Entretanto, a maioria dos estudiosos afirma que foi Coubertin quem articulou a combinação
de ideias conhecida como Olimpismo (BINDER, 2001).
A discussão sobre a necessidade de uma revolução pedagógica teve muito pouco interesse
na época e pouco representou aos dirigentes esportivos. Com isso, Coubertin buscou temas afins
para organizar um grande Congresso no qual as questões educativas do esporte pudessem ser
discutidas, mesmo que entre outros assuntos. A importância de fazer um acordo sobre a definição
do amadorismo, para que os atletas de todas as nações pudessem competir sobre as mesmas
regras e condições, chamou a atenção dos técnicos esportivos, permitindo a Coubertin convocar
um grande encontro para discutir o assunto.
Porém, Coubertin precisava de algo mais para cativar a imaginação das pessoas com cultura
suficiente para entender suas ideias e dinheiro bastante para assegurar o êxito inicial. Assim, pautado
na história dos jogos antigos da Grécia Clássica, Coubertin fundiu os ideais educativos reformistas à
ideia de realização de um grande festival esportivo quadrienal, que teria por finalidade reunir todos os
povos do mundo em uma festa harmônica embebida de valores construtivos, tais como a promoção da
paz. Dessa forma, para dar força aos seus ideais educacionais, Coubertin restabelece os Jogos Olímpicos
como propaganda para o Olimpismo (HENRY, 1955).
Após o estabelecimento da data, ficou claro que o COI teria um grande desafio: levantar
recursos para a realização da competição e para a construção da infraestrutura necessária. A
tarefa foi vencida com o estabelecimento de alianças. A nomeação do príncipe herdeiro da Grécia
Constatino como presidente do comitê foi providencial e a doação de 920 mil dracmas, feita pelo
milionário grego radicado no Egito Jorge Averoff, possibilitou a construção do suntuoso estádio
Panatenaico (CARDOSO, 2000).
85
Unidade II
Para Pierre de Coubertin, os Jogos Olímpicos deveriam servir para (COI, 1963):
• Atrair a atenção do mundo para o fato de que um programa nacional de treinamento físico e
esportivo não serviria apenas para fazer crescerem jovens mais robustos e saudáveis, mas, com
maior importância, serviria para fazer dos jovens melhores cidadãos pela formação do caráter,
que é a consequência da participação esportiva amadora bem conduzida.
• Demonstrar que os princípios do jogo limpo (fair play) e do espírito esportivo podem ser adotados
em outras esferas da vida em sociedade.
• Estimular o interesse pelas artes através de demonstrações, contribuindo para ampliar e completar
o conceito da vida.
• Ensinar que o esporte deve ser praticado pela satisfação que proporciona e não para ganhar
dinheiro. Com devoção para a tarefa que se desempenha, a recompensa virá por si só.
Desde o primeiro congresso, em 1894, quando o COI foi formado, até sua saída em 1925, Coubertin não
mediu esforços para convencer o COI a regulamentar seriamente a favor da Educação Física e esportiva.
Nos congressos realizados pelo pedagogo antes de 1926, ele sempre abordou temas relacionados à
promoção de seus objetivos educacionais esportivos. Porém, Coubertin, próximo de sua saída do COI,
começou a relatar que a instituição nunca seria capaz de desenvolver suas ideias. O pedagogo francês
comentou, em um de seus discursos, que o COI estava preocupado com seu constante crescimento
técnico e era incapaz de continuar a tarefa educacional derivada do período de sua fundação. Em 1925,
Coubertin deixou o COI e participou da organização de outras instituições para promover a Educação
Física e o esporte como forma de educação (BINDER, 2001).
86
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
A discussão dos valores educativos do esporte mostra-se atual em função dos recentes esforços
para a realização de programas que retomam os ideais olímpicos de Coubertin desenvolvidos no final
do século XIX. Essas ações demonstram que o intento do pedagogo humanista francês ainda pode ser
utilizado nas escolas do mundo contemporâneo para educar crianças e jovens, visando prepará-los para
uma melhor adaptação à vida cotidiana em sociedade.
No mundo contemporâneo, o esporte foi inserido nas estruturas neoliberais da economia de mercado,
transformando-se em uma grande instituição financeira que representa os interesses das corporações
transnacionais, as quais ditam as regras no mercado mundial (BRACHT, 1997).
Bracht (1997) afirma que o Estado utiliza o esporte porque este é facilmente instrumentalizado
politicamente pelo poder institucionalizado. O esporte reúne as seguintes características que o tornam
suscetível à utilização política:
• É uma atividade com regras de fácil compreensão, sendo utilizado como elemento de comunicação
de massa portador de uma linguagem simples. O Estado, por meio dessa linguagem, utiliza o
elemento de tensão emocional do esporte para veicular os seus objetivos e ideologias.
• A apropriação do atleta como representante do sistema faz com que os sucessos esportivos
forneçam prestígio político.
• O esporte é reflexo da concepção de valores resistentes na sociedade em que está inserido. Isso lhe
confere uma neutralidade interna, permitindo que o direcionamento político seja determinado de
fora do seu contexto.
Por representar interesses de diferentes grupos sociais, o esporte foi submetido a uma organização
central dentro dos países. A configuração da instituição esportiva ocorreu paralela a um grande
movimento mundial de estatização (GONZÁLEZ, 1993). As organizações esportivas foram coordenadas
geralmente pelo Estado através de estruturas de controle centralizador (estruturas corporativas) ou em
parceria com as sociedades civis privadas (estruturas neocorporativas) (BRACHT, 1997).
Dentro desse contexto, o esporte evoluiu durante a primeira metade do século XX como instrumento
político dos governantes, atuando como ferramenta de propaganda do prestígio internacional das
nações, da superioridade de sistemas políticos e do orgulho nacional (GONZÁLEZ, 1993).
87
Unidade II
Brohm (1982) afirma que o esporte é um novo tipo de aparato ideológico do Estado, uma ferramenta
para a manutenção da estrutura social estabelecida. Passa a ser utilizado pelas forçais hegemônicas do
Estado civil, que não deve ser entendido apenas como as forças governamentais, mas também representa
os grupos privados dominantes, tais como a Igreja, os sindicatos, os partidos, as escolas e os grupos
financeiros. A instituição esportiva é uma personificação ideológica que participa na manutenção da
ordem burguesa, destilando massivamente a ideologia dominante.
Assim, o estudo do uso político e ideológico do esporte ganha importância, pois não se trata apenas
de entender como o Estado se apropria desse fenômeno, mas de verificar como toda a sociedade se
favorece das qualidades do esporte em benefício de seus próprios interesses.
O Barão Pierre de Coubertin afirmava que o movimento olímpico e o Comitê Olímpico Internacional
eram instituições apolíticas e independentes que visavam promover o esporte pelo mundo. No entanto,
a restauração dos Jogos Olímpicos criou a ideia de representação esportiva nacional e, com o passar
das edições, essa condição gerou um sentimento patriótico nos atletas e na população dos países
participantes. A mídia daquela época, representada maciçamente pelos jornais, passou a noticiar cada
vez mais os feitos esportivos, aumentando consideravelmente o alcance dos acontecimentos esportivos.
O esporte exaltou elementos simbólicos da pátria, tais como bandeiras e hinos, que foram exibidos
ostensivamente em cerimônias de abertura e de premiação nos jogos. Percebendo o grande poder
convocatório e nacionalista do Esporte, os governos passaram a investir na preparação das seleções
nacionais em busca do prestígio obtido com as vitórias esportivas (GONZÁLEZ, 1993).
Os países participantes interpretaram os jogos como uma oportunidade para expressar os sentimentos
nacionalistas e o sentido de identificação nacional. Assim, os Jogos Olímpicos, além de promoverem
o jogo limpo, a paz e a compreensão entre os povos, foram usados para manifestar o orgulho e os
interesses nacionais (GONZÁLEZ, 1993).
Contudo, as nobres ideias de Coubertin foram utilizadas para objetivos outros àqueles previstos pela
Carta Olímpica. Os Estados passaram a usufruir os valores do Esporte em benefício próprio na disputa
de prestígio internacional para seus respectivos regimes políticos. Desde então, os Jogos Olímpicos não
representam apenas a confraternização entre os povos ou a busca de um melhor desenvolvimento
humano, mas também a disputa de interesses políticos e econômicos de Estados e corporações.
O Olimpismo ainda apresentou em seus primórdios uma questão ideológica bastante contundente.
A questão do amadorismo esportivo tinha como justificativa a ideia de se evitar a mercantilização dos
atletas, que, ao se profissionalizarem, passariam a buscar a vitória a todo custo, incentivando as trapaças,
as deslealdades e a violência. No entanto, o amadorismo também foi uma estratégia excludente e
segregacional bastante eficiente, na qual os trabalhadores e pessoas menos favorecidas do ponto de
vista socioeconômico tinham menos tempo para se dedicar de forma abnegada ao esporte, tendo que
dividir a jornada de trabalho com os treinos. Em seus primórdios, o COI tentou fazer dos Jogos Olímpicos
uma festa com os ideais burgueses elitistas de seus fundadores: nobres, empresários, milionários, entre
outros (RUBIO, 2001).
88
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
No amadorismo imposto pelo COI, o atleta amador não poderia receber nenhum benefício
capital, recompensa ou remuneração devido a suas práticas esportivas ou em função de seu
desempenho. Na história olímpica brasileira, o bicampeão olímpico Adhemar Ferreira da Silva,
depois de conquistar a medalha de ouro no salto triplo em Helsinque, recusou a oferta de doação
de uma casa feita por um jornal de São Paulo como prêmio por seus feitos, porque ainda pretendia
competir e temia que aquele gesto pudesse ser interpretado como atividade remunerada,
pondo em risco sua condição de amador (RUBIO, 2001). O amadorismo olímpico teve sua queda
registrada de forma icônica nos Jogos Olímpicos de Barcelona (1992), quando, por ocasião do
relaxamento dessa regra, a competição contou com a participação dos atletas da Liga Profissional
de Basquetebol Norte-Americana (NBA), que, na ocasião, contava com um verdadeiro “time dos
sonhos” (dream team), como passou a ser chamada e relembrada aquela seleção invencível que,
além de conquistar a medalha de ouro, apresentou um verdadeiro espetáculo. Eram membros
dessa equipe lendas do esporte, como Magic Johnson, Michael Jordan, Karl Malone, Larry Bird,
Charles Barkley, Scottie Pippen, John Stockton e Patrick Ewing (CARDOSO, 2000).
A partir de então, a demagogia envolvendo o ideal amador do esporte olímpico perdeu força. As
únicas modalidades que permanecem com restrições são o boxe olímpico, onde apenas atletas amadores
podem participar, e o futebol, onde não existe limite quanto ao profissionalismo, mas sim quanto à
idade dos jogadores, sendo que apenas três atletas por equipe podem ter mais que 23 anos de idade.
Essa limitação foi imposta pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) para que o torneio olímpico
não ofuscasse a Copa do Mundo de Futebol (CARDOSO, 2000).
A realização dos Jogos Olímpicos foi, por muitas vezes, marcada por manifestações políticas, boicotes,
atentados e até demonstrações de revanchismo belicoso ou, em outros extremos, a cordialidade em
países inimigos. Essas ocorrências aconteceram apesar de o COI explicitar em seu regulamento que
a participação nos Jogos Olímpicos é supranacional, ou seja, não deve ser representativa de uma
nação, a participação é individual e não são permitidas manifestações políticas, de gênero, religiosas
ou partidárias. A classificação do quadro de medalhas é um artifício criado pela mídia para medir o
desempenho dos países, algo que não é apoiado pelo COI (CARDOSO, 2000).
Apesar dessas limitações, outras ritualísticas olímpicas dão espaço para manifestações nacionais, tais
como o desfile de delegações, a execução do hino nacional e o hasteamento das bandeiras pátrias dos
vencedores de cada prova. Esses pontos parecem paradoxais com as limitações contra as manifestações
políticas, mas, de acordo com o COI, são momentos de expressão do multiculturalismo e do exercício da
convivência, da amizade e da tolerância entre nações (BINDER, 2001).
Um momento histórico bastante característico no que diz respeito ao uso político do esporte foram
os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Naquele período a Alemanha era governada pelo nazismo,
tendo como líder supremo e totalitário Adolf Hitler.
89
Unidade II
Figura 29
As origens do nazismo remontam aos movimentos nacionalistas de extrema direita que surgiram
após a Primeira Guerra Mundial como resposta à ascensão socialista provocada pelos ideais da Revolução
Bolchevique na Rússia em 1917. Os movimentos extremistas de ultradireita eram intensamente
nacionalistas e xenófobos, incitavam a violência militar e policial e eram antiliberais, antidemocráticos,
antiproletários e antissocialistas. As condições para o triunfo da ultradireita eram: uma Europa abalada
pela guerra, uma massa de cidadãos desencantados e desorientados, fortes movimentos socialistas
avançando na sociedade e um forte ressentimento nacionalista contra os tratados de paz do pós-guerra
(HOBSBAWM, 1995).
A ascensão do nazismo na Alemanha foi favorecida pelas humilhações sofridas pelo povo em
função das imposições do Tratado de Versalhes após a Primeira Guerra Mundial, que responsabilizou a
Alemanha pelo conflito, obrigando-a a pagar pesadas reparações. Essas penalidades e sanções geraram
uma grave crise econômica em 1923. Outro fator que colaborou com o nazismo foi o temor de que a
revolução comunista ocorrida na Rússia contaminasse a Alemanha. Por fim, Hitler se aproveitou da
grande depressão econômica mundial de 1929 para acionar os projetos políticos que estabeleceram o
nazismo na Alemanha em 1933, criando um quadro de supressão dos direitos civis e de autonomia do
Estado totalitário governado pelo partido único nazista.
Uma vez no poder, Hitler iniciou uma campanha de perseguição aos opositores do governo, comunistas
e judeus. Combateu o desemprego com frentes especiais de trabalho e incentivos à indústria, em busca
90
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
de autonomia econômica, o que sustentou os ideais de expansão do III Reich, culminando na eclosão da
Segunda Guerra Mundial quando Hitler invadiu a Polônia em 1939 (JAGUARIBE, 2001).
Em 25 de abril de 1931, o Dr. Theodor Lewald, secretário geral do Comitê Olímpico Alemão, apresentou
as intenções da Alemanha em sediar os jogos de 1936 na cidade de Berlim. Como argumento, Dr. Lewald
apresentou os projetos em andamento para a construção de estádios e instalações esportivas, e também
lembrou que a Alemanha havia sido escolhida para sediar os jogos de 1916, que acabaram não se
realizando em função da Primeira Guerra Mundial. Assim, Berlim foi eleita (HOLMES, 1974).
Em 1931 a Alemanha era governada pela República de Weimar. A realização dos Jogos Olímpicos
seria utilizada para exaltar a honra do povo alemão, abalada pelas imposições humilhantes do
Tratado de Versalhes. No entanto, em 1936, os jogos acabaram representando os interesses de
propaganda do governo totalitário nazista e se tornaram um marco de referência da utilização do
esporte para fins políticos.
Hitler assumiu o cargo de chanceler alemão em 30 de janeiro de 1933 e convocou novas eleições
para março, no intuito de obter maioria do partido nazista no parlamento (Reichtag). No dia 27
de fevereiro, um lunático comunista patrocinado pela polícia nazista S.S. incendiou o parlamento.
Hitler usou o pretexto para dissolver o partido comunista e prender parlamentares do Partido Social
Democrata. Com isso, o Partido Nazista conseguiu maioria nas eleições de março e aprovou o “voto
de confiança” a Hitler, concedendo ao chanceler poderes ditatoriais. Com a morte do presidente
Hindenburg, em agosto de 1933, Hitler assumiu também o cargo de presidente. Investido de plenos
poderes, Hitler dissolveu os outros partidos e impôs uma caçada aos opositores do governo e aos não
arianos judeus (JAGUARIBE, 2001).
Os judeus foram expulsos dos clubes esportivos e das equipes olímpicas alemãs. O COI repreendeu o
Comitê Alemão, que aparentemente voltou atrás da decisão, repatriando alguns atletas judeus exilados.
A ascensão de Hitler ao poder colaborou diretamente com o comitê de organização dos Jogos Olímpicos,
que foi amplamente amparado financeiramente pelo Estado. A Olimpíada de Berlim representou, para
Hitler, uma grande oportunidade de divulgar internacionalmente a imagem poderosa da Alemanha
Nazista. O ministério de propaganda nazista, chefiado por Goebbels, foi acionado para veicular a
publicidade dos jogos nazistas. Hitler convocou o Exército Alemão para auxiliar nas obras dos conjuntos
esportivos e da vila olímpica. Também promoveu frentes de trabalho, utilizando o grande contingente
de desempregados da Alemanha daquela época (HOLMES, 1974).
A intensa participação do Estado Nazista e do Exército Alemão na organização dos jogos fez
surgir, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos e em outros países europeus, suspeitas quanto à
intenção de utilização política dos jogos por parte dos nazistas. Foram iniciadas diversas campanhas
contra a participação nas Olimpíadas de Berlim. Essas campanhas eram lideradas pelos grandes jornais,
associações judaicas e universidades e tiveram representação nos governos desses países. Os comitês
olímpicos dos EUA, da França e da Inglaterra chegaram a proibir a participação de suas delegações,
alegando não estarem dispostos a colaborar com a política nazista. Outro receio era a perseguição
racial sofrida pelos judeus na Alemanha. Alguns países não se sentiam seguros em levar seus atletas de
origem judaica e negra para os Jogos de Berlim. O boicote só foi revertido após uma série de medidas
91
Unidade II
e compromissos firmados pelo governo alemão junto ao COI. Tais medidas camuflaram a perseguição
aos judeus. No entanto, muitos países só confirmaram presença em Berlim após a realização dos Jogos
Olímpicos de Inverno, realizados em Garmisch-Partenkirchen, na Alemanha, onde não foram presenciadas
manifestações antissemitas de qualquer espécie, prevalecendo uma calorosa receptividade forjada por
determinação do Estado (HOLMES, 1974).
Observação
Figura 30
A máquina do Estado Nazista organizou a melhor edição dos Jogos Olímpicos até então. A população
foi orientada a receber bem os participantes. Os hotéis e restaurantes receberam a determinação de
atender bem a todos, relevando os preceitos racistas. Os jornais e boletins oficiais de perseguição aos
judeus foram recolhidos. Os cartazes antissemitas foram retirados dos locais públicos. O Exército e a
polícia nazista S.S. ocuparam Berlim durante os jogos. A cidade foi decorada com bandeiras e pinturas
ostentando os aros olímpicos e a suástica nazista. Hinos nazistas e olímpicos eram entoados a todo
tempo nos alto-falantes instalados pela cidade. Imagens dos jogos foram reproduzidas em telões
espalhados pelas praças de Berlim. Durante os jogos, todas as ações exaltavam a ordem e a glória do
governo nazista do III Reich. As cerimônias, desfiles e uniformes deixavam a impressão militar e belicosa
aparentes (HOLMES, 1974).
92
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Hitler também tinha a intenção de comprovar a supremacia da raça ariana nas provas atléticas
dos jogos. No entanto, a hegemonia alemã foi ameaçada pela equipe de atletismo dos Estados Unidos,
composta, entre outros, por dez atletas negros que conquistaram oito medalhas olímpicas de ouro, com
destaque para o atleta negro Jesse Owens, ganhador de quatro dessas medalhas de ouro, nos 100 e 200
metros rasos, no revezamento 4x100 e no salto em distância, prova em que derrotou o campeão europeu
e alemão Luz Long. Após a vitória de Owens, Hitler deixou o estádio irritado, sem cumprimentá-lo, como
havia feito até então, com os demais campeões. Hitler conseguiu mostrar ao mundo o poder totalitário
do nazismo alemão e impressionou a todos com a organização social promovida por ele, mas não teve
sucesso em demonstrar a suposta supremacia racial dos alemães arianos, que foram derrotados por
atletas negros, asiáticos e judeus. No entanto, a anfitriã, com a maior delegação dos jogos, conquistou o
maior número de medalhas olímpicas, 90, contra 56 dos Estados Unidos (CARDOSO, 2000).
O conflito entre as duas potências mundiais, denominado Guerra Fria, teve início após o término
da Segunda Guerra Mundial. Esse embate se estendeu pela segunda metade do século XX e foi
protagonizado pelos Estados Unidos e pela União Soviética em uma grande disputa ideológica e
armamentista. Após a Segunda Guerra Mundial, uma série de acordos e conferências entre Roosevelt,
Churchill e Stalin dividiram o mundo em dois polos de influência, que definiram o equilíbrio do poder
sobre uma estrutura bipolar. De um lado, os países socialistas alinhados à URSS; de outro, os países
capitalistas liderados pelos EUA. A Guerra Fria foi caracterizada por uma grande corrida armamentista,
em que os dois blocos mediam o poderio de destruição nuclear. O equilíbrio nuclear não representava
a real intenção em usar esse tipo de armamento, o que asseguraria a destruição mútua. Por isso a
Guerra Fria foi um combate de tensões e ameaças apocalípticas que deixaram o mundo à sombra da
guerra até o final da década de 1980 com a queda do muro de Berlim e o declínio e esfacelamento da
União Soviética (HOBSBAWM, 1995).
Nesse contexto, o esporte foi usado como instrumento ideológico e de propaganda por ocasião
de competições internacionais e Jogos Olímpicos. Foi uma arma simbólica dos blocos opostos,
transformando piscinas, ginásios e estádios em campos de batalha. As vitórias esportivas foram
usadas para reafirmar o prestígio político e a soberania de cada regime. As pressões resultantes
da Guerra Fria foram sentidas nas disputas esportivas, causando grande rivalidade entre os
atletas. A mídia difundiu esse confronto, inflamando os sentimentos nacionalistas das populações
(RIORDAN, 1977; LANCELOTTI, 1996).
93
Unidade II
Saiba mais
ROCKY IV. Dir. Sylvester Stallone. EUA: United Artists, 1985. 91 minutos.
Também durante a Guerra Fria, o esporte foi utilizado como uma ferramenta diplomática. Em
determinados momentos, foi uma válvula de escape das tensões políticas da época. Representou a
colaboração conjugada entre o imperialismo americano e a burocracia dos países socialistas durante os
esforços de coexistência pacífica. Esse fato pode ser exemplificado com a visita do presidente Richard
Nixon à China durante a Guerra Fria. A viagem foi precedida por competições amistosas entre equipes
esportivas dos dois países. Esse episódio ficou conhecido como “Política do Ping-Pong”, em referência à
modalidade tênis de mesa, muito desenvolvida no pais asiático. O slogan dessa política era: “A amizade
primeiro, a competição depois” (BROHM, 1982).
A União Soviética iniciou sua participação nos Jogos Olímpicos em Helsinque, em 1952, disposta a
mostrar ao mundo as excelências do comunismo. Na edição anterior dos jogos, em Londres (1948), a
nova potência mundial preferiu não comparecer e medir forças com a hegemonia esportiva dos EUA. Ao
invés de participar, enviou técnicos e pesquisadores para analisar os atletas e os métodos de treinamento
do mundo capitalista. Nos quatro anos seguintes, o governo soviético destinou grandes recursos a
projetos esportivos, visando formar atletas de alto nível que representassem a ideologia comunista nos
jogos. Em Helsinque teve início uma disputa paralela aos jogos, o confronto ideológico entre os dois
blocos antagonistas dentro dos recintos esportivos. Essa disputa ideológico-esportiva se estendeu pelas
outras edições dos jogos, culminando com os boicotes dos Jogos de Moscou, em 1980, e Los Angeles,
em 1984 (CARDOSO, 2000).
Em dezembro de 1979, a União Soviética impôs uma intervenção militar ao Afeganistão após
uma sequência de golpes de Estado e conflitos civis. O interesse soviético no Afeganistão vinha de
seu posicionamento geográfico, que dava acesso ao oceano Índico. O governo dos EUA, presidido
por Jimmy Carter, exigiu a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão, ameaçando comandar um
boicote internacional aos Jogos Olímpicos de Moscou, em 1980. A exigência não foi atendida e a ação
política dos Estados Unidos promoveu um boicote envolvendo 61 países, prejudicando sensivelmente
essa edição dos jogos. Em retaliação ao boicote americano, a União Soviética se negou a participar
94
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
das Olimpíadas de Los Angeles, em 1984. O boicote soviético teve menor abrangência devido a uma
grande campanha do COI, que conseguiu convencer muitos países a participarem dos jogos (CARDOSO,
2000; LANCELOTTI, 1996).
Lembrete
Figura 31
A década de 1970 serviu como laboratório para a inclusão do esporte no mercado mundial. Naquela
época, as grandes confederações esportivas internacionais, tais como a Federação Internacional de
Futebol (Fifa) e o Comitê Olímpico Internacional (COI), perceberam o crescente valor do esporte para
a mídia e passaram a negociar cifras cada vez maiores sobre os direitos de transmissão televisiva dos
campeonatos internacionais e dos Jogos Olímpicos (SIMSON; JENNINGS,1992).
Os Jogos Olímpicos de Los Angeles marcaram a entrada do esporte na economia mundial. O COI
vendeu, pela primeira vez, o evento à iniciativa privada através de contratos de patrocínio. No entanto, o
95
Unidade II
grande fluxo de capital recebido pelo esporte só foi possível graças à crescente valorização esportiva na
mídia. Devido ao grande poder de audiência do esporte, os patrocinadores surgiram em grande número,
e a mercantilização do Esporte gerou um lucro inédito aos organizadores dos Jogos Olímpicos. Desde
então os eventos esportivos passaram a ter a parceria de grandes empresas. Essa relação com o mercado
mundial evoluiu para as instituições esportivas, e as confederações, as federações, as ligas e os clubes
passaram a negociar o esporte como um produto de consumo.
Esse alinhamento do esporte aos entraves econômicos seguiu a ótica das políticas neoliberais
consolidadas na década de 1980. Os Estados nacionais passaram a ter menos influência política e as
corporações transnacionais, mais influência econômica. A desestatização do esporte e sua inclusão
no mercado mundial caracterizaram as mudanças impostas pela globalização (MOTA; BRAICK, 1997;
LANCELOTTI, 1996; BRACHT, 1997; CAGIGAL, 1996).
As grandes Confederações Mundiais esportivas, tais como o COI, a Fifa, a Federação Internacional
de Atletismo (IAAF), a Federação Internacional de Natação Amadora (Fina), a Federação Internacional
de Automobilismo (FIA), entre outras, tornaram-se grandes empresas monopolizadoras do esporte
mundial. A eleição dos países-sede para os Jogos Olímpicos (COI) e para as Copas do Mundo de Futebol
(Fifa), ambas feitas por votações das confederações-membros, tornaram-se um enorme jogo de
favorecimentos e lobbies, envolvendo suborno, propinas e vantagens para seus líderes. Recentemente,
inúmeros dirigentes dessas instituições foram afastados, e até presos, por envolvimento em esquema de
corrupção no processo de escolhas das cidades ou países-sede desses eventos, que mobilizam bilhões
em investimentos (SIMSON; JENNINGS, 1992).
Exemplo de aplicação
Reflita sobre algum momento esportivo em que os interesses financeiros foram sobrepostos aos
interesses da disputa esportiva. Pode ser alguma final de campeonato em que o atleta, patrocinado
pela marca patrocinadora da competição, jogou, mesmo sem ter condições físicas, só para cumprir
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FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
De acordo com Brohm (1982), o sistema esportivo constitui-se em uma totalidade articulada de
instâncias dominantes, organizadas em esquema piramidal de poder, determinada em uma escala
de valores.
• Assim como no mercado liberal capitalista, a concorrência deve ser livre e as condições
devem ser equivalentes. Dessa forma, são mais valorizados os atletas que conseguem melhor
rendimento/produtividade em condições iguais de competição; neste ponto, as semelhanças
entre o esporte e o sistema capitalista são percebidas de forma negativa, pois em sociedades
que apresentam grandes desigualdades sociais, os indivíduos com menor poder aquisitivo
possuem condições desiguais de produção, da mesma forma, no esporte, os menos favorecidos
são muitas vezes excluídos ou não possuem condições iguais, tais como alimentação, materiais,
tempo de treinamento, local apropriado. Nesses casos, a superação socioeconômica deve
somar-se à superação do desempenho físico.
97
Unidade II
O esporte educacional, desenvolvido nas escolas e em projetos sociais, deve reforçar aspectos
pedagógicos da sociedade capitalista, tais como:
• A valorização do esforço, onde a vitória ou recompensa são méritos dos indivíduos que se
esforçam e participam do processo produtivo. O esforço natural de cada indivíduo para melhorar
sua própria condição, quando se permite que ele atue com liberdade e segurança, constitui
um princípio tão poderoso que, por si só, e sem qualquer outra ajuda, não somente é capaz de
levar a sociedade à riqueza e à prosperidade (SMITH, 1996). Existe uma ideia equivocada que
reforça o fato de que quanto maior o volume de treinamento, preparação ou esforço, melhores
serão os resultados ou desempenho. Esse ponto de vista tem levado muitos atletas ao excesso
de treinamento, à ocorrência de lesões e à perda de produtividade. Atualmente, a ciência do
treinamento esportivo tem indicado que a qualidade e intensidade de treinamento são mais
eficientes do que o grande volume. Dentro da lógica administrativa capitalista, isso se aplica ao
princípio da eficiência e economia de energia.
• Trabalho em equipe, o esporte ensina que o esforço conjunto e organizado em equipes é mais
eficiente devido à especialização dos papéis e à divisão das responsabilidades. Esse princípio está
alinhado à ideia do fordismo, princípios da organização da produtividade, amplamente desenvolvido
na Segunda Revolução Industrial. No início do século XX, com o objetivo de obter maiores lucros,
levou-se ao extremo a especialização do trabalho, a produção foi ampliada, passando-se a fabricar
artigos em série, o que barateava o custo por unidade. Surgiram as linhas de montagem, esteiras
rolantes pelas quais circulavam as partes do produto a ser montado, de forma a agilizar a produção
e aumentar sua eficiência. Implantadas primeiro na indústria automobilística Ford, nos Estados
Unidos, as esteiras conduziam o chassi do carro por toda a fábrica. Os operários distribuíam-se
ao longo da linha de produção e montavam o carro com peças que chegavam a suas mãos em
outras esteiras rolantes. Esse método de racionalização da produção em massa, que foi chamado de
fordismo, estava ligado ao princípio de que a empresa deveria dedicar-se a apenas um produto e
dominar as fontes de matéria-prima. O fordismo, desse modo, integrou-se às teorias do engenheiro
norte‑americano Frederick Winslow Taylor, conhecidas como taylorismo, que propunham o aumento
da produtividade por meio do fracionamento das etapas do trabalho, controlando os movimentos
das máquinas e dos homens no processo de produção (VICENTINO; DORIGO, 2013).
Figura 32
98
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
O esporte na sociedade contemporânea possui um nível de manifestação que fica no topo da cadeia
de produção capitalista: é o esporte-espetáculo, ou esporte midiático. O esporte-espetáculo não é
apenas uma disputa em busca do máximo desempenho humano, é um show de proporções imensas,
onde os atletas, técnicos e árbitros, não apenas os esportistas, são atores, astros de um espetáculo
de proporções grandiosas, que atinge milhões de pessoas e mobiliza uma quantia enorme de capital
relacionado ao marketing (CAGIGAL, 1996).
No final da década de 1960, com a popularização da televisão nos lares, o esporte expande seu
potencial de marketing. A primeira modalidade de merchandising no esporte foram os anúncios de
publicidade estática vendidos nos estádios e os anúncios de patrocinadores dos programas esportivos
de rádio. Com o crescimento do acesso à TV na década de 1960, o surgimento da TV a cores na década
de 1970 e a popularização das transmissões ao vivo via satélite, os anúncios de propaganda cresceram
em número e os contratos foram negociados por valores cada vez mais altos, de forma proporcional ao
alcance do número de espectadores (CAGIGAL, 1996).
As características do esporte de alto rendimento não devem ser reproduzidas em outros níveis de
participação esportiva. O esporte educacional deve introduzir a criança e o jovem à prática esportiva,
deve preconizar a socialização, o respeito às regras e à hierarquia, bem como o desenvolvimento do
hábito esportivo saudável. Nesse nível de prática, todos devem ter acesso à prática em condições iguais
de aprendizado, independentemente do nível de desempenho esportivo. O esporte educacional deve
educar através da prática e não apenas focar o desenvolvimento atlético.
99
Unidade II
O esporte contemporâneo goza de enorme prestígio para a formação de crianças e jovens. O discurso
oficioso diz que o esporte é um elemento fundamental para o processo de educação, atribuindo às
práticas esportivas papéis admiráveis, tais como o afastamento de pessoas do consumo de drogas e
da criminalidade. Essas afirmações a respeito do valor educativo do esporte parecem ser unânimes
entre pais e educadores, porém diversos estudiosos declaram-se bem mais cautelosos em seus ensaios
(BASSANI; TORRI; VAZ, 2003).
Leonard II (1998) afirma que as características formativas do esporte nem sempre são coerentes com
o discurso de educadores, ex-atletas e dirigentes. Para o autor, a ideia de formação do caráter via prática
esportiva é produzida, sustentada e reforçada pela fala de indivíduos com destaque na sociedade. São
atletas amadores que tiveram sucesso fora do âmbito esportivo e atribuem suas conquistas às influências
das suas experiências esportivas. Os líderes nacionais, geralmente utilizam metáforas envolvendo os
valores esportivos como exemplos em seus discursos, da mesma forma o fazem os grandes consultores
da área de administração de empresas, que trabalham com analogias esportivas para motivar ações
gerenciais do mundo dos negócios. Esses casos de defesa do esporte como valor esportivo incondicional
estariam baseados em informações extraídas de casos isolados e não possuem representatividade
científica para serem afirmadas com veemência.
Kunz (1994) faz algumas críticas ao sistema esportivo de rendimento e de espetáculo. Primeiro,
que o esporte-espetáculo, de rendimento, não apresenta elementos de formação geral para constituir
uma realidade educacional. Em segundo, o esporte ensinado nas escolas é uma cópia do esporte de
rendimento e apenas oferece vivências de sucesso para uma minoria e fracasso para a grande maioria. Em
terceiro, a vivência do insucesso para crianças e jovens no contexto escolar seria uma irresponsabilidade
pedagógica. E, por último, o esporte de rendimento não deve ser utilizado como modelo nas escolas,
pois segue princípios de comparações objetivas e absolutas, que valorizam mais o resultado que a
própria participação. Contribui para a perda de liberdade e da criatividade do ser humano em função do
racionalismo técnico instrumental das sociedades modernas.
100
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Bracht (1997) afirma que o esporte enquanto elemento de educação e de participação reproduz
características do esporte de rendimento espetacularizado, muito divulgado pelos meios de comunicação
de massa. Esse esporte-espetáculo estaria disseminando valores junto à população, produzindo
consumidores de um modelo hegemônico de atividade física similar ao esporte de rendimento. Esses
consumidores estariam sendo aliciados à aquisição do esporte como uma mercadoria, e a prática, que
deveria ser um direito cultural de todos, passa a ser comprada em escolas e centros particulares.
Para De Rose Jr. (2002), a crítica que se faz à competição esportiva infanto-juvenil se deve ao fato
de muitas dessas competições se adaptarem a modelos e normas específicas da competição adulta,
não levando em consideração o estágio de desenvolvimento e o nível de habilidade dos praticantes.
O autor afirma que a prática esportiva competitiva mal orientada pode gerar condições excessivas de
estresse nas crianças e jovens, principalmente quando as exigências impostas superam as demandas
de capacidade de performance, de prontidão emocional e cognitiva, gerando um ambiente muito
desafiador. Nesse caso, as situações ficariam excessivamente complexas, indo além da capacidade de
superação da criança, podendo ocasionar frustração e abandono.
Kunz (1994), Bracht (1997) e De Rose Jr. (2002) reforçam a influência negativa do modelo esportivo
de rendimento no processo educacional, pois os objetivos de transferência de valores via prática ficariam
marginalizados em função da importância dada ao resultado esportivo.
Em um estudo realizado junto a uma grande escola da rede pública de ensino da cidade de Florianópolis,
Bassani, Torri e Vaz (2003) revelam que o esporte praticado na escola apresenta uma situação de conflito
entre o rendimento esportivo esperado dos atletas e o aprendizado de “bons valores” por meio da prática
esportiva. Essa divergência procura ser conciliada pelo técnico com discursos moralizantes e edificantes,
mas a dinâmica do esporte, treinos e jogos acaba fazendo com que prevaleça a valorização da vitória.
Os valores sobre ganhar e perder podem criar a ideia de que somente a vitória é válida no esporte
e tudo o que for feito para alcançá-la é aceitável. Partindo desse ponto de vista, os valores educativos
do esporte podem ser seriamente prejudicados. Essa forma de pensar pode, em crianças e jovens cujo
caráter ainda não está consolidado, gerar atos desleais e violentos (SAGE, 1998).
Para Coakley (2001), as estruturas rígidas de regras e competições organizadas no modelo adulto
não permitem ao aluno questionamentos e a exploração de sua criatividade. Para o aluno, trata-se
apenas de cumprir o seu papel e responder às expectativas estipuladas pelas autoridades competentes,
pais, professores e técnicos.
Bracht (1997) afirma que o esporte possui uma neutralidade interna que faz com que se adapte às
características das sociedades em que está inserido. Assim, o esporte contemporâneo, de rendimento,
de participação e educacional está em conformidade com as características da sociedade capitalista
neoliberal, que é dominante na atualidade.
101
Unidade II
Fica a dúvida se a dinâmica esportiva que valoriza as características neoliberais deve ser adotada
nos processos educacionais, apoiando a hipercompetitividade, a seletividade, a orientação ao resultado,
assim como ocorre na vida cotidiana. A adoção dessa conduta seria uma forma de preparar os jovens para
uma melhor adaptação ao convívio social? Ou seria uma maneira de aceitar um modelo socioeconômico
que gera injustiças sociais?
Gariglio (1995) acredita que, apesar de a escola cumprir uma função de reprodução dos
contextos de nossa sociedade capitalista, existem movimentos antagônicos e de resistência em
seu interior. A possibilidade de vivência lúdica seria um desses movimentos, ao passo que o lúdico
na escola pode tornar real a construção de um projeto revolucionário. As atividades esportivas
lúdicas dariam aos praticantes a oportunidade de reapropriação de suas vidas, de sua história e de
sua cultura, possibilitando a crítica e a recriação da lógica capitalista neoliberal imposta à escola
e à sociedade como um todo.
Taffarel (2000) defende um esporte educativo, que fuja da ditadura dos gestos, modelos e regras,
que teria suas normas questionadas e adaptadas à realidade social e cultural dos alunos. O esporte
educacional deve ser desmistificado, conhecido e praticado de forma prazerosa, com vivências de sucesso
para todos. O esporte deve ser adquirido como um bem cultural, sua prática deve ser compreendida
como um direito.
Nesse sentido, Korsakas (2002) defende uma prática esportiva educativa em que a criança não
seja apenas um objeto dos interesses de seus pais e técnicos. Esses interesses voltados ao resultado,
à performance, muitas vezes expõem a criança a uma homogeneização da prática, apoiando-a
exclusivamente no treinamento de equipes esportivas. Esse tipo de prática acaba por exigir a
perfeição do gesto técnico e o rigor tático, reprimindo a capacidade criativa da criança e ignorando
suas potencialidades e limitações individuais. A autora sugere um modelo esportivo educativo
no qual a criança participe do processo de construção do conhecimento através da resolução
de problemas sugeridos, cabendo ao adulto a função de facilitador do processo educacional.
Essa proposta estimularia uma prática esportiva emancipatória, participativa, cooperativa, que
estimula a criatividade e o desenvolvimento cognitivo, afetivo, físico e motor das crianças, em
uma educação pensada de forma integral.
102
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Apesar das críticas discutidas anteriormente, alguns autores propõem condições para que o esporte
possa trabalhar a favor da educação, excluindo as influências negativas do modelo esportivo de alto
nível, que valoriza prioritariamente o resultado.
De acordo com Bracht (2000), o esporte de rendimento traz na sua estrutura interna os mesmos
elementos das relações sociais da sociedade contemporânea: forte orientação ao rendimento e à
competição, seletividade via concorrência, igualdade formal perante leis e regras. Em função dessas
características, a prática esportiva deve ser adaptada ao ser incluída em um processo educacional.
A implantação de uma prática que segue o modelo adulto de rendimento pode disseminar valores
pouco construtivos à educação, além da exclusão dos menos habilidosos e de frustrações causadas
por comparações objetivas sobre o rendimento de atletas, que podem estar em diferentes fases de
formação e de prontidão maturacional. Para ser incluído em um ambiente educacional, o esporte deve
ser tratado pedagogicamente. Para o autor, a competição não deve ser negada, pois está implícita à
prática do esporte, mesmo no contexto educacional. O que se deve evitar em um ambiente escolar e
pedagógico é um enfoque competitivo exclusivamente preocupado com o resultado. A dinâmica da
competição é um fator motivacional muito importante para a adesão à prática. A exaltação gerada
pela participação, pela interação e pela possibilidade de a criança demonstrar suas competências
deve suplantar o valor dado à vitória.
Para De Rose Jr. (2002), a discussão sobre competição na infância e na adolescência sempre abrange
o questionamento sobre a adequação e os benefícios do esporte competitivo para essas faixas etárias.
Para muitos autores, o termo “competição”, por si só, levaria a uma situação prejudicial, destacando
os privilégios, enfatizando a inferioridade técnica, física, psicológica e social da grande maioria de
perdedores. Segundo o autor, a competição não deve ser encarada de forma tão radical, pois ela é
natural da prática esportiva e deve ser entendida como um meio para o processo de desenvolvimento
do ser humano e não como finalidade exclusiva da prática. A competição influenciaria comportamentos
que estão na base dos estatutos individuais e sociais, ou seja, colabora com processos de evolução
pessoal e socialização de crianças e jovens.
Marques (2004) defende a competição como elemento fundamental para o processo de formação
da criança e do jovem, desde que sofra uma intervenção pedagógica nas escolas, passando a atender
às necessidades, aos interesses e aos estágios de prontidão dos praticantes. A competição seria uma
excelente oportunidade de construção da imagem social do indivíduo, através da interação promovida
pela dinâmica esportiva, onde a criança pode mostrar suas capacidades e sentir-se aceita pelo grupo
social. Para o autor, o esporte e a competição são apenas instrumentos. São os princípios e valores
associados à competição e às experiências vividas durante a atividade que conferem às práticas
esportivas o seu valor educativo.
Gaya (2000) questiona a teoria crítica sobre o esporte educacional, a qual maximiza os excessos e
deixa de reconhecer aspectos positivos que a prática esportiva competitiva pode oferecer à educação.
De acordo com o autor, o esporte de rendimento seria uma escola de vida, uma maneira de aprender a
conviver com a vitória e com a derrota.
103
Unidade II
Os estudiosos orientados pela sociologia crítica entendem que não se deve favorecer um modelo de
prática esportiva educacional que reproduz a estrutura social capitalista neoliberal, geradora de uma
competição desleal e de um grave quadro de exclusão e desigualdade social.
Porém, Gaya (2000) afirma que os críticos do esporte imputaram, erroneamente, sobre a prática
esportiva, em todos os níveis, os valores referentes às ideologias dominantes. O autor admite que a grande
preocupação referente ao esporte na escola é a exclusão da maioria em prol dos mais talentosos e a
utilização da Educação Física e do esporte como disciplina do currículo complementar, exclusivamente,
para o treinamento das equipes esportivas da escola. Também não nega que isso ainda ocorra com
certa frequência e afirma que o esporte na escola tem objetivos distintos do esporte de rendimento.
Na escola, o esporte deveria ser orientado pelo princípio do autorrendimento, no qual todos tivessem
oportunidade para aprendê-lo e atingir os melhores níveis possíveis, se assim desejassem.
Para Marques (2004), o modelo esportivo educacional deve dar ênfase ao divertimento, à participação
e ao desenvolvimento da autoestima da criança. Deve ser estimulado o espírito de equipe e a avaliação
deve ser centrada na aquisição e no desenvolvimento técnico e não apenas no resultado.
O esporte escolar é uma disciplina do currículo complementar e não deve ser confundido com a
formação de equipes escolares. Deve ter como objetivo multiplicar a aprendizagem das modalidades
esportivas, não possuindo qualquer caráter de exclusão por critério de performance, possibilitando o
acesso de todas as crianças às práticas esportivas formais (GAYA, 2000).
De Rose Jr. (2002) afirma que o esporte bem orientado pode tornar-se um fator importante no
processo de educação e socialização de crianças e jovens, uma vez que formaria um esportista e um
competidor ciente de suas capacidades e um cidadão apto a competir em todas as nuanças de sua vida
futura. Para tanto, o autor sugere os seguintes objetivos, apontados como facilitadores do processo
competitivo infanto-juvenil:
• Entender que a criança não é um adulto em miniatura. Portanto, a competição deve ser organizada
para ela e não para agradar aos adultos.
104
FILOSOFIA E DIMENSÕES HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Dessa forma, preconiza-se uma atividade esportiva educacional que não perca sua identidade
quanto à competição, ao rendimento e à técnica, mas que permita o acesso indistinto à prática,
independentemente do grau de performance do atleta, garantindo assim que todos se beneficiem dos
valores educacionais do esporte, sem desfigurá-lo, sem arrancar sua essência, aquilo que o faz esporte.
Exemplo de aplicação
O esporte educa, tira crianças e jovens das drogas, forma o caráter, melhora as notas na escola,
ensina a ter respeito pelos mais velhos?
O esporte deve ser visto como um fenômeno de muitas faces e aplicações, ele está fundamentado
na competição, na disputa envolvendo o esforço físico humano e na aplicação de regras universais
institucionalizadas. No entanto, os níveis de participação e os propósitos devem ser claramente diversos.
Pode o esporte ser responsável por feitos tão distintos e importantes? Ou são eles frutos do descaso
ou do trabalho atento de um professor?
Resumo
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Unidade II
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