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fabrício corsaletti (/colunas/fabriciocorsaletti/)

Chichico e Bandeira

18.fev.2018 às 2h00

EDIÇÃO IMPRESSA (//www1.folha.com.br/fsp/fac-simile/2018/02/18/)


Que os estudiosos de Manuel Bandeira não morram de inveja, sou apenas um
cronista, isto é, um não especialista, não um crítico ou um pesquisador, mas
ontem à noite, sem querer, um dos mistérios de sua poesia me foi revelado.
Pretendo ser claro e preciso e, com isso, contribuir pra fortuna crítica desse
poeta tão especial, que tantas alegrias já deu aos leitores de língua
portuguesa.

Por volta das sete e meia, saí de casa pra comer alguma coisa e, na sequência,
visitar a exposição de fotografias de Chichico Alkmim (1886-1978) no
Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista. Mineiro de Diamantina,
Chichico retratava as pessoas de sua cidade em poses convencionais, na
linguagem da época, porém com uma capacidade impressionante de lhes
apanhar a um só tempo as generalidades épicas e as tragédias e as doçuras
individuais.

De outro modo: não era um artista, era um fotógrafo profissional (como


tantos outros da sua época e da nossa) com um talento raro. Mas não é de
Chichico (que nome simpático; Chichico deve ter sido um bom amigo) que
quero falar. Ou não exatamente.

Indo direto ao ponto: entre os trabalhos expostos de Chichico, há uma


ampliação enorme (152 x 110 cm) de uma cena incrivelmente artificial,
premeditada, mas também natural, sensual e divertida. São três mulheres,
duas em pé e uma sentada, ao redor de uma mesa sobre a qual estão duas
garrafas de vinho e duas maçãs (ou mexericas?). Cada uma segura uma taça
cheia e mira um ponto diferente; nenhuma olha pra câmera.

A coisa toda se passa ao ar livre, num jardim, e a do meio, cotovelo apoiado


na mesa, rosto andrógino de Baco ou Pã, tem uma coroa de flores na cabeça.
Os vestidos são claros e compridos, com babados. Tudo recende a
provincianismo e a um mal disfarçado desejo de viver. A imagem é de 1920.

Quando bati os olhos nela, alguma coisa se mexeu dentro de mim. Eu


conhecia aquelas mulheres de algum lugar. Mas não era possível. Fiquei
angustiado e continuei a andar pelo salão, sem conseguir prestar atenção em
nada.
Então a ficha caiu: aquelas três cachaceiras maravilhosas só podiam ser as
três mulheres do sabonete Araxá, da famosa balada de Bandeira. As três
mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam./
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!/ O meu reino
pelas três mulheres do sabonete Araxá! Sim, eram elas! Nenhuma chance de
eu estar enganado. As três mulheres do sabonete Araxá, de quem sou íntimo,
na minha imaginação, há quase 30 anos.

Muito já se escreveu a respeito desses versos e de sua origem. Sei que o poeta
afirmava que eram inspirados num cartaz do tal sabonete que ele viu em
Teresópolis, numa venda. Mas a gente sabe que os poetas adoram mentir.
Bandeira era um sujeito discreto, não queria comprometer ninguém, quanto
mais três moças mineiras que logo depois se casariam com patriarcas
ciumentos. Era conveniente dizer que a ideia lhe veio de uma propaganda,
que além do mais lhe permitia criar o tipo de metáfora antiliterária típica do
primeiro modernismo.

Pra mim é claro como um diamante de Minas. Se alguém não ficou


convencido, que vá até o IMS e tire as suas conclusões.

Fabrício Corsaletti
É autor de 'Movediço', 'Zoo' e "Golpe de Ar". Foi editor de poesia na 'Ácaro'.

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