You are on page 1of 238

a sociedade

industrial e seu futuro


a sociedade
industrial e seu futuro

THEODORE J. KACZYNSKI
Apresentação e Apêndice por Último Reducto

Tradução de Rui C. Mayer

São Paulo 2015


Copyright © 2015 by Editora Baraúna SE Ltda

Criação de Capa Jacilene Moraes


Diagramação Aline Benitez
Revisão Textual Priscila Loiola
Revisão da Tradução Gonzalo García Gómez

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
________________________________________________________________
K13s

Kaczynski, Theodore J.
A sociedade industrial e seu futuro/Theodore J. Kaczynski; tradução Rui C.
Mayer. - 1. ed. - São Paulo: Baraúna, 2014.

Tradução de: Industrial society and its future


ISBN 978-85-437-0127-1

1. Ensaio americano. I. Título.

14-18504 CDD: 814


CDU: 821.111(73)-4
________________________________________________________________
09/12/2014 09/12/2014

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA


EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA
www.EditoraBarauna.com.br

Rua da Quitanda, 139 – 3º andar


CEP 01012-010 – Centro – São Paulo - SP
Tel.: 11 3167.4261
www.EditoraBarauna.com.br
Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Prólogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
A Sociedade Industrial e Seu Futuro. . . . . . . . . . . . . . 25
Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
A Psicologia do Esquerdismo Moderno. . . . . . . . 30
Sentimentos de Inferioridade . . . . . . . . . . . . . . . 32
Sobressocialização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
O Processo de Poder. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Atividades Substitutivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Autonomia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
Causas dos Problemas Sociais. . . . . . . . . . . . . . . 56
Perturbações do Processo de Poder
na Sociedade Moderna. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Como Algumas Pessoas se Adaptam. . . . . . . . . . 75
Os Motivos dos Cientistas . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
A Natureza da Liberdade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
Alguns Princípios Acerca da História . . . . . . . . . 91
A Sociedade Tecnoindustrial
Não Pode Ser Reformada . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
A Restrição da Liberdade É Inevitável
na Sociedade Industrial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
As Partes “Más” da Tecnologia
Não Podem Ser Separadas das Partes “Boas”. . . 106
A Tecnologia É uma Tendência Social
Mais Poderosa que o Desejo de Liberdade. . . . . 109
Os Mais Simples Problemas Sociais
Têm-se Demonstrado Insolúveis. . . . . . . . . . . . 119
A Revolução É Mais Fácil que a Reforma. . . . . 121
O Controle do Comportamento Humano. . . . 123
A Humanidade numa Encruzilhada . . . . . . . . . 137
O Sofrimento Humano . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
O Futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
A Estratégia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154
Os Dois Tipos de Tecnologia . . . . . . . . . . . . . . 171
O Perigo do Esquerdismo. . . . . . . . . . . . . . . . . 174
Nota Final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Notas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190
Posfácio ao Manifesto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
Nota sobre o Manifesto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Apêndice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
Apresentação

A Sociedade Industrial e Seu Futuro, também conhe-


cida como O Manifesto Unabomber, é uma das mais fa-
mosas argumentações contra a tecnologia moderna e o
sistema social acarretado por ela. Tal popularidade, en-
tretanto, deve-se antes, lamentavelmente, à forma como
essa obra se tornou conhecida (mediante um ultimato
antecedido por uma longa campanha de ataques terro-
ristas) e às circunstâncias que se seguiram à sua publica-
ção (os desdobramentos midiáticos em torno da prisão
daquele que se supunha que fosse o único membro do
grupo Freedom Club: Theodore John Kaczynski1) que

1 Theodore John (Ted) Kaczynski é um prisioneiro estadu-


nidense. Nascido em 1942, na cidade de Chicago, Ted Kaczynski
graduou-se na Universidade Harvard, obteve o título de PhD em
matemática pela Universidade de Michigan e lecionou na Universi-
dade da Califórnia (campus Berkeley). Depois disso, mudou-se para
Montana, onde procurou levar uma vida de afastamento, simplicida-

7
a uma verdadeira compreensão, da parte do público em
geral, das ideias expressas nessa obra. O que a maioria da-
queles que conhecem a existência desse manifesto sabe é,
única ou principalmente, que foi escrito por um doutor
em matemática pela Universidade de Michigan, o qual
se supunha que enviasse bombas, e que vivia sozinho em
uma cabana na floresta. Ou seja, pouca gente realmente
conhece ou recorda o conteúdo dessa obra. E, no entan-
to, é justamente esse conteúdo que faz dela particular-
mente interessante e digna de ser considerada.
Quais são as características mais notáveis que fa-
zem com que essa obra mereça ser lida e levada em con-
sideração por aqueles que estão interessados no proble-
ma provocado pelo desenvolvimento tecnológico? Os
principais aspectos que fazem essa obra merecer uma
consideração especial são:

— O enfoque com que o problema da tecnologia


moderna é tratado em A Sociedade Industrial e Seu Fu-
turo, em muitos aspectos, é diferente ou até mesmo in-
compatível com os enfoques de outras obras e discursos

de e autossuficiência. Considerado pelo FBI como um “terrorista do-


méstico” (nos EUA, qualquer indivíduo ou grupo “terrorista” nativo
ou ali estabelecido), e chamado “The Unabomber” (um acrônimo
para University and airline bomber), Ted Kaczynski foi investigado,
detido e condenado à prisão perpétua, acusado de enviar pacotes-
-bomba que resultaram na morte de três pessoas e ferimentos em
outras 23. Ted Kaczynski passou a cumprir essa sentença, sem possi-
bilidade de liberdade condicional, em uma prisão de segurança má-
xima, no Colorado. [N.T.]

8
supostamente críticos da sociedade tecnoindustrial.
A maioria das críticas à tecnologia moderna ou bem
não chega, no fundo, a tomar realmente uma posição
contrária a tal tipo de tecnologia e ao modelo de socieda-
de inevitavelmente acarretado por ela, ou então são base-
adas em pressupostos errôneos que as tornam ineficazes
ao se tratar de combater seriamente a sociedade tecnoin-
dustrial. Ou ambas as coisas ao mesmo tempo.
Um exemplo das primeiras, o temos no discurso de
certos filósofos e intelectuais supostamente radicais que,
apesar de reconhecer e denunciar que a tecnologia mo-
derna é incontrolável, e que ela inevitavelmente causa
graves transtornos à sociedade e ao mundo natural, se-
quer se prestam a levar suas próprias análises e críticas
às últimas consequências, e se detêm em propor tímidas
reformas ou simplesmente se calam acerca do que fazer.
Um exemplo das segundas estaria constituído por
grande parte do chamado movimento primitivista, em
que muitos de seus membros, apesar de odiarem real e
sinceramente a sociedade tecnoindustrial, adotam valores
e ideais que, na realidade, são próprios dessa sociedade
moderna que pretendem estar a combater (e, em especial,
adotam valores e ideais próprios do esquerdismo). Com
isso, tombam em cheio numa das principais armadilhas
que a sociedade tecnoindustrial utiliza para defender-se
das críticas e das correntes que, de outro modo, pode-
riam chegar a ser potencialmente perigosas para ela: o
descontentamento, legítimo e genuíno, é aliviado através
de atividades de protesto e reivindicações estereotipadas,
fúteis, inócuas ou até mesmo úteis para a sociedade tec-

9
noindustrial, apesar de que aqueles que as praticam acre-
ditarem que estão a afrontá-la.
Já em outro exemplo, para as terceiras, temos o caso
de certas correntes críticas autodenominadas “anti-indus-
triais”, descendentes diretas de outras correntes históricas
centradas na crítica social e política (marxismo e anar-
quismo). Essas correntes “anti-industriais”, apesar de seu
nome, não se baseiam em valores incompatíveis com os
da sociedade tecnoindustrial. Para essas correntes, bem
como para suas antecessoras, o problema principal é a fal-
ta de democracia, a dominação capitalista ou a opressão
do Estado, e não chegam jamais a defender a eliminação
total da tecnologia moderna em si.
Assim é que, em A Sociedade Industrial e Seu Fu-
turo, não se encontrarão as banais alusões contrárias à
competitividade, ao individualismo, à falta de solida-
riedade, à discriminação, à repressão estatal, ao poder,
ao capital, etc., tão típicas de praticamente todos os
discursos supostamente críticos da sociedade atual. Ao
contrário, A Sociedade Industrial e Seu Futuro centra-se
em expor, de maneira desapaixonada e objetiva, o modo
pelo qual o desenvolvimento tecnológico interfere ne-
gativamente e de uma forma inevitável na livre expres-
são da verdadeira natureza humana. Além disso, nessa
obra, mostra-se frequentemente como essa interferência
por vezes consiste, precisamente, no impedimento da
tendência humana natural para praticar, por exemplo,
certas formas de poder ou de discriminação numa escala
individual ou em pequenos grupos.

10
Sua conclusão também é clara e convincente: a tec-
nologia moderna, e, com ela, a sociedade tecnoindustrial
devem ser destruídas.

— Numa estreita relação com o que foi antes expos-


to, outro dos atrativos dessa obra é a advertência quan-
to ao perigo expressado pelo esquerdismo para qualquer
corrente ou movimento que realmente pretenda comba-
ter a sociedade tecnoindustrial.

— Outra parte importante dessa obra é aquela dedi-


cada à argumentação sobre por que se há de desprezar e
rechaçar os intentos de se reformar a sociedade tecnoin-
dustrial; por que se há de deixar de lado as tentativas de
manter o desenvolvimento tecnológico sob controle e
dentro de certos limites; e por que não se há de esboçar
nem tentar alcançar modelos alternativos de sociedade
que substituam a sociedade tecnoindustrial.

— Igualmente importante é a exposição que nessa


obra se faz de uma tendência e necessidade psicológica
humana fundamental: o processo de poder. Boa parte
de A Sociedade Industrial e Seu Futuro trata dos sin-
tomas que produzem as perturbações no desenvolvi-
mento desse processo e de como a sociedade tecnoin-
dustrial inevitavelmente afeta o processo de poder dos
indivíduos. E as ideias dessa parte são fundamentais
para se entender corretamente o restante da obra (por
exemplo, em que consiste a verdadeira liberdade hu-
mana, o que realmente é o esquerdismo, por que a

11
tecnologia moderna inevitavelmente interfere na liber-
dade humana, etc.).

Todos esses aspectos dessa obra se encaixam e


se entrelaçam, dando lugar, no geral, a um conjun-
to sobremaneira consistente e firme, que serve para
montar a base teórica de um dos discursos mais con-
tundentes e lúcidos jamais empunhados contra a tec-
nologia moderna.
Ao mesmo tempo, deve-se ressaltar que A Sociedade
Industrial e Seu Futuro não é a única obra de Ted Ka-
czynski.2 Muitas das ideias de A Sociedade Industrial e Seu
Futuro, ali apresentadas de uma forma básica, são desen-
volvidas com muito mais profundidade em vários artigos
escritos posteriormente por Kaczynski. É de se lamentar

2 Aqui vai uma ressalva: existem alguns textos que estão sendo
falsamente atribuídos a Ted Kaczynski, apesar de não ser ele o seu
verdadeiro autor. Esses textos são obra de esquerdistas oportunistas
e desleixados, que colocam na boca de Kaczynski discursos que
nada têm a ver com as verdadeiras ideias desse autor. Por isso, pe-
dimos prudência aos leitores se, em algum momento, se depararem
com algum texto assim — aparentemente subscrito por Kaczynski
—, cuja publicação não tiver sido expressamente autorizada pelo
autor, que não apresente uma posição clara e explícita em contrá-
rio ao sistema tecnondustrial, que use uma linguagem descuidada,
grosseira e/ou carregada de termos típicos da linguagem esquer-
dista (“capitalismo”, “patriarcado”, etc.) e se centre na análise dos
assuntos triviais próprios da temática oposicionista e “radical” (crí-
ticas ao capital, a este ou àquele político ou governo, ao sexismo, à
homofobia, ao Estado, etc.). Em tais casos, muito provavelmente,
estarão diante de textos espúrios.

12
que muitos desses artigos ainda não se encontram tradu-
zidos e publicados em português.3
A tudo isso vale acrescentar, finalmente, que A So-
ciedade Industrial e Seu Futuro está escrita em um estilo
sóbrio e conciso, o que torna a sua leitura e compreensão
relativamente fáceis, sem que se perca por isso a sua serie-
dade e a sua profundidade.

Último Reducto4 — 2013

3 Uma parte desses textos foi compilada no livro Technological


Slavery, Feral House, 2010.

4 “Último Reducto” é um pseudônimo do tradutor autorizado


dos escritos de Ted Kaczynski para o espanhol e um dos responsáveis
pelo reconhecimento de autenticidade dos seus escritos. [N.T.]

13
Prólogo 5

Temos aqui, enfim, já agora em língua portuguesa,


uma nova edição completa, formal e impressa da obra in-
titulada Industrial Society And Its Future, a qual também
ficou conhecida como The Unabomber Manifesto, pela
associação que dela se fez com a alcunha de seu único
signatário conhecido: Theodore J. (Ted) Kaczynski —
vulgo “The Unabomber”. De outra antes, impressa em
português, só encontramos referências à edição de uma
versão que foi chamada de “Manifesto do Unabomber —
o futuro da sociedade industrial”, publicada em Portugal
pela editora Fenda, em 1997, cerca então de dois anos
após a publicação da primeira versão do texto original.

5 Este “Prólogo” foi adaptado da edição em espanhol para esta


edição em português pela equipe das Edições Natura naturans —
produtora editorial dedicada especialmente à publicação e divulga-
ção de textos de crítica à sociedade tecnoindustrial.
http://ednaturanaturans.blogspot.com

15
A presente tradução dessa obra para o português,
feita desde sua mais recente versão espanhola — La So-
ciedad Industrial y Su Futuro —, foi acompanhada pelo
seu tradutor do inglês e pelo seu editor na Espanha,
e detalhadamente comparada, parágrafo por parágrafo,
com a mais nova edição do texto em inglês, que apare-
ceu na coletânea Technological Slavery — Theodore J.
Kaczynski, Feral House, 2010. Foi dada esta preferência
a uma tradução para a língua portuguesa desde a versão
espanhola para podermos, assim, bem aproveitar o de-
talhado acompanhamento que o próprio Ted Kaczynski
pôde fazer da tradução para a língua espanhola (língua
essa, em se respeitando as proporções devidas, tão pró-
xima à portuguesa), e que já agora não poderia mais se
repetir. E por fim, durante a preparação da versão em
português, alguns pontos específicos também chegaram
a ser discutidos com Ted Kaczynski — por correspon-
dência, em inglês.

Sobre a Versão Espanhola de


Industrial Society And Its Future

As Ediciones Isumatag6 trouxeram a público, em


2011, uma nova versão espanhola de Industrial Society
And Its Future, com uma tradução totalmente nova. A

6 Isumatag: grupo editor (formado na Espanha) dedicado à pu-


blicação de textos de crítica à sociedade tecnoindustrial.
http://isumatag.blogspot.com.

16
versão de Isumatag manteve a estrutura original dessa
obra: 232 parágrafos, com 36 notas. E vale a pena indicar
essa precisão, pois houve outras edições que simplesmen-
te incorporaram essas notas ao texto principal. A tradu-
ção publicada por Isumatag procedeu de uma versão em
inglês que Ted Kaczynski, preso nos Estados Unidos sob
a acusação de pertencer ao grupo signatário desse ma-
nifesto — o Freedom Club —, pôde finalmente revisar
apenas no ano de 2005, apesar do seu original ter sido
publicado em 1995.
Basicamente, essa tradução para o espanhol esteve
a cargo de Último Reducto e foi revisada pelos demais
membros do grupo editor da publicação, bem como por
outros colaboradores. O trabalho da nova tradução es-
teve dificultado por diversas razões. Uma delas é que,
justamente quando se ia enviar a Ted Kaczynski um es-
boço da tradução para que ele mesmo a revisasse, as au-
toridades estadunidenses ordenaram que as cartas e os
textos dirigidos a aprisionados acusados de terrorismo,
se estivessem em um idioma diferente do inglês, deve-
riam ser analisados através de uma perícia oficial. Isso
provocou atrasos, praticamente impossibilitando que se
mantivesse uma correspondência em espanhol (idioma
em que Ted Kaczynski é fluente) e fazendo com que a
continuação da discussão sobre os aspectos técnicos da
tradução tivesse de ser feita exclusivamente em inglês.
E o pior de tudo: grande parte da tradução não pôde
ser revisada por Ted Kaczynski, para o grande pesar do
grupo de Isumatag. Ainda assim, os próprios membros
desse grupo creem e afirmam que o derradeiro resultado

17
desse trabalho foi de boa qualidade, já que se apoia em
debates e discussões tais, nalguns casos de anos até, que
facilitaram a compreensão dessa obra — no todo e em
seus numerosos detalhes.7
Ted Kaczynski chegou a dar sua permissão, ao gru-
po de Isumatag, para que fizesse pequenas modificações
no texto traduzido; todavia, essas modificações seriam e
foram feitas somente quando necessárias à sua adaptação
ao contexto espanhol, facilitando assim a compreensão
desse manifesto — modificações que, em geral, facilitam
também sua compreensão em português. Algumas dessas
modificações estão indicadas e explicadas como notas de
tradução. O próprio Ted Kaczynski redigiu outras novas
notas, que tratam de explicar com mais precisão alguns
dos conteúdos da obra, as quais o leitor poderá ir acom-
panhando ao longo do texto.
A publicação original desse manifesto foi precedi-
da pelo envio de uma série de pacotes-bomba, o que foi
reivindicado pelo grupo Freedom Club — FC. Ao longo

7 Nota de agradecimento de Ted Kaczynki a Isumatag:


Gostaria de expressar meu agradecimento ao grupo editor pelo
tempo e esforço que investiram em preparar e publicar sua cui-
dadosa tradução de Industrial Society And Its Future. As normas
carcerárias me impediram de receber uma cópia da tradução, con-
tudo, estou seguro de que é excelente. A troca de correspondência
que mantive com certos membros desse grupo me convenceu de
que entendem muito bem as ideias expressadas em La Sociedad
Industrial y Su Futuro.
Ted Kaczynki — Florence, Colorado, EUA.
La Sociedad Industrial y Su Futuro, 2011, p. 21.

18
de mais de 15 anos, nos Estados Unidos, esses pacotes-
-bomba causaram três mortes e deixaram vários feridos.
Em 1995, o FC propôs um acordo à imprensa nacional
estadunidense: abandonaria o envio de pacotes-bomba
em troca da publicação de um manifesto. Esse manifesto
era A Sociedade Industrial e Seu Futuro, que foi publicado
em vários periódicos, e também na Internet, poucos me-
ses depois. No ano seguinte, Ted Kaczynski seria detido,
acusado de pertencer ao FC.
Apesar de ser obra de um grupo terrorista, não se
pode considerar, sob uma ótica racional, que esse mani-
festo seja um argumento em favor do terrorismo. O ob-
jetivo tanto daquela edição em espanhol quanto o desta
nossa edição em português é o de se fazer conhecer as
ideias do Freedom Club, pela importância histórica de
seu manifesto e pela atualidade das questões que este pro-
põe. Com a publicação dessa obra, pois, não se pretendia
nem se pretende justificar ou fomentar atos ilegais, e sim
veicular ideias que ainda não teriam encontrado outros
caminhos melhores, ao menos não na língua portuguesa.

Principais Ideias dessa Obra

Sem qualquer dúvida, uma ideia que essa obra trata


de transmitir é a de como e por que o desenvolvimento
tecnológico converteu-se em uma ameaça para a liberda-
de individual e para a Natureza selvagem. Daí então que
seu texto analisa, pormenorizadamente, um dos transtor-
nos mais importantes na atualidade: a sensação de va-

19
zio, de ausência de plenitude da vida que afeta muitas
pessoas. O texto detecta uma incompatibilidade entre
alguns traços da natureza humana, o que se denomina
“processo de poder”, e as formas de vida que os huma-
nos têm de adotar sob o condicionamento da sociedade
tecnoindustrial. Ora, o modo pelo qual as pessoas tratam
de escapar a essa incompatibilidade, ou de minimizá-la,
costuma afetar seus comportamentos. O texto ilustra isso
com os exemplos das motivações dos cientistas e dos es-
querdistas. Esses últimos são considerados, nesse mani-
festo, como mais uma evidência dos problemas que causa
a sociedade tecnoindustrial, ao se intrometer na necessi-
dade humana de experimentar o processo de poder. Tal
intromissão costuma levar muitas pessoas a se envolve-
rem em atividades políticas para tratar de satisfazer a essa
necessidade, ainda que as justifiquem de outras maneiras.
Desse modo, o texto adentra pelo núcleo de uma crítica
ao esquerdismo que é digna de ser mantida sempre, e
muito em conta.
A crítica e a caracterização do desenvolvimento
tecnológico ocupa a maioria das páginas do livro. Nessa
obra, se analisa a sociedade tecnológica atual como um
todo indivisível, do qual umas partes dependem de ou-
tras, irremediavelmente, e no qual é bastante complicado
fazer modificações em umas partes sem que as outras, por
sua vez, encontrem-se afetadas. De fato, quando se tra-
ta de modificações importantes em setores tecnológicos
e econômicos, é inevitável que se produzam mudanças
em outras partes da sociedade. Desde a publicação desse
manifesto, quando do ano de 1995, os avanços tecnoló-

20
gicos sucederam-se sem parar e num ritmo muitíssimo
intenso, e alguns dos tópicos que por então eram tratados
como possibilidades relativamente remotas, já hoje são
ameaças iminentes.
Além de oferecer explicações sobre o conjunto inter-
conectado de tecnologias que forma o sistema tecnoin-
dustrial, o texto do manifesto adverte sobre a tendência
deste sistema de ser independente das vontades humanas,
isto é, de definir seu próprio curso de desenvolvimento.
Isso implica que, cada vez mais, esse sistema se constitui
em uma trava à liberdade dos indivíduos e dos peque-
nos grupos. O manifesto tampouco quer dar a entender
que seja essa a única trava, e sim, porém, que é a funda-
mental, aquela da qual derivam, indireta ou diretamente,
mais restrições à liberdade. Mas a liberdade da qual se
está então a falar tem uma relação direta com o proces-
so de poder: seria como um gozar de autonomia — ao
defrontar-se com esse processo — com finalidades ver-
dadeiramente importantes e com sentido (por exemplo,
as necessidades físicas vitais). (Conferir os seus parágrafos
93-98: “A natureza da liberdade”.)
Assim como essa liberdade, entendida como au-
tonomia no processo de poder, é proposta como um
valor básico, outro ideal fundamental proposto é o da
Natureza selvagem (parágrafos 183-184). Isso está bem
apontado e comentado pelo tradutor para o espanhol,
em várias das notas; nelas se destaca como esse ideal está
mais bem espraiado pela cultura anglo-saxã que, por
exemplo, pela cultura hispânica — e o mesmo pode-
mos dizer quanto às culturas lusófonas (em países como

21
Angola, Brasil ou Portugal). Espera-se que essa carac-
terística diferencial não se constitua em uma barreira
intransponível, e que o leitor dela se aproxime mais com
curiosidade que com prejuízo.
Outro aspecto notável desse manifesto é sua visão da
história humana e da evolução das sociedades (conferir
os parágrafos 99-110: “Alguns princípios acerca da histó-
ria”). No seu texto, é reconhecida a complexidade dessa
evolução (e, desta, derivam mesmo dois desses tais “prin-
cípios”); entretanto, se reconhece também que existem
algumas tendências gerais ao longo do tempo, e que estas
devem ser levadas em conta ao se esboçar uma solução
para o problema do desenvolvimento tecnológico. De
fato, tais padrões no comportamento das sociedades ao
longo do tempo relacionam-se com muitos outros pro-
blemas, conquanto as pessoas que pretendem solucioná-
-los, normalmente, nem mesmo o percebam, tendo seus
esforços convertidos em meras tentativas inúteis.
E, finalmente, a estratégia proposta para solucionar
o problema do desenvolvimento tecnológico — uma re-
volução cujo único objetivo é a eliminação da sociedade
tecnoindustrial — pode ser qualificada de muitas manei-
ras, contudo é algo que bem merece uma séria discussão.

Algumas Razões pelas quais


Interpretam-se Mal as Ideias do Manifesto

A principal razão pela qual as ideias apresentadas


nesse manifesto, tantas vezes, não puderam ser avalia-

22
das em sua completude, está relacionada com o modo
pelo qual foram dadas a conhecer. Ao ser apresentada nos
meios de comunicação de massas, o que se ressaltou dessa
obra foram seus aspectos mais espetaculares e apelativos.
Esses meios introduzem, em sua forma de mostrar as coi-
sas, efeitos tais de distorção e de desfiguração das ideias
até que estas possam ser tratadas do modo como convém
à mídia. E isso tão somente no caso de que sequer as
tratem, pois há ocasiões em que esses meios se limitam a
especular sobre o perfil psicológico de quem defende tais
ideias — como ocorreu, em muitos casos, nos Estados
Unidos, após a publicação dessa obra.
Parece haver até mesmo, da parte de alguns editores
e comentaristas, uma séria dificuldade em se compreen-
der algumas das ideias de A Sociedade Industrial e Seu Fu-
turo (por exemplo, a crítica ao esquerdismo), e a excessiva
facilidade de se contornar aspectos básicos da obra (por
exemplo, sua defesa da Natureza selvagem como ideal
principal e básico). Certo é que esse manifesto não ofe-
rece uma definição concisa do termo “esquerdismo”; ofe-
rece, contudo, uma série de características definidoras e
de critérios úteis para se discernir, suficientemente, certos
pontos importantes. Assim, por exemplo, quando alguns
dos que anteriormente editaram essa obra criticam o seu
suposto “machismo”8, de certa maneira, se estão revelan-
do como elementos aproximados do esquerdismo. Essa

8 Esse tipo de abordagem era já encontradiça nas primeiras refe-


rências críticas ao manifesto, como, por exemplo, no “About the Au-
thor” de uma versão britânica de A Sociedade Industrial e Seu Futuro de
1995, publicada pelo grupo editor da revista Green Anarchist.

23
impressão fica confirmada pelas temáticas que são trata-
das pelo resto das obras publicadas por esses editores. A
sua necessidade psicológica de se rebelar leva-os a con-
centrar sua atenção em assuntos que são insignificantes
(como, por exemplo, o uso de uma linguagem politica-
mente correta), quando comparados com os da restrição
da liberdade e da destruição da Natureza selvagem.
É costumeiro, também, identificar-se o esquerdis-
mo — que esse manifesto tanto põe-se a criticar — uni-
camente com o reformismo, e isso é um erro. Boa parte
dos grupos e indivíduos habitualmente considerados
revolucionários, na atualidade e no passado, mostram
de fato muitas das características disso que o FC chama
de esquerdismo.
O próprio texto desse manifesto terá dado, talvez,
algum embasamento a essa confusão, ao não ser suficien-
temente preciso em sua definição de esquerdismo, ou por
usar como exemplos revoluções e movimentos revolucio-
nários históricos de caráter marcadamente esquerdista;9 no
entanto, claro está que a crítica do FC ao esquerdismo não
tem sido bem compreendida — e isso, por muita gente.

9 Por isso mesmo, nesta edição em português, acrescentamos


como apêndice um texto de “Último Reducto” — Esquerdismo:
função da pseudocrítica e da pseudo-revolução na sociedade tec-
noindustrial (2009) —, o qual entendemos como uma esclarecedora
ilustração de um diálogo e de discussões sobre esse assunto, mantidas
com Ted Kaczynski ao longo de anos.

24
A Sociedade Industrial
e Seu Futuro

Freedom Club — FC

25
Introdução

1. A Revolução Industrial e suas consequências têm


sido um desastre para a espécie humana. Têm aumenta-
do consideravelmente a expectativa de vida daqueles de
nós que vivem em países “avançados” — todavia, têm
também desestabilizado a sociedade, têm feito com que
a vida não tenha plenitude, têm submetido os seres hu-
manos a indignidades, têm levado a um incremento do
sofrimento psicológico (também do sofrimento físico,
no Terceiro Mundo) e têm infligido severos danos ao
mundo natural. O contínuo desenvolvimento da tecno-
logia irá piorar essa situação. É certo que isso submeterá
os seres humanos a grandes indignidades e que infligirá
maior dano ao mundo natural; provavelmente, acarre-
tará mais transtornos sociais e sofrimento psicológico, e
pode até ser que incremente o sofrimento físico, inclu-
sive em países “avançados”.

27
2. O sistema tecnoindustrial pode sobreviver ou
pode desagregar-se. Se sobreviver, PODE ser que, afi-
nal, alcance um baixo nível de sofrimento físico e psi-
cológico, porém somente após passar por um longo e
bem doloroso período de ajustamento, e somente ao
custo de reduzir permanentemente os seres humanos
e muitos outros organismos vivos à condição de pro-
dutos de engenharia e de meras engrenagens da ma-
quinaria social. E, mais que isso, se o sistema sobre-
viver, essas consequências se tornarão inevitáveis: não
há qualquer maneira de se reformar ou modificar o
sistema de modo a impedi-lo de privar as pessoas de
dignidade e autonomia.

3. Se o sistema desagregar-se, as consequências serão


ainda muito dolorosas. Contudo, quanto mais o sistema
cresça, mais desastrosos serão os efeitos de sua desagre-
gação; por isso, havendo de desagregar-se, melhor que o
seja o quanto antes.

4. Por conseguinte, nós advogamos uma revolução


contra o sistema industrial. Essa revolução pode fazer uso
da violência ou pode não fazê-lo; pode ser repentina ou
pode ser um processo relativamente gradual, que dure
por algumas décadas. Isso é algo que nós não podemos
prever. Mas apresentaremos aqui, de um modo bem ge-
ral, medidas que aqueles que odeiam o sistema industrial
deveriam tomar para preparar-se o caminho para a revo-
lução contra essa forma de sociedade. Essa não será uma
revolução POLÍTICA. O objetivo não será derrubar go-

28
vernos, e sim derrubar as bases econômicas e tecnológicas
da sociedade atual.

5. Neste texto, mantivemos nossa atenção somen-


te sobre alguns dos efeitos negativos do sistema tec-
noindustrial. Outros desses efeitos nós mencionamos
apenas brevemente, ou desconsideramos totalmente.
Isso não significa que consideremos esses outros efei-
tos como desprovidos de importância. Por motivos
práticos, limitamos nossa discussão àquelas áreas que
não têm recebido suficiente atenção por parte do pú-
blico, ou acerca das quais temos algo novo a dizer. Por
exemplo, dado que já existem movimentos ecologistas
e de defesa dos ecossistemas selvagens,10 e movimen-

10 O FC se refere aos Estados Unidos. Há certos aspectos funda-


mentais em boa parte do ecologismo estadunidense que em muito o
diferenciam de outros “ambientalismos”. Este não é o lugar para se
analisar e avaliar detalhadamente as causas e efeitos dessa diferencia-
ção, todavia, cabe assinalar que há conceitos por vezes francamente
difíceis de se traduzir para idiomas neolatinos (como o português),
conceitos tais como “Wild Nature” (“Natureza selvagem”), “wilder-
ness” (não há um termo em português que expresse exatamente o
significado dessa palavra, que é usada para se referir a ecossistemas ou
territórios pouco ou nada humanizados), “The Wild” (“o selvagem”;
termo normalmente usado em referência a ecossistemas praticamen-
te não humanizados — “wilderness”), etc., e que formam parte im-
portante da cultura tradicional dos Estados Unidos e do seu entorno,
e que são também, e com frequência, fundamentais para a ideologia,
discurso e práticas de certos setores do ecologismo estadunidense. Os
autores do texto são estadunidenses, e, evidentemente, consideram o
selvagem como um valor fundamental. [N.T.]

29
tos até bem desenvolvidos, temos pouco escrito aqui
acerca da degradação ambiental ou da destruição dos
sertões selvagens, mesmo que consideremos que tais
temas sejam muito importantes.

A Psicologia do Esquerdismo Moderno

6. Quase todo mundo concordará que vivemos em


uma sociedade profundamente transtornada. Uma das
manifestações mais amplas da loucura do mundo atual é
o esquerdismo, de modo que uma discussão sobre a psi-
cologia do esquerdismo pode servir como introdução à
discussão dos problemas da sociedade moderna em geral.

7. Mas o que é o esquerdismo? Durante a primeira


metade do século XX, o esquerdismo podia praticamen-
te ser identificado com o socialismo. Mas, hoje em dia,
esse movimento está fragmentado, e já não está claro a
quem, com propriedade, se pode chamar de esquerdis-
ta. Neste texto, quando falamos dos esquerdistas, temos
em mente principalmente os socialistas, coletivistas,
tipos “politicamente corretos”, feministas, ativistas por
direitos dos homossexuais e dos incapacitados, defenso-
res dos direitos dos animais e gente assemelhada. Entre-
tanto, nem todo mundo relacionado com algum desses
movimentos é um esquerdista. Em nossa discussão, tra-
tamos de nos referir menos a um movimento ou a uma
ideologia, e mais a um tipo psicológico, ou melhor, a
um conjunto de tipos relacionados entre si. De qual-

30
quer modo, o que queremos dizer com “esquerdismo”
terá de ser esclarecido no transcurso de nossa discussão
da psicologia esquerdista. (Vejam-se também os pará-
grafos 227-230.)

8. Ainda assim, nossa concepção de esquerdismo


ficará bem menos esclarecida do que nos agradaria —
porém não parece haver qualquer solução para isso.
Tudo o que aqui pretendemos fazer é indicar, em linhas
gerais e de um modo aproximado, as duas tendências
psicológicas que acreditamos serem as principais forças
diretrizes do esquerdismo moderno. De nenhuma ma-
neira pretendemos dizer TUDO o que realmente pode
ser dito acerca da psicologia esquerdista. Nossa discus-
são é aplicável somente ao esquerdismo moderno. Dei-
xamos aberta a questão de até onde poderia ser aplicada
nossa discussão aos esquerdistas do século XIX e dos
princípios do século XX.

9. As duas tendências psicológicas nas quais o es-


querdismo moderno se embasa, nós iremos chamá-las
de sentimentos de inferioridade e de sobressocialização. Os
sentimentos de inferioridade são característicos de todo
o esquerdismo moderno, enquanto a sobressocialização
é característica somente de certo setor do esquerdismo
moderno; esse setor, contudo, é muito influente.

31
Sentimentos de Inferioridade

10. Por “sentimentos de inferioridade” entende-


mos não apenas os sentimentos de inferioridade em
sentido estrito como também todo um espectro de
traços com os quais podemos relacioná-los: baixa au-
toestima, sentimentos de impotência, tendências de-
pressivas, derrotismo, sentimentos de culpa, desprezo
por si mesmo, etc. Afirmamos que os esquerdistas mo-
dernos tendem a apresentar alguns desses sentimentos
(mais ou menos reprimidos), e que tais sentimentos
são decisivos na determinação da direção do esquer-
dismo moderno.

11. Quando alguém interpreta como depreciativo


quase tudo o que se diga acerca dele (ou acerca de grupos
com os quais se identifica), consideramos que sofre de
sentimentos de inferioridade ou baixa autoestima. Essa
tendência é bem definida nos ativistas a favor dos direi-
tos das minorias, pertençam ou não aos grupos minori-
tários cujos direitos defendam. São hipersensíveis acerca
de palavras usadas para designar as minorias e acerca de
qualquer outra coisa que se diga em referência a elas. Os
termos “preto”, “crioulo”, “deficiente” — em respectiva
referência a negros africanos e afrodescendentes em geral,
a negros e mulatos (no Brasil) em particular, ou a pessoas
com deficiências físicas ou mentais — não tinham, ori-
ginalmente, um sentido depreciativo. “Preto” era o mero
equivalente a “pessoa de cor negra”, e “crioulo” (no Bra-
sil) era simplesmente uma sinonímia para nativos negros

32
ou mulatos.11 As conotações negativas têm sido associa-
das a esses termos pelos próprios ativistas. Alguns ativis-
tas pelos direitos dos animais têm chegado ao extremo de
recusar o uso da palavra “mascote” e insistir em que seja
substituída por “animal de companhia”. Antropólogos
de tendência esquerdista são capazes de tudo para evi-
tar dizer algo acerca dos povos primitivos que possa ser
interpretado como negativo. Querem substituir o termo
“primitivos” por “sem escrita”. Parecem quase paranoicos

11 O FC utilizava nessa passagem, no original em inglês, os


termos “negro”, “oriental”, “handicapped” e “chick” (ou “broad”).
Ainda que dois desses termos (“negro” e “oriental”) também sejam
utilizados em português com um sentido similar ao do inglês, ten-
do o outro seus equivalentes em português (“deficiente” ou “inváli-
do”) — que também provocam uma reação hipersensível em certos
sujeitos e grupos lusófonos —, não há no português (ou então, se
isso há, ao menos não veio à baila em se fazendo esta tradução)
termos comuns e usuais para designar as mulheres que sejam equi-
valentes a “chick” ou “broad” (nos Estados Unidos, termos de gíria
para “garota” e/ou “mulher”, tidos comumente como chulos, hoje
em dia). Quanto ao termo “oriental”, este não costuma indicar
uma conotação negativa no português.
Por isso, então, e a exemplo do recurso adotado na versão es-
panhola, se decidiu não considerar os termos “oriental”, “chick” e
“broad”, e substituí-los, nesta tradução, por crioulo, o qual, há época
da colonização do Brasil — quando esse país ainda fazia parte do
Império Português —, designava os escravos negros nascidos nessa
colônia portuguesa; desde então, na maior parte do Brasil, e até na
atualidade, tal palavra passou a designar quaisquer pessoas negras ou
mulatas — de um modo tal que, comumente, costuma ser conside-
rada “politicamente incorreta”. [N.T.]

33
a respeito de qualquer coisa que possa sugerir que algu-
ma cultura primitiva seja inferior à nossa. (Não estamos
dizendo que as culturas primitivas SEJAM inferiores à
nossa. Somente destacamos essa hipersensibilidade dos
antropólogos de tendência esquerdista.)

12. Aqueles que são os mais suscetíveis à termi-


nologia “politicamente incorreta” não são, em geral, o
habitante comum de um “gueto negro”, o imigrante es-
trangeiro asiático,12 a mulher vítima de maus-tratos ou

12 Dado que o texto original em inglês foi dirigido principal-


mente aos leitores estadunidenses, o FC tendeu a fazer referência
direta aos Estados Unidos e utiliza como exemplos, frequentemente,
situações próprias da sociedade estadunidense que, como a referência
ao “imigrante estrangeiro asiático”, nem sempre resultam direta ou
exatamente aplicáveis a outros países.
Por exemplo, tanto o racismo e a xenofobia quanto as eventuais
reações que lhes forem contrárias, em geral, não tomam em outros
países a mesma forma que nos Estados Unidos. Assim, a expressão
“gueto negro” não refletiria com exatidão a realidade das condi-
ções de vida de muitos dos negros em outros países, e, do mesmo
modo, tampouco os imigrantes asiáticos em outros países teriam,
precisamente, a mesma significação e a significância que nos Estados
Unidos. Comparando-se com o Brasil, em que os negros, mulatos e
cafuzos (no português brasileiro, mestiços de negros e índios) estão
aquém de configurar uma minoria estrita, a expressão “gueto negro”
poderia aproximar-se, forçada e transversalmente, apenas da noção
de favela — sendo que, no Brasil, a imigração asiática (majoritaria-
mente japonesa), em geral, tem sido financeira e socialmente bem
sucedida e assimilada.
Por um desejo expresso de Ted Kaczynski, a tradução para o es-

34
a pessoa deficiente, porém, sim, uma minoria de ativis-
tas, muitos dos quais nem mesmo pertencem a qualquer
grupo “oprimido”, provenientes que são de estratos mais
privilegiados da sociedade. A correção política cerca-se
de seus mais firmes defensores entre os professores uni-
versitários, os quais têm empregos seguros com uma boa
remuneração, e são, em sua maioria, varões brancos hete-
rossexuais de famílias de classe média alta.

13. Muitos esquerdistas apresentam uma veemen-


te identificação com os problemas de grupos tidos como
frágeis (mulheres), derrotados (índios norte-americanos),
sórdidos (homossexuais) ou, de algum modo, inferiores.
Os próprios esquerdistas percebem tais grupos como in-
feriores. Nunca reconheceriam para si mesmos que têm
essa percepção; contudo, identificam-se com os proble-
mas desses grupos precisamente porque os visualizam
como inferiores. (Não estamos sugerindo que as mulhe-
panhol (que foi seguida por esta versão em português) manteve-se
fiel ao texto original, nesse e noutros vários aspectos, nos quais talvez
fosse mesmo recomendável que se fizesse uma tradução menos lite-
ral, com certas modificações e adaptações voltadas para leitores não
estadunidenses — ainda que, em certos outros casos, a inteligibilida-
de do texto e o seu sentido corrente não recomendassem ou nem per-
mitissem uma tradução literal (acerca de um desses casos — relativo
à tradução tanto para o espanhol quanto para o português — veja-se
ainda a nota de rodapé imediatamente anterior).
Mas convém trazer à lembrança que as poucas e pequenas adap-
tações ou modificações do texto original, ocorridas nas versões em
espanhol ou português, foram sempre o resultado de cuidadosas con-
sultas feitas diretamente a Ted Kaczynski. [N.T.]

35
res, os índios, etc., SEJAM inferiores; somente estamos
tentando explicar algo da psicologia esquerdista.)

14. As feministas estão sempre desesperadamente


ansiosas por provar que as mulheres são tão fortes e capa-
zes quanto os homens. Claro está que as oprime o medo
de NÃO serem tão fortes e capazes quanto os homens.

15. Os esquerdistas tendem a odiar qualquer coisa


que tenha fama de ser forte, de ser boa e de ter êxito.
Odeiam os Estados Unidos, odeiam a civilização oci-
dental, odeiam os varões de raça branca, odeiam a ra-
cionalidade. Está claro que as razões que os esquerdistas
alegam para odiar o ocidental, etc., não correspondem
aos seus verdadeiros motivos. Eles DIZEM que odeiam
o Ocidente porque é belicista, imperialista, sexista, et-
nocêntrico e coisas assim desse estilo; contudo, quando
esses mesmos defeitos ocorrem em países socialistas ou
em culturas primitivas, os esquerdistas encontram des-
culpas para tudo, ou, no melhor dos casos, admitem RE-
LUTANTEMENTE sua existência; entretanto, apontam
ENTUSIASTICAMENTE tais falhas (e muitas vezes,
com muito exagero) quando estas aparecem na civiliza-
ção ocidental. Está claro, portanto, que esses defeitos não
são o verdadeiro motivo pelo qual os esquerdistas odeiam
os Estados Unidos e o ocidental. Odeiam os Estados Uni-
dos e o Ocidente porque estes são fortes e exitosos.

16. Expressões como “confiança em si mesmo”,


“autossuficiência”, “iniciativa”, “empreendedorismo”,

36
“otimismo”, etc., jogam um papel insignificante no
vocabulário liberal e esquerdista. O esquerdista é anti-
-individualista, pró-coletivista. Ele espera que a socieda-
de resolva os problemas dos indivíduos em lugar de eles
mesmos os resolverem, que satisfaça as necessidades dos
indivíduos em vez de eles o fazerem por si mesmos, que
cuide deles. Ele não é o tipo de gente que acredita ser
capaz de resolver seus próprios problemas e satisfazer suas
próprias necessidades — por si mesmo. O esquerdista é
contrário ao conceito de competência porque, no fundo,
sente-se um fracassado.

17. As formas de arte que atraem os intelectuais


modernos de orientação esquerdista tendem a acercar-
-se da sordidez, da derrota e do desespero, ou, quando
não, assumem um tom orgiástico, abandonando todo o
controle racional, como se não houvesse a esperança de
se alcançar o que quer que fosse por meio do cálculo ra-
cional, e tudo o que se pudesse fazer fosse submergir nas
sensações de cada momento.

18. Os filósofos modernos de orientação esquerdista


tendem a recusar a razão, a ciência, a realidade objetiva,
e insistem em considerar tudo como culturalmente rela-
tivo. É certo que se pode fazer perguntas sérias acerca das
bases do conhecimento científico e de como se definir, no
caso disso ser possível, o conceito de realidade objetiva.
Mas é óbvio que os filósofos modernos que simpatizam
com o esquerdismo não são, tão simplesmente, uns frios
especialistas em lógica que analisam sistematicamente as

37
bases do conhecimento. Os seus ataques à verdade e à
realidade mostram uma profunda implicação emocional.
Eles atacam tais conceitos devido às suas próprias necessi-
dades psicológicas. De um lado, seu ataque é uma forma
de aliviar sua hostilidade, e, de outro lado, na medida
em que o ataque tenha êxito, satisfaz sua necessidade de
poder. E o mais importante ainda: o esquerdismo odeia
a ciência e a racionalidade porque estas classificam certas
crenças como verdadeiras (isto é, exitosas, superiores) e
outras crenças como falsas (isto é, fracassadas, inferiores).
Os sentimentos de inferioridade do esquerdista são tão
profundos que ele não pode tolerar classificação alguma,
de umas coisas como exitosas ou superiores e de outras
como fracassadas ou inferiores. Isso subjaz também a re-
jeição de muitos esquerdistas ao conceito de enfermidade
mental, e à utilidade dos testes de quociente intelectual.
Os esquerdistas são contrários às explicações das capaci-
dades ou do comportamento humano por determinação
genética porque tais explicações tendem a fazer com que
algumas pessoas pareçam superiores e outras inferiores.
Os esquerdistas preferem que o mérito ou a culpa da ca-
pacidade ou da incapacidade dos indivíduos recaia sobre
a sociedade. Desse modo, se uma pessoa é “inferior”, não
é culpa sua, senão da sociedade, pois essa pessoa não terá
sido criada e educada adequadamente.

19. O esquerdista típico não é o tipo de gente cujos


sentimentos de inferioridade façam dele um fanfarrão,
um egoísta, um valentão ou um competidor desapieda-
do. Essas pessoas ainda não perderam, ao menos com-

38
pletamente, sua confiança em si mesmas. Elas têm um
déficit em sua sensação de poder e em sua autoestima,
contudo, ainda podem imaginar-se a si mesmas com a
capacidade de serem fortes — e são seus esforços por
fazerem-se fortes que produzem seus comportamentos
desagradáveis.[NOTA 1] Mas o esquerdista está muito lon-
ge disso. Os seus sentimentos de inferioridade são tão
arraigados que não pode imaginar-se como alguém in-
dividualmente forte e valoroso. Daí o coletivismo do
esquerdista. Ele se sente forte somente como membro
de uma grande organização ou de um movimento de
massas com os quais possa se identificar.

20. Note-se a tendência masoquista das táticas es-


querdistas. Os esquerdistas protestam jogando-se na fren-
te de veículos, provocam intencionalmente a polícia ou
os racistas para que estes os maltratem, etc. Essas táticas,
muitas vezes, podem ser efetivas, porém muitos esquer-
distas as utilizam não como um meio para alcançar um
fim, e sim porque PREFEREM as táticas masoquistas. O
desprezo por si mesmo é uma característica esquerdista.

21. Os esquerdistas podem afirmar que os motivos


de seu ativismo são a compaixão ou os princípios morais,
e a moral, certamente, desempenha algum papel no caso
do esquerdista sobressocializado. Mas a compaixão e os
princípios morais não podem ser os principais motivos
do ativismo esquerdista. A hostilidade é um componente
muito destacado no comportamento esquerdista; igual-
mente o é a busca pelo poder. E mais, boa parte do com-

39
portamento esquerdista não está racionalmente calculada
de modo a beneficiar aquela gente a qual os esquerdistas
afirmam estar tratando de ajudar. Por exemplo, se alguém
crê que as ações afirmativas13 são boas para as pessoas ne-
gras, qual o sentido de demandá-las em termos hostis ou
dogmáticos? Obviamente, seria mais produtivo tomar
uma atitude diplomática e conciliatória que fizesse, ao
menos, algumas concessões verbais e simbólicas, de modo
a tranquilizar as pessoas que porventura pensassem que as
ações afirmativas, em favor dos negros, fossem também
ações contrárias aos brancos. Mas os ativistas esquerdistas
não assumem essa atitude porque isso não satisfaria suas
necessidades emocionais. Ajudar as pessoas negras não é,
realmente, o seu objetivo. Em vez disso, os problemas ra-
ciais lhes servem como desculpas para expressar sua pró-
pria hostilidade e tratar de satisfazer sua frustrada neces-
sidade de poder. Ao fazer isso, na realidade, prejudicam
as pessoas negras, pois a atitude hostil dos ativistas para
com a maioria branca tende a intensificar o ódio racial.

13 A expressão ação afirmativa (“affirmative action”, no original em


inglês) faz referência ao tratamento de preferência ou proteção facul-
tado aos membros de certos grupos, os quais são costumeiramente
considerados — e particularmente pelos esquerdistas — como dis-
criminados ou oprimidos, de um modo tal que se compensasse um
presumível prejuízo ocasionado a esses grupos. O conceito e a prática
de ação afirmativa surgiram nos Estados Unidos na década de 1960;
no Brasil, um exemplo de ação afirmativa é a política de “cotas raciais”,
que estipula a reserva de vagas em instituições de ensino superior para
candidatos que se autodeclararem negros, índios ou mestiços. [N.T.]

40
22. Se nossa sociedade não tivesse, em absoluto,
quaisquer problemas sociais, os esquerdistas teriam de
INVENTÁ-LOS — com a finalidade de providenciarem
a si mesmos desculpas para armarem as suas confusões.

23. Enfatizamos ainda que o que aqui expomos não


pretende ser uma descrição precisa de todos aqueles in-
divíduos que poderiam ser considerados esquerdistas. É
apenas uma rudimentar indicação de uma tendência ge-
ral do esquerdismo.

Sobressocialização

24. Os psicólogos usam o termo “socialização” para


designar o processo pelo qual as crianças14 são instruídas
a pensar e atuar do modo que a sociedade exige. Diz-
-se que uma pessoa está bem socializada se ela acredita
no código moral de sua sociedade, se ela o obedece e se
adapta bem em ser um elemento funcional dessa socieda-
de. Poderia parecer absurdo dizer-se que muitos esquer-
distas estão sobressocializados, posto que os esquerdistas
são tomados comumente por rebeldes. No entanto, essa
ideia pode ser defendida. Muitos esquerdistas não são tão
rebeldes como parecem.

14 “(...) O processo de socialização não se limita à infância. Mas


acredito que a maior parte da socialização se produz na infância
(...).” [Fragmento de carta de Ted Kaczynski a Último Reducto —
de 19/01/2010 (original em inglês) — N.T.]

41
25. O código moral de nossa sociedade é tão exi-
gente que ninguém pode pensar, sentir e atuar de um
modo completamente moral. Por exemplo, é para su-
pormos que nunca devemos odiar os outros; entretan-
to, quase todo mundo odeia alguém em algum mo-
mento de sua vida, quer o reconheça ou não. Algumas
pessoas encontram-se tão fortemente socializadas que
a exigência de pensar, sentir e atuar moralmente torna-
-se para eles uma carga pesada. Assim, têm de se autoi-
ludir continuamente acerca dos verdadeiros motivos
de seus atos e buscar explicações morais para senti-
mentos e atos que, na realidade, não têm uma origem
moral — para evitar, dessa maneira, os sentimentos de
culpa. Usamos o termo “sobressocializada” para des-
crever uma pessoa dessas.[NOTA 2]

26. A sobressocialização pode provocar baixa au-


toestima, sensação de impotência, derrotismo, senti-
mentos de culpa, etc. Um dos meios mais importan-
tes pelos quais nossa sociedade socializa as crianças é
fazendo-as se sentirem envergonhadas quando o seu
modo de se comportar ou de falar é contrário às ex-
pectativas da sociedade. Se isso é feito excessivamen-
te a uma criança, ou se a criança, em particular, é
especialmente suscetível quanto a esses sentimentos,
acabará se sentindo envergonhada de SI MESMA. E
ainda algo mais: o pensamento e a conduta da pes-
soa sobressocializada encontram-se mais restringidos
pelas expectativas da sociedade que os da pessoa leve-
mente socializada. As pessoas, em sua maioria, com-

42
portam-se mal em muitas ocasiões. Mentem, come-
tem pequenos furtos, infringem as normas de tráfego,
ficam vagabundeando, odeiam alguém, praguejam ou
jogam sujo para obter vantagem sobre outras pessoas.
A pessoa sobressocializada não pode fazer coisas desse
tipo, ou, se o fizer, isso lhe provoca uma sensação de
vergonha e desprezo por si mesma. A pessoa sobres-
socializada não pode, sem sentir-se culpada, sequer
experimentar pensamentos ou sentimentos que sejam
contrários à moralidade vigente; não pode ter pen-
samentos “impuros”. E a socialização não é somente
uma questão de moralidade; somos socializados para
assumir muitas normas de comportamento que não
pertencem ao domínio da moralidade. Assim é que
a pessoa sobressocializada se encontra presa por gri-
lhões psicológicos, e passa pela vida sem se desviar da
trilha que a sociedade lhe determinou. Isso provoca,
em muitas das pessoas sobressocializadas, uma sensa-
ção de restrição e impotência que pode se tornar uma
pesada carga. Consideramos, pois, que a sobressocia-
lização é uma das mais graves crueldades que os seres
humanos infligem uns aos outros.

27. Afirmamos que um segmento muito importante


e influente do esquerdismo moderno está sobressocializa-
do, e que sua sobressocialização tem grande importância
na determinação da direção do esquerdismo moderno.
Os esquerdistas do tipo sobressocializado costumam ser
intelectuais ou membros da classe média alta. Há de se
notar que os intelectuais universitários[NOTA 3] constituem

43
o segmento mais fortemente socializado de nossa socie-
dade, e também o mais orientado à esquerda.

28. O esquerdista do tipo sobressocializado, rebe-


lando-se, pretende despojar-se de seus grilhões psicoló-
gicos e afirmar sua autonomia. Mas, normalmente, não
é suficientemente forte para rebelar-se contra os valores
mais básicos da sociedade. De maneira geral, as metas
dos esquerdistas da atualidade NÃO entram em conflito
com a moralidade vigente. Ao contrário, a esquerda toma
um princípio moral estabelecido, adota-o como próprio
e, daí então, acusa a sociedade convencional de violar tal
princípio. Exemplos: igualdade racial, igualdade de sexos,
auxílio às pessoas pobres, paz em oposição à guerra, não
violência em geral, liberdade de expressão, rejeição dos
maus-tratos aos animais. Algo mais fundamental ainda:
o dever dos indivíduos de servir à sociedade e o dever
da sociedade de cuidar dos indivíduos. Todos esses va-
lores estão profundamente arraigados em nossa socieda-
de (ou, ao menos, em suas classes média e alta[NOTA 4]),
desde há muito tempo. Esses valores estão explícita ou
implicitamente expressos ou pressupostos na maior par-
te das matérias que nos apresentam os grandes meios de
comunicação ou o sistema educacional. Os esquerdistas,
especialmente os do tipo sobressocializado, normalmente
não se rebelam contra tais princípios, porém, justificam
sua hostilidade para com a sociedade afirmando (não sem
certo grau de razão) que esta não está funcionando base-
ada nesses princípios.

44
29. Tomemos agora um exemplo ilustrativo do
modo pelo qual o esquerdista sobressocializado demons-
tra como é real o seu apego pelas atitudes convencionais
de nossa sociedade — enquanto pretende estar rebelan-
do-se contra ela. Muitos esquerdistas pressionam para
que ocorram ações afirmativas, para que se admita gente
negra em postos de trabalho de alto prestígio, para que se
melhore a educação nas escolas dos negros e para que se
destinem mais verbas para essas escolas — considerando
como uma desgraça social o modo de vida das “classes
baixas” negras. Querem integrar o negro ao sistema, fazer
dele um homem de negócios, um advogado, um cien-
tista — à imagem e semelhança dos brancos de classe
média alta. Os esquerdistas replicarão que a última coisa
que desejam é converter o negro numa cópia do bran-
co; que desejam, em lugar disso, preservar a cultura afro-
-americana. Mas em que consiste essa tal preservação da
cultura afro-americana? Dificilmente poderá se consistir
em algo mais que comer da comida feita no estilo dos
negros, escutar música negra, vestir roupa no estilo dos
negros e ir a uma igreja de negros ou a uma mesquita. Em
outras palavras, essa cultura pode se expressar por si mes-
ma somente em questões superficiais. Em todos os as-
pectos ESSENCIAIS, a maioria dos esquerdistas do tipo
sobressocializado quer que o negro se ajuste aos ideais
da classe média branca. Quer que se forme em carreiras
técnicas, que se transforme em um executivo ou em um
cientista, que passe sua vida esforçando-se por aumen-
tar seu status — para provar que os negros são tão bons
quanto os brancos. Quer que os pais negros se tornem

45
“responsáveis”, quer que as gangues de negros deixem de
ser violentas, etc. Mas esses são, precisamente, os valores
do sistema tecnoindustrial. Ao sistema, é indiferente o
tipo de música que as pessoas escutem, ou a roupa que
vistam, ou a religião em que creiam, desde que assistam
às suas aulas na escola, tenham um trabalho respeitável,
se esforcem por atingir um status mais alto, sejam pais
“responsáveis”, não sejam violentos e coisas desse tipo.
De fato, por mais que se tente negá-lo, o esquerdista so-
bressocializado quer integrar o negro ao sistema e fazê-lo
adotar os seus valores.

30. Certamente, não estamos dizendo que os es-


querdistas, inclusive os do tipo sobressocializado,
NUNCA se rebelem contra os valores de nossa socieda-
de. Está claro que, às vezes, o fazem. Alguns esquerdis-
tas sobressocializados têm chegado inclusive a rebelar-se
contra um dos princípios mais importantes da socieda-
de moderna, defendendo o uso da violência física. Pela
sua condição, a violência é, para eles, uma forma de
“libertação”. Em outras palavras, defendendo a violên-
cia, eles transgridem as restrições psicológicas que lhes
foram inculcadas. Dado que estão sobressocializados,
essas restrições têm sido mais constritivas para eles que
para os demais; daí que necessitem liberar-se delas. Mas,
normalmente, justificam sua rebeldia baseando-se nos
valores predominantes. E se eles se envolvem em atos
violentos, dizem fazê-lo para combater o racismo ou
coisas semelhantes.

46
31. Somos conscientes de que podem ser feitas mui-
tas objeções a esse rudimentar esboço da psicologia es-
querdista. A situação real é mais complexa, e propor-se
a dela fazer uma descrição completa pressuporia a escrita
de vários volumes, e isso no caso de que todos os dados
necessários estivessem disponíveis. Somente pretendemos
haver assinalado muito por alto as duas tendências mais
importantes na psicologia do esquerdismo moderno.

32. Os problemas do esquerdista são indicativos


dos problemas de nossa sociedade em seu conjunto. A
baixa autoestima, as tendências depressivas e o derrotis-
mo não são apenas coisas da esquerda. Ainda que sejam
especialmente evidentes na esquerda, estão amplamente
espalhadas por nossa sociedade. E a sociedade atual trata
de socializar-nos num grau muito maior que qualquer
sociedade do passado. Os especialistas nos ditam inclusi-
ve como comer, como fazer exercícios físicos, como fazer
amor, como criar nossos filhos, etc.

O Processo de Poder

33. Os seres humanos têm a necessidade (prova-


velmente de origem biológica) de experimentar o que
chamaremos de processo de poder. Isso está estreitamen-
te relacionado com a necessidade de poder (a qual é
amplamente reconhecida), porém não é exatamente a
mesma coisa. Do processo de poder constam quatro
elementos. Aos três mais claramente definidos vamos

47
chamar de meta, esforço e consecução da meta. (Todo
mundo necessita ter metas cuja consecução requeira es-
forço e necessita ter êxito em atingir ao menos algumas
de suas metas.) O quarto elemento é mais difícil de de-
finir, e talvez não seja necessário para todo mundo. Nós
o chamaremos de autonomia e vamos comentá-lo mais
adiante (parágrafos 42-44).

34. Considere-se o caso hipotético de uma pes-


soa que pudesse ter tudo o que quisesse quando o
desejasse, tão somente. Essa pessoa teria poder, en-
tretanto, acabaria por desenvolver sérios problemas
psicológicos. A princípio, tudo para ela estaria muito
bem; porém, pouco a pouco e cada vez mais, ela se
aborreceria e desmoralizaria. Finalmente, ela poderia
acabar clinicamente deprimida. A história tem nos
mostrado que as aristocracias ociosas tendem a torna-
rem-se decadentes. Isso não se tem sucedido às aristo-
cracias guerreiras, que tiveram de lutar para manter o
seu poder. As aristocracias ociosas e acomodadas, que
não tiveram a necessidade de esforçar-se, acabaram
normalmente entediadas, convertendo-se em hedo-
nistas e desmoralizando-se, ainda que tenham tido o
poder. Isso demonstra que o poder não é suficiente.
É necessário ter as metas para as quais se dirigir o
exercício do poder.

35. Todo mundo tem metas — mesmo que tais me-


tas tratem apenas de cobrir as necessidades físicas vitais:
o alimento, a água, as vestimentas e refúgios que o clima

48
faça necessários. Mas os aristocratas ociosos obtiveram
tais coisas sem esforço. Daí, então, que tenham ficado
entediados e desmoralizados.

36. A não consecução de metas importantes tem


como resultado a morte, se as metas são necessidades fí-
sicas, e a frustração, se a não consecução de tais metas é
compatível com a sobrevivência. O fracasso continuado
na consecução de metas ao longo da vida desemboca em
derrotismo, baixa autoestima ou depressão.

37. Desse modo, para evitar sérios problemas psico-


lógicos, um ser humano necessita metas cuja consecução
requeira esforço, e terá de conquistar, quanto à consecu-
ção de suas metas, uma quantidade razoável de êxitos.

Atividades Substitutivas

38. Mas nem todo aristocrata ocioso terá acabado


por se aborrecer e desmoralizar. Por exemplo, o Impera-
dor Hirohito, em vez de se afundar num hedonismo de-
cadente, dedicou-se à biologia marinha, campo em que
se tornou notável. Quando as pessoas não têm de esfor-
çar-se para satisfazer suas necessidades físicas, frequente-
mente impõem metas artificiais a si mesmas. Em muitos
casos, então, perseguem essas metas com a mesma ener-
gia e o envolvimento emocional que, de outra maneira,
teriam de mostrar ao tratar de satisfazer suas necessidades
físicas. Dessa maneira, os aristocratas do Império Roma-

49
no tinham suas pretensões literárias; muitos aristocratas
europeus, há alguns séculos atrás, investiam uma enor-
me quantidade de tempo e energia em caçar, ainda que,
certamente, não precisassem da carne; outros aristocratas
têm competido por status através de elaboradas exibições
de riqueza; e uns poucos aristocratas, como Hirohito,
voltaram-se para a ciência.

39. Usamos a expressão “atividade substitutiva” para


designar a atividade dirigida à consecução de uma meta ar-
tificial que as pessoas adotam apenas para ter um objetivo
o qual perseguir, ou, digamos assim, apenas pela “satisfa-
ção” que obtenham ao perseguir esse objetivo. Tomemos,
então, uma regra geral para a identificação das atividades
substitutivas. Dada uma pessoa que dedica muito tempo e
energia para tratar de alcançar uma meta X, perguntemos:
se tal pessoa tivesse de dedicar a maior parte de seu tem-
po e energia para satisfazer suas necessidades biológicas,
e se esse esforço lhe exigisse usar suas faculdades físicas e
mentais de uma forma variada e interessante, ela se sentiria
seriamente insatisfeita por não alcançar a meta X? Se a res-
posta for negativa, então a perseguição da meta X por parte
dessa pessoa é uma atividade substitutiva. Os estudos de
Hirohito sobre biologia marinha constituíam claramente
uma atividade substitutiva, já que não resta dúvida de que,
se Hirohito tivesse de passar seu tempo trabalhando em
tarefas não científicas que lhe interessassem por garantir a
obtenção do necessário para viver, ele não teria se sentido
insatisfeito por não saber tudo acerca da anatomia e dos
ciclos vitais dos animais marinhos. Por outro lado, a bus-

50
ca do sexo e do amor (por exemplo) não é uma atividade
substitutiva, já que a maioria das pessoas, inclusive se sua
existência fosse satisfatória em todos os demais aspectos,
sentir-se-ia insatisfeita se passasse suas vidas sem jamais ter
qualquer relação com alguém do sexo oposto. (No entan-
to, tratar de se ter uma quantidade excessiva de relações
sexuais, além do que alguém realmente necessita, pode ser
uma atividade substitutiva.)

40. Na moderna sociedade industrial é necessário


somente um esforço muito pequeno para se ter satisfeitas
as próprias necessidades.15 Basta, para isso, que se tenha

15 Essa é uma tendência geral que parece vir acompanhando o


processo mundial de industrialização. Para uma ilustração disso,
simbólica apenas, porém bastante significativa, podemos ver o Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH) — referenciado nos índices de
riqueza, educação e expectativa média de vida da população e des-
crito como muito alto, alto, médio ou baixo —, estimado em 2014
para os cinco países mais populosos do mundo:
1º. China — IDH de 0,719 (alto);
2º. Índia — IDH de 0,586 (médio);
3º. EUA — IDH de 0,914 (muito alto);
4º. Indonésia — IDH de 0,684 (médio);
5º. Brasil — IDH de 0,744 (alto).
São países já industrializados, cujo IDH é descrito como desde
“em desenvolvimento” até “desenvolvido”, e que somam juntos mais
de 45% da população mundial. Apesar dos seus pesares — China,
Índia e Indonésia passam por um acelerado desenvolvimento tecno-
lógico e econômico, contudo, seu “padrão de vida” e sua “qualidade
de vida” vêm se desenvolvendo mais lentamente —, só esses países
já correspondem a quase a metade de uma humanidade que, hoje

51
recebido instrução para a aquisição de alguma pequena
destreza técnica e, desde então, que se chegue ao traba-
lho no seu horário e aí se realize o modestíssimo esforço
que requer a conservação desse emprego. Os únicos re-
quisitos são um grau de inteligência mediano e, acima de
tudo, a simples OBEDIÊNCIA. Se alguém os cumpre,
a sociedade cuida dele desde o berço até o túmulo. (Há,
sim, uma classe muito baixa que não pode satisfazer facil-
mente suas necessidades físicas; no entanto, não estamos
aqui falando de grupos minoritários, e sim da maioria da
população da sociedade.) Assim, não é de se surpreender
que na sociedade moderna as atividades substitutivas se-
jam tão abundantes. Tais atividades incluem o trabalho
científico, as conquistas esportivas, o trabalho humanitá-
rio, a criação artística e literária, a ascensão profissional, o
acúmulo de dinheiro e a aquisição de bens materiais para
muito além do ponto da cobertura de qualquer satisfação
física adicional — e o ativismo social, quando centrado
em assuntos que não sejam pessoalmente importantes
para o ativista, como no caso do ativismo dos brancos
que trabalham em favor dos direitos das minorias não
brancas. Essas nem sempre são atividades substitutivas
PURAS, já que, para muita gente, podem vir em parte
motivadas por outras necessidades diferentes daquela de
se ter uma meta a qual perseguir. O trabalho científico
pode estar parcialmente motivado pela busca de prestígio,
a criação artística por uma necessidade de expressão dos
sentimentos, o ativismo social militante pela hostilidade.

em dia, vive em condições comumente consideradas desde aceitáveis


(IDH médio) até bastante satisfatórias (IDH muito alto). [N.T.]

52
Contudo, para a maioria das pessoas que as levam a cabo,
essas atividades são — e em grande medida — atividades
substitutivas. Por exemplo, a maioria dos cientistas pro-
vavelmente concordará que a “satisfação” que alcançam
com seu trabalho é mais importante que o dinheiro e o
prestígio que este lhes proporciona.

41. Para muitas, ou mesmo para a maioria das


pessoas, as atividades substitutivas são menos satisfa-
tórias que a persecução de metas autênticas (vale dizer,
de metas que as pessoas alcançariam inclusive se sua
necessidade de realizar o processo de poder estivesse já
satisfeita). Um indício disso é o fato de que, em muitos
ou na maioria dos casos, as pessoas que estão profun-
damente envolvidas em atividades substitutivas nunca
ficam satisfeitas, nunca ficam tranquilas. Assim, aque-
le que ambiciona ganhar dinheiro se esforça, constan-
temente, por obter mais e mais riqueza. O cientista,
logo que resolve um problema, já se pretende a resol-
ver o seguinte. O atleta corredor de longas distâncias,
constantemente, se obriga a correr cada vez mais longe
e mais rápido. Muita gente que realiza atividades subs-
titutivas diz que obtém muito mais satisfação dessas
atividades que obtém da “mundana” tarefa de satisfa-
zer suas necessidades biológicas; contudo, isso se deve
a que, em nossa sociedade, o esforço requerido para
satisfazer as necessidades biológicas tem sido reduzido
a algo trivial. Algo mais importante ainda: em nossa
sociedade, as pessoas não satisfazem AUTONOMA-
MENTE suas necessidades biológicas, e sim, porém,

53
funcionando como peças de uma enorme maquinaria
social. Em contrapartida, as pessoas geralmente con-
tam com um elevado grau de autonomia quando reali-
zam suas atividades substitutivas.

Autonomia

42. A autonomia é uma parte do processo de poder


que pode não ser necessária para todos os indivíduos.
Mas a maioria das pessoas necessita de certo grau de
autonomia ao esforçar-se para alcançar suas metas. Seus
esforços devem ser o resultado de sua própria iniciativa
e devem estar sob sua própria direção e controle. Ainda
assim, a maioria das pessoas não tem a necessidade de
exercer tal iniciativa, direção e controle de modo ex-
clusivamente individual. Normalmente, para elas, lhes
é suficiente atuar como membros de um PEQUENO
grupo. Desse modo, se meia dúzia de indivíduos esta-
belece uma meta comum, deliberando entre si, e realiza
com êxito um esforço conjunto para atingir essa meta,
sua necessidade de levar a cabo o processo de poder se
encontrará satisfeita. Mas se trabalha seguindo ordens
rígidas, ditadas desde cima, que não lhe deixem espa-
ço para a decisão e a iniciativa autônomas, então sua
necessidade de experimentar o processo de poder16 não
16 A partir deste parágrafo 42 — e desde o texto original —,
quando se faz menção a esta “necessidade de poder”, em muitos ca-
sos, contudo não em todos, se faz em referência mais a uma “neces-
sidade de experimentar o processo de poder” — ou a ambas essas

54
será satisfeita. O mesmo se sucederá se as decisões, sen-
do ainda tomadas de maneira coletiva, forem, contudo,
tomadas por um grupo tão grande que o papel desem-
penhado por um ou outro indivíduo, ao se tomar uma
decisão, seja insignificante.[NOTA 5]

43. Certo é que alguns indivíduos parecem ter pou-


ca necessidade de autonomia. Ou a sua necessidade de
poder é débil, ou então a satisfazem identificando-se com
alguma organização poderosa a qual pertençam. E tam-
bém existem indivíduos irracionais, semelhantes a ani-
mais, que parecem estar satisfeitos com um sentimento
de poder puramente físico (o bom soldado combatente,
que obtém sua sensação de poder desenvolvendo técnicas
de luta e que fica bastante contente em pô-las em prática,
obedecendo cegamente a seus superiores).

44. Mas a maioria das pessoas — tendo uma meta,


fazendo um esforço AUTÔNOMO e alcançando essa
meta — adquire autoestima, autoconfiança e a sensa-
ção de poder mediante o processo de poder. Quando
alguém não tem a oportunidade adequada para levar
a cabo o processo de poder, as consequências são (de-
pendendo de cada indivíduo e do modo pelo qual o

necessidades ao mesmo tempo. (Informação prestada a Último Re-


ducto por Ted Kaczynski.) Contudo, pelos mesmos motivos assina-
lados no terceiro parágrafo da nota de rodapé número 12, Último
Reducto traduziu literalmente, para o espanhol, as palavras do texto
original — procedimento esse que foi reproduzido nesta versão em
português. [N.T.]

55
processo de poder seja perturbado) o tédio, a desmora-
lização, baixa autoestima, sentimentos de inferiorida-
de, derrotismo, depressão, ansiedade, sentimentos de
culpa, frustração, hostilidade, maus-tratos ao cônjuge
e aos filhos, hedonismo insaciável, comportamento
sexual anormal, transtornos do sono, transtornos da
alimentação, etc.[NOTA 6]

Causas dos Problemas Sociais

45. Quaisquer dos sintomas antes elencados podem


ocorrer em qualquer sociedade, porém estão presentes na
sociedade moderna numa escala massiva. Não somos os
primeiros a dizer que, hoje em dia, o mundo parece estar
a enlouquecer. Isso não é o normal nas sociedades hu-
manas. Há boas razões para se acreditar que o homem
primitivo sofria menos estresse e frustração e que estava
mais satisfeito com o seu modo de vida que o homem
moderno. É certo que nem tudo era doçura e suavidade
nas sociedades primitivas. Os maus-tratos às mulheres
eram comuns entre os aborígenes australianos, a transse-
xualidade era bastante comum entre as tribos indígenas
americanas. Mas parece que, EM TERMOS GERAIS, o
tipo de problemas que enumeramos no parágrafo ante-
rior era muito menos comum entre os povos primitivos
que o é na sociedade moderna.

46. Nós atribuímos os problemas sociais e psico-


lógicos da sociedade moderna ao fato de tal sociedade

56
cobrar das pessoas que vivam submetidas a condições
radicalmente diferentes daquelas nas quais a espécie hu-
mana evoluiu, e que se comportem de modo a entrar
em conflito com os padrões de comportamento que a
espécie humana desenvolveu enquanto vivia naquelas
condições originais. Do que escrevemos até aqui, po-
de-se deduzir claramente que consideramos a falta de
oportunidades para se experimentar apropriadamente o
processo de poder como a mais importante das condi-
ções anormais às quais a sociedade moderna submete
as pessoas. Mas essa condição não é a única. Antes de
começarmos a comentar as perturbações do processo de
poder como causa dos problemas sociais, discutiremos
ainda algumas das outras causas.

47. Entre as condições anormais presentes na so-


ciedade industrial moderna, cabe se destacar a exces-
siva densidade populacional, o isolamento do homem
em relação à Natureza, a desmedida rapidez das mu-
danças sociais e a decomposição de comunidades na-
turais de pequena escala, tais como a grande família, a
aldeia ou a tribo.

48. Sabemos bem que a excessiva aglomeração au-


menta o estresse e a agressão. O grau de aglomeração
existente hoje em dia e o isolamento do homem em rela-
ção à Natureza são consequências do progresso tecnoló-
gico. Todas as sociedades pré-industriais eram predomi-
nantemente rurais. A Revolução Industrial incrementou
enormemente o tamanho das cidades e a proporção da

57
população que nelas vive. Mesmo assim, a tecnologia
agrícola moderna tornou possível que a Terra suporte
uma população muito mais adensada que qualquer ou-
tra das que manteve no passado. (A tecnologia também
agrava os efeitos da alta aglomeração, ao dotar as pessoas
com uma maior capacidade de provocar transtornos. Por
exemplo, com uma grande variedade de aparatos ruido-
sos: aparadores de plantas, rádios, motocicletas, etc. Se
o uso desses aparatos não é restringido, as pessoas que
desejam paz e silêncio acabam frustradas com o ruído.
Se seu uso é restringido, as pessoas que usam os aparatos
acabam frustradas com as normas que regulam esse uso.
Mas se essas máquinas jamais houvessem sido inventadas,
não teria havido qualquer conflito nem haveriam gerado
qualquer frustração.)

49. O mundo natural (que normalmente só se trans-


forma lentamente) oferecia um marco de referência está-
vel para as sociedades primitivas e, consequentemente,
uma sensação de segurança. No mundo moderno, dá-se
o contrário: a sociedade humana domina a Natureza, e
a sociedade moderna transforma-se muito rapidamente,
devido à transformação tecnológica. Por isso, não há um
marco de referência estável.

50. Os conservadores são estúpidos: lamentam-se


pela perda dos valores tradicionais enquanto apoiam de
maneira entusiástica o progresso tecnológico e o cresci-
mento econômico. Parece até nunca lhes ter ocorrido
que não se pode fazer mudanças rápidas e drásticas na

58
tecnologia e na economia de uma sociedade sem causar
também mudanças rápidas em todos os demais aspectos
da sociedade, e que essas mudanças rápidas, inevitavel-
mente, destroem os valores tradicionais.

51. A destruição dos valores tradicionais, em certa


medida, implica a destruição dos vínculos que manti-
veram unidos os grupos sociais tradicionais de pequena
escala. A desintegração dos grupos sociais de pequena
escala também vem sendo provocada pelo fato das cir-
cunstâncias modernas, frequentemente, obrigarem ou
incitarem os indivíduos a mudarem-se para novas loca-
lidades, separando-os de suas comunidades. Ademais,
uma sociedade tecnológica TEM DE debilitar os laços
familiares e as comunidades locais, uma vez que pre-
tenda funcionar com eficácia. Na sociedade moderna, a
lealdade individual tem de estar dirigida, primeiro, ao
sistema, e só secundariamente a uma comunidade de
pequena escala — uma vez que, se as lealdades internas
das comunidades de pequena escala fossem mais fortes
que a lealdade ao sistema, tais comunidades buscariam
seu próprio benefício a expensas do sistema.

52. Vamos supor que um funcionário público ou


um executivo de uma corporação designa seu primo, seu
amigo ou alguém próximo a sua ideologia para que ocupe
um posto, em vez de nomear a pessoa melhor qualificada
para desempenhar esse trabalho. Ele permitiu que a leal-
dade pessoal substituísse sua lealdade ao sistema, e isso
é “nepotismo” ou “discriminação”, e ambas as condutas

59
são consideradas terríveis pecados na sociedade moder-
na. As sociedades em vias de desenvolvimento, que têm
promovido insuficientemente a tarefa de subordinar as
lealdades pessoais ou locais à lealdade ao sistema são,
normalmente, pouco eficientes. (Olhemos, por exemplo,
para a América Latina.) Por isso, uma sociedade indus-
trial avançada só pode tolerar aquelas comunidades de
pequena escala que tiverem sido castradas, domesticadas
e convertidas em ferramentas úteis para o sistema.[NOTA 7]

53. A aglomeração excessiva da população, a rápi-


da transformação e o desaparecimento das comunidades
têm sido amplamente reconhecidas como causas de pro-
blemas sociais. Mas nós não acreditamos que sejam sufi-
cientes para explicar o alcance dos problemas sociais que
se observam hoje em dia.

54. Algumas cidades pré-industriais eram muito


grandes, e estavam muito povoadas; contudo, não parece
que seus habitantes sofressem com problemas psicológi-
cos na mesma medida que o homem moderno. Nos Esta-
dos Unidos, ainda hoje, há zonas rurais pouco povoadas,
e nelas encontramos os mesmos problemas que nas zonas
urbanas, apesar desses problemas tenderem ainda a ser
menos graves nas zonas rurais. Assim, pois, a aglomera-
ção populacional não parece ser o fator decisivo.

55. Nos Estados Unidos, na fronteira de expansão


para o extremo Oeste, durante o século XIX, o desloca-
mento da população provavelmente decompôs grandes

60
famílias e grupos sociais de pequena escala ao menos no
mesmo grau em que se decompõem hoje em dia. De
fato, naquela época, muitos núcleos familiares, volun-
tariamente, decidiam viver num tal grau de isolamento,
sem vizinhos por muitos quilômetros ao redor, que já
não pertenciam a qualquer comunidade em absoluto, e,
apesar de tudo, não parece que isso viesse a resultar no
desenvolvimento de problemas psicológicos.

56. Além disso, a transformação da sociedade no ex-


tremo Oeste estadunidense, no século XIX, foi muito rá-
pida e profunda. Um homem podia nascer e criar-se em
uma cabana de troncos, fora do alcance da lei e da ordem,
alimentando-se em grande medida com carne de animais
selvagens; e antes de alcançar a velhice, podia mesmo che-
gar a ter um emprego comum e a viver em uma comu-
nidade ordenada, com instituições voltadas para o eficaz
cumprimento da lei. Essa era uma transformação mais
profunda que aquelas que normalmente se produzem na
vida de um indivíduo moderno, e que, mesmo assim, não
aparenta ter acarretado problemas psicológicos. De fato,
a sociedade estadunidense do século XIX mostrava um
tom otimista e de confiança em si mesma, bastante dis-
tanciado do tom da sociedade atual.[NOTA 8]

57. Consideramos, pois, que a diferença está na


circunstância de o homem moderno ter a sensação (em
grande medida justificada) da transformação lhe ser IM-
POSTA, enquanto o habitante do extremo Oeste dos
Estados Unidos tinha a sensação (também justificada,

61
em grande medida) de que era ele mesmo, por vontade
própria, quem criava as mudanças que experimentava em
sua vida. Esse era o caso, por exemplo, de um colono
assentado em uma parcela de terreno escolhida por ele
mesmo e transformada em uma fazenda através de seu
próprio esforço. Naqueles dias, um condado17, em sua
totalidade, podia contar com apenas algumas centenas de
habitantes, e era uma entidade muito mais autônoma e
isolada do que é, hoje em dia, um condado moderno. Por
conseguinte, esse fazendeiro pioneiro participava, como
membro de um grupo relativamente pequeno, da criação
de uma nova e ordenada comunidade. Poderíamos nos
perguntar, e o faríamos com toda razão, se a criação dessa
comunidade foi, realmente, uma melhoria — contudo,
de todo modo, isso satisfazia a necessidade do colono de
experimentar o processo de poder.

58. Seria possível dar outros exemplos de sociedades


nas quais se produziram mudanças rápidas e/ou ausência
de laços comunitários estreitos sem que ocorresse o tipo
de massivas aberrações do comportamento que observa-
mos na sociedade industrial atual. Nós afirmamos que a
causa principal dos problemas sociais e psicológicos na
sociedade moderna é o fato das pessoas não terem sufi-
cientes oportunidades de experimentar o processo de po-
der de um modo normal. Não queremos dar a entender
que a sociedade moderna seja a única na qual se encon-

17 Nos Estados Unidos, “condado” é a subdivisão administrativa


da maioria dos Estados federados; cada “condado” é formado por
uma ou mais cidades e sua área rural. [N.T.]

62
trou perturbado o processo de poder. Provavelmente, a
maior parte ou mesmo a totalidade das sociedades civi-
lizadas tem interferido no processo de poder em maior
ou menor grau. Mas, na sociedade industrial moderna,
esse problema tornou-se especialmente grave. O esquer-
dismo, ao menos em sua forma recente (desde meados do
século XX), é em parte um sintoma dessa perturbação do
processo de poder.

Perturbações do Processo de Poder


na Sociedade Moderna

59. Dividiremos as necessidades humanas em três


grupos: (1) aquelas necessidades que podem ser satis-
feitas com um esforço muito pequeno; (2) aquelas que,
podendo ser satisfeitas, o são, porém, somente ao custo
da realização de um importante esforço; (3) aquelas que
não podem ser adequadamente satisfeitas, seja qual for o
esforço que se realize. O processo de poder é o processo
que consiste na satisfação das necessidades do segundo
tipo. Quanto mais as necessidades se situarem no terceiro
grupo, maiores serão a frustração e a raiva, e, finalmente,
o derrotismo, a depressão, etc.

60. Na sociedade industrial moderna, as necessi-


dades humanas naturais tendem a ser deslocadas para o
primeiro e terceiro grupos — e a tendência do segundo
grupo é de ser cada vez mais constituído pelas necessida-
des criadas nessa sociedade.

63
61. Em sociedades primitivas, o atendimento às
necessidades físicas ficaria, geralmente, dentro do grupo
2: elas poderiam ser satisfeitas, porém somente ao custo
de se realizar um esforço importante. Mas a sociedade
moderna tende a garantir a satisfação das necessidades
físicas para todo mundo[NOTA 9] em troca de um esforço
muito pequeno; daí que as tentativas de se atender a essas
necessidades as tenham deslocado para o grupo 1. (Pode
haver desacordo sobre se o esforço necessário para alguém
se manter em um emprego é “pequeno”; porém, normal-
mente, em empregos de um nível baixo ou médio, o
único esforço requerido é meramente a OBEDIÊNCIA.
Permanecer sentado ou em pé onde lhe tenham dito que
permanecesse sentado ou em pé, e fazer o que lhe disse-
ram para fazer do modo como lhe disseram para fazer.
Raras vezes alguém teria de se esforçar seriamente, e, em
qualquer caso, teria bem pouca autonomia ao realizar o
seu trabalho, de modo que a necessidade de experimentar
o processo de poder não seria adequadamente atendida.)

62. Na sociedade moderna, as necessidades so-


ciais — tais como o sexo, o amor e o status — fre-
quentemente permanecem no grupo 2, dependendo
da situação do indivíduo.[NOTA 10] Mas, salvo no caso
das pessoas que têm uma necessidade especialmente
forte de status, o esforço requerido para se resguar-
dar as necessidades sociais é insuficiente para satisfa-
zer adequadamente a necessidade de se experimentar o
processo de poder.

64
63. Assim, certas necessidades artificiais têm sido cria-
das para fazer parte do grupo 2, e, deste modo, satisfazer
a necessidade de se experimentar o processo de poder. A
publicidade e as técnicas de marketing têm sido desenvol-
vidas de tal modo que muita gente sinta a necessidade de
coisas que seus avós nunca desejaram, ou mesmo que nem
sequer imaginaram. É requerido um sério esforço para se
ganhar dinheiro o suficiente para se satisfazer a essas neces-
sidades artificiais, e, por isso, tais necessidades pertencem
ao grupo 2. (Entretanto, vejam-se os parágrafos 80-82.)
O homem moderno tem de satisfazer sua necessidade de
experimentar o processo de poder principalmente através
da persecução de necessidades criadas pela indústria da pu-
blicidade e do marketing,[NOTA 11] assim como através da
realização de atividades substitutivas.

64. Parece mesmo que, para muita gente, talvez para


a maioria das pessoas, essas formas artificiais do proces-
so de poder são insuficientes. Um tema que aparece re-
petidamente nos escritos dos críticos sociais da segunda
metade século XX é a sensação de falta de objetivos vitais
que aflige muita gente na sociedade moderna. (Essa fal-
ta de objetivos, frequentemente, é designada com outros
nomes, tais como “anomia” ou como “vazio da classe mé-
dia”.) Sugerimos que a assim chamada “crise de identida-
de” é, na realidade, uma busca pela sensação de se ter um
propósito. Nesses casos, a pessoa geralmente se dedica à
realização de uma atividade substitutiva que seja de seu
agrado. É possível que o existencialismo, em uma grande
medida, seja uma resposta a essa falta de objetivos impor-

65
tantes da vida moderna.[NOTA 12] Algo bem amplamente
espalhado na sociedade moderna é a busca pela “autorre-
alização”. Mas pensamos que, para a maioria das pessoas,
uma atividade cujo objetivo principal seja a “realização
pessoal” (ou seja, uma atividade substitutiva) não pro-
duzirá uma satisfação completa. Dito de outra maneira,
não satisfaz plenamente a necessidade de se experimen-
tar o processo de poder. (Veja-se o parágrafo 41.) Essa
necessidade só pode ser completamente satisfeita com a
realização de atividades voltadas à conquista de uma meta
externa à própria atividade, como as necessidades físicas,
o sexo, o amor, o status, a vingança, etc.

65. E algo mais, ainda: quando as metas têm de


ser perseguidas em se ganhando dinheiro, subindo na
hierarquia social ou funcionando de algum outro modo
como peças do sistema, a maioria das pessoas não é ca-
paz de perseguir suas metas AUTONOMAMENTE.
Os trabalhadores, em sua maioria, são empregados de
alguma outra pessoa e, como já assinalamos no parágra-
fo 61, devem passar suas vidas fazendo o que lhes digam
que tenham de fazer, do modo como lhes digam que
tenham de fazê-lo. Inclusive a maioria daqueles que te-
nham seu próprio negócio e trabalhem para si mesmos
têm somente uma autonomia limitada. Uma queixa tí-
pica dos donos de pequenos negócios e dos empresários
é que suas mãos estão atadas pela excessiva regulação
que o governo exerce sobre suas atividades empresariais.
Algumas dessas regulações, sem dúvida, são desneces-
sárias, e, no entanto, a maioria das regulações gover-

66
namentais é parte essencial e inevitável de nossa extre-
mamente complexa sociedade. Uma grande quantidade
dos pequenos negócios, na atualidade, opera como fran-
quias. Há uns poucos anos, apareceu publicado no Wall
Street Journal que muitas das companhias que outorgam
as franquias exigem que os aspirantes à obtenção destas
franquias realizem um teste de personalidade formula-
do para EXCLUIR aqueles que mostrem criatividade e
iniciativa, já que essa gente não é suficientemente dócil
para funcionar seguindo obedientemente o sistema de
franquia. Isso exclui dos pequenos negócios muitas das
pessoas que mais necessitam de autonomia.

66. Hoje em dia, as pessoas vivem mais pelo que o


sistema faz POR elas ou PARA elas do que pelo que elas fa-
zem por si mesmas. E o que fazem por si mesmas, o fazem
cada vez mais seguindo os caminhos estabelecidos pelo sis-
tema. As únicas oportunidades tendem a ser aquelas que
o sistema oferece, sendo que tais oportunidades devem ser
aproveitadas seguindo-se suas regras e regulações[NOTA 13]
— e aplicando-se técnicas prescritas por especialistas, se se
quiser ter alguma possibilidade de êxito.

67. Assim é que o processo de poder encontra-se


perturbado em nossa sociedade, devido à carência de
metas autênticas e da falta de autonomia nas tentati-
vas de se alcançar as metas. Mas encontra-se impedido
também pelas necessidades que fazem parte do grupo
3: as necessidades que não são adequadamente satisfei-
tas, apesar do quanto haja de esforço em tentar-se isso.

67
Uma dessas necessidades é a de segurança. Nossas vidas
dependem de decisões tomadas por outras pessoas; não
temos controle sobre essas decisões e normalmente nem
sequer conhecemos aqueles que as tomam. (“Vivemos
num mundo em que relativamente poucas pessoas —
talvez umas 500 ou 1000 — tomam as decisões impor-
tantes.” Philip B. Heymann, da Faculdade de Direito de
Harvard; citado por Anthony Lewis — New York Times
de 21 de abril de 1995.) Nossas vidas dependem das
normas de segurança de uma central nuclear serem cor-
retamente cumpridas; de qual quantidade de pesticida
se permita que apresentem os alimentos que comemos
ou quanta poluição o ar que respiramos; do quão hábil
(ou incompetente) seja nosso médico; perder ou conse-
guir um emprego pode depender de decisões tomadas
pelos economistas do governo ou pelos executivos das
grandes empresas, etc. A maioria dos indivíduos tem
apenas uma capacidade muito limitada de se proteger a
si mesma contra essas ameaças. Dessa maneira, a busca
de segurança da parte dos indivíduos vê-se frustrada, o
que lhe provoca uma sensação de impotência.

68. Poderia objetar-se que, como sua menor expec-


tativa de vida demonstraria, o homem primitivo estava
fisicamente menos seguro que o homem moderno — e
que, portanto, o homem moderno sofreria menos, e não
mais insegurança do que tem sido normal para os seres
humanos. Mas a segurança psicológica não guarda rela-
ção estrita com a segurança física. O que nos faz SEN-
TIRMOS seguros não é tanto a segurança objetiva como

68
o é a sensação de confiança em nossa capacidade para
cuidarmos de nós mesmos. O homem primitivo, amea-
çado por feras ou pela fome, podia lutar em sua própria
defesa ou deslocar-se em busca de alimento. Ele não ti-
nha a certeza de alcançar êxito nesses intentos, contudo,
de modo algum sentir-se-ia indefeso diante das coisas
que o ameaçavam. O indivíduo moderno, pelo contrá-
rio, é ameaçado por muitas coisas contra as quais está
desamparado: acidentes nucleares, agentes cancerígenos
na comida, contaminação ambiental, guerra, aumento de
impostos, violação de sua vida privada por parte de gran-
des corporações, fenômenos sociais ou econômicos em
grande escala que podem transtornar seu modo de vida.

69. É certo que o homem primitivo era impotente


diante de algumas coisas que o ameaçavam; as enfermida-
des, por exemplo. No entanto, ele podia aceitar, estoica-
mente, o risco da enfermidade. Isso era parte da natureza
das coisas, não era culpa de quem quer que fosse, a não ser
que fosse culpa de algum demônio impessoal e imaginá-
rio.18 Mas o que ameaça o indivíduo moderno tende a ser
uma OBRA HUMANA. Não é consequência do azar, e
sim do que vem IMPOSTO por outras pessoas em cujas
decisões, ele, como indivíduo, é incapaz de influir. Em con-
sequência, sente-se frustrado, humilhado e enraivecido.

18 [Esse argumento certamente é insuficiente,] já que as pes-


soas primitivas muitas vezes culpavam a bruxaria por suas en-
fermidades e desgraças — ou seja, culpavam as ações de outras
pessoas. [Nota de Ted Kaczynski, acrescentada à versão espanhola
(original em inglês).]

69
70. Por conseguinte, tinha o homem primitivo,
em grande medida, a sua segurança em suas próprias
mãos (tanto como indivíduo quanto como membro de
um PEQUENO grupo), enquanto que a segurança do
homem moderno está nas mãos de pessoas ou organiza-
ções que estão demasiadamente afastadas de si ou que
são demasiado grandes para que ele seja capaz de ne-
las influir pessoalmente. Assim é que a necessidade de
segurança do homem moderno tende a ser deslocada
para os grupos 1 e 3; em alguns aspectos (alimentação,
refúgio, etc.) sua segurança é garantida ao custo apenas
de um esforço muito pequeno, enquanto que em outros
aspectos NÃO PODE ter segurança. (O esboço ante-
rior implica uma grande simplificação da situação real,
porém indica, em largos traços, e de um modo geral,
em que medida as circunstâncias do homem moderno
diferem das do homem primitivo.)

71. As pessoas têm muitas necessidades ou tendên-


cias transitórias que, na vida moderna, são inevitavel-
mente frustradas, e que por isso fazem parte do grupo
3. Alguém pode sentir-se enraivecido, porém a sociedade
não pode permitir qualquer conflito. Em muitas ocasiões
não permite sequer a agressão verbal. Quando alguém vai
a algum lugar, pode ser que tenha pressa, ou pode ser que
lhe agrade ir devagar, porém, geralmente, não terá mais
opção de que mover-se no ritmo definido pelo tráfego e
pela sinalização que o controla. Alguém pode querer fazer
um trabalho de um modo diferente, porém, normalmen-
te, só poderá trabalhar seguindo as regras ditadas por seu

70
patrão. Dessas e também de muitas outras maneiras, pois
o homem moderno fica aprisionado numa rede de regras
e regulações (explícitas ou implícitas) que frustram mui-
tas de suas necessidades ou tendências, e, portanto, inter-
ferem em seu processo de poder. E não se pode prescindir
da maioria dessas regulações, porque são necessárias ao
funcionamento da sociedade industrial.

72. A sociedade moderna, em certos aspectos, é


extremamente permissiva. No que se refere àqueles as-
suntos que sejam irrelevantes para o funcionamento do
sistema, geralmente, nós podemos fazer o que quisermos.
Podemos crer na religião que mais nos agrade (toda vez
e sempre que isso não nos inspire comportamentos que
sejam perigosos para o sistema). Podemos ter relações
com quem nos agradar (toda vez e sempre que pratique-
mos o “sexo seguro”). Podemos fazer qualquer coisa que
nos agrade — toda vez e sempre que isso NÃO SEJA
IMPORTANTE. Mas no que diz respeito aos assuntos
IMPORTANTES, o sistema tende, paulatinamente, a
regular cada vez mais o nosso comportamento.

73. O comportamento é regulado não apenas me-


diante regras explícitas, nem somente da parte do gover-
no. O controle, muitas vezes, é exercido através da coerção
indireta ou mediante a pressão e manipulação psicológi-
cas, e da parte de organizações distintas do governo ou da
parte do sistema em seu conjunto. A maioria das gran-
des organizações usa alguma forma de propaganda[NOTA
14]
para manipular as atitudes ou o comportamento pú-

71
blicos. A propaganda não se limita aos “anúncios” pu-
blicitários e de outros tipos, e, por vezes, nem sequer é
conscientemente planejada como propaganda pela gente
que a realiza. Por exemplo, o conteúdo da programação
televisiva dirigida ao entretenimento é uma poderosa for-
ma de propaganda. Um exemplo de coerção indireta: não
há qualquer lei que determine que tenhamos de ir traba-
lhar diariamente, nem que devamos cumprir as ordens
de nosso patrão. Legalmente, nada nos impede de irmos
a uma zona selvagem para viver como gente primitiva
ou de montar nosso próprio negócio. Mas, na prática,
restam bem poucas zonas selvagens, e na economia há es-
paço somente para um limitado número de proprietários
de pequenos negócios. Por conseguinte, a maioria de nós
só pode sobreviver se trabalhar para outros.

74. Sugerimos que a obsessão que o homem moder-


no mostra pela longevidade — e por manter o vigor e a
atração sexual até uma idade avançada — é um sintoma
decorrente da insatisfação sofrida por não ter como ex-
perimentar adequadamente o processo de poder. A assim
chamada “crise da meia idade”19 é mais um sintoma disso.

19 “Mid-life crisis”, no original. “[Há duas ou três décadas se


escrevia muito acerca da ‘mid-life crisis’.] A ‘mid-life crisis’ é (ou
era) uma crise que, supostamente, experimentavam muitas mulhe-
res ao chegar à menopausa, e muitos homens ao alcançar uma ida-
de entre, aproximadamente, 45 e 50 anos. As mulheres sentiam-se
preocupadas com a perda da capacidade reprodutiva e os homens
com a queda de suas aptidões físicas.” [Ted Kaczynski, em carta a
Último Reducto — de 21/03/2009 (original em inglês) — N.T.]

72
E é um sintoma, igualmente, a falta de interesse em se ter
filhos — algo bastante comum na sociedade moderna,
contudo, quase desconhecido em sociedades primitivas.

75. A vida, nas sociedades primitivas, era uma su-


cessão de etapas. Uma vez que as necessidades e os obje-
tivos de uma etapa fossem satisfeitos, não havia daí uma
particular reticência em se passar à etapa seguinte. Um
homem jovem experimentava o processo de poder con-
vertendo-se em caçador, caçando não por desporto nem
para realizar-se, senão para obter a carne que necessitava
para comer. (Nas mulheres jovens, o processo era mais
complicado, com maior ênfase na influência e posição
sociais — não passaremos aqui por tal discussão.) Ha-
vendo superado essa fase com êxito, o jovem aceitava,
sem problemas, encarregar-se das responsabilidades que
implicava constituir-se uma família. (Em contrário, al-
gumas pessoas modernas adiam indefinidamente terem
filhos, porque estão demasiadamente ocupadas buscando
algum tipo de “realização”. Sugerimos que a realização de
que necessitam é experimentar adequadamente o proces-
so de poder — com metas autênticas, no lugar das metas
artificiais das atividades substitutivas.) Depois, havendo
criado os seus filhos com êxito, experimentando o pro-
cesso de poder ao se esforçar por satisfazer suas necessida-
des físicas, o homem primitivo sentia que sua obra estava
realizada e se preparava para aceitar a velhice (se sobre-
vivia até então) e a morte. Muitas pessoas modernas, ao
contrário, estão antes preocupadas com a perspectiva da
deterioração física e a morte, tal como demonstra a gran-

73
de quantidade de esforço que realizam tratando de man-
ter sua forma física, sua aparência e sua saúde. Afirmamos
que isso se deverá à insatisfação resultante de não have-
rem elas empregado suas capacidades físicas em qualquer
obra prática. Nunca experimentaram o processo de poder
usando seus corpos a sério. Não era o homem primitivo,
que usava seu corpo diariamente para realizar tarefas prá-
ticas, quem temia a deterioração devida à idade; quem a
teme, este sim, é homem moderno, que nunca usa seu
corpo para realizar tarefas de tipo prático — para além de
um caminhar desde seu carro até a porta de sua casa. É
aquele homem cuja necessidade de experimentar o pro-
cesso de poder tiver sido satisfeita ao longo da vida quem
estará mais bem preparado para aceitar o final da mesma.

76. Alguém dirá, em resposta aos argumentos apre-


sentados nesta seção: “A Sociedade encontrará um modo
de dar às pessoas a oportunidade de experimentar o pro-
cesso de poder.” Isso não servirá para aqueles que neces-
sitam de autonomia para experimentar adequadamente
o processo de poder. Para essa gente, o valor de tal opor-
tunidade é anulado pelo próprio fato de ser a sociedade
que a oferece. O que necessitam é encontrar ou criar suas
próprias oportunidades. Enquanto o sistema lhes CON-
CEDESSE as oportunidades, ainda se sentiriam agrilho-
ados. Para conseguir autonomia, devem desvencilhar-se
desses grilhões.

74
Como Algumas Pessoas se Adaptam

77. Nem todo mundo sofre de problemas psicológi-


cos na sociedade tecnoindustrial. Algumas pessoas, inclu-
sive, parecem estar bastante satisfeitas com essa sociedade
tal como ela é. Discutiremos agora algumas das razões
pelas quais as pessoas diferem tanto em suas reações fren-
te à sociedade moderna.

78. Primeiramente, não há dúvidas de que existem


diferenças inatas na intensidade da necessidade de po-
der. Indivíduos nos quais essa tendência é débil podem
ter relativamente pouca necessidade de experimentar o
processo de poder — ou, ao menos, relativamente pouca
necessidade de ter autonomia ao experimentá-lo. Essas
pessoas são de uns tipos dóceis, que teriam vivido felizes
sendo escravos em uma plantação dos antigos estados su-
listas dos Estados Unidos. (Não pretendemos escarnecer
dos escravos das plantações. Em verdade, a maioria dos
escravos NÃO estava satisfeita com sua condição subser-
viente. Escarnecemos das pessoas que ESTÃO SIM satis-
feitas com sua condição subserviente.)

79. Algumas pessoas podem ter alguma tendência


excepcionalmente forte, e, tratando de desenvolvê-la, sa-
tisfazem sua necessidade de experimentar o processo de
poder. Por exemplo, aqueles que têm uma tendência in-
comumente forte de elevar seu status podem passar toda
sua vida tratando de ascender na escala social, sem jamais
aborrecerem-se com esse jogo.

75
80. A suscetibilidade das pessoas a respeito da publi-
cidade e das técnicas de marketing varia muito. Algumas
são tão suscetíveis que mesmo tendo uma grande quan-
tidade de dinheiro, não podem satisfazer seu constante
desejo de adquirir os novos joguinhos deslumbrantes que
a indústria do marketing agita diante de seus olhos. Por
isso, sentem-se sempre financeiramente muito pressiona-
das, mesmo quando sua renda é grande, e os seus desejos
sempre acabam sendo frustrados.

81. Algumas pessoas mostram pouca suscetibilidade


a respeito da publicidade e das técnicas de marketing. Es-
sas são pessoas do tipo que não se interessa por dinheiro.
A aquisição material não lhes serve para experimentar o
processo de poder.

82. As pessoas que manifestam uma suscetibilidade


média a respeito da publicidade e das técnicas de marke-
ting são capazes de ganhar suficiente dinheiro para sa-
tisfazer seu desejo de bens e serviços, contudo, somente
ao custo de realizarem sérios esforços (trabalhando por
horas extras, tendo um segundo emprego, lutando para
conseguir promoções, etc.). Dessa maneira, a aquisição
material lhes serve para satisfazer sua necessidade de ex-
perimentar o processo de poder. Mas isso não implica
que consigam satisfazer completamente tal necessidade.
Pode ser que não tenham autonomia suficiente no pro-
cesso de poder (seu trabalho pode consistir unicamen-
te em obedecer a ordens) e algumas de suas tendências
e necessidades podem acabar frustradas (por exemplo:

76
segurança, agressão). (Reconhecemos ter simplificado
excessivamente isso, nos parágrafos 80-82, uma vez que
tínhamos dado por aceito que o desejo de aquisição ma-
terial é inteiramente um produto da publicidade e da
indústria do marketing. Seguramente, isso não é algo
assim tão simples.)[NOTA 11]

83. Algumas pessoas satisfazem parcialmente sua


necessidade de poder identificando-se com alguma or-
ganização poderosa ou com um movimento de massas.
Um indivíduo com falta de objetivos próprios ou de
poder se une a um movimento ou a uma organiza-
ção, adota suas metas como próprias e, então, trabalha
para alcançar essas metas. Quando algumas das metas
são alcançadas, o indivíduo, mesmo se seus esforços
pessoais tiverem jogado um papel insignificante na
consecução dessas metas, sente-se (graças a sua iden-
tificação com o movimento ou organização) como se
ele mesmo tivesse experimentado o processo de poder.
Esse fenômeno foi aproveitado pelos fascistas, nazistas
e comunistas. Nossa sociedade também faz uso dele,
ainda que de um modo mais sutil. Exemplo: Manuel
Noriega20 tornou-se incômodo para os Estados Unidos

20 Manuel Noriega foi um chefe militar e governante pana-


menho que, segundo informações divulgadas por diversos meios
de comunicação, colaborou com a Central Intelligence Agency
(CIA), e também se envolveu com narcotráfico e lavagem de di-
nheiro; sua atuação e a divulgação dessas informações causaram
tantos e tamanhos incômodos ao governo estadunidense que o
então Presidente George Bush ordenou a invasão do Panamá (em

77
(meta: castigar Noriega). Os Estados Unidos invadi-
ram o Panamá (esforço) e castigaram Noriega (conse-
cução da meta). Os Estados Unidos levaram a cabo o
processo de poder e muitos estadunidenses, devido à
sua identificação com os Estados Unidos, experimen-
taram o processo de poder indiretamente. Daí então
a ampla aprovação pública que obteve, nos Estados
Unidos, a invasão do Panamá; isso deu às pessoas uma
sensação de poder.[NOTA 15] Podemos observar o mes-
mo fenômeno nos exércitos, nas grandes empresas, nos
partidos políticos, nas organizações humanitárias e nos
movimentos religiosos ou ideológicos. Em particular,
os movimentos esquerdistas tendem a atrair pessoas
que buscam satisfazer sua necessidade de poder. Mas,
para a maioria das pessoas, a identificação com uma
grande organização ou com um movimento de massas
não satisfaz plenamente sua necessidade de poder.

84. Outra das maneiras pelas quais as pessoas sa-


tisfazem sua necessidade de experimentar o processo
de poder é mediante atividades substitutivas. Como já
explicamos nos parágrafos 38-40, uma atividade subs-
titutiva é uma atividade direcionada para se alcançar
uma meta artificial, a qual o indivíduo persegue de-
vido à “satisfação” que obtém ao persegui-la, não por
que necessite alcançar a meta em si. Por exemplo, não
há qualquer motivo prático para se desenvolver enor-
mes músculos, bater com um taco numa bolinha bran-

dezembro de 1989) para a captura de Manuel Noriega — ocorri-


da em 03/01/1990. [N.T.]

78
ca até se acertar um buraco ou para se adquirir uma
série completa de selos dos correios. Entretanto, muita
gente em nossa sociedade dedica-se apaixonadamente
ao fisiculturismo, ao golfe ou à coleção de selos. Algu-
mas pessoas “dizem amém” mais que as outras, e, por-
tanto, atribuirão mais facilmente importância a uma
atividade substitutiva simplesmente por que as pessoas
de seu círculo a consideram como algo importante,
ou porque a sociedade lhes disse que isso é algo im-
portante. Essa é a razão pela qual tantas pessoas levam
tão a sério atividades essencialmente triviais, como os
esportes, o bridge21, o xadrez ou certos estudos e in-
vestigações obstrusas, enquanto outras pessoas, mais
lúcidas, nunca consideram tais coisas mais do que as
atividades substitutivas que são, e, em consequência,
nunca lhes atribuem uma importância tal como se,
dessa maneira, fossem satisfazer sua necessidade de ex-
perimentar o processo de poder. Resta apenas assinalar
que, em muitas ocasiões, a forma de uma pessoa ga-
nhar a vida pode ser também uma atividade substitu-
tiva. Não que seja uma atividade substitutiva PURA,
já que, em parte, o motivo dessa atividade é conseguir
a satisfação de suas necessidades físicas e (no caso de
algumas pessoas) alcançar a posição social e os luxos
que a publicidade lhes faz desejar. Mas muita gente
põe em seu trabalho muito mais empenho que o im-
prescindível para se ganhar a quantidade de dinheiro

21 O bridge é um jogo de cartas para quatro jogadores, divididos


em duplas, bastante popular nos Estados Unidos, onde é costume
jogá-lo em encontros sociais. [N.T.]

79
e status que necessitam, e este esforço extra constitui-
-se em uma atividade substitutiva. Esse esforço extra,
junto com a implicação emocional que o acompanha,
é uma das forças mais poderosas que atuam a favor
do contínuo desenvolvimento e aperfeiçoamento do
sistema, com consequências negativas para a liberdade
individual. (Veja-se o parágrafo 131.) Em especial, no
caso dos cientistas e engenheiros mais criativos, o tra-
balho tende a ser, em grande medida, uma atividade
substitutiva. Esse ponto é tão importante que merece
ser discutido à parte, o que faremos num próximo mo-
mento (parágrafos 87-92).

85. Nesta seção, temos explicado como é que, na


sociedade moderna, muita gente satisfaz — em maior ou
menor medida — sua necessidade de experimentar o pro-
cesso de poder. Mas pensamos que, na maioria dos casos,
a necessidade das pessoas de experimentar o processo de
poder não se encontra plenamente satisfeita. Em primeiro
lugar, aquelas pessoas que têm uma necessidade insaciável
de status, aquelas que ficam firmemente “enganchadas”
em uma atividade substitutiva, ou então, aquelas que se
identificam de um modo suficientemente forte com um
movimento ou uma organização, de tal modo a ter satis-
feita a sua necessidade de poder, essas pessoas assim são as
menos comuns. As outras pessoas não ficam plenamente
satisfeitas com a realização de atividades substitutivas ou
mediante a identificação com uma organização. (Vejam-
-se os parágrafos 41 e 64.) Em segundo lugar, o sistema
impõe demasiado controle através da regulação explícita

80
ou através da socialização, o que provoca deficiência na
autonomia e frustração — isso devido à impossibilidade
de se alcançar certas metas e da obrigação que há em se
reprimir muitos impulsos.

86. No entanto, até mesmo se a maior parte das


pessoas, nessa sociedade tecnoindustrial, estivesse com-
pletamente satisfeita, nós (o FC) ainda manteríamos nos-
sa oposição a essa forma de sociedade, posto que (entre
outras razões) consideramos degradante que as pessoas
tenham de satisfazer sua necessidade de experimentar o
processo de poder mediante atividades substitutivas ou
mediante a identificação com uma organização, no lugar
de perseguir metas autênticas.

Os Motivos dos Cientistas

87. A investigação científica e tecnológica fornece


os exemplos mais importantes de atividades substitutivas.
Alguns cientistas afirmam que seus motivos para inves-
tigar são a “curiosidade” ou um desejo de “beneficiar a
humanidade”. Mas é fácil observar que nenhum desses,
para a maioria dos cientistas, é o motivo principal. No
que diz respeito à “curiosidade”, essa aproximação é sim-
plesmente absurda. A maioria dos cientistas trabalha em
problemas tão especializados que nunca seriam objeto de
uma curiosidade normal. Por exemplo, sentem curiosida-
de um astrônomo, um matemático ou um entomologista
pelas propriedades do isopropil-trimetilmetano? Por cer-

81
to, não. Só um químico sente curiosidade por algo assim,
e sente curiosidade por isso somente porque a química
é sua atividade substitutiva. Sente o químico alguma
curiosidade por tratar da apropriada classificação de uma
nova espécie de escaravelho? Não. Isso só interessa ao en-
tomologista, e lhe interessa só por que a entomologia é
sua atividade substitutiva. Se o químico e o entomolo-
gista tivessem de se esforçar seriamente para conseguir
satisfazer suas necessidades físicas, e se, ao realizarem esse
esforço, exercitassem suas capacidades de um modo in-
teressante em tarefas não científicas, consequentemente,
não dariam a menor atenção ao isopropil-trimetilmetano
ou à classificação de escaravelhos. Vamos supor que a fal-
ta de fundos para a educação superior tivesse levado o
químico a tornar-se um agente de seguros — em vez de
um químico. Nesse caso, ele estaria por demais envolvi-
do com assuntos relacionados a seguros, enquanto o iso-
propil-trimetilmetano não lhe preocuparia em absoluto.
Seja como for, não é normal dedicar à satisfação da mera
curiosidade a grande quantidade de tempo e esforço que
os cientistas investem em seu trabalho. A explicação dos
motivos dos cientistas baseada na “curiosidade” resulta
ser, simplesmente, insustentável.

88. A explicação baseada no “bem da humanida-


de” não é muito melhor. Alguns trabalhos científicos
não têm qualquer relação imaginável com o bem-estar
da espécie humana — a maior parte da arqueologia ou
a linguística comparada, por exemplo. Algumas outras
áreas da ciência implicam evidentes perigos. Ainda as-

82
sim, os cientistas que trabalham nessas áreas entregam-
-se ao trabalho com o mesmo entusiasmo daqueles que
desenvolvem novas vacinas ou estudam a contaminação
do ar. Considere-se o caso do Dr. Edward Teller22, o
qual mostrava uma óbvia implicação emocional em re-
lação à promoção das centrais nucleares. Procedia, essa
implicação, do desejo de beneficiar a humanidade? Se
assim tivesse sido, por que o Dr. Teller não se emocio-
nava com outras causas “humanitárias”? Se fora assim
tão humanitário, então, por que colaborou no desen-
volvimento da bomba H? Da mesma forma que com
muitos outros avanços científicos, é mais que discutível
se as centrais nucleares realmente beneficiam a humani-
dade. A eletricidade barata compensa a acumulação de
resíduos e o risco de acidentes? O Dr. Teller via só um
dos lados da questão. Está claro que seu envolvimento
emocional em relação à energia nuclear não procedia de
um desejo de “beneficiar a humanidade”, porém, isto
sim, da satisfação pessoal que obtinha realizando seu
trabalho e vendo como este era posto em prática.

89. E o mesmo vale para os demais cientistas, em


geral. Com raras possíveis exceções, seu motivo princi-

22 Edward Teller foi um físico nuclear, húngaro, naturalizado


estadunidense que contribuiu para a criação da bomba atômica (de
plutônio) — ele participou do “Projeto Manhattan” — e da bomba
termonuclear (de hidrogênio) — ele era chamado de “o pai da bomba
H” —, e também para a criação de um sistema de defesa antimísseis
— o programa militar “Star Wars”, além de ter atuado como defensor
do uso de reatores nucleares na produção de eletricidade. [N.T.]

83
pal não é a curiosidade nem o desejo de beneficiar a hu-
manidade, porém, sim, a necessidade de experimentar o
processo de poder: ter uma meta (um problema cientí-
fico a resolver), fazer um esforço (investigar) e alcançar
a meta (resolver o problema). A ciência é uma atividade
substitutiva por que os cientistas trabalham principal-
mente pela satisfação que têm com a realização de seu
próprio trabalho.

90. Claro está, não é algo tão simples assim. Há


outros motivos que jogam um importante papel para
muitos cientistas. O dinheiro e o status, por exemplo.
Alguns cientistas podem fazer parte daquele tipo de pes-
soas que têm uma necessidade insaciável de status (veja-
-se o parágrafo 79), e isso pode contribuir em grande
parte para sua motivação na realização de seu trabalho.
Não há dúvida de que a maior parte dos cientistas, do
mesmo modo que a população em geral, é suscetível,
em maior ou menor medida, à publicidade e às técnicas
de marketing, e que necessitam de dinheiro para satisfa-
zer seu desejo de bens e serviços. Assim, a ciência não é
uma atividade substitutiva PURA. Mas ela é, em grande
parte, uma atividade substitutiva.

91. A ciência e a tecnologia se constituem, tam-


bém, num poderoso movimento de massas; e muitos
cientistas satisfazem sua necessidade de poder median-
te sua identificação com esse movimento de massas.
(Veja-se o parágrafo 83.)

84
92. Por conseguinte, a ciência continua adiantan-
do-se cegamente, sem respeitar o verdadeiro bem-estar
da espécie humana nem qualquer outra medida, obe-
decendo somente às necessidades psicológicas dos cien-
tistas, assim como às dos gestores governamentais e dos
dirigentes das grandes empresas, que fornecem os fun-
dos para as pesquisas.

A Natureza da Liberdade

93. Iremos mostrar que não se pode reformar


a sociedade tecnoindustrial de um modo a impedi-
-la de reduzir progressivamente a esfera da liberdade
humana. Mas, dado que “liberdade” é uma palavra
que pode ser interpretada de bem diversos modos,
primeiro deixaremos claro que tipo de liberdade é a
que nos importa.

94. Por “liberdade”, entendemos a oportunidade


de experimentar o processo de poder com metas autên-
ticas, não com as metas artificiais das atividades substi-
tutivas, e sem interferência, manipulação ou supervisão
da parte de outros, especialmente de qualquer grande
organização. Liberdade significa ter o controle (seja
como indivíduo, seja como membro de um PEQUENO
grupo) sobre os aspectos vitais da própria existência:
alimento, vestimenta, refúgio e defesa contra qualquer
ameaça que possa haver ao redor. Liberdade significa
ter poder; não o poder para controlar outras pessoas,

85
porém, sim, o poder para controlar as circunstâncias da
própria vida.23 Ninguém tem liberdade se algum outro
(especialmente uma grande organização) tem poder
sobre ele, não importa quão benevolente, tolerante e
permissivamente esse poder seja exercido. É importante
não confundir a liberdade com a mera permissividade
(veja-se o parágrafo 72).

23 [… Neste parágrafo 94] de A Sociedade Industrial e Seu Futuro,


escrevemos: “Liberdade significa ter o controle... sobre os aspectos
vitais da própria existência: alimento, vestimenta, refúgio e defesa
contra qualquer ameaça que possa haver ao redor. Liberdade significa
ter poder... para controlar as circunstâncias da própria vida.” Mas,
obviamente, as pessoas nunca tiveram esse controle para além de
um certo limite. Não têm podido, por exemplo, controlar as más
condições meteorológicas que, em algumas circunstâncias, poderiam
levá-las à inanição. Assim, que tipo de controle as pessoas realmen-
te necessitam? No mínimo, necessitam estar livres de “interferência,
manipulação ou supervisão da parte de... qualquer grande organiza-
ção”, tal como foi apontado [nesse mesmo parágrafo]. Entretanto,
se as frases [desse parágrafo] mencionadas no início desta nota não
significassem mais que isso, seriam redundantes.
Assim, há aqui um problema a ser solucionado. Entretanto, não
vamos tratar de solucioná-lo por agora. Por enquanto, deverá bas-
tar dizer que A Sociedade Industrial e Seu Futuro não expressa, em
absoluto, as últimas e definitivas palavras que se possa dizer sobre
os temas de que trata. Talvez algum dia alguma outra pessoa ou eu
mesmo sejamos capazes de oferecer um tratamento mais acertado e
claro desses mesmos assuntos. [Fragmento de um esboço do texto
“Afterthoughts”, em carta enviada por Ted Kaczynski a Último Re-
ducto — em 02/09/2009 (original em inglês) — N.T.]

86
95. É costume dizer que vivemos em uma sociedade
livre porque temos uns tantos direitos constitucionalmen-
te garantidos. Esses direitos, porém, não são tão impor-
tantes quanto parecem. O grau de liberdade pessoal que
há em uma sociedade passa pela determinação da estru-
tura econômica e tecnológica dessa sociedade, num grau
maior que o das suas leis ou de sua forma de governo.
[NOTA 16]
A maior parte das nações indígenas da Nova In-
glaterra eram monarquias24, e muitas das cidades da Itália
renascentista estavam controladas por tiranos. Entretan-
to, ao ler-se acerca dessas sociedades, tem-se a impressão
de que nelas havia muito mais liberdade pessoal que na
nossa sociedade. Em parte, isso era devido à sua carência
de mecanismos eficientes para impor a vontade dos seus
governantes: não havia forças policiais modernas e bem

24 “(...) As nações indígenas da Nova Inglaterra não eram tec-


nicamente ‘monarquias’, tal como o termo é usado em antropolo-
gia. (Tecnicamente, uma monarquia é um Estado regido por um
rei. As nações indígenas da Nova Inglaterra não eram sociedades
estatais, e sim sociedades comunais independentes.) Aqui, tenho
de basear-me em minha memória acerca de algo que li há mais de
uma década. O que eu recordo é que recolhi minha informação
acerca da estrutura política das nações indígenas da Nova Inglater-
ra num livro intitulado New England Frontier: Puritans and Indians
— 1620-1675 (Alden T. Vaughan, Little Brown, 1965). Se não
me recordo mal, o autor (que era um historiador, não um antro-
pólogo) usava o termo ‘monarquia’ em referência a essas tribos, e
afirmava que os ‘reis’ costumavam passear entre seus ‘súditos’ e que
tomavam arbitrariamente destes todas as posses que desejavam.”
[Fragmento de carta de Ted Kaczynski a Último Reducto — de
12/09/2008 (original em inglês) — N.T.]

87
organizadas, nem meios rápidos de comunicação à longa
distância, nem câmeras de vigilância, nem arquivos com
informações acerca das vidas dos cidadãos comuns. Por
conseguinte, era relativamente simples evitar o controle.

96. No que diz respeito aos direitos constitucionais,


considere-se como exemplo o da liberdade de imprensa.
Certamente, não pretendemos atacar esse direito: é uma
ferramenta muito importante para limitar a concentra-
ção do poder político e para manter sob controle aque-
les que o detêm, mediante a exposição pública de qual-
quer má atuação que venham a adotar. Mas a liberdade
de imprensa é bem pouco útil para o cidadão comum,
tomado como indivíduo. Os meios de comunicação de
massas estão majoritariamente sob o controle de gran-
des organizações que se encontram integradas ao siste-
ma. Quem quer que tenha um pouco de dinheiro pode
publicar algo, ou pode distribuir pela Internet ou por
outros meios similares, contudo, o que tiver a dizer fica-
rá perdido na vasta quantidade de materiais publicados
pelos meios de massas, de modo que não terá qualquer
efeito na prática. Influir na sociedade com palavras é,
portanto, quase impossível para a maioria dos indiví-
duos e dos pequenos grupos. Tomemos a nós mesmos
(o FC) como exemplo. Se nunca tivéssemos realizado
qualquer ato violento e tivéssemos remetido o presente
manifesto a uma editora, este provavelmente não teria
sido aceito. Se tivesse sido aceito e publicado, provavel-
mente não teria atraído muitos leitores, já que é mais
divertido assistir aos materiais que os meios de massas

88
produzem para o entretenimento que ler um ensaio sé-
rio. Até mesmo se esse escrito tivesse conseguido muitos
leitores, desses leitores todos, muitos logo esqueceriam
o que tivessem lido, devido ao soterramento de suas
mentes pela avalancha de material ao qual os meios de
massas as submetem. Para fazermos que nossa mensa-
gem pudesse chegar ao público, e que causasse nele uma
duradoura impressão, tivemos de matar pessoas.

97. Os direitos constitucionais são úteis até certo


ponto — porém, não servem sequer para garantir algo
a mais do que aquilo a que poderíamos chamar de uma
concepção burguesa da liberdade. Segundo essa concep-
ção burguesa, um homem “livre” é, essencialmente, um
elemento da maquinaria social, e tem só certo número
de liberdades preestabelecidas e delimitadas — liberdades
tais que estão projetadas para servir às necessidades da
maquinaria social, antes de servir às necessidades do in-
divíduo. Dessa maneira, o homem “livre” dos burgueses
tem liberdade econômica porque isso promove o cresci-
mento e o progresso; tem liberdade de imprensa porque
a crítica pública contém a má atuação da parte dos líde-
res políticos; tem direito a um julgamento justo porque
os encarceramentos por capricho dos poderosos seriam
ruins para o sistema. Essa, claramente, era a opinião de
Simón Bolívar. Para ele, as pessoas mereciam a liberdade
apenas se a usavam para promover o progresso (o pro-
gresso tal como é concebido pelos burgueses). Outros
pensadores burgueses tiveram uma ideia similar de liber-
dade, ao entendê-la como um mero meio para se chegar a

89
fins coletivos. Chester C. Tan, em Chinese Political Thou-
ght in the Twentieth Century, p. 202, explica a filosofia do
líder do Kuomintang, Hu Han-min: “A um indivíduo se
concederiam direitos porque é membro da sociedade e a
vida de sua comunidade requer tais direitos. Por comuni-
dade, Hu entendia a totalidade da sociedade ou nação.” E
na página 259, Tan afirma que, segundo Carsun Chang
(Chang Chun-mai, presidente do Partido Socialista de
Estado na China)25, a liberdade teria de ser usada no in-
teresse do Estado e das pessoas em geral. Mas, que tipo
de liberdade tem alguém se este só pode usá-la do modo
que outro estabeleça? A concepção de liberdade do FC
não é a de Bolívar, Hu, Chang ou outros teóricos burgue-
ses. O problema com esses teóricos é que converteram o
desenvolvimento e a aplicação de teorias sociais em sua
atividade substitutiva. Em consequência, as teorias têm
sido elaboradas de modo a satisfazer as necessidades psi-
cológicas dos seus teóricos, em vez das necessidades dos
desafortunados indivíduos que tenham de viver em qual-
quer sociedade à qual tais teorias sejam impostas.

98. Um ponto a mais a se comentar nesta seção:


não se deve tomar como aceitável que uma pessoa
tenha suficiente liberdade só por que ela DIZ que a

25 Carsun Chang era o “nome de cortesia” (que seus pares de-


viam usar, por respeito) de Chang Chun-mai, principal ideólogo e
líder do Partido Socialista de Estado — uma organização político-
-partidária social-democrata chinesa surgida como uma “terceira via”
entre o Kuomintang (o partido nacionalista, de Chiang Kai-shek) e
o PCC (o partido comunista, de Mao Tse-tung). [N.T.]

90
tem. A liberdade encontra-se parcialmente restringida
por mecanismos psicológicos de controle dos quais as
pessoas não são conscientes, e, além disso, as ideias
de muita gente acerca do que é a liberdade estão do-
minadas mais por uma convenção social que por suas
necessidades reais. Por exemplo: ainda que o esquer-
dista do tipo sobressocializado pague um caro preço
psicológico pelo seu alto grau de socialização, é prová-
vel que muitos esquerdistas desse tipo dissessem que a
maioria das pessoas, incluindo eles mesmos, está antes
bem pouco que por demais socializada.

Alguns Princípios Acerca da História

99. Considere-se a história como a soma de dois


componentes: um componente errático, que consiste em
sucessões imprevisíveis que não seguem qualquer padrão
discernível, e outro regular, que consiste em tendências
históricas de longo prazo. O que aqui nos interessa são as
tendências de longo prazo.

100. PRIMEIRO PRINCÍPIO. Se ocorrer uma PE-


QUENA mudança que afete uma tendência histórica de
longo prazo, então o efeito dessa mudança quase sempre
será transitório — sendo que essa tendência logo retorna-
rá ao seu estado original. (Exemplo: um esforço de refor-
ma pensado para eliminar a corrupção política em uma
sociedade raramente surte efeito para além de um curto
prazo; cedo ou tarde, os reformadores relaxam e a cor-

91
rupção volta a aparecer. O grau de corrupção política em
uma determinada sociedade tende a permanecer constan-
te ou, quando muito, a variar muito lentamente com a
evolução da sociedade. Normalmente, a eliminação da
corrupção política será permanente somente se for acom-
panhada de mudanças sociais em grande escala; uma PE-
QUENA mudança na sociedade não será suficiente.) Se
uma mudança pequena em uma tendência histórica de
longo prazo parece ser permanente, isso se deve unica-
mente a que a mudança está a atuar na mesma direção
na qual a tendência estava já se movendo, de modo que
a tendência não se mostra alterada, e sim, porém, apenas
impulsionada adiante, um passo a mais.

101. O primeiro princípio é quase uma tautologia. Se


uma tendência não desse mostras de estabilidade em rela-
ção às pequenas mudanças, ela variaria aleatoriamente, em
vez de seguir por uma direção definida; em outras palavras,
não seria em absoluto uma tendência de longo prazo.

102. SEGUNDO PRINCÍPIO. Em se levando a ter-


mo uma mudança que seja suficientemente grande para
modificar permanentemente uma tendência histórica de
longo prazo, então essa mudança modificará a sociedade
em seu conjunto. Em outras palavras, uma sociedade é um
sistema no qual todas as partes estão inter-relacionadas, e
não se pode mudar permanentemente qualquer parte im-
portante sua sem mudar também todas as demais.

92
103. TERCEIRO PRINCÍPIO. Em se realizando
uma mudança que seja suficientemente grande para al-
terar permanentemente uma tendência de longo prazo,
então as consequências para a sociedade em seu conjunto
não podem ser previstas de antemão. (A menos que ou-
tras sociedades tenham passado pela mesma mudança e
tenham todas experimentado as mesmas consequências,
caso no qual se pode prever empiricamente que outra
sociedade que passe por essa mesma mudança provavel-
mente experimentará consequências similares.)

104. QUARTO PRINCÍPIO. Não se pode rascu-


nhar sobre o papel um novo tipo de sociedade. Isto é,
não se pode planejar teoricamente, por projeção, uma
nova forma de sociedade, estabelecê-la em seguida e
esperar que funcione tal e qual havia sido planejado
que acontecesse.

105. O terceiro e o quarto princípios são consequên-


cia da complexidade das sociedades humanas. Uma mu-
dança no comportamento humano afetará a economia de
uma sociedade e o seu meio físico; a economia afetará esse
meio e vice-versa; as mudanças na economia e no seu meio
afetarão o comportamento humano de modos comple-
xos e imprevisíveis — e assim sucessivamente. A trama de
causas e efeitos é demasiado complexa para ser desemara-
nhada e compreendida.

106. QUINTO PRINCÍPIO. As pessoas não esco-


lhem, consciente e racionalmente, a forma de sua socie-

93
dade. As sociedades se desenvolvem mediante processos
de evolução social que não se encontram sob um controle
humano racional.

107. O quinto princípio é uma consequência dos


outros quatro.

108. Em resumo: pelo primeiro princípio, falan-


do-se em termos gerais, um esforço de reforma so-
cial ou bem irá atuar na mesma direção na qual, de
todo modo, a sociedade já estiver desenvolvendo-se
(de modo que, tão somente, acelerará uma mudan-
ça a qual, em qualquer caso, teria mesmo ocorrido),
ou bem terá somente um efeito transitório, de modo
que essa sociedade, sem demora, retornará à sua sen-
da antiga. Para mudar-se, de maneira duradoura, a
direção do desenvolvimento de qualquer aspecto im-
portante de uma sociedade, a reforma é insuficiente,
requerendo-se então uma revolução. (Uma revolução
não implica, necessariamente, um levante armado ou
a derrubada de um governo.) Pelo segundo princípio,
uma revolução nunca modifica apenas um aspecto de
uma sociedade, sendo que modifica a sociedade em
seu conjunto; e pelo terceiro princípio, produzem-se
mudanças que não eram esperadas ou desejadas pe-
los revolucionários. Pelo quarto princípio, quando os
revolucionários ou os pensadores utópicos tratam de
estabelecer um novo tipo de sociedade, as coisas nunca
saem como foram planejadas.

94
109. A Revolução Americana não se configura-
ria num exemplo contrário ao que foi exposto. A “Re-
volução” Americana não foi uma revolução no mesmo
sentido em que estamos usando essa palavra, e sim uma
guerra de independência seguida por uma ampla reforma
política. Os Pais Fundadores26 não mudaram a direção
do desenvolvimento da sociedade norte-americana, nem
sequer aspiravam a isso. Eles somente libertaram o desen-
volvimento da sociedade norte-americana do lastro a que
estava ligado pelo domínio britânico. A sociedade britâ-
nica, da qual a sociedade norte-americana derivava, este-
ve por muito tempo a mover-se em direção à democracia
representativa. E antes da Guerra de Independência dos
norte-americanos já se praticava a democracia represen-

26 A expressão “Pais Fundadores” (Founding Fathers, no ori-


ginal em inglês) é utilizada nos Estados Unidos para designar
alguns dos líderes políticos que assinaram sua Declaração de In-
dependência e/ou participaram da Revolução Americana; a lista
dos “Pais Fundadores”, como assinalou Ted Kaczynski, costuma
variar significativamente:
“Não há uma lista definitiva de Pais Fundadores. [Pode-se con-
siderar como] Pais Fundadores [somente alguns dos personagens
célebres que] estiveram envolvidos na Revolução Americana [e/ou]
distinguiram-se como participantes no estabelecimento da Repúbli-
ca. [Seja como for], não devem ser confundidos com aqueles que
firmaram a Declaração de Independência. [Alguns destacados Pais
Fundadores, tais como] George Washington, Alexander Hamilton,
John Jay, [ou] James Madison não firmaram essa Declaração. E ou-
tros — que, sim, firmaram-na —, dificilmente mereceriam ser cha-
mados de Pais Fundadores.” [Fragmento de carta de Ted Kaczynski a
Último Reducto — de 29/08/2008 (original em inglês) — N.T.]

95
tativa, em grande medida, nas assembleias coloniais. O
sistema político estabelecido pela Constituição tomava
como modelo o sistema britânico e as assembleias colo-
niais — ainda que, é claro, com grandes modificações.
Não há dúvida de que os Pais Fundadores deram um pas-
so muito importante. Não obstante, foi um passo que
seguiu a senda pela qual o mundo anglófono já estava
caminhando. Prova disso é que a Grã-Bretanha e todas
as suas colônias, povoadas predominantemente por pes-
soas de ascendência britânica, acabaram por ter sistemas
de governo que são democracias representativas similares
àquela que se deu nos Estados Unidos. Se os Pais Funda-
dores tivessem fraquejado e declinado firmar a declaração
de Independência, o modo de vida dos atuais estaduni-
denses não seria muito distinto do qual, efetivamente, o
é. Talvez tivessem mantido vínculos mais estreitos com a
Grã-Bretanha, e tivessem um Parlamento e um Primeiro
Ministro, no lugar de um Congresso e um Presidente.
Ora, isso não é uma grande coisa. De fato, a Revolu-
ção Americana não é um exemplo que contradiga nossos
princípios, e porém, sim, que bem os ilustra.

110. Apesar de tudo, há que se usar o bom senso


quando se aplicar esses princípios. Eles estão expressos
numa linguagem imprecisa, que dá margens a diversas
interpretações, e se poderia encontrar exceções que não
os cumpram. Por isso, não apresentamos esses princípios
como leis invioláveis, porém, sim, como regras gerais, ou
como guias para o pensamento, os quais ajudem a não
nos deixar levar por ideias ingênuas acerca do futuro da

96
sociedade. Tais princípios, com toda constância, deve-
riam ser trazidos à mente, e toda vez em que se chegasse
a uma conclusão que com eles conflitasse, haveria que
se reexaminar cuidadosamente o que se está pensando, e
manter essa conclusão somente se ainda houvesse boas e
sólidas razões para isso.

A Sociedade Tecnoindustrial
Não Pode Ser Reformada

111. Os princípios anteriores facilitam a exposição


da dificuldade e da pouca probabilidade de se reformar
o sistema industrial, de um modo tal que se evitasse
que este seguisse estreitando o âmbito de nossa liber-
dade. Se voltarmos a vista para o passado, pelo menos
até a Revolução Industrial, observaremos que, desde
então, há uma tendência constante de que a tecnologia
reforce o sistema, ao custo de se reduzir a liberdade
individual e a autonomia local. Dessa forma, qualquer
mudança social projetada para preservar a liberdade
frente à tecnologia iria de encontro a uma tendência
fundamental do desenvolvimento de nossa sociedade.
Por conseguinte, pelos princípios primeiro e segundo,
qualquer mudança desse tipo ou bem seria transitória
— sendo prontamente barrada pela maré da história
—, ou bem, se fosse suficientemente grande para man-
ter-se permanente de alguma maneira, alteraria a natu-
reza de nossa sociedade em sua totalidade. Além disso,
haveria um grande risco, já que não se poderia predizer

97
a forma que acabaria adotando tal transformação da
sociedade (terceiro princípio). As mudanças suficien-
temente grandes para calcar uma diferença duradou-
ra em favor da liberdade não seriam levadas a termo,
porque, evidentemente, perturbariam gravemente o
sistema. Assim sendo, um esforço qualquer de reforma
seria demasiadamente tímido para chegar a ser efetivo.
Até mesmo se as mudanças se iniciassem suficiente-
mente grandes, para calcar uma diferença duradoura,
elas seriam paralisadas e revertidas quando seus efeitos
perturbadores começassem a se fazer patentes. Dessa
maneira, as mudanças permanentes em favor da liber-
dade poderão ser levadas a termo somente por pessoas
dispostas a aceitar uma alteração radical, perigosa e im-
previsível da totalidade do sistema. Em outras palavras,
por revolucionários, não por reformistas.

112. As pessoas que anseiam salvar a liberdade sem


sacrificar os supostos benefícios devidos à tecnologia
irão sugerir ingênuas ideias sobre uma nova forma de
sociedade, a qual fizesse compatíveis a liberdade e a tec-
nologia. Deixando de lado o fato de que as pessoas que
fazem tais sugestões raramente propõem algum meio
prático pelo qual essa nova forma de sociedade poderia
ser estabelecida, se levarmos em conta o quarto princí-
pio, veremos que — inclusive no caso de que em algum
momento se pudesse tentar estabelecer a tal nova forma
de sociedade — esta bem poderia vir abaixo ou bem dar
resultados muito diferentes dos esperados.

98
113. Assim é que, inclusive em termos gerais, pa-
rece altamente improvável que se chegue a encontrar
algum modo de se conseguir que a liberdade e a tec-
nologia moderna sejam compatíveis. Nas seções que
desde aqui se seguem, daremos razões mais concretas
para mostrar que a liberdade e o progresso tecnológico
são incompatíveis.

A Restrição da Liberdade É Inevitável


na Sociedade Industrial

114. Como foi explicado nos parágrafos 65-67 e


70-73, o homem moderno está enleado num emaranha-
do de normas e regulações, e seu destino depende das
ações de pessoas que estão distantes dele — em cujas
decisões, portanto, não pode influir. Isso não é algo aci-
dental, nem um resultado da arbitrariedade de burocra-
tas arrogantes. É necessário e inevitável, em qualquer
sociedade tecnologicamente avançada. O sistema TEM
DE regular estritamente o comportamento humano
para poder funcionar. No trabalho, as pessoas têm de
fazer o que lhes for dito que façam, quando é dito que
façam e do modo como lhes digam que façam, pois, se
assim não fosse, a produção se converteria num caos.
As burocracias TÊM DE atuar de acordo com normas
rígidas. Permitir que os burocratas de níveis inferiores
atuassem seguindo um critério pessoal ao decidir sobre
assuntos importantes iria perturbar o sistema, e tam-
bém iria acarretar acusações de injustiça, uma vez que

99
cada burocrata aplicaria seu critério de maneira diferen-
te. Claro que algumas restrições à nossa liberdade po-
deriam ser eliminadas, contudo, EM GERAL, a regula-
ção de nossas vidas por parte de grandes organizações é
necessária para o funcionamento da sociedade tecnoin-
dustrial. Como resultado disso, as pessoas comuns de-
senvolvem um sentimento de impotência. Pode acon-
tecer, de toda maneira, que as regras explícitas tendam
progressivamente a ser substituídas por ferramentas psi-
cológicas que nos façam querer fazer o que o sistema ne-
cessita que façamos. (A propaganda,[NOTA 14] as técnicas
educacionais, os programas de “saúde mental”, etc.)

115. O sistema TEM DE obrigar as pessoas a se


comportarem de um modo que está cada vez mais afasta-
do dos padrões naturais da conduta humana. Por exem-
plo, o sistema tem necessidade de cientistas, matemáticos
e engenheiros. Não pode funcionar sem eles. Por isso,
então, as crianças são fortemente pressionadas a se so-
bressaírem nessas matérias. Não é natural que um ser
humano adolescente passe a maior parte de seu tempo
sentado diante de uma escrivaninha, a estudar. Um ado-
lescente normal quer passar seu tempo em contato ativo
com o mundo real. Entre os povos primitivos, as coisas
que ensinavam as crianças a fazer tendiam a estar, de um
modo razoável, em harmonia com os impulsos huma-
nos naturais. Nos povos indígenas norte-americanos, por
exemplo, os garotos aprendiam a realizar atividades ao ar
livre — justamente o tipo de coisas que, por então, lhes
agrada. Mas, em nossa sociedade, induzem-se as crianças

100
e os jovens a estudar assuntos técnicos, o que fazem, em
sua maior parte, a contragosto.

116. Devido à constante pressão que o sistema


exerce para modificar o comportamento humano, há
um número crescente de pessoas que não podem ou
não querem se adaptar às necessidades da sociedade:
parasitários da assistência social, membros de gangues
juvenis, certas seitas excêntricas, rebeldes contrários ao
governo27, ecossabotadores radicais, automarginalizados

27 Indagado por Último Reducto sobre o significado concreto


da expressão “rebeldes contrários ao governo”, Ted Kaczynski deu a
seguinte resposta: “Ao menos algumas das ‘milícias’* poderiam ser
qualificadas como ‘grupos rebeldes contrários ao governo’. Também
havia, durantes os anos imediatamente anteriores à minha prisão,
grupos de pessoas em Montana, chamados ‘constitucionalistas’, que
trataram de desafiar o poder do governo. Baseando-se em uma inter-
pretação ingênua da Constituição [estadunidense], defendiam, por
exemplo, que o governo não tinha o direito de obrigá-los a pagar
impostos, nem de exigir-lhes que tivessem carta para a condução
de veículos. Mais ou menos há época de minha detenção, em 1996,
houve um grupo de constitucionalistas que se autodenominavam os
‘Montana Freemen’, que se refugiaram armados em um conjunto de
prédios e desafiaram os agentes do FBI, os quais tratavam de detê-
-los. Sua intenção era trocar tiros com o FBI, e, se fosse necessário,
morrer lutando. Ao final, porém, faltou-lhes coragem e eles se rende-
ram sem receber um só disparo.
“Havia também alguns grupos de ‘separatistas brancos’ que
eram hostis ao governo. Em um famoso incidente, creio que no es-
tado de Idaho, um desses grupos realmente trocou tiros com o FBI.
Se não me recordo mal, morreu um agente do FBI, e também uma

101
e outros tipos de gente que resiste em se adaptar às exi-
gências da sociedade moderna.

117. Em qualquer sociedade avançada, o destino do


indivíduo depende NECESSARIAMENTE de decisões
nas quais ele mesmo, em grande medida, não pode influir.
Uma sociedade tecnológica não pode ser dividida em pe-
quenas comunidades autônomas, já que a produção de-
pende da cooperação de um enorme número de pessoas e
máquinas. Tal sociedade NECESSITARÁ estar altamente
organizada, e, para isso, TERÃO DE ser tomadas decisões
que afetam grande quantidade de pessoas. Quando uma
decisão afeta, por exemplo, a um milhão de pessoas, aí, en-
tão, para cada um dos indivíduos afetados lhe correspon-
derá tomar, em média, só a milionésima parte dessa deci-
são. O que se sucede na prática, normalmente, é que tais
decisões são tomadas por gestores públicos ou dirigentes
de grandes empresas, ou por especialistas técnicos — e até
mesmo quando o público vota para tomar uma decisão, o
número de votantes, normalmente, é demasiado grande
para que o voto de qualquer indivíduo seja significativo.
[NOTA 17]
Por conseguinte, a maioria dos indivíduos é inca-
paz de influir de maneira palpável nas principais decisões
que afetam as suas vidas. Não há uma maneira possível de
isso ser solucionado em uma sociedade tecnologicamente

mulher e um menino do bando dos separatistas brancos.” [Ted Ka-


czynski, em carta a Último Reducto — de 21/03/2009 (original
em inglês) — N.T.]
* [Para uma explicação acerca das “milícias” norte-americanas, veja-
-se a nota de rodapé número 37 — N.T.]

102
avançada. O sistema trata de “solucionar” esse problema
mediante o uso de propaganda, para fazer que as pessoas
DESEJEM as decisões que não têm sido tomadas por elas
mesmas; entretanto, até mesmo se esta “solução” tivesse
um êxito total e fizesse que as pessoas se sentissem melhor,
isso ainda seria degradante.

118. Os conservadores28 e alguns tantos outros pe-


dem mais “autonomia local”. As comunidades locais tive-
ram tal autonomia no passado, contudo, essa autonomia
foi ficando cada vez menos possível, na medida em que as
comunidades locais foram se tornando mais complexas e
dependentes de sistemas de grande escala, como os servi-
ços públicos, as redes informáticas, os sistemas de rodo-
vias, os meios de comunicação de massas e as modernas
redes de saneamento. Também atua contra a autonomia
o fato de que a tecnologia aplicada num lugar muitas ve-
zes afeta as pessoas de outros lugares distantes. Assim, os
pesticidas ou produtos químicos usados próximos a um
ribeirão podem contaminar o abastecimento de água por
várias centenas de quilômetros pela sua corrente jusante,
e a emissão industrial de gases causadores do efeito estufa
afeta o mundo em sua totalidade.

28 Há que se assinalar que, em certos aspectos, há notáveis dife-


renças entre muitos daqueles a quem se chamam de conservadores
nos Estados Unidos e a maioria daqueles que são considerados como
conservadores em outros países. A atitude dos conservadores esta-
dunidenses diante da questão da autonomia local faz com que se
destaque uma dessas diferenças. [N.T.]

103
119. O sistema não existe nem pode existir para sa-
tisfazer as necessidades humanas. Ao contrário, é o com-
portamento humano que tem de ser modificado para
adequar-se às necessidades do sistema. Isso se produz in-
dependentemente da ideologia política ou social a qual,
por sua vez, tenha a pretensão de estar dando a orien-
tação tomada no sistema tecnológico. A culpa não é do
capitalismo, nem do socialismo. A culpa é da tecnologia,
já que o sistema não é dirigido por ideologias, e sim pela
necessidade técnica.[NOTA 18] É claro que o sistema satisfaz
muitas das necessidades humanas — porém, no geral, só
o faz na medida em que isso lhe favorece. O principal
são as necessidades do sistema, não as do ser humano.
Por exemplo, o sistema fornece alimentos às pessoas por-
que não poderia funcionar se todo mundo morresse de
fome; ocupa-se das necessidades psicológicas das pessoas
toda vez e sempre que isso lhe resulta CONVENIEN-
TE, já que não poderia funcionar se demasiadas pessoas
ficassem deprimidas ou se rebelassem. Mas o sistema, por
boas e sólidas razões práticas, deve exercer uma pressão
constante sobre as pessoas para que estas modelem o seu
comportamento às necessidades do sistema. Acumulam-
-se resíduos demasiadamente? O governo, os meios de
comunicação, o sistema educacional, os ecologistas, todo
mundo nos bombardeia com um montão de propagan-
da em favor da reciclagem. Necessita-se de mais pessoal
técnico? Um coro de vozes exorta os garotos a estudar
ciências. Ninguém se detém a perguntar se seria inuma-
no forçar os adolescentes a passar a maior parte de seu
tempo estudando temas que a maior parte deles abomi-

104
na. Quando os operários qualificados perdem seu traba-
lho devido aos avanços técnicos e têm de se submeter a
programas de “atualização profissional”, ninguém se per-
gunta se é humilhante para eles serem manejados desse
modo. Simplesmente se dá por aceito que todo mundo
deve se curvar diante das necessidades técnicas. E por
bons motivos: se as necessidades humanas fossem ante-
postas às necessidades técnicas, haveria problemas econô-
micos, desemprego, escassez ou coisas ainda piores. Em
nossa sociedade, o conceito de “saúde mental” se refere,
numa grande medida, à maior ou menor capacidade dos
indivíduos de se comportarem de acordo com as neces-
sidades do sistema, sem apresentar sintomas de estresse.

120. Os esforços realizados dentro do sistema, que


tratam de considerar as necessidades humanas, de dar
um sentido às atividades promovidas e de levá-las a cabo
autonomamente, esses então, são ridículos. Por exem-
plo, uma empresa, em vez de fazer que cada um de seus
empregados montasse uma seção do catálogo, fazia que
cada empregado montasse o catálogo completo, supondo
que isso dava aos trabalhadores a sensação de ter um pro-
pósito e de alcançar um objetivo. Algumas companhias
têm tratado de dar a seus empregados mais autonomia
no trabalho, porém, normalmente, isso só se pode fazer
de uma maneira muito limitada, por motivos práticos,
e, em qualquer caso, aos empregados nunca se concede
autonomia suficiente para estabelecerem os objetivos eles
mesmos — seus esforços “autônomos” não podem jamais
ser aplicados na consecução de metas que eles tenham

105
pessoalmente escolhido, e sim somente na consecução
dos objetivos de seus patrões, como o são, por exemplo,
a sobrevivência e o crescimento da empresa. Qualquer
empresa deixaria de ser rentável se permitisse a seus em-
pregados atuar de outra maneira. De modo semelhante,
em qualquer empresa dentro de um sistema socialista, os
trabalhadores devem dirigir seus esforços para a consecu-
ção dos objetivos da empresa, pois, de outro modo, a em-
presa não cumpriria sua função como parte do sistema.
E uma vez mais, por motivos puramente técnicos, não é
possível que a maioria dos indivíduos ou dos pequenos
grupos tenha muita autonomia em uma sociedade in-
dustrial. Inclusive os proprietários de pequenos negócios;
eles têm, em geral, somente uma limitada autonomia.
Ainda que se deixe de lado a necessidade de regulação da
parte do governo, sua autonomia se encontra restringida
pelo fato de que têm de se ajustar ao sistema econômico e
de se adaptar às suas exigências. Por exemplo, quando se
desenvolve uma nova tecnologia, os donos de pequenos
negócios têm de utilizar essa tecnologia, queiram ou não,
para que possam continuar sendo competitivos.

As Partes “Más” da Tecnologia


Não Podem Ser Separadas das Partes “Boas”

121. Outra razão pela qual a sociedade industrial


não pode ser reformada — de um modo a favorecer a
liberdade — é que a tecnologia moderna é um sistema in-
tegrado, no qual cada parte depende de todas as demais.

106
Não é possível se desfazer das partes “más” da tecnologia
e se manter só as partes “boas”. Tome-se como exemplo
a medicina moderna. O progresso da ciência médica de-
pende do progresso da química, da física, da biologia, da
informática e de outros ramos da ciência. Os tratamentos
médicos avançados requerem caros equipamentos de alta
tecnologia, dos quais só se pode dispor em uma sociedade
economicamente rica e em constante desenvolvimento
tecnológico. Está claro que não se pode conseguir que a
medicina avance muito sem a totalidade do sistema tec-
nológico e o que este implica.

122. Mesmo se o progresso médico pudesse ser man-


tido sem a necessidade de se manter o resto do sistema
tecnológico, por si mesmo ele acarretaria certos males.
Vamos supor, num exemplo, que se descobre uma cura
para o diabetes. As pessoas com tendência genética ao
diabetes serão, então, capazes de sobreviver e reproduzir-
-se tão bem quanto as demais. A seleção natural contrária
aos genes do diabetes cessará, e estes genes se estenderão
pela população. (Isso pode já estar ocorrendo em certa
medida, já que o diabetes, ainda que incurável, pode ser
controlado mediante o uso da insulina.) O mesmo acon-
teceria com muitas outras enfermidades, para as quais a
tendência ao seu padecimento seja afetada por fatores
genéticos (por exemplo, o câncer infantil), dando lugar
a uma degradação genética massiva da população. A úni-
ca solução seria algum tipo de programa eugênico ou de
manipulação genética dos seres humanos, de modo que,
no futuro, o homem já não seja uma criação da Natureza,

107
ou do acaso, ou de Deus (no que depender das crenças re-
ligiosas ou das opiniões filosóficas de cada qual) — para
ser, isso sim, um produto industrial.

123. Se muitas pessoas pensam que os grandes


governos JÁ interferem demasiadamente em suas vi-
das, esperem então que esses governos comecem a
regular a dotação genética de seus filhos. Essa regu-
lação, inevitavelmente, seguir-se-á à aplicação prática
da engenharia genética aos seres humanos, posto que
as consequências da não regulação da engenharia ge-
nética seriam desastrosas.[NOTA 19]

124. A típica resposta diante de tais preocupações


é a de se falar da “bioética”. Mas um código ético não
servirá para proteger a liberdade frente ao progresso
médico; só irá mesmo piorar as coisas. Um código éti-
co aplicável à engenharia genética seria, de fato, um
meio de se regular a dotação genética dos seres huma-
nos. Alguns (provavelmente membros da classe média-
-alta, em sua maioria) decidirão que certas aplicações
da engenharia genética são “éticas” e que certas outras
não o são, de modo que, na realidade, estarão impon-
do seus próprios pontos de vista acerca da dotação ge-
nética do conjunto da população. Mesmo se se elegesse
um código ético de uma maneira completamente de-
mocrática, a maioria estaria impondo seus próprios va-
lores sobre quaisquer minorias que pudessem ter uma
ideia diferente do que se consistisse num uso “ético”
da engenharia genética. O único código ético que ver-

108
dadeiramente protegeria a liberdade seria aquele que
proibisse TODA forma de engenharia genética em se-
res humanos, e, seguramente, um código assim nun-
ca irá vigorar numa sociedade tecnológica. Nenhum
código que reduzisse a engenharia genética a um pa-
pel secundário poderia manter-se vigente por muito
tempo, já que a tentação que representa o imenso po-
der da biotecnologia seria irresistível, especialmente
quando, para a maioria das pessoas, muitas de suas
aplicações parecessem óbvia e inequivocamente boas
(eliminar enfermidades físicas e mentais, conceder às
pessoas capacidades de que necessitam para adaptar-se
adequadamente ao mundo moderno). Inevitavelmen-
te, a engenharia genética será usada em grande escala,
somente, porém, da maneira que for compatível com
as necessidades do sistema tecnoindustrial.[NOTA 20]

A Tecnologia É uma Tendência Social


Mais Poderosa que o Desejo de Liberdade

125. Não é possível estabelecer um equilíbrio DU-


RADOURO entre tecnologia e liberdade, já que a tec-
nologia é, de longe, uma força social mais poderosa,
e que, continuamente, restringe a liberdade mediante
SUCESSIVAS negociações e acordos. Imagine-se o caso
de dois vizinhos, cada um dos quais, a princípio, pos-
suindo a mesma quantidade de terra, sendo um deles,
contudo, mais forte que o outro. O mais forte reivindi-
ca um pedaço da terra do outro. O mais fraco se recusa

109
a dar-lhe. O mais forte diz: “Que seja, negociemos. Dê-
-me metade do que eu pedi.” O mais fraco não tem ou-
tra opção que não a de ceder. Ao final de algum tempo,
o vizinho mais forte reivindica outro pedaço de terra,
negociam novamente, e o mais fraco cede. E, assim, su-
cessivamente. Forçando o vizinho mais fraco a chegar
a uma série de acordos, o vizinho mais forte acaba por
conseguir toda a terra do outro. E o mesmo se passa no
conflito entre tecnologia e liberdade.

126. Iremos explicar, pois, por que a tecnologia é


uma força social mais poderosa que o desejo de liberdade.

127. Um avanço tecnológico que de início parece


não ameaçar a liberdade, frequentemente, passado al-
gum tempo mostra-se então capaz de ameaçá-la. Como
exemplo, considere-se o transporte motorizado. Um ca-
minhante de antigamente podia ir aonde quisesse, em
seu próprio ritmo, sem ter de respeitar qualquer norma
de tráfego, e não estava dependente de sistemas de assis-
tência tecnológica. Quando os veículos a motor apare-
ceram, pareciam incrementar a liberdade humana. Não
tomavam qualquer liberdade do caminhante, ninguém
estava obrigado a ter um automóvel se não quisesse tê-
-lo, e, ainda mais, quem decidisse comprar um auto-
móvel podia viajar muito mais rápido e mais longe do
que faria a pé. Entretanto, a generalização do transporte
motorizado logo transformou a sociedade de um modo
tal que reduziu, em grande medida, a liberdade de loco-
moção dos homens. Quando os automóveis começaram

110
a ser numerosos, fez-se necessário regular consideravel-
mente o seu uso. Uma pessoa não pode simplesmente
ir de carro até aonde quiser, e em seu próprio ritmo,
especialmente em áreas densamente povoadas; o seu
deslocamento encontra-se governado pelo fluxo do trá-
fego e por diversas normas de circulação. Tal pessoa está
sujeita a diversas obrigações: exigência de permissões,
exames de condução, renovação da carta de condutor,
seguros, requisitos de manutenção por motivos de se-
gurança, mensalidades da aquisição do veículo. Ainda
mais, o uso do transporte motorizado já não é opcio-
nal. Desde o aparecimento do transporte motorizado,
o ordenamento de nossas cidades tem mudado de um
modo tal que a maioria das pessoas já não vive a uma
distância de seu local de trabalho, das áreas comerciais e
de opções de diversão que, caminhando, possa chegar a
esses lugares com facilidade, e por isso TEM QUE de-
pender do automóvel para deslocar-se. Ou, então, terá
de usar o transporte público, caso em que terá ainda
menos controle sobre seus próprios movimentos do que
teria conduzindo um automóvel. Agora, até a liberdade
do caminhante encontra-se enormemente reduzida. Na
cidade, ele tem continuamente de parar e esperar que
mudem as luzes dos sinais de trânsito, que estão pensa-
dos, principalmente, para servir ao tráfego de automó-
veis. No campo, o tráfego motorizado torna perigoso e
desagradável caminhar ao longo da beira de uma estra-
da. (Note-se o importante ponto que ilustramos com o
exemplo do transporte motorizado: quando um novo
elemento tecnológico é introduzido na sociedade como

111
uma opção, a qual um indivíduo possa ou não aceitar
— de acordo com sua decisão —, não necessariamente
CONTINUA SENDO opcional, de um modo indefi-
nido. Em muitos casos essa nova tecnologia transfor-
ma a sociedade de tal modo que, ao final, as pessoas se
OBRIGAM a usá-la.)

128. Enquanto o progresso tecnológico, EM SEU


CONJUNTO, reduz paulatinamente a esfera de nossa
liberdade, cada avanço tecnológico, sendo CONSIDE-
RADO EM SI MESMO, parece ser desejável. A eletri-
cidade, as instalações de água corrente, as comunicações
rápidas em longa distância... como alguém poderia ar-
gumentar em contrário a essas coisas, ou em contrário
a qualquer outro dos inumeráveis avanços técnicos que
fazem parte da sociedade humana moderna? Teria sido
absurdo resistir-se à introdução do telefone, por exem-
plo. Parecia oferecer muitas vantagens e nenhum incon-
veniente. Entretanto, tal qual explicamos nos parágrafos
59-76, todos esses avanços técnicos, tomados conjun-
tamente, têm criado um mundo no qual o destino do
homem comum já não está em suas próprias mãos, nem
nas mãos de seus vizinhos e amigos, e sim, porém, nas
mãos de políticos, dirigentes de grandes empresas, téc-
nicos e burocratas distantes e anônimos, sobre os quais
esse homem, como indivíduo, não tem a capacidade de
influir.[NOTA 21] O mesmo processo seguir-se-á produzindo
no futuro. Tome-se a engenharia genética como exemplo.
Pouca gente resistirá à aplicação de uma técnica genética
que elimine uma enfermidade hereditária. Não parecerá

112
causar dano algum, e evitará muito sofrimento. Todavia,
um grande número de melhorias genéticas, tomadas em
conjunto, converterá o ser humano num produto de en-
genharia, em lugar de manter-se ele como uma livre cria-
ção do acaso (ou de Deus, ou do que for, a depender das
crenças religiosas de cada qual).

129. Outra razão pela qual a tecnologia é uma


força social tão poderosa é que, dentro do contexto de
uma determinada sociedade, o progresso tecnológico se
move em uma só direção — não pode jamais ser in-
vertido29 . Tendo sido introduzida uma inovação téc-
nica qualquer, normalmente, as pessoas se tornam suas
dependentes, de modo que já não podem passar sem
ela — a menos que ela seja substituída por alguma ino-
vação ainda mais avançada. Acontece não apenas dessas
pessoas converterem-se em indivíduos dependentes de
um novo elemento tecnológico, como também, e an-
29 A afirmação que, dentro do contexto de uma determinada
sociedade, o progresso tecnológico “nunca” pode ser invertido é de-
masiadamente categórica. Ao menos no nível das sociedades primi-
tivas, pode-se encontrar exemplos de regressão tecnológica dentro
do marco de uma determinada sociedade (veja-se a nota de rodapé
número 43), ainda que estes exemplos possam ser postos em questão
aproveitando-se a falta de precisão da expressão “uma determinada
sociedade”. Todavia, para efeitos práticos, o que importa em relação
ao propósito de A Sociedade Industrial e Seu Futuro é que, na socieda-
de moderna, o progresso tecnológico tomado em seu conjunto avan-
ça em uma só direção, mesmo quando possam produzir-se retroces-
sos em alguma área limitada da tecnologia. [Nota de Ted Kaczynski,
acrescentada à versão espanhola (original em inglês).]

113
tes de tudo, o sistema em seu conjunto torna-se dele
dependente. (Imaginem o que ocorreria ao sistema atu-
al se os computadores, por exemplo, fossem todos eli-
minados.) Dessa forma, o sistema pode mover-se em
uma só direção, que é para uma maior tecnologização.
A tecnologia força a liberdade a ir retrocedendo sucessi-
vamente, passo a passo; entretanto, a tecnologia mesma
nunca dá um passo atrás — a menos que se derrube o
sistema tecnológico em sua totalidade.

130. A tecnologia avança em grande velocida-


de e ameaça a liberdade, concomitantemente, desde
ângulos bem diferentes (aglomeração da população,
normas e regulações, crescente dependência dos indi-
víduos em relação a grandes organizações, propagan-
da e outras técnicas psicológicas, engenharia genética,
invasão da privacidade pelo uso de sistemas de vigi-
lância e computadores, etc.). Fazer retroceder sequer
UMA SÓ dessas ameaças à liberdade requereria uma
longa e difícil luta social. Aqueles que desejam prote-
ger a liberdade encontram-se largamente ultrapassados
pelo imenso número de novas ameaças e pela rapidez
com que estas se desenvolvem, de modo que acabam
caindo na apatia e deixando de opor-lhes resistência.
Combater cada uma das ameaças separadamente seria
um esforço inútil. Só se pode esperar ter êxito ao se
combater o sistema tecnológico em seu conjunto; isso,
porém, implica a realização de uma revolução, e não
de meras reformas.

114
131. Os técnicos (usamos tal termo em sentido
amplo, para designar aqueles que executam qualquer
tarefa especializada que requeira formação) tendem a
ficar tão absorvidos pelo seu trabalho (sua atividade
substitutiva) que, quando surge um conflito entre seu
trabalho técnico e a liberdade, quase sempre decidem
em favor de seu trabalho. No caso dos cientistas, isso é
óbvio; contudo, isso também ocorre em qualquer ou-
tro tipo de trabalho técnico: educadores, associações
humanitárias, organizações ecologistas... ninguém tem
dúvidas em fazer uso de propaganda[NOTA 14] ou de outras
técnicas psicológicas que lhes possam ajudar a atingir
seus “louváveis” objetivos. Grandes empresas e agências
governamentais30, quando isto lhes parece útil, não têm
dúvidas em proceder à obtenção de informações acerca
dos indivíduos, sem preocuparem-se em respeitar sua
privacidade. A polícia e os promotores, frequentemen-
te, têm o seu trabalho dificultado pelos direitos consti-
tucionais dos suspeitos, e, muitas vezes, até mesmo pe-
los direitos de pessoas completamente inocentes, e daí
que fazem tudo o que for legalmente possível (ou, às
vezes, até o ilegal) para restringir ou evitar esses direi-
tos. Muitos desses educadores, funcionários públicos e
agentes da lei creem na liberdade, na privacidade e nos

30 As agências governamentais (“government agencies”, no ori-


ginal em inglês), como órgãos da administração pública federal nos
Estados Unidos, poderiam comparar-se, ressalvado o distanciamen-
to, aos ministérios e às secretarias de Angola, Brasil ou Portugal, ou
mesmo equiparar-se tanto às autarquias do Brasil quanto aos institu-
tos públicos de Angola ou Portugal. [N.T.]

115
direitos constitucionais; todavia, quando isso entra em
conflito com o seu trabalho, eles normalmente sentem
que o seu trabalho é mais importante.

132. Bem sabemos que, geralmente, as pessoas


trabalham com mais afinco e melhor quando se es-
forçam para alcançar uma recompensa de que o fazem
quando a sua intenção é a de evitar um castigo ou uma
consequência negativa. Os cientistas e outros técnicos
são motivados, principalmente, pelas recompensas que
obtêm do seu trabalho. Mas aqueles que se opõem às
restrições que a tecnologia impõe à liberdade estão
trabalhando para evitar uma consequência negativa
— como resultado disso, são poucos os que trabalham
bem e com afinco, nessa desalentadora tarefa. Se os
reformadores, em algum momento, obtivessem uma
vitória significativa, a qual parecesse estabelecer uma
sólida barreira contra posteriores reduções da liber-
dade pelo progresso técnico, a maioria deles tenderia
a relaxar e a desviar sua atenção para atividades mais
agradáveis. Mas os cientistas continuariam com a sua
ocupação nos seus laboratórios, e a tecnologia, na me-
dida em que fosse progredindo, iria encontrando os
seus caminhos — não obstando-lhe qualquer barreira
que viesse a surgir — para exercer mais e mais controle
sobre os indivíduos e fazê-los cada vez mais dependen-
tes do sistema.

133. Nenhum acordo social — seja uma lei, uma ins-


tituição, um costume ou um código ético — pode oferecer

116
uma proteção permanente contra a tecnologia. A história
mostra que todo acordo social é transitório; em algum mo-
mento, todos são modificados ou infringidos. Entretanto, os
avanços tecnológicos se mantêm sempre — dentro de uma
determinada civilização. Vamos supor, num exemplo, que
fosse possível se chegar a certo acordo social que impedisse
a aplicação da engenharia genética em seres humanos, ou
que impedisse que ela fosse aplicada de qualquer maneira
que ameaçasse a liberdade e a dignidade. Ainda assim, a
tecnologia permaneceria à espera. Cedo ou tarde, o acordo
social seria infringido. Cedo, provavelmente — haja vista
o ritmo das modificações em nossa sociedade. Aí então, a
engenharia genética começaria a reduzir a esfera de nossa
liberdade, e essa redução seria irreversível (salvo no caso da
derrocada da própria civilização tecnológica). Qualquer ilu-
são de se alcançar algo duradouro mediante acordos sociais
deveria desvanecer-se ao se observar o que está ocorrendo,
atualmente, com a legislação ambiental. Até há alguns pou-
cos anos, parecia que havia limites legais invulneráveis que
impediriam, ao menos, ALGUMAS das piores formas de
degradação ambiental. Uma mudança qualquer nas tendên-
cias políticas... e essas barreiras começam a desmoronar.31

31 A última frase deste parágrafo 133 referia-se aos Estados Uni-


dos, à época em que foi escrito o Manifesto (o ano de 1995). Nos
dias de hoje (março de 2009), que eu saiba, as barreiras legais contra
a degradação ambiental ainda não haviam sido restabelecidas. Tal-
vez sejam restauradas [em um futuro próximo], contudo, mesmo
assim, continuariam sujeitadas ao risco de mudanças nas tendências
políticas. [Nota de Ted Kaczynski, acrescentada à versão espanhola
(original em inglês).]

117
134. Por todas as razões antes expostas, a tecno-
logia é uma força social mais poderosa que o desejo de
liberdade. Mas essa afirmação requer uma importan-
te matização. Parece que, durante as décadas que se
seguem, o sistema tecnoindustrial estará submetido a
severas pressões, devidas aos problemas econômicos e
ambientais, e também devidas, de um modo especial,
aos problemas de comportamento humano (alienação,
rebeldia, hostilidade, diversas complicações sociais e
psicológicas). Esperamos que as pressões às quais o sis-
tema provavelmente ficará submetido provoquem sua
derrocada, ou que, ao menos, debilitem-no o suficiente,
até que se faça possível promover uma revolução contra
ele. Se essa revolução ocorre e tem êxito, aí então, nesse
exato momento, o desejo de liberdade terá sido mais
poderoso que a tecnologia.

135. No parágrafo 125, usávamos a analogia de um


vizinho fraco que é despojado por um vizinho forte, o
qual lhe tira toda sua terra, obrigando-o a chegar a uma
série de acordos. Mas suponhamos, agora, que o vizinho
forte cai adoentado, de modo que não seja capaz de se de-
fender. O vizinho fraco pode obrigar ao forte que devolva
sua terra — ou pode matá-lo. Se deixar que o vizinho
forte sobreviva e apenas o obrigue a devolver a sua terra,
será um estúpido. Afinal, quando o vizinho forte se recu-
perar, tomará toda a terra novamente. A única alternativa
sensata para o vizinho mais fraco é a de matar o forte,
enquanto tiver a chance de fazê-lo. Do mesmo modo, de-
vemos destruir o sistema industrial enquanto este estiver

118
adoentado. Se pactuarmos com ele, e ele se recuperar de
sua doença, ao final, acabará por aniquilar totalmente a
nossa liberdade.

Os Mais Simples Problemas Sociais


Têm-se Demonstrado Insolúveis

136. Se alguém ainda imaginar que seria possível


reformar-se o sistema de um modo tal que a liberdade
ficasse protegida da tecnologia, deveria considerar o quão
fútil e, na maioria dos casos, ineficientemente nossa so-
ciedade vem agindo diante de outros problemas sociais
que são muito mais simples e manejáveis. Entre outros
casos, o sistema tem fracassado nos intentos de conter a
degradação ambiental, a corrupção política, o tráfico de
drogas ou a violência doméstica.

137. Tome-se como exemplo os nossos problemas


ambientais. Nesse caso, o conflito de valores é patente:
a prosperidade econômica de hoje contra a preserva-
ção de alguns de nossos recursos naturais para nos-
sos netos.[NOTA 22] Mas, com referência a esse assunto,
só obteremos um amontoado de palavras confusas da
parte das pessoas com poder, e nada que tenha seme-
lhança com uma linha de atuação clara e consequente,
de modo que vão se acumulando os problemas am-
bientais com os quais nossos netos terão de conviver.
As tentativas de se resolver os problemas ambientais
consistem em lutas e negociações entre diferentes fac-
ções, algumas das quais chegam a ser dominantes num

119
momento concreto, e outras, em outros momentos. A
linha pela qual seguem essas lutas varia de acordo com
as volúveis tendências da opinião pública. Esse não é
um processo racional, nem é provável que possa ser
dirigido de modo a se alcançar uma solução oportuna
e eficaz do problema. Os principais problemas sociais,
mesmo se chegam a ser totalmente “resolvidos”, rara-
mente — ou mesmo nunca — o são mediante um pla-
no racional e detalhado. Simplesmente se resolvem por
si mesmos, através de um processo em que vários gru-
pos competidores, que perseguem cada um dos quais
os seus próprios interesses[NOTA 23] (normalmente, em
curto prazo), chegam (por mera sorte, em geral) a uma
situação mais ou menos estável. Na realidade, os prin-
cípios que formulamos nos parágrafos 100-106 fazem
que pareça duvidoso que um planejamento social em
longo prazo tenha, ALGUMA VEZ, a possibilidade de
chegar a ser bem sucedido.

138. Claro está, portanto, que a espécie humana


tem, no melhor dos casos, uma capacidade muito limita-
da para a resolução até mesmo de problemas sociais tidos
como relativamente simples. Como, pois, iria resolver o
problema, muito mais difícil e sutil, de compatibilizar
liberdade e tecnologia? A tecnologia oferece vantagens
materiais evidentes, enquanto a liberdade é uma abstra-
ção que significa diferentes coisas para pessoas diferentes,
e sua perda é facilmente dissimulada com propaganda e
discursos sofisticados.

120
139. Note-se, ainda, esta importante diferença: tal-
vez os nossos problemas ambientais (por exemplo) pos-
sam algum dia ser resolvidos através de um plano racional
e detalhado; porém, se isso chega a acontecer, será só por
que a resolução desses problemas faz parte dos interesses
do sistema, num longo prazo. Por outro lado, preservar
a liberdade ou a autonomia dos pequenos grupos NÃO
faz parte dos interesses do sistema. Ao contrário, o que
convém ao sistema é pôr o comportamento humano sob
controle tanto quanto seja possível.[NOTA 24] Por conse-
guinte, enquanto as considerações práticas talvez possam,
finalmente, obrigar o sistema a tomar medidas racionais
e prudentes diante dos problemas ambientais, considera-
ções igualmente práticas obrigarão o sistema a regular o
comportamento humano até mesmo mais estreitamente
(preferencialmente através de meios indiretos, que ocul-
tem a redução da liberdade). Essa não é somente a nossa
opinião. Eminentes cientistas sociais (por exemplo, James
Q. Wilson32) têm insistido especialmente na importância
de se socializar as pessoas de um modo mais efetivo.

A Revolução É Mais Fácil que a Reforma

140. Esperamos que o leitor se tenha convencido de


que o sistema não pode ser reformado de tal modo que se
32 James Quinn Wilson foi um cientista político estaduni-
dense — um importante estudioso das relações entre os valores
morais e a gestão de políticas públicas, e, para além disso, um
importante assessor governamental. [N.T.]

121
façam compatíveis a liberdade e a tecnologia. Nosso úni-
co caminho possível passará por cima do sistema tecnoin-
dustrial, em sua totalidade. Isso implica uma revolução;
não necessariamente um levante armado, porém sim, isto
certamente, uma transformação radical e fundamental na
natureza da sociedade.

141. As pessoas tendem a considerar como assenta-


do que, se uma revolução implica uma mudança muito
maior que uma reforma, é mais difícil se promover uma
revolução que uma reforma. O fato é que, sob certas cir-
cunstâncias, uma revolução é muito mais fácil que uma
reforma. A razão para isso é que um movimento revo-
lucionário pode inspirar um grau de comprometimento
que um movimento reformista não pode inspirar. Um
movimento reformista se propõe a resolução de algum
problema social, apenas. Um movimento revolucionário
se propõe a resolver todos os problemas de uma vez, e a
criar um mundo novo; ele propicia o tipo de ideal pelo
qual as pessoas assumirão grandes riscos e farão grandes
sacrifícios. Por essa razão, será muito mais fácil pôr abaixo
a totalidade do sistema que impor-lhe restrições efetivas
e permanentes ao seu desenvolvimento ou à aplicação de
qualquer aspecto da tecnologia — tal como a engenharia
genética, por exemplo. Não será muita gente que se de-
dicará com uma completa paixão a impor e manter res-
trições à aplicação da engenharia genética; no entretanto,
se ocorrem as condições adequadas, um grande número
de pessoas poderá se dedicar apaixonadamente a reali-
zar uma revolução contra o sistema tecnoindustrial. Tal

122
como assinalamos no parágrafo 132, os reformadores, ao
tratarem de restringir certos aspectos da tecnologia, esta-
riam se esforçando para evitar uma consequência que lhes
seria negativa. Mas os revolucionários lutam para obter
uma grande recompensa — a materialização de seu ideal
revolucionário — e, consequentemente, se esforçam com
mais firmeza e persistência que os reformistas.

142. A reforma encontra-se sempre contida pelo


medo das consequências dolorosas que se produziriam
se as mudanças que promovesse fossem longe demais.
No entanto, uma vez que a febre revolucionária se apos-
sa de uma sociedade, as pessoas estão dispostas a pas-
sar por diversas privações pelo bem de sua revolução.
Isso foi evidente na Revolução Francesa e na Revolução
Russa. Pode ser que, em tais casos, apenas uma mino-
ria estivesse realmente comprometida com a revolução,
contudo, essa minoria era suficientemente grande e ati-
va, de tal modo a chegar a se constituir na força social
dominante. Diremos algumas coisas a mais acerca da
revolução nos parágrafos 180-205.

O Controle do Comportamento Humano

143. Desde o início da civilização, as sociedades


civilizadas tiveram de pressionar os seres humanos para
manterem o funcionamento do organismo social. As
formas da pressão variam muito, de uma sociedade para
outra. Dentre tais pressões, algumas têm sido físicas (die-

123
ta pobre, trabalho excessivo, contaminação ambiental) e
algumas têm sido psicológicas (ruído, aglomeração popu-
lacional, obrigar o comportamento humano a se ajustar
aos moldes que a sociedade exige). No passado, a nature-
za humana costumava se manter próxima do invariável,
ou então, se variava em algo, isso se dava apenas dentro
de uns fixos limites. Em consequência, as sociedades vi-
nham sendo capazes de pressionar as pessoas somente até
certos limites. Quando o limite da resistência humana
era ultrapassado, as coisas começavam a se sair mal: ocor-
riam rebeliões, ou crimes, ou a corrupção, ou a evitação
do trabalho, ou a depressão e outros transtornos mentais,
ou uma elevada taxa de mortalidade, ou uma queda na
taxa de natalidade, ou outras coisas assim, de tal maneira
que, ou bem a sociedade desmoronava, ou bem seu fun-
cionamento se tornava demasiado ineficiente — e essa,
então, seria substituída por alguma outra forma mais efi-
ciente de sociedade (rápida ou gradualmente, através da
conquista, do desgaste ou da evolução).[NOTA 25]

144. Assim, no passado, a natureza humana coloca-


va determinados limites para o desenvolvimento das so-
ciedades. As pessoas podiam ser pressionadas só até certo
ponto, e não mais além. Mas, hoje em dia, isso pode estar
mudando, já que a tecnologia moderna está desenvolven-
do formas de modificar os seres humanos.

145. Imaginemos uma sociedade que submetesse


as pessoas a condições que fizessem sua vida terrivel-
mente infeliz — a qual, entretanto, lhes administrasse

124
concomitantemente algumas drogas que eliminassem
essa sensação de infelicidade. Ficção científica? Em cer-
ta medida, isso é algo que já está acontecendo em nossa
própria sociedade. Sabemos bem que a frequência da
depressão clínica na população tem tido um incremen-
to importante ao longo das últimas décadas. Pensamos
que isso se deva à perturbação do processo de poder,
como já havíamos explicado nos parágrafos 59-76. Mas
ainda que estivéssemos equivocados, a crescente taxa de
depressão seguramente é o resultado de CERTAS con-
dições que existem na sociedade atual. Em vez de fazer
desaparecer as condições que fazem que as pessoas se
deprimam, a sociedade moderna administra-lhes drogas
antidepressivas. Com efeito, os antidepressivos são um
instrumento de modificação do estado interno dos indi-
víduos, para que eles sejam capazes de tolerar condições
sociais tais que, de outra maneira, resultar-lhes-ia into-
leráveis. (Sabemos, sim, que a depressão muitas vezes
tem uma origem puramente genética. Estamos aqui nos
referindo apenas aos casos em que o ambiente joga um
papel predominante.)

146. As drogas psicoativas são somente um exem-


plo dos novos métodos de controle do comportamento
humano que a sociedade moderna está desenvolvendo.
Examinemos, pois, alguns dos outros métodos existentes.

147. Para começar, temos as tecnologias de vigi-


lância. Já se estão usando câmeras de vídeo ocultas na
maioria das grandes lojas, e, em muitos outros lugares,

125
os computadores são utilizados para se obter e pro-
cessar grandes quantidades de informação acerca dos
indivíduos. A informação assim acumulada aumenta
enormemente a eficácia da coerção física (isto é, o po-
liciamento administrativo e judiciário).[NOTA 26] Para
continuar, há os métodos de propaganda, dos quais os
meios de comunicação de massas são um eficaz veículo
de difusão. Têm sido desenvolvidas técnicas eficientes
para se ganhar eleições, vender produtos ou se influir
na opinião pública. A indústria do entretenimento
atua como uma importante ferramenta psicológica
em favor do sistema, além de possibilitar também o
oferecimento de grandes doses de sexo e violência. O
entretenimento disponibiliza para o homem moderno
um meio essencial de escape psicológico. Enquanto
está absorto diante da televisão, do vídeo, etc., pode
esquecer-se do estresse, da ansiedade, da frustração,
da insatisfação. Muitas das pessoas primitivas, quan-
do não tinham que trabalhar, podiam sentar-se por
várias horas seguidas sem fazer o que quer que fosse,
tendo com isso o suficiente para estarem contentes,
pois estavam em paz consigo mesmas e com o mundo.
Mas a maioria das pessoas modernas tende a manter-se
constantemente ocupada ou entretida, posto que, de
outro modo, tais pessoas ficam “aborrecidas”, ou seja,
sentem-se inquietas, incomodadas, irritadiças.

148. Outras tecnologias atuam num nível mais pro-


fundo que as anteriores. A educação já não é algo assim
tão simples, quanto o era darem-se uns tabefes em uma

126
criança quando esta não sabia a lição e cumprimentá-la,
então, quando a soubesse. Ela se converteu numa técnica
cientificamente projetada para se controlar o desenvol-
vimento das crianças. Os Centros de Aprendizagem Syl-
van33, por exemplo, têm obtido um grande êxito na mo-
tivação das crianças aos estudos; e, além disso, em muitos
estabelecimentos convencionais de ensino utilizam-se
técnicas psicológicas mais ou menos eficazes. Os conse-
lhos sobre como se “criar e educar os filhos”, que estão
sendo inculcados aos pais, foram pensados para se fazer
com que as crianças e os jovens aceitem os valores fun-
damentais do sistema e se comportem de um modo tal
que resulte benéfico ao sistema. Os programas de “saúde
mental”, as técnicas de “intervenção”34, a psicoterapia e

33 Os Centros de Aprendizagem Sylvan (“Sylvan Learning Cen-


ters”, no original em inglês) são estabelecimentos franqueados que,
nos Estados Unidos, complementam o assim chamado “processo de
ensino/aprendizagem”, através de uma instrução personalizada em
leitura, escrita, prática em operações matemáticas, em habilidades
de estudos, apoio às atividades escolares e na preparação para avalia-
ções institucionais. Em outros países, como no Brasil — com uma
nomenclatura diferente —, também existem organizações similares,
especializadas em motivar e incrementar o rendimento nos estudos
através de técnicas psicológicas e pedagógicas. [N.T.]

34 A expressão usada, no original em inglês, era “‘intervention’


techniques”. “A Sociedade Industrial e Seu Futuro foi escrito há 14
anos.” [Nos dias de hoje, quando desta edição, já se passaram 19
anos.] “[Naqueles dias,] quando se via que uma pessoa estava desen-
volvendo um problema grave — por exemplo, se estava caindo na
bebida ou começando a maltratar seus filhos — os assistentes sociais,

127
outras coisas desse tipo foram declaradamente pensadas
para ajudar os indivíduos — contudo, na prática, servem
normalmente como métodos para induzir os indivíduos
a pensar e a se comportar do modo como o sistema neces-
sita. (Nisso não há contradição: qualquer indivíduo cujas
atitudes ou cujo comportamento o levem a entrar em
conflito com o sistema estará em rota de colisão com uma
força demasiado poderosa para que ele a possa vencer ou
enganar, e, portanto, ele provavelmente sofrerá estres-
se, frustração, fracasso. Sua vida será muito mais fácil se
pensar e se comportar da maneira como o sistema exige.
Nesse sentido, o sistema atua em benefício do indivíduo
quando consegue que este se conforme, mediante uma
lavagem cerebral.) O abuso infantil, em suas formas mais
brutais e ostensivas, é algo malvisto na maioria das cul-
turas, talvez mesmo em todas. Maltratar uma criança por
motivos triviais ou sem qualquer motivo é algo que hor-
roriza a quase todo mundo. Mas muitos psicólogos in-
terpretam o conceito de abuso muito mais amplamente.
A surra seria uma forma de abuso, quando usada como
parte integrante de uma forma de disciplina racional e
consistente? A questão posta por esses psicólogos depen-
de de, se em última instância, essa surra consegue ou não

ou mesmo os amigos dessa pessoa, podiam se propor à aplicação


das chamadas técnicas de “intervenção”, em um esforço por reverter
aquela sua tendência indesejável e evitar que tal pessoa se conver-
tesse em um alcoólatra ou que maltratasse seus filhos, ou qualquer
outra coisa desse tipo. Não sei mesmo o quanto funcionariam, essas
tais técnicas.” [Ted Kaczynski, em carta a Último Reducto — de
21/03/2009 (original em inglês) — N.T.]

128
induzir quem a sofre a se comportar de uma maneira que
bem se enquadre no sistema social existente. Na prática,
a palavra “abuso” pode ser interpretada de maneira que
inclua qualquer forma de se criar ou educar uma criança
que produza algum comportamento que resulte incon-
veniente ao sistema. Desse modo, os programas contra o
“abuso infantil”, quando vão mais além de apenas tratar
de evitar a crueldade manifesta e sem sentido, são dire-
cionados para o controle do comportamento humano em
benefício do sistema.

149. É de se supor que a pesquisa continuará au-


mentando a eficiência das técnicas de controle do com-
portamento humano. Mas consideramos pouco provável
que apenas as técnicas psicológicas serão suficientes para
fazer com que os seres humanos se acomodem ao tipo de
sociedade que a tecnologia está criando. Provavelmente,
serão necessários os métodos biológicos. Já menciona-
mos, em relação a isso, o uso de drogas. A neurologia
poderá oferecer outras vias para a modificação da mente
humana. A engenharia genética aplicada aos seres huma-
nos está começando já a se fazer realidade na forma de
“terapia genética”, e não há razão para se acreditar que
suas técnicas não acabem por ser utilizadas na modifica-
ção daqueles aspectos do corpo que afetam o funciona-
mento da mente.

150. Como já mencionamos no parágrafo 134, a so-


ciedade industrial parece estar entrando em um período
de graves dificuldades, em parte causadas por problemas

129
do comportamento humano e em parte por problemas
econômicos e ambientais. E uma quantidade considerável
dos problemas econômicos e ambientais do sistema é o re-
sultado do modo como se comportam os seres humanos.
Alienação, baixa autoestima, depressão, hostilidade, re-
beldia; crianças que não querem estudar, gangues juvenis,
consumo de drogas ilegais, estupros, abuso infantil, todo
tipo de crimes, sexo inseguro, gravidez precoce, crescimen-
to demográfico, corrupção política, ódio racial, rivalidade
étnica, amargos conflitos ideológicos (como, por exemplo,
a defesa do aborto contra a sua recusa)35, extremismo po-
lítico, terrorismo, sabotagem, grupos antigovernamentais,
grupos que fomentam o ódio36. Tudo isso ameaça a pró-
pria sobrevivência do sistema. Desse modo, o sistema será
OBRIGADO a usar todos os meios práticos que estejam
ao seu alcance para controlar o comportamento humano.

151. Os problemas sociais que podemos observar


na atualidade não têm se produzido por mera casualida-

35 A expressão usada, no original em inglês, era “pro-choice vs.


pro-life”. Essa expressão, corrente nos Estados Unidos, numa tra-
dução literal, ficaria “pró-escolha vs. pró-vida” — que soaria muito
estranho, em português. [N.T.]

36 A expressão usada, no original em inglês, era “hate groups”.


“A expresão ‘hate group’ poderia fazer referência a qualquer grupo
baseado em uma ideologia que demonstrasse o ódio de algo. Mas,
normalmente, a expressão ‘hate group’ é aplicada somente quando
esse ódio é politicamente incorreto. Por exemplo, ódio de judeus, de
africanos, de homossexuais (…), etc.” [Ted Kaczynski, em carta a
Último Reducto — de 21/03/2009 (original em inglês) — N.T.]

130
de; eles nada mais são que o resultado das condições de
vida às quais o sistema submete as pessoas. (Afirmamos
que a mais importante dessas condições é a perturbação
do processo de poder.) Se o sistema algum dia chegar a
controlar o comportamento humano o suficiente para
assegurar sua própria sobrevivência, esta importante
barreira terá sido superada pela primeira vez na história
humana. Enquanto no passado os limites da resistência
humana sempre impuseram entraves ao desenvolvimento
das sociedades (tal como explicamos nos parágrafos 143
e 144), a sociedade tecnoindustrial será capaz de superar
esses inconvenientes mediante a modificação dos seres
humanos, fazendo uso de técnicas psicológicas ou de mé-
todos biológicos. Ou de ambas as coisas. No futuro, os
sistemas sociais não serão modificados para se adaptarem
às necessidades dos seres humanos. Ao contrário, serão
os seres humanos os modificados para se adaptarem às
necessidades do sistema.[NOTA 27]

152. Em termos gerais, o controle do comportamen-


to humano provavelmente não será aplicado como se fosse
para cumprir uma função totalitária, nem sequer com o
propósito de restringir a liberdade humana.[NOTA 28] Cada
novo passo na consolidação do controle da mente humana
será dado porque se considerará que essa é uma solução
racional para algum problema que a sociedade tenha de
enfrentar, tais como curar o alcoolismo, reduzir os níveis
da criminalidade ou induzir os jovens a estudar as ciên-
cias ou algum tipo de engenharia. Em muitos casos ha-
verá uma justificativa humanitária. Por exemplo, quando

131
um psiquiatra prescreve um antidepressivo a um paciente
deprimido, é claro que está prestando um favor a esse in-
divíduo. Seria desumano negar essa droga a alguém que a
necessita. E quando os pais mandam seus filhos aos Cen-
tros de Aprendizagem Sylvan, para que os manipulem e os
façam dar mostras de entusiasmo em seus estudos, fazem
isso pensando no bem de seus filhos. Pode ser que alguns
desses pais preferissem que não se tivesse de receber uma
formação especializada para se conseguir um emprego, e
que seu filho não tivesse de sofrer uma lavagem cerebral
que o convertesse em um viciado em informática. Mas...
que outra coisa poderiam fazer? Não podem mudar a so-
ciedade, e seu filho poderia ter sérias dificuldades para
encontrar um emprego, se não chegasse a adquirir certas
habilidades. Assim, pois, que o mandam ao Sylvan.

153. Nessas condições, o controle sobre o comporta-


mento humano não será introduzido mediante uma deci-
são calculada das autoridades, e sim mediante um proces-
so de evolução social (de RÁPIDA evolução, de qualquer
modo). Será impossível resistir-se a esse processo, já que
cada avanço, considerado em si mesmo, parecerá bené-
fico — ou, pelo menos, o mal necessário à realização do
processo parecerá menor que aquele que implicaria o não
se avançar (ver parágrafos 127 e 128). A propaganda, por
exemplo, muitas vezes é usada para boas finalidades, tais
como evitar o abuso infantil ou o ódio racial. A educação
sexual, evidentemente, é algo de útil; contudo, o efeito
da educação social (na medida em que tenha êxito) será
tirar da família a tarefa de orientar as atitudes sexuais dos

132
jovens e pô-la nas mãos do Estado, representado pelo sis-
tema público de ensino.

154. Vamos supor a possibilidade da descoberta de


um traço biológico condicionante que aumentasse a pro-
babilidade de algumas crianças, ao crescerem, converte-
rem-se em criminosos, e suponhamos ainda a possibili-
dade da elaboração de algum tipo de terapia genética que
permitisse a eliminação desse traço.[NOTA 29] Seguramente,
a maioria dos pais cujos filhos portassem esse traço iria
querer submetê-los a essa terapia. Seria desumano atuar-
-se de outra maneira, já que a criança, certamente, acaba-
ria por levar uma vida miserável, se ela se transformasse
em um criminoso, ao crescer. Entretanto, muitas ou a
maioria das sociedades primitivas tinham um baixo ín-
dice de criminalidade, em comparação com o que ocorre
em nossa sociedade, mesmo sem dispor de meios de alta
tecnologia para educar as crianças ou de sistemas para
reprimir duramente a criminalidade. Já que não há razão
para se supor que as tendências inatas dos homens mo-
dernos sejam mais inclinadas ao crime que as dos homens
primitivos, o alto índice de criminalidade de nossa socie-
dade haverá de ser o resultado das pressões a que se en-
contram submetidas as pessoas pelas modernas condições
de vida, às quais muitos não podem ou não querem se
adaptar. Assim, pois, um tratamento planejado para eli-
minar potenciais tendências criminosas seria, ao menos
em parte, uma forma de reconstrução dos seres humanos
para que estes se acomodassem às exigências do sistema.

133
155. Nossa sociedade tende a considerar “doentio”
qualquer comportamento ou modo de pensar que de-
monstre ser inconveniente ao sistema. E assim o é por
que, quando um indivíduo não se encaixa dentro do sis-
tema, isso tem um resultado doloroso para o indivíduo ao
mesmo tempo em que causa problemas ao sistema. Por
conseguinte, a manipulação dos indivíduos para adaptá-
-los ao sistema é vista como a “cura” de uma “doença”, e,
consequentemente, como algo de bom.

156. No parágrafo 127 nós afirmamos que, apesar


do uso de um novo elemento tecnológico INICIAL-
MENTE ser opcional, não necessariamente este elemen-
to CONTINUARÁ indefinidamente a sê-lo, já que a
nova tecnologia tende a transformar a sociedade de um
modo tal até ser difícil — ou mesmo impossível — para
qualquer indivíduo cumprir suas funções sem o uso des-
sa tecnologia. Isso também é aplicável à tecnologia para
o controle do comportamento humano. Em um mundo
no qual a maioria das crianças estará submetida a cur-
sos que as façam entusiasmar-se pelos estudos, qualquer
pai estará praticamente obrigado a indicar para seu fi-
lho os cursos desse tipo; afinal, em este pai não fazendo
isso, então o seu filho, ao crescer, será o equivalente a
um ignorante, e, consequentemente, a um incapacitado
— quando tiver de optar por algum posto de trabalho.
Ou, então, suponhamos a descoberta de um tratamento
o qual, sem efeitos colaterais indesejáveis, reduza bastan-
te o estresse psicológico sofrido por tantas pessoas em
nossa sociedade. Se um grande número de pessoas esco-

134
lhesse submeter-se a esse tratamento, então o nível geral
de estresse na sociedade seria reduzido, e, desse modo,
o sistema poderia seguir incrementando as pressões que
geram estresse. Isso levaria ainda mais gente a submeter-
-se a tal tratamento — e assim sucessivamente, de modo
que, ao termo disso, as pressões poderiam chegar a ser
tão intensas que pouca gente seria capaz de sobreviver
sem ter de submeter-se àquele tratamento de redução de
estresse. De fato, algo assim parece já ter ocorrido com
uma das ferramentas psicológicas mais importantes de
acesso à redução do estresse (ou, ao menos, ao seu escape
temporário), em nossa sociedade: o entretenimento de
massas (veja-se o parágrafo 147). Nosso uso do entrete-
nimento de massas é “opcional”: nenhuma lei nos força a
assistir televisão, escutar rádio, ler revistas. Entretanto, o
entretenimento de massas é um meio de escape e de redu-
ção do estresse, e a maioria de nós se tornou dependente
disso. Todo mundo se queixa do lixo transmitido pela
televisão — contudo, quase todos assistem à televisão.
Alguns poucos deixaram de lado o hábito de assistir TV,
todavia, é raro encontrar-se hoje em dia uma pessoa que
não use QUALQUER tipo de entretenimento de massas.
(No entanto, até um período bastante recente da história
na humanidade, a maior parte das pessoas se dava por
muito contente sem mais entretenimento que aquele que
cada comunidade local criava para si mesma.) Sem a in-
dústria do entretenimento, o sistema provavelmente não
seria capaz de nos ter submetido ao alto grau de pressão
estressante a que nos submete.

135
157. Se a sociedade industrial sobreviver, é provável
que a tecnologia acabe por adquirir algo muito parecido a
um controle total sobre o comportamento humano. Que
o pensamento e o comportamento humanos tenham, em
grande medida, um embasamento biológico, é algo que
vem sendo demonstrado para além de toda dúvida racio-
nal. Como os experimentos têm demonstrado, sensações
tais como a fome, o prazer, a ira e o medo podem ser
provocadas ou inibidas através da estimulação elétrica das
zonas cerebrais apropriadas. As recordações podem ser
destruídas causando-se danos em certas áreas do cérebro,
ou podem mesmo aflorar à consciência através da esti-
mulação elétrica. Pelo uso de drogas, pode-se provocar
alucinações ou mudar os estados de humor. Pode ser que
exista algo como uma alma imaterial, ou mesmo que isso
não exista — contudo, se tal coisa existe, evidentemen-
te é menos poderosa que os mecanismos biológicos que
embasam o comportamento humano. Afinal, se assim
não fosse, então os investigadores não seriam capazes de
manipular tão facilmente as emoções e o comportamento
humano por meio de drogas e correntes elétricas.

158. É de se supor que seria impraticável fazer que


todas as pessoas carregassem eletrodos inseridos em suas
cabeças — para as autoridades poderem, assim, mantê-
-las sob o seu controle. Mas o fato dos pensamentos e
emoções humanos serem tão suscetíveis à intervenção
biológica mostra que o problema do controle de compor-
tamento é, antes de tudo, um problema de tipo técnico;
um problema de neurônios, hormônios e moléculas com-

136
plexas; o tipo de problema acessível à abordagem cientí-
fica. Dado o excelente histórico de nossa sociedade no
que se refere a resolver problemas técnicos, é muitíssimo
provável que se consigam grandes avanços no controle do
comportamento humano.

159. A resistência das pessoas impedirá a introdução


do controle tecnológico do comportamento humano?
Certamente que poderia impedi-la, se se tentasse intro-
duzir essa forma de controle social de uma só feita. Mas
uma vez que o controle tecnológico se irá introduzindo
mediante uma sucessão de pequenos passos, não se pro-
duzirá qualquer resistência racional e efetiva da parte dos
populares (vejam-se os parágrafos 128, 132 e 153).

160. A todos aqueles que pensam que tudo isso soa


como ficção científica, recordaremos que aquilo que antiga-
mente era apenas ficção científica atualmente já é realidade.
A Revolução Industrial alterou radicalmente o meio ambien-
te e o modo de vida do homem, e é só uma questão de tem-
po para que, na medida em que a tecnologia seja paulatina-
mente aplicada sobre o corpo e a mente humanos, o próprio
homem acabe sendo modificado tão radicalmente quanto o
tem sido o seu meio ambiente e o e seu modo de vida.

A Humanidade numa Encruzilhada

161. Nós avançamos demasiadamente com nosso


relato. Uma coisa é desenvolver-se em laboratório uma

137
série de técnicas psicológicas e biológicas para manipu-
lar o comportamento humano, e outra, bastante distin-
ta, integrar-se essas técnicas dentro de um sistema social
em funcionamento. Esse último problema é, de ambos,
o mais difícil de resolver. Por exemplo, mesmo que as
técnicas de psicopedagogia funcionem bastante bem nas
“escolas” em que são desenvolvidas, não é exatamente
simples aplicá-las de maneira eficaz no conjunto de nosso
sistema educacional. Todos conhecemos a situação pela
qual atravessam muitas de nossas escolas. Os professores
estão por demais atarefados, tomando facas e revólveres
dos menores, para poder submetê-los a novas técnicas
que façam deles uns viciados em informática. Por isso,
apesar de todos os avanços técnicos quanto à modifica-
ção do comportamento humano, até presentemente, o
sistema não havia tido um êxito total ao se tratar de con-
trolar os seres humanos. As pessoas cujo comportamento
se encontra, em boa medida, sujeitado ao controle por
parte do sistema são aquelas que pertencem ao tipo que
poderíamos qualificar como “burguês”. Mas há uma cres-
cente quantidade de gente que, de um modo ou de outro,
rebela-se contra o sistema: parasitários de assistência so-
cial, gangues juvenis, certas seitas excêntricas, satanistas,
nazistas, ecologistas radicais, membros de milícias37, etc.

37 “Há, talvez, dez ou quinze anos — não me recordo com exati-


dão — surgiram alguns grupos que se autodenominavam ‘milícias’,
como por exemplo, ‘Montana Militia’, ou ‘militia’ deste ou daquele
estado. Armavam-se na medida em que podiam legalmente fazê-
-lo, e é provável que adquirissem também, secretamente, algumas
armas ilegais. Pretendiam rebelar-se contra a falta de liberdade a que

138
162. O sistema, atualmente, está travando uma
batalha desesperada para superar certos problemas que
ameaçam sua sobrevivência, entre os quais os mais im-
portantes são os problemas do comportamento huma-

a modernidade induz (sem que se dessem conta do vínculo entre a


falta de liberdade e a tecnologia moderna), contudo, suas ideias eram
sumamente ingênuas: apegavam-se à Constituição dos Estados Uni-
dos, a qual, segundo sua ingênua interpretação, garantia-lhes estes
ou aqueles direitos e liberdades. Acreditavam que havia uma conspi-
ração cuja finalidade era fazer com que as Nações Unidas tomassem
o poder nos Estados Unidos. Segundo esses milicianos, havia tropas
das Nações Unidas escondidas em algum local dos Estados Unidos,
as quais estavam esperando para tomar o poder. Os milicianos pro-
punham-se a enfrentá-las. Timothy McVeigh*, que mandou pelos
ares o Federal Building**, em Oklahoma City, tinha alguns vínculos
com as milícias, fato de que os meios de comunicação se aproveita-
ram para desacreditarem as milícias. Isso piorou tanto a sua fama que
esse movimento quase morreu. As milícias existem ainda hoje, po-
rém têm poucos adeptos.” [Fragmento de carta de Ted Kaczynski a
Último Reducto — de 07/09/2005 (original em espanhol) — N.T.]
As milícias são consideradas direitistas — isso, contudo, é uma
qualificação duvidosa, haja vista sua oposição à autoridade do Esta-
do. [Nota de Ted Kaczynski, acrescentada à versão espanhola (origi-
nal em espanhol).]
* Timothy McVeigh, ex-soldado norte-americano que lutou na
Guerra do Golfo, foi responsabilizado pelo Atentado de Oklahoma
City (1995), e sendo preso e condenado à morte, foi executado em
2001. [N.T.]
**“Edifício Federal” (numa tradução literal): era um complexo ar-
quitetônico que servia à administração pública, destruído no Aten-
tado de Oklahoma City. [N.T.]

139
no. Se o sistema chega a adquirir suficiente controle
sobre o comportamento humano, rápido o bastante,
provavelmente sobreviverá. Em caso contrário, irá cair.
Temos a convicção de que essa questão irá se resolver
nas próximas décadas — digamos que entre os próxi-
mos 40 e 100 anos.

163. Vamos supor que o sistema sobreviva às cri-


ses das próximas décadas. Nesse tanto, haverá necessa-
riamente de ter resolvido, ou ao menos ter submetido
ao seu controle os principais problemas que vem enfren-
tando, em particular a “socialização” dos seres humanos;
isto é, tornar as pessoas suficientemente dóceis para que
seu comportamento já não represente uma ameaça para o
sistema. Uma vez alcançado isso, não parece que vá haver
ainda qualquer outro obstáculo para o desenvolvimento
da tecnologia, e, seguramente, esta avançará até sua con-
secução lógica — que não é outra além do controle total
sobre tudo o que existe na Terra, incluídos o ser humano
e qualquer outro organismo importante. Pode ser que o
sistema se converta em uma organização unitária, mono-
lítica, ou ainda que permaneça mais ou menos fragmen-
tado e se baseie, então, na coexistência de certo número
de organizações que mantivessem relações mútuas tanto
de cooperação quanto de competência, do mesmo modo
que o governo, as grandes empresas e outras grandes or-
ganizações cooperam e competem entre si. A liberdade
humana, praticamente, terá desaparecido, já que os in-
divíduos e os pequenos grupos serão impotentes frente
às grandes organizações armadas com supertecnologia e

140
com um arsenal de avançadas ferramentas psicológicas e
biológicas para manejar e modificar os seres humanos,
além de instrumentos de vigilância e coerção física. So-
mente um pequeno número de pessoas terá algum poder
real, e até mesmo essas pessoas, provavelmente, gozarão
de uma liberdade muito limitada, porque seu compor-
tamento também se encontrará regulado — do mesmo
modo que, hoje em dia, os políticos e os dirigentes de
grandes empresas só podem conservar suas posições de
poder se mantiverem seu comportamento dentro de cer-
tos limites bastante estreitos.

164. Ninguém deveria ter a ilusão de que o siste-


ma deixará de desenvolver tecnologias para controlar os
seres humanos e a Natureza, mesmo chegando a supe-
rar a crise das próximas décadas, nem de que, daí então,
já não tenha a necessidade de incrementar esse controle
para assegurar sua sobrevivência. Ao contrário, assim que
tiver superado os tempos difíceis, o sistema irá incremen-
tar o controle sobre as pessoas e a Natureza, pois já não
encontrará obstáculo nas dificuldades que atualmente
enfrenta. A sobrevivência não é o motivo principal para
se aumentar o controle. Tal como explicamos nos pará-
grafos 87-90, os técnicos e cientistas, em grande medida,
realizam seu trabalho como atividade substitutiva — isto
é, satisfazem sua necessidade de poder resolvendo proble-
mas técnicos. Eles seguirão fazendo isso, com inesgotável
entusiasmo. E dentre os problemas que lhes parecerão
mais interessantes e atrativos a resolver, estarão aqueles
relativos à compreensão do corpo e da mente humanos e

141
à ingerência em seu desenvolvimento. Pelo “bem da hu-
manidade” — sem qualquer dúvida.

165. Mas, num sentido contrário, suponhamos que


as dificuldades das próximas décadas demonstrem ser ex-
cessivas para o sistema. Se o sistema desmoronar, haverá
um período de caos, uma “etapa conflituosa”, como ou-
tras anteriormente ocorridas em diversas épocas ao longo
da história. É impossível prever-se o que surgirá após esse
período de incertezas, porém, de qualquer modo, ofe-
receria uma nova oportunidade para a espécie humana.
O perigo maior seria de que a sociedade industrial fosse
reconstituída durante os anos imediatamente posteriores
ao colapso. Certamente, haveria muita gente — espe-
cialmente aqueles indivíduos sedentos de poder — que
estaria ansiosa por fazer as fábricas voltarem a funcionar.

166. Por conseguinte, se odiamos o estado de ser-


vidão ao qual o sistema industrial está reduzindo a hu-
manidade temos de enfrentar duas tarefas. Primeiro,
devemos nos esforçar por incrementar as tensões sociais
dentro do sistema, para assim aumentar a possibilidade
de que este venha abaixo ou que se debilite o suficiente
para que seja possível confrontá-lo com uma revolução.
Segundo, é necessário desenvolver e propagar uma ideo-
logia que se oponha à tecnologia e ao sistema industrial.
Tal ideologia poderá converter-se no fundamento para
uma revolução contra a sociedade industrial, quando o
sistema estiver debilitado o suficiente (se chegar a se de-
bilitar o suficiente). E essa ideologia ajudará a assegurar

142
que, quando o sistema industrial desmorone (se chegar a
desmoronar), seus escombros sejam arrasados para além
de toda possibilidade de recuperação, de modo que o sis-
tema não possa ser reconstruído. As fábricas deveriam ser
destruídas, os livros técnicos queimados, etc.

O Sofrimento Humano

167. O sistema industrial não irá cair pela mera


consecução da atividade revolucionária. Ele não será vul-
nerável ao ataque revolucionário — a menos que seus
próprios problemas de desenvolvimento acarretem-lhe
dificuldades muito sérias. Desse modo, se o sistema des-
moronar, isso se dará de um modo espontâneo — ou,
então, mediante um processo que, por um lado, manterá
essa espontaneidade, conquanto, por outro lado, será fa-
vorecido pelos revolucionários. Se o colapso for repenti-
no, muita gente morrerá, já que a população mundial se
tornou tão desmesuradamente grande que, sem tecno-
logia avançada, já não poderá alimentar-se a si mesma.
E mesmo se o colapso se produzir de maneira suficien-
temente gradual para que seja possível algum descenso
populacional, mediante uma redução na taxa de natali-
dade em lugar de uma ampliação na taxa de mortalidade,
o processo de desindustrialização, provavelmente, será
demasiadamente caótico e provocará muito sofrimento.
É uma ingenuidade pensar que a tecnologia poderá ser
abandonada tranquila e ordenadamente, sobretudo por
que os tecnófilos resistirão tenazmente. É cruel, portan-

143
to, que nos esforcemos para favorecer o colapso do siste-
ma? Pode ser que sim — ou que não. Em primeiro lugar,
os revolucionários nem mesmo poderão derrubar o siste-
ma se este não estiver tanto e a tal ponto debilitado que,
daí então, já haveria uma grande possibilidade, de todo
modo, de que ele acabasse se afundando por si mesmo. E
quanto maior o sistema se tornasse, mais desastrosas se-
riam as consequências de seu afundamento; assim, pode
até mesmo ser que, ao acelerarem a chegada do colap-
so, os revolucionários estejam, na realidade, reduzindo a
magnitude desse desastre.

168. Em segundo lugar: haverá que se sopesar —


ou a luta e a morte, ou a perda da liberdade e da digni-
dade. Para muitos de nós, a liberdade e a dignidade são
mais importantes que a longevidade ou que a evitação
da dor física. Ademais, todos haveremos de morrer, an-
tes ou depois, e pode até ser melhor morrer lutando pela
sobrevivência, ou por uma causa, que viver uma longa
vida — porém vazia e sem sentido.

169. Em terceiro lugar, não é certo, em absoluto,


que a sobrevivência do sistema possa nos fazer esperar
menos sofrimento que o provocado por seu colapso. O
sistema já tem causado — e vai seguir causando — um
imenso sofrimento em todos os lugares. Culturas antigas,
que durante centenas ou milhares de anos proporciona-
ram a seus membros formas satisfatórias para relaciona-
rem-se entre si e com seu meio, têm sido destruídas pelo
contato com a sociedade industrial, e como resultado

144
temos um enorme rol de problemas econômicos, am-
bientais, sociais e psicológicos. Um dos efeitos da intro-
missão da sociedade industrial foi o de que muitos dos
mecanismos tradicionais de controle demográfico têm
sido alterados. Como consequência disso, vem ocorren-
do um crescimento explosivo da população, com tudo
o que isso provoca. Ademais, há o sofrimento psicológi-
co, que se acha amplamente espalhado entre a população
dos supostamente afortunados países do Ocidente (ver
parágrafos 44 e 45). Ninguém sabe que consequências
trarão a destruição da camada de ozônio, o efeito estufa
e outros problemas ambientais que nem sequer podem
ser previstos ainda, e, como já ficou demonstrado com a
proliferação das armas nucleares, nenhuma nova tecnolo-
gia pode ser mantida afastada do alcance dos ditadores ou
de irresponsáveis nações do Terceiro Mundo. Pensemos
como e para que utilizariam a engenharia genética, se o
pudessem, o Iraque38 ou a Coreia do Norte.

170. “Oh!” — dizem os tecnófilos — “A ciência en-


contrará uma solução para todos esses problemas! Acabare-
mos com a fome, eliminaremos o sofrimento psicológico,

38 A Sociedade Industrial e Seu Futuro é uma obra que foi escrita


cerca do ano de 1995 e então, portanto, ainda não se haviam produ-
zido os acontecimentos que levaram à invasão do Iraque pelos Estados
Unidos e por alguns de seus aliados europeus em 2003, e a conse-
quente queda do regime de Saddam Hussein — ex-ditador iraquiano
deposto em 2003 e executado em 2006. Hoje em dia, quando desta
edição, talvez fosse mais apropriado mencionar qualquer outro país
em vias de desenvolvimento e com aspirações militares — como o Irã.

145
faremos com que todo mundo esteja são e contente!” —
pois sim, vão acreditando. Isso é o mesmo que se dizia já
há uns duzentos anos. Supunha-se, por aquela época, que a
Revolução Industrial faria desaparecer a pobreza, que faria
com que todo mundo fosse feliz, etc. As consequências re-
ais têm sido bem distintas. Os tecnófilos são irremediavel-
mente ingênuos (ou se autoiludem) em sua forma de en-
tender os problemas sociais. Não se apercebem (ou optam
pela ignorância) do fato que quando as grandes mudanças,
inclusive as aparentemente benéficas, são levadas a termo
numa sociedade, essas mudanças, por sua vez, desenca-
deiam uma longa sequência de outras novas mudanças, a
maior parte das quais são impossíveis de se prever (pará-
grafo 103). O resultado é a desestabilização da sociedade.
Desse modo, é muito provável que, com seus intentos de
acabar com a pobreza e a doença, produzir personalidades
dóceis e felizes e coisas desse gênero, os tecnófilos acabem
por criar sistemas sociais que serão terrivelmente conflitu-
osos, mais até que o próprio sistema atual. Por exemplo,
os cientistas alardeiam que acabarão com a fome criando
novas formas de cultivo de alimentos através da engenha-
ria genética. Mas isso permitiria que a população humana
continuasse se expandindo indefinidamente, e bem sabe-
mos que a aglomeração produz um aumento do estresse
e da agressão. Esse é só um exemplo dos problemas PRE-
VISÍVEIS que iriam surgir. Queremos insistir em que, tal
como tem mostrado nossa experiência passada, o progresso
tecnológico acarretará outros novos problemas que NÃO
PODERÃO ser previstos de antemão (parágrafo 103). De
fato, com a Revolução Industrial, a tecnologia tem estado

146
sempre criando novos problemas para a sociedade, muito
mais rapidamente que vem resolvendo os antigos. Por isso,
aos tecnófilos será exigido um longo e difícil processo de
tentativa e erro para livrar seu Admirável Novo Mundo
de todos os defeitos (se é que algum dia o consigam). E,
enquanto isso, produzir-se-á uma grande quantidade de
sofrimento. Assim, não está totalmente claro que a sobre-
vivência da sociedade industrial implique menos sofrimen-
to que provocaria o seu colapso. A tecnologia tem metido
a humanidade num imbróglio que não parece ter qualquer
solução fácil.

O Futuro

171. Mas suponhamos, agora, que a sociedade in-


dustrial chegue a sobreviver às próximas décadas e que,
finalmente, chegue a desvencilhar-se de seus defeitos, de
modo que o sistema funcione, então, sem entraves. Que
tipo de sistema seria esse? Consideraremos algumas pos-
sibilidades diversas.

172. Primeiramente, iremos propor a hipótese de


que os engenheiros de computação chegassem a desen-
volver máquinas inteligentes, as quais pudessem fazer
melhor tudo o que fazem os seres humanos. Em tal caso,
possivelmente, todo o trabalho seria realizado por vastos
e altamente organizados sistemas de máquinas, e não se-
ria necessário que os seres humanos realizassem qualquer
esforço. Aí então, poderia se produzir um destes dois

147
cenários possíveis: ou bem se acabaria permitindo que
as máquinas tomassem todas as decisões por si mesmas,
sem a supervisão dos seres humanos, ou bem os seres hu-
manos seguiriam mantendo sua capacidade de controle
sobre as máquinas.

173. Se vier a ser permitido às máquinas que to-


mem todas as decisões por si mesmas, não podere-
mos apontar quais seriam as consequências, já que é
impossível adivinhar como tais máquinas iriam com-
portar-se. Assinalemos somente que, nesse caso, o
destino da humanidade estaria à mercê das máquinas.
Poderia objetar-se que a espécie humana nunca seria
assim tão estúpida, a tal ponto que deixasse todo o
poder nas mãos das máquinas. Mas o que estamos
esboçando aqui não é um caso em que a humani-
dade fosse ceder voluntariamente o poder às máqui-
nas, nem que as máquinas fossem tratar de adonar-se
intencionalmente do poder. O que esboçamos é um
caso em que a espécie humana poderia, facilmente,
deslizar lentamente e sem controle para um estado
tal de dependência das máquinas que já não teria,
na prática, a opção de escolher — tanto que teria de
aceitar todas as decisões que as máquinas tomassem.
Na medida em que a sociedade e os problemas que
ela enfrenta forem cada vez mais complexos, e que as
máquinas forem cada vez mais inteligentes, as pes-
soas permitiriam, paulatinamente, que as máquinas
seguissem tomando cada vez mais as decisões em seu
lugar, simplesmente por que as decisões tomadas pe-

148
las máquinas darão melhores resultados que aquelas
tomadas pelos homens. Ao termo disso, pode ser que
venha um tempo em que as decisões necessárias para
se manter o sistema em funcionamento fiquem tão
complicadas que os seres humanos sejam incapazes
de tomá-las com eficácia. Chegando-se a esse ponto,
na prática, as máquinas teriam todo o controle. As
pessoas já não poderiam desligar as máquinas, já que
delas estariam tão dependentes que desligá-las equi-
valeria a se suicidarem.

174. Por outro lado, é possível que os seres huma-


nos cheguem a manter o controle sobre as máquinas.
Em tal caso, o homem comum poderá ter controle so-
bre certas máquinas particulares de sua propriedade,
tais como o seu carro ou o seu computador pessoal;
contudo, o controle sobre os grandes sistemas de má-
quinas estará nas mãos de uma pequena elite — como
o é hoje em dia, porém, com duas notáveis diferen-
ças. Devido ao avanço das tecnologias, a elite possuirá
maior capacidade de controle sobre as massas; além
disso, pelo fato do trabalho humano já não ser ne-
cessário, as massas serão dispensáveis, um inútil las-
tro para o sistema. Se a elite for desapiedada, pode
ser que, simplesmente, ela decida exterminar a maior
parte da humanidade. Se ela for compassiva, pode ser
que use a propaganda ou outras técnicas psicológicas
ou biológicas para reduzir a taxa de natalidade, até que
a maioria da população humana se extinga, deixando
o mundo, pois, apenas para a elite. Ou então, se a

149
elite for composta por liberais generosos de coração e
mente, pode ser que eles decidam assumir o papel de
bondosos pastores do resto da espécie humana. Seu
intento será o de que todos tenham suas necessidades
físicas satisfeitas, que todas as crianças sejam criadas
em condições psicologicamente saudáveis, que todos
tenham um equilibrado e construtivo passatempo para
manterem-se ocupados e que qualquer pessoa que
possa chegar a sentir-se descontente seja submetida a
um “tratamento” — para curar esse seu “distúrbio”.
Bem entendido, nesse caso, a vida ficará de tal modo
destituída de sentido que as pessoas terão de ser ma-
nipuladas, biológica ou psicologicamente, seja para
eliminar sua necessidade de experimentar o processo
de poder, seja para fazer com que sintam “aplacada”
essa necessidade com a mera prática de algum passa-
tempo inofensivo. Esses seres humanos modificados,
numa sociedade assim como essa, talvez sejam mesmo
felizes, até; no entanto, bem claro está que não serão
livres. Terão sido reduzidos, então, a uma condição de
animais domésticos.

175. Mas suponhamos, agora, que os engenheiros


de computação jamais cheguem a desenvolver tal inte-
ligência artificial, de modo que o trabalho humano siga
ainda sendo necessário. Mesmo assim, as máquinas se-
rão encarregadas de realizar um número cada vez maior
de tarefas simples, de modo que a mão de obra humana
será cada vez mais desnecessária nos níveis mais baixos
de qualificação. (Vemos que isso já está ocorrendo. Há

150
muita gente para quem conseguir um emprego já fica di-
fícil ou impossível, porque, por motivos intelectuais ou
psicológicos, não podem adquirir formação num nível
suficientemente necessário para serem úteis no atual sis-
tema.) Para aqueles que têm um emprego, serão feitas
cada vez mais exigências: necessitarão cada vez mais de
formação, de mais e mais qualificação, e deverão ser cada
vez mais e mais conformistas, dóceis e leais ao sistema —
de um modo tal que serão cada dia mais semelhantes às
células de um gigantesco organismo. Suas tarefas serão
cada vez mais especializadas, de maneira que seu trabalho
estará, de certo modo, fora do contato com o mundo real,
centrados numa diminuta fração da realidade. O sistema
terá de utilizar qualquer meio possível, seja psicológico
ou biológico, com o objetivo de manipular as pessoas
para mantê-las dóceis, fazer que apresentem as capacida-
des que o sistema exige e fazer que sintam sua necessida-
de de poder “aplacada” pela realização de alguma tarefa
especializada. Mas essa afirmação, que as pessoas de uma
sociedade tal terão de ser dóceis, exige uma consideração.
A competência talvez seja útil para tal sociedade, sempre
que se desenvolvam maneiras de se manter essa compe-
tência dentro de alguns limites — os quais levem-na a
servir às necessidades do sistema. Podemos imaginar uma
sociedade futura na qual ocorra uma interminável con-
corrência por posições de prestígio e poder. Mas somente
uns poucos chegarão a alcançar o topo, onde se encontra
o único poder real (veja-se o final do parágrafo 163). É
de causar repulsa, uma sociedade tal — na qual, para se
alcançar uma satisfação de sua necessidade de poder, uma

151
pessoa tenha de por muitos outros concorrentes para fora
dessa corrida, privando-os, assim, da SUA própria possi-
bilidade de alcançar o poder.

176. Pode-se imaginar possíveis cenários que in-


corporem aspectos de mais de uma das possibilidades
que acabamos de comentar. Num exemplo, as máquinas
poderão encarregar-se da maior parte do trabalho real-
mente importante e prático, e contudo, manterem-se
ainda ocupados os seres humanos, encarregando-se-lhes
da realização de tarefas relativamente pouco importan-
tes. Há quem tenha sugerido, por exemplo, que o gran-
de desenvolvimento do setor de serviços dará trabalho
aos seres humanos, numa sociedade futura. Assim, as
pessoas dessa sociedade passariam seu tempo lustrando
os sapatos umas das outras, transportando-se mutua-
mente de táxi, servindo-se às mesas entre si, produzin-
do artesanato umas para as outras, etc. Isso nos parece
um fecho totalmente degradante para a raça humana, e
duvidamos que muitos indivíduos considerassem plena
uma vida dedicada a realizar tais tarefas sem sentido.
Buscariam algumas outras formas perigosas de alívio
(drogas, delinquência, certas seitas excêntricas, grupos
que fomentam o ódio), a não ser que fossem manipula-
dos biológica ou psicologicamente para se adaptarem a
semelhante modo de vida.

177. Sem dúvida, os cenários antes mencionados


não esgotam todas as possibilidades. Esses cenários só
indicam as situações futuras que, parecem-nos, são

152
as mais prováveis. Mas, de todo modo, não imagina-
mos qualquer possível cenário que se mostre menos
repugnante que esses que descrevemos. É muitíssimo
provável que, se o sistema sobreviver nos próximos 40
ou 100 anos, daí então terá desenvolvido certas carac-
terísticas gerais: os indivíduos (ao menos os de tipo
“burguês”, que estão integrados ao sistema e fazem
com que este funcione, e que, em consequência, têm
todo o poder) serão mais dependentes que nunca das
grandes organizações; estarão mais “socializados” que
nunca, e suas características físicas e mentais serão, em
certa medida (possivelmente, em grande medida), um
produto da manipulação, em vez de serem o resultado
do acaso (ou da vontade divina, ou seja lá do que for);
e tudo o que ainda puder haver da Natureza selvagem
terá sido reduzido a restos preservados para estudos e
mantidos sob a supervisão e gestão de cientistas (pelo
que já não serão verdadeiramente selvagens). Em lon-
go prazo (digamos que seja dentro de poucos séculos),
é provável que nem a espécie humana e nem qualquer
outra espécie importante existam tais como as conhe-
cemos hoje em dia, porque, uma vez que se comece a
modificar os organismos através da engenharia genéti-
ca, não haverá motivo para se deixar de continuar a fa-
zê-lo ao se chegar a um determinado ponto, de modo
que as modificações provavelmente seguirão adiante,
até que o homem e outros organismos tenham sido
completamente transformados.

153
178. Aconteça o que acontecer, é certo que a tec-
nologia está impondo aos seres humanos um novo meio
físico e social radicalmente diferente do amplo leque de
ambientes aos quais a seleção natural vinha adaptando, fí-
sica e psicologicamente, a humanidade. Se o ser humano
não se conformar ao novo meio através de modificações
artificiais, terá então de se adaptar através de um longo e
doloroso processo de seleção “natural”. A primeira possi-
bilidade é bem mais provável que a segunda.

179. O melhor seria rejeitar-se logo o maldito siste-


ma em seu conjunto, e assumir as consequências.

A Estratégia

180. Os tecnófilos estão nos arrastando, a todos,


em sua corrida totalmente imprudente para o desco-
nhecido. Muitas pessoas entendem parcialmente o que
o progresso tecnológico está ocasionando; entretanto,
tomam diante dele uma atitude passiva, pois conside-
ram que isso é algo de inevitável. Mas nós (o FC) não
pensamos que isso seja inevitável. Entendemos que é
algo que pode ser detido, e oferecemos aqui algumas
indicações de como se atuar para detê-lo.

181. Tal como dissemos no parágrafo 166, na atua-


lidade, as duas principais tarefas são promover as tensões
sociais e propagar uma ideologia que se oponha à tecno-
logia e ao sistema industrial. Quando o sistema estiver já

154
suficientemente perturbado e instável, será possível reali-
zar-se uma revolução contra a tecnologia. O modelo seria
similar ao da Revolução Francesa e da Revolução Russa.
As sociedades francesa e russa, durante várias décadas antes
de suas respectivas revoluções, deram mostras de sinais de
tensão e debilitamento, num crescendo. Nesse ínterim, fo-
ram desenvolvendo-se ideologias que ofereciam uma nova
forma de ver o mundo, bem diferente da antiga. No caso
da Rússia, os revolucionários se dedicaram ativamente a
solapar as bases da velha ordem social. Aí então, quando
o sistema já se encontrava submetido a um tensionamento
suficientemente grande (devido à crise financeira, no caso
da França, e a uma derrota militar, no da Rússia), foi des-
truído pela revolução. O que propomos é algo parecido.

182. Poderia objetar-se que a Revolução Francesa e


a Revolução Russa fracassaram. Mas a maioria das revo-
luções tem dois objetivos. Um deles é destruir a velha
forma de sociedade existente, e outro é estabelecer a nova
forma de sociedade imaginada pelos revolucionários. Os
revolucionários franceses e russos fracassaram (por uma
feliz sorte!) ao criar o novo tipo de sociedade com que
sonhavam, no entanto foram muito bem sucedidos em
destruir a sociedade antiga. Nós mesmos não temos ilu-
sões acerca da viabilidade de se criar uma nova forma de
sociedade, algo ideal. Nosso único objetivo é destruir a
forma de sociedade por ora existente.

183. Mas para que uma ideologia alcance um apoio


entusiástico, deve oferecer um ideal positivo para além

155
de um negativo; deve estar A FAVOR DE algo, além de
CONTRÁRIO A algo. O ideal positivo que nós propo-
mos é a Natureza. Ou melhor, a Natureza SELVAGEM:
aqueles aspectos do funcionamento da Terra e dos seres
vivos que são independentes do manejo humano e que
se encontram livres da ingerência e do controle huma-
nos. E consideramos que a natureza humana está inclu-
ída na Natureza selvagem, entendendo-se por natureza
humana aqueles aspectos do funcionamento do indiví-
duo humano que não se sujeitam a qualquer tipo de re-
gulação por parte de uma sociedade organizada, sendo
antes um produto da sorte, ou do livre arbítrio, ou de
Deus (a depender de quais sejam as crenças religiosas ou
filosóficas de cada um).

184. A Natureza constitui-se em um perfeito ideal


o qual opor à tecnologia — por diversos motivos. A Na-
tureza (aquela que se encontra para além da influência
do poder do sistema) é o oposto da tecnologia (a qual
tende a ampliar indefinidamente o poder do sistema). A
maioria das pessoas terá acordo em que a Natureza é bela;
certamente, isso chega a ser algo tremendamente atrativo
para muita gente. Os ecologistas radicais39 JÁ assumiram

39 Pelos mesmos motivos apresentados na nota de rodapé nú-


mero 10, temos de assinalar que, diferentemente de alguns dos
ecologistas radicais estadunidenses, em outros países, os ambien-
talistas que a si mesmos se consideram como “radicais” bem pou-
co ou quase nunca chegam a assumir uma ideologia que exalta a
Natureza e que se opõe à tecnologia — e assim tem sido no Brasil,
por exemplo. [N.T.]

156
uma ideologia que exalta a Natureza e que se opõe à tec-
nologia.[NOTA 30] Não é preciso estabelecer-se qualquer tipo
de utopia quimérica, nem qualquer tipo de nova ordem
social para ajudarmos a Natureza. A Natureza cuida de si
mesma: é uma criação espontânea com existência muito
anterior ao surgimento de qualquer sociedade humana, e,
no decorrer de incontáveis séculos, vários tipos diferentes
de sociedades humanas coexistiram com ela, sem causar-
-lhe um estrago que chegasse a ser demasiadamente gran-
de. Foi com a Revolução Industrial, e somente então, que
o efeito da sociedade humana sobre a Natureza se tornou,
realmente, devastador. Para aliviar-se a pressão sobre a
Natureza, não seria preciso criar qualquer tipo especial
de sistema social — somente será necessário livrarmo-
-nos da sociedade industrial. Pois bem, isso não resolverá
todos os problemas. A sociedade industrial causou já um
enorme estrago à Natureza, e terá de se passar um perío-
do de tempo bem longo até que suas feridas cicatrizem.
Ademais, mesmo as sociedades pré-industriais podiam
provocar significativos estragos à Natureza. Entretanto,
livrarmo-nos da sociedade industrial já seria uma grande
conquista. Aliviaria as piores pressões sofridas pela Natu-
reza, de modo que suas feridas poderiam começar a sarar.
Anularia a capacidade das atuais sociedades organizadas
de estender seu controle sobre a Natureza (incluída, aí, a
natureza humana). Seja qual for o tipo de sociedade que
existir após a desaparição do sistema industrial, o certo é
que nela a maioria das pessoas terá de viver em contato
com a Natureza, porquanto, na ausência de tecnologia
avançada, as pessoas NÃO PODERÃO viver de outro

157
modo. Para poderem se alimentar, terão de ser campo-
neses, pastores, pescadores, caçadores, etc. E, em geral,
a autonomia local tenderá a aumentar, já que a falta de
tecnologia avançada e das comunicações rápidas limitará
os governos ou outras grandes organizações na sua capa-
cidade de controlar as comunidades locais.

185. Quanto às consequências negativas da elimi-


nação da sociedade industrial... pois bem, sempre há um
preço a se pagar. Para se conseguir uma coisa, há que se
perder outra.

186. A maioria das pessoas odeia o conflito psicoló-


gico. Por essa razão, evitam pensar a sério acerca de pro-
blemas sociais difíceis e preferem que tais assuntos lhes
sejam apresentados de uma maneira simples, o preto no
branco: ISTO é bom em tudo e AQUILO em tudo é
mau. Consequentemente, a ideologia revolucionária de-
veria ter dois níveis de desenvolvimento.

187. Em sua forma mais bem elaborada, a ideologia


deveria dirigir-se às pessoas inteligentes, reflexivas e racio-
nais. O objetivo deveria ser a criação de um núcleo de pes-
soas que se opusessem ao sistema de um modo racional e
meditado, com uma percepção adequada dos problemas
e das complicações envolvidas, bem como do preço a se
pagar em troca de nos livrarmos do sistema. É especial-
mente importante atrair esse tipo de gente, já que esse é
um tipo capaz e que será muito útil quando se tratar de
influenciar aos demais. Se haveria de dirigir a essa gente do

158
modo mais racional possível. Os fatos jamais deveriam ser
intencionalmente distorcidos e dever-se-ia evitar o uso de
uma linguagem exacerbada. Isso não significa que jamais
se pudesse apelar às emoções; porém, no caso em que se o
fizesse, haveria que se tomar muito cuidado para evitar a
deformação da verdade ou fazer qualquer outra coisa que
abalasse a respeitabilidade intelectual da ideologia.

188. Num segundo nível, a ideologia deveria ser


propagada de uma maneira simplificada, que permitisse
à maioria não reflexiva perceber o conflito entre a tec-
nologia e a Natureza de uma maneira inequívoca. Mas,
mesmo nesse nível, a ideologia não deveria ser expressa
numa linguagem tão vulgar, exagerada ou irracional que
provocasse o distanciamento das pessoas de tipo reflexivo
e racional. A propaganda torpe e desmedida, por vezes,
dá surpreendentes frutos em curto prazo, contudo, em
longo prazo, será mais vantajoso conservar-se a fideli-
dade de um pequeno número de pessoas inteligentes e
comprometidas que exaltar as paixões de uma multidão
irreflexiva e volúvel, que trocará de opinião quando al-
guém mostrar-lhe maior apelo propagandístico. De todo
modo, pode vir a ser necessário agitar-se as massas quan-
do o sistema estiver próximo de seu ponto de colapso e
ocorrer, então, uma luta final entre ideologias rivais para
a definição de qual será a dominante, após o desapareci-
mento da antiga forma de visão de mundo.

189. Antes que chegasse essa luta final, os revolu-


cionários não deveriam esperar que a maioria das pessoas

159
se pusesse ao seu lado. A história é feita por minorias
decididas e ativas, não pela maioria, a qual raramente
tem uma ideia clara e coerente daquilo que quer. Até que
chegue o momento do impulso final[NOTA 31] para a revo-
lução, a tarefa dos revolucionários deverá ser menos a de
ganhar o apoio superficial da maioria que a de construir
um pequeno núcleo de pessoas profundamente compro-
metidas. Quanto à maioria, bastará fazer-lhes saber da
existência da nova ideologia e recordá-la frequentemen-
te; ainda assim, é claro que seria desejável conseguir-se
aquele apoio majoritário, desde que e quando tal apoio
pudesse ser conquistado sem que isso debilitasse o núcleo
de pessoas seriamente comprometidas.

190. Qualquer tipo de conflito social contribui para


que o sistema se desestabilize; contudo, há que se ter cui-
dado com o tipo de conflito que se favorece. A linha de
conflito deverá ser traçada entre a maioria das pessoas e a
elite poderosa da sociedade industrial (políticos, cientis-
tas, dirigentes empresariais, gestores públicos, etc.). Essa
linha NÃO deveria ser traçada entre os revolucionários e
a maioria das pessoas. Por exemplo, seria uma má estraté-
gia que os revolucionários criticassem os estadunidenses
por seus hábitos de consumo. Em lugar disso, o estadu-
nidense médio deveria ser apresentado como uma vítima
da indústria publicitária e do marketing, que o tem en-
ganado para que compre um montão de lixo de que não
necessita, e haveria que se lhe explicar que o moderno
aumento em sua capacidade de consumo é uma muito
pobre compensação em troca da perda de sua liberdade.

160
Qualquer uma das duas formas de se propor o assunto
terá correspondência com os fatos. É uma mera questão
de atitude escolher entre jogar a culpa na indústria pu-
blicitária, por manipular as pessoas, ou culpar as pessoas,
por deixarem-se manipular. Se quisermos uma estratégia
que seja eficaz, em geral, deveremos evitar jogar a culpa
sobre as pessoas.

191. Haveria que se pensar duas vezes antes de se fa-


vorecer qualquer outro conflito social diferente daqueles em
que se confrontam a elite poderosa (que maneja a tecnolo-
gia) e as pessoas em geral (sobre as quais a tecnologia exerce
seu poder). Um motivo para isso é que os demais conflitos
tendem a desviar as atenções dos conflitos importantes (os
que se dão entre a elite poderosa e as pessoas comuns, entre
a tecnologia e a Natureza); outro motivo é que os demais
conflitos podem tender, na realidade, em favor da tecnolo-
gização, já que cada uma das partes envolvidas nesses confli-
tos desejará usar o poder da tecnologia para prevalecer sobre
seus adversários. Isso se percebe claramente nas rivalidades
entre nações. Produz-se também nos conflitos étnicos, den-
tro de cada nação. Por exemplo, nos Estados Unidos, muitos
líderes negros que anseiam em fazer que os afro-americanos
obtenham poder tratam de introduzir indivíduos negros
entre as fileiras da poderosa elite tecnológica. Querem que
os negros ocupem mais postos entre os gestores públicos,
os cientistas, os dirigentes de grandes empresas, etc. Desse
modo, estão contribuindo para que a subcultura afro-ame-
ricana seja absorvida pelo sistema tecnológico. Geralmente,
deveríamos favorecer somente aqueles conflitos que se en-

161
caixem no marco de confronto entre a elite poderosa e as
pessoas comuns, entre a tecnologia e a Natureza.40

192. Mas a forma de se evitar o favorecimento do


conflito étnico NÃO é a militância na defesa dos direitos
das minorias (ver parágrafos 21 e 29). Em vez disso, os
revolucionários deveriam destacar o fato de que, mesmo
que as minorias sofram mais ou menos desvantagens,
essas desvantagens têm uma importância secundária.
Nosso verdadeiro inimigo é o sistema tecnoindustrial,
e, na luta contra esse sistema, as desigualdades étnicas
carecem de importância.

193. O tipo de revolução que temos em mente não


acarretará, necessariamente, um levante armado contra
qualquer governo. Pode ser que implique ou que não im-
plique o uso de violência física — no entanto, não será
uma revolução POLÍTICA. Estará centrada na tecnolo-
gia e na economia, e não na política.[NOTA 32]

194. Provavelmente, os revolucionários deverão


mesmo EVITAR assumir o poder político, de modo le-

40 O conflito fundamental em que se deveria centrar nossa aten-


ção é o conflito entre tecnologia e Natureza. Ainda que promovamos
o conflito entre a elite poderosa e as pessoas comuns, temos de deixar
muito claro que o fomentamos unicamente como um meio para se
alcançar o objetivo de se eliminar a tecnologia moderna e somente
na medida em que isso seja uma faceta do conflito entre tecnologia
e Natureza. Não somos defensores da luta de classes. [Nota de Ted
Kaczynski, acrescentada à versão espanhola (original em inglês).]

162
gal ou ilegalmente, até que o sistema industrial tenha
se debilitado tanto que esteja a ponto de desmoronar,
para que seu fracasso seja, assim, posto em evidência aos
olhos da maioria das pessoas. Vamos supor, por exem-
plo, que algum partido “verde”41 chegasse ao controle
do Congresso dos Estados Unidos, numa eleição. Para
preservar-se íntegro, evitando atraiçoar ou arrefecer
sua própria ideologia, ele teria, consequentemente, de
tomar rigorosas medidas que transformassem o cresci-
mento econômico em decrescimento econômico. Ao
homem comum, os efeitos disso pareceriam desastrosos:
haveria desemprego em massa, redução das comodida-
des, etc. Mesmo que se chegasse a evitar os efeitos mais
perniciosos, através de uma gestão com uma habilidade
sobre-humana, as pessoas ainda teriam de abandonar
os luxos com os quais se teriam viciado. A insatisfação
cresceria, o partido “verde” seria destituído do gover-
no e os revolucionários sofreriam um grave revés. Por
esse motivo, os revolucionários não deveriam intentar
obter poder político, até que o sistema, por si mesmo,
se tivesse tornado tão desastroso que, em havendo qual-
quer privação, esta seria considerada como um efeito do
fracasso do próprio sistema — e não como uma conse-
quência da atuação política dos revolucionários. A re-
volução contra a tecnologia, provavelmente, terá de ser

41 Ao escrevermos este parágrafo 194, imaginamos um partido


“verde” muito mais radical que os partidos que se autodenominam
“verdes” na vida real. Deveríamos ter escrito “partido ecologista radi-
cal” em lugar de “partido verde”. [Nota de Ted Kaczynski, acrescen-
tada à versão espanhola (original em inglês).]

163
uma revolução daqueles de fora do poder político; uma
revolução desde baixo, e não desde cima.

195. A revolução deverá ser internacional e mun-


dial. Não poderá ser realizada primeiramente em alguns
países, seguidos então pelos outros. Sempre que se su-
gere, por exemplo, que os Estados Unidos deveriam de-
sacelerar seu progresso tecnológico ou o seu crescimen-
to econômico, as pessoas ficam histéricas e começam
a vociferar acerca de que, em se ficando atrás no de-
senvolvimento tecnológico, os japoneses tomariam essa
dianteira. Santos robôs! O planeta sairá de sua órbita se
os japoneses chegarem a vender mais automóveis que
os estadunidenses! (O nacionalismo é um grande pro-
motor da tecnologia.) De uma maneira mais razoável, é
costumeiro o argumento que, se os países relativamen-
te democráticos ficassem para trás no desenvolvimento
tecnológico enquanto países desagradavelmente dita-
toriais como a China, o Vietnã ou a Coreia do Norte
continuassem progredindo, ao termo, os ditadores aca-
bariam por dominar o mundo. Essa é, precisamente, a
razão pela qual o sistema industrial deveria ser atacado
simultaneamente em todos os países, na medida em
que isso fosse possível. Certamente, não se pode asse-
gurar que o sistema industrial seria destruído em todo
o mundo aproximadamente ao mesmo tempo, e é até
mesmo possível que, ao se tentar por o sistema abaixo,
se chegasse a deixar que os ditadores tomassem o seu
controle. É um risco que se terá de correr. Além disso,
um risco que vale a pena ser corrido, já que é pequena

164
a diferença entre um sistema industrial “democrático” e
um sistema industrial ditatorial, comparada à diferença
entre um sistema industrial e outro não industrial.[NOTA
33]
Poderíamos mesmo argumentar que seria preferível
um sistema industrial controlado por ditadores, já que
os sistemas ditatoriais têm demonstrado serem inefi-
cientes, e, portanto, parece até ser mais provável que
acabem por desmoronar. Não temos que observar mais
que o caso de Cuba.

196. Os revolucionários poderiam mesmo pro-


por-se a favorecer aquelas medidas que tendam a uni-
ficar a economia em escala mundial. Os acordos de
livre comércio como o NAFTA e o GATT,42 prova-
velmente, são danosos para o meio ambiente, num
curto prazo; porém, futuramente, talvez possam ser
vantajosos, já que fomentam a interdependência eco-
nômica das nações. Será mais fácil destruir o sistema
industrial, em nível mundial, no caso em que a eco-
nomia internacional esteja tão unificada que o colap-
so econômico num país importante levasse à queda
nos demais países industrializados.

42 NAFTA: North American Free Trade Agreement — tratativa


de redução de custos na troca de mercadorias entre o Canadá, os
Estados Unidos e o México, que tem o Chile como associado, váli-
da desde 1994.
GATT: General Agreement on Tariffs and Trade — institui-
ção para a regulamentação das políticas aduaneiras entre os paí-
ses participantes da Organização Mundial do Comércio (OMC),
criada em 1947.

165
197. Algumas pessoas são de opinião que o ho-
mem moderno tem demasiado poder, demasiado con-
trole sobre a Natureza; essas pessoas defendem que a
espécie humana deveria adotar uma atitude mais passi-
va. No melhor dos casos, essas pessoas estão se expres-
sando de uma maneira pouco clara, já que não chegam
a diferenciar o poder que têm AS GRANDES ORGA-
NIZAÇÕES e o poder que têm OS INDIVÍDUOS
e OS PEQUENOS GRUPOS. É um erro defender a
renúncia ao poder e a passividade, porque as pessoas
NECESSITAM ter poder. O homem moderno, en-
tendido como ente coletivo — vale dizer, o sistema
industrial —, tem um imenso poder sobre a Natureza;
e nós (o FC) consideramos que isso é algo ruim. Mas
OS INDIVÍDUOS e OS PEQUENOS GRUPOS
DE INDIVÍDUOS modernos têm muito menos po-
der que um dia teve o homem primitivo. Em geral, o
vasto poder do “homem moderno” sobre a Natureza
não é exercido por indivíduos ou por pequenos gru-
pos, e sim por grandes organizações. Até certo ponto,
o indivíduo moderno comum tem a possibilidade de
utilizar o poder da tecnologia, entretanto, só lhe é per-
mitido fazer isso dentro de uns limites muito estreitos
e somente sob a supervisão e o controle do sistema.
(Necessita-se de uma licença para tudo, e junto com
a licença vêm as normas e as regulações.) O indivíduo
tem somente aqueles poderes tecnológicos que o siste-
ma acha por bem outorgar-lhe. Seu poder PESSOAL
sobre a Natureza é escasso.

166
198. Os INDIVÍDUOS e os PEQUENOS GRU-
POS primitivos tinham realmente um considerável po-
der sobre a Natureza; ou talvez fosse melhor dizer que
tinham poder DENTRO da Natureza. Quando um ho-
mem primitivo necessitava de comida, ele sabia como en-
contrar e preparar raízes comestíveis, como rastrear suas
presas e como caçá-las com armas feitas por ele mesmo.
Ele sabia como proteger-se do calor, do frio, da chuva,
dos animais perigosos, etc. No entanto, o homem pri-
mitivo causava relativamente poucos danos à Natureza,
já que o poder COLETIVO da sociedade primitiva era
insignificante se comparado com o poder COLETIVO
da sociedade industrial.

199. Em vez da defesa da impotência e a passivi-


dade, dever-se-ia defender que o poder do SISTEMA
INDUSTRIAL terá de ser eliminado, posto que isso
AUMENTARIA enormemente o poder e a liberdade dos
INDIVÍDUOS e dos PEQUENOS GRUPOS.

200. Enquanto o sistema industrial não estiver to-


talmente aniquilado, a ÚNICA meta dos revolucionários
deverá ser a destruição do sistema. Outras metas desvia-
riam a atenção e a energia dessa meta principal. E o mais
importante, se os revolucionários se permitirem estabe-
lecer qualquer outra meta que não seja a destruição da
tecnologia, ver-se-ão tentados a usar a tecnologia como
meio para alcançarem essa meta. Ora, se cederem a essa
tentação, cairão novamente na armadilha tecnológica, já
que a tecnologia moderna é um sistema unificado e fir-

167
memente organizado — de modo que, para se conservar
ALGUMAS tecnologias, estariam obrigados a continuar
mantendo A MAIOR PARTE delas e, como consequên-
cia, acabariam somente se desfazendo de umas poucas
tecnologias, de maneira simbólica.

201. Suponha-se, por exemplo, que os revolucio-


nários adotassem a “justiça social” como meta. Bem
conhecemos a natureza humana, a justiça social não
viria sozinha: teriam de impô-la. Para tanto, os revo-
lucionários teriam de manter algo da organização e do
controle centrais. Por isso, necessitariam de transportes
e comunicações, rápidos e à longa distância, e conse-
guintemente, de toda a tecnologia necessária à manu-
tenção dos sistemas de transportes e de comunicações.
Para alimentar e vestir as pessoas pobres, eles teriam de
usar tecnologia agrícola e têxtil. E, assim, sucessivamen-
te. Nesse passo, sua intenção de alcançar a justiça social
obrigá-los-ia a conservar a maioria dos elementos cons-
tituintes do sistema tecnológico. Isso não significa que
tenhamos algo em contrário à justiça social, todavia,
não devemos permitir que isso interfira no intento de
livrarmo-nos do sistema tecnológico.

202. Seria um esforço vão dos revolucionários ten-


tarem atacar o sistema usando tecnologia moderna NE-
NHUMA. Por pouco que seja, ainda deverão usar os
meios de comunicação para difundir a sua mensagem.
Mas só deveriam usar a tecnologia moderna com este
ÚNICO propósito: o de atacar o sistema tecnoindustrial.

168
203. Imagine-se um alcoólatra sentado diante de
um barril de vinho. Vamos supor que ele comece a dizer
a si mesmo: “O vinho não é daninho se se bebe com mo-
deração. Dizem mesmo que, em pequenas quantidades,
é até benéfico! Se tomo só um traguinho, não me fará
mal...” Ora bem, já sabemos no que isso vai dar. Não
devemos esquecer jamais que a humanidade, no que se
refere à tecnologia, é como um alcoólatra diante de um
barril de vinho.

204. Os revolucionários deveriam ter tantos filhos


quanto pudessem. Há fortes evidências científicas de
que, em grande medida, as atitudes sociais são herda-
das. Não queremos sugerir que as atitudes sociais sejam
uma expressão direta da dotação genética das pessoas; no
entanto, parece que os traços da personalidade são em
parte hereditários, e que certos traços da personalidade,
no contexto de nossa sociedade, comumente permitem
que algumas pessoas apresentem mais facilmente tal ou
qual atitude social. Têm-se feito objeções acerca dessas
descobertas, entretanto, essas objeções costumam ser fra-
cas e, aparentemente, estão motivadas ideologicamente.
De todo modo, ninguém nega que os filhos tendem, em
geral, a apresentar atitudes sociais semelhantes às de seus
pais. Para o que aqui nos interessa comentar, não importa
muito como essas atitudes são transmitidas aos filhos, se
geneticamente ou por meio da educação. Em qualquer
desses casos, elas SÃO transmitidas.

169
205. O complicado é que muitas das pessoas que
tendem a se rebelar contra o sistema industrial também
se preocupam com o problema da superpopulação, de
maneira que costumam ter poucos ou nenhuns filhos.
Desse modo, pode ser que estejam deixando o mundo
nas mãos do tipo de gente que apoia — ou ao menos
aceita — o sistema industrial. Para se assegurar o vigor
da próxima geração de revolucionários, a geração atual
deveria se reproduzir copiosamente. Em fazendo isso,
pouco estariam a piorar o problema da superpopula-
ção. E o realmente importante é se desfazer do sistema
industrial, posto que, em se tendo o sistema industrial
desaparecido, a população mundial decrescerá necessa-
riamente (ver parágrafo 167); entretanto, se o sistema
industrial sobreviver, continuará desenvolvendo novas
tecnologias para a produção de alimentos, o que per-
mitirá que a população mundial continue crescendo
quase que indefinidamente.

206. Em respeito à estratégia revolucionária, os úni-


cos aspectos em que insistimos, de maneira categórica,
são que a única e principal meta deve ser a eliminação da
tecnologia moderna e que não se deve permitir que qual-
quer outra meta venha com ela a competir. No que con-
cerne ao restante, os revolucionários devem adotar um
enfoque empírico. Se a experiência indicar que algumas
das recomendações feitas nos parágrafos anteriores não
irão dar bons resultados, seria então um caso em que tais
recomendações deveriam ser descartadas.

170
Os Dois Tipos de Tecnologia

207. Uma possível objeção que se poderia opor à re-


volução que propomos é que esta proposta estaria conde-
nada ao fracasso, posto que (segundo se afirma), ao longo
da história, a tecnologia teria sempre avançado, nunca
teria sofrido retrocessos — pelo que, pois, uma regressão
tecnológica seria impossível. Mas tal afirmação é falsa.

208. Nós distinguimos dois tipos de tecnologia, às


quais chamamos de tecnologia de pequena escala e de tec-
nologia dependente de grandes organizações. A primeira é
aquela tecnologia que pode ser usada por comunidades
de pequena escala sem uma assistência externa. A se-
gunda é aquela tecnologia que implica inevitavelmente
a existência de organizações sociais de grande escala. Não
conhecemos qualquer caso notável de regressão na tecno-
logia de pequena escala.43 Mas a tecnologia dependente
das organizações de grande escala passa SIM a regredir
quando a organização social da qual depende se desa-
grega. Um exemplo: quando o Império Romano caiu, a
tecnologia romana de pequena escala sobreviveu, já que
qualquer artesão rural habilidoso era capaz de construir,
seguindo-se esse exemplo, a roda de um moinho de água,

43 [Na realidade,] pode-se encontrar exemplos de regressão da


tecnologia de pequena escala. No entanto, isso só reforça mais ain-
da aquele argumento exposto nos parágrafos 208-211, cujo pro-
pósito é o de rebater a afirmação que a regressão tecnológica é im-
possível. [Nota de Ted Kaczynski, acrescentada à versão espanhola
(original em inglês).]

171
qualquer ferreiro habilidoso podia fabricar o aço a par-
tir dos métodos romanos, etc. Mas a tecnologia roma-
na dependente de grandes organizações passou SIM por
uma regressão. Seus aquedutos deixaram de ser repara-
dos, foram abandonados e nunca foram reconstruídos.
Suas técnicas de pavimentação se perderam. O sistema
romano de saneamento urbano caiu no esquecimento,
de uma forma que, até em épocas recentes, o saneamento
das cidades europeias não havia voltado a se igualar ao da
Roma Antiga.

209. A razão pela qual a tecnologia nos aparen-


ta sempre avançar é que antes — cerca de um ou dois
séculos até a Revolução Industrial — a tecnologia, em
sua maior parte, era tecnologia de pequena escala. Mas
a maior parte da tecnologia desenvolvida a partir da Re-
volução Industrial é tecnologia dependente de grandes
organizações. Tome-se, como exemplo, a câmara frigorí-
fica. Seria virtualmente impossível que, sem as adequadas
peças de fábrica ou sem as instalações e equipamentos
de uma oficina industrial, um bocado de artesãos locais
fabricasse uma câmara frigorífica. Se mesmo assim, por
algum tipo de milagre, conseguissem fabricá-la, ela ainda
seria inútil sem um constante fornecimento de energia
elétrica. Daí então que teriam de represar um riacho, e
de fabricar um gerador. Ora, os geradores requerem uma
grande quantidade de fio de cobre. Pensemos no quão
difícil seria a produção desse arame, sem a maquinaria
moderna. E onde encontrariam um gás adequado para
a refrigeração? Seria muito mais simples a fabricação de

172
um depósito para a neve, ou a conservação dos alimentos
secando-os ou salgando-os — como era feito antes da
invenção da câmara frigorífica.

210. Claro está, pois, que a tecnologia da refrigera-


ção, caso o sistema industrial fosse completamente des-
truído, perder-se-ia rapidamente. O mesmo vale para as
demais tecnologias dependentes de grandes organizações.
Além disso, tendo transcorrida aproximadamente uma
geração a partir do momento da perda dessa tecnologia,
já se levaria séculos para recuperá-la, como se levou sé-
culos para criá-la pela primeira vez. Os livros técnicos
que sobrassem seriam poucos e estariam dispersos. Uma
sociedade industrial, se for levantada sem ajuda externa
desde o zero, só pode ser construída em se passando por
uma série de etapas: são necessárias ferramentas para fa-
bricar outras ferramentas para fabricar mais ferramentas...
Faz-se necessário um longo processo de desenvolvimento
da economia e da organização social. E, ainda, mesmo
que não houvesse qualquer ideologia que se opusesse à
tecnologia, não há razão para se acreditar que alguém es-
taria interessado em reconstruir a sociedade industrial. O
entusiasmo com o “progresso” é um fenômeno próprio
das formas modernas de sociedade, e parece não ter ainda
existido muito antes do século XVII.

211. Ao final da Idade Média, as quatro civiliza-


ções que se equivaliam como mais “avançadas” eram:
a Europa, o mundo islâmico, a Índia e o Extremo
Oriente (China, Japão e Coreia) — todas com um

173
grau similar de desenvolvimento. Três dessas civili-
zações permaneceram mais ou menos estáveis, e só a
Europa veio a tornar-se dinâmica. Ninguém sabe dizer
por que a Europa, por essa época, tornou-se dinâmica;
os historiadores têm elaborado suas teorias, as quais
não são, porém, mais que especulações. Seja como for,
está claro que o desenvolvimento acelerado até uma
forma tecnológica de sociedade ocorre apenas em si-
tuações especiais. Assim é que não existe motivo para
admitir-se que uma regressão tecnológica duradoura
não possa ser levada a termo.

212. A sociedade acabaria, AFINAL, desenvol-


vendo-se até adquirir novamente um caráter tecnoin-
dustrial? Pode ser que sim; porém é inútil, por ora,
preocuparmo-nos com isso, uma vez que não pode-
mos prever nem controlar acontecimentos que pode-
rão ter vez dentro de 500 ou 1000 anos. Tais proble-
mas, quem terá de enfrentá-los serão as pessoas que
viverem nessa época.

O Perigo do Esquerdismo

213. Devido à sua necessidade de rebelar-se e de


pertencer a um movimento, os esquerdistas ou outras
pessoas de tipos psicológicos assemelhados, frequente-
mente, sentem-se atraídos por movimentos rebeldes ou
ativistas cujas metas e membros, de início, não seriam
esquerdistas. A influência exercida por esses tipos de

174
tendência esquerdista poderá facilmente transformar
em esquerdista um movimento qualquer que, inicial-
mente, não fosse esquerdista — de modo que as metas
esquerdistas acabam por substituir ou desfigurar as me-
tas originais do movimento.

214. Para evitar que isso se suceda, um movimen-


to que exalte a Natureza e se oponha à tecnologia deve
adotar um posicionamento resolutamente antiesquer-
dista, e deve evitar toda colaboração com esquerdistas.
O esquerdismo, em longo prazo, resulta ser incompatí-
vel com a Natureza selvagem, com a liberdade humana
e com a eliminação da tecnologia moderna. O esquer-
dismo é coletivista; pretende transformar o mundo
inteiro (tanto a Natureza quanto a espécie humana)
num todo unificado. Mas isso implica a gestão da Na-
tureza e da vida humana por uma sociedade humana
organizada, e demanda tecnologia avançada para ser
realizado. Não se pode manter um mundo unido sem
transportes nem comunicações rápidos e à longa dis-
tância, não se pode fazer que todo mundo ame a todo
mundo sem sofisticadas técnicas psicológicas, não se
pode conseguir uma “sociedade planificada” sem os
meios tecnológicos necessários. Antes de tudo, o es-
querdismo encontra-se impulsionado pela necessidade
de poder,44 e os esquerdistas buscam poder de maneira

44 “[Aqui] se poderia e, talvez, se deveria ter escrito: ‘O es-


querdismo encontra-se impulsionado pela necessidade de poder
e pela necessidade de experimentar o processo de poder.’” [Ted
Kaczynski, em carta a Último Reducto — de 21/03/2009 (original

175
coletiva, através da identificação com um movimento
de massas ou uma organização. E é pouco provável
que o esquerdismo, algum dia, chegue a abandonar a
tecnologia, porque a tecnologia é uma fonte de poder
coletivo demasiado valiosa.

215. Os anarquistas[NOTA 34] também buscam o


poder, porém o buscam de maneira individual ou em
pequenos grupos; querem que os indivíduos e os pe-
quenos grupos sejam capazes de controlar as circuns-
tâncias de suas próprias vidas. Opõem-se à tecnolo-
gia porque ela faz os pequenos grupos dependerem de
grandes organizações.

216. Alguns esquerdistas talvez pareçam opor-


-se à tecnologia, contudo, opõem-se a ela somente
enquanto são marginalizados pelos círculos de poder
do sistema e este permaneça controlado por gente
não esquerdista. Se o esquerdismo chega a ser pre-
dominante na sociedade, de modo a transformar o
sistema tecnológico numa ferramenta nas mãos dos
esquerdistas, estes irão usá-lo e promoverão o seu
desenvolvimento de maneira entusiástica. Ao fazer
isso, estarão voltando a atuar segundo um padrão de
comportamento que o esquerdismo tem já manifes-
tado repetidas vezes no passado. Na Rússia, quando
os bolcheviques ainda estavam fora do poder, opu-
nham-se vigorosamente à censura e à polícia secreta,
defendiam a autodeterminação das minorias étnicas,

em inglês) — N.T.]

176
etc.; porém, tão logo chegaram ao poder, impuseram
uma férrea censura, criaram uma polícia secreta mais
impiedosa que qualquer outra que tivesse havido no
regime dos czares e oprimiram as minorias étnicas —
pelo menos tanto quanto os czares tinham feito. Nos
Estados Unidos, há um par de décadas, quando os
esquerdistas eram uma minoria em nossas universida-
des, os professores esquerdistas eram firmes defenso-
res da liberdade de cátedra; entretanto, hoje em dia,
naquelas de nossas universidades nas quais os esquer-
distas acabaram predominando, estes têm demons-
trado estar dispostos a eliminar a liberdade de cátedra
de todos os demais. (Isto é a “correção política”.) E o
mesmo sucederá aos esquerdistas e à tecnologia: irão
usá-la para oprimir as demais pessoas — se, por fim,
alcançarem o seu controle.

217. Nas revoluções anteriores, aqueles esquer-


distas com maior sede de poder, por repetidas vezes,
cooperaram com revolucionários não esquerdistas, as-
sim como com outros esquerdistas de tendências mais
libertárias, e depois os atraiçoaram, com o objetivo de
conseguir poder para si mesmos. Robespierre fez isso
na Revolução Francesa, os bolcheviques o fizeram na
Revolução Russa, os comunistas o fizeram na Espanha
em 193845 e Castro e seus sequazes o fizeram em Cuba.

45 Na realidade, o ano correto é o de 1937, dado que os princi-


pais acontecimentos que levaram os comunistas stalinistas a terem
maior poder político e militar ocorreram nesse ano. [Nota da edi-
ção de Isumatag.]

177
Vendo-se a história do esquerdismo, seria totalmente
estúpido que os revolucionários não esquerdistas cola-
borassem com os esquerdistas, hoje em dia.

218. Vários pensadores têm assinalado que o esquer-


dismo é uma forma de religião. O esquerdismo não é uma
religião no sentido estrito, porque a doutrina esquerdis-
ta não defende a existência de qualquer ser sobrenatural.
Mas, para o esquerdista, o esquerdismo joga um impor-
tante papel psicológico, similar ao que a religião desem-
penha para algumas pessoas. O esquerdista NECESSITA
crer no esquerdismo — isso joga um papel vital em sua
psicologia. Suas crenças não podem ser modificadas facil-
mente, através da lógica e dos fatos. Tem uma profunda
convicção de que o esquerdismo é moralmente Corre-
to, com “C” maiúsculo, e de que tem não só o direito
como o dever de impor a moralidade esquerdista a todo
mundo. (De qualquer modo, muitas das pessoas às quais
estamos nos referindo como “esquerdistas” não se consi-
deram a si mesmas como esquerdistas e não chamariam
de esquerdismo o seu sistema de crenças. Usamos o ter-
mo “esquerdismo” porque não conhecemos outro termo
melhor para designar o conjunto de crenças aparentadas
que engloba o movimento feminista, o movimento a fa-
vor dos direitos dos homossexuais, em defesa da correção
política, etc., e porque esses movimentos guardam uma
estreita afinidade com a velha esquerda. Vejam-se os pa-
rágrafos 227-230.)

178
219. O esquerdismo é uma tendência totalitária.
Sempre que o esquerdismo ascende a uma posição de
poder, tende a invadir até o último recanto de privaci-
dade e a fazer que todo o pensamento fique encerrado
dentro dos moldes esquerdistas. Isso se deve, em parte,
ao caráter semirreligioso do esquerdismo: todo aque-
le que for contra as ideias esquerdistas representará o
Pecado. Algo mais importante ainda: devido à neces-
sidade de poder dos esquerdistas, o esquerdismo é um
impulso totalitário. O esquerdista busca satisfazer sua
necessidade de poder através da identificação com al-
gum movimento social, e trata de experimentar o pro-
cesso de poder ajudando a perseguir e atingir as metas
desse movimento (ver parágrafo 83). Mas não importa
o quanto o movimento tenha avançado na consecução
de suas metas — o esquerdista nunca fica satisfeito,
porque seu ativismo é uma atividade substitutiva (ver
parágrafo 41). Vale dizer, o verdadeiro motivo do ati-
vismo do esquerdista não é a consecução das supostas
metas do esquerdismo; na realidade, o que motiva seu
ativismo é a sensação de poder que obtém ao lutar por
uma meta social qualquer e, depois, alcançá-la.[NOTA
35]
Por conseguinte, o esquerdista nunca fica satisfei-
to com as metas que já alcançou; sua necessidade de
poder o leva a sempre perseguir alguma nova meta. O
esquerdista deseja igualdade de oportunidades para as
minorias. Quando a consegue, insiste em alcançar a
igualdade estatística de ganhos reais pelas minorias. Se
alguém abriga, em algum recanto de sua mente, uma
atitude negativa em relação a alguma minoria, o es-

179
querdista tem de reeducar essa pessoa. E as minorias
étnicas não são o suficiente; não pode permitir a quem
quer que seja que mantenha qualquer atitude negativa
em relação aos homossexuais, aos inválidos, aos gor-
dos, aos velhos, aos feios, etc. Não basta que as pessoas
devam ser informadas acerca dos riscos do fumo — há
que se imprimir uma advertência em cada pacote de
cigarros. A publicidade dos cigarros, se não é proibi-
da, deve ao menos ser restringida. Os ativistas jamais
ficarão satisfeitos até que o tabaco seja tornado ilegal;
e depois o álcool, posteriormente a comida gordurosa,
etc. Os ativistas têm combatido os maus-tratos infan-
tis mais brutais, o que é razoável. Mas, agora, querem
impedir que se aplique qualquer tipo de castigo físico
às crianças, até mesmo dar-lhes uma surra no traseiro.
Quando tiverem conseguido tornar ilegais as surras no
traseiro, vão se dedicar a tentar fazer proibir qualquer
outra coisa que considerem prejudicial para as crianças,
depois outra, e logo outra mais. Nunca ficarão satisfei-
tos até que tenham o completo controle sobre todas
as práticas da criação e da formação das crianças. E,
então, buscarão outra causa pela qual passem a lutar.

220. Vamos supor que se pedisse aos esquerdistas


que fizessem uma lista com TODAS as coisas que qui-
sessem mudar na sociedade, e que depois TODAS essas
mudanças sociais, por eles demandadas, se realizassem.
Podemos ficar seguros de que, em poucos anos, a maioria
dos esquerdistas teria tornado a encontrar alguma outra
coisa da qual se queixarem, um novo “mal” social para se

180
corrigir; isso por que, repetimos, o esquerdista está mo-
tivado menos pela aflição que lhe causam os males da
sociedade que pela satisfação de sua necessidade de poder
ao impor suas soluções à sociedade.

221. Devido às restrições que seu alto grau de


socialização impõe a seu pensamento e à sua condu-
ta, muitos esquerdistas do tipo sobressocializado não
podem tratar de conseguir poder46 do modo como o
fazem outras pessoas. Para eles, há somente uma forma
moralmente aceitável de satisfazer sua necessidade de
poder, a qual consiste na luta por impor sua moralida-
de a todos os demais.

222. Os esquerdistas, especialmente os do tipo so-


bressocializado, são fanáticos no sentido a que Eric Ho-

46 “Nos parágrafos 221 e 224, o uso das expressões ‘tratar de


conseguir poder’, ‘necessidade de poder’ e ‘sede de poder’ pressupõe
um verdadeiro problema. (…) Em um sentido mais geral, a palavra
‘poder’ pode significar a capacidade de se fazer algo (…), porém,
num sentido mais restrito, refere-se somente ao poder sobre outra
pessoa. A expressão ‘sede de poder’ refere-se sempre ao poder em
seu sentido mais restrito. Dizemos que alguém tem ‘sede de poder’
somente se sente um desejo intenso de obter poder sobre outra
pessoa. Nos parágrafos 221 e 224, usamos a palavra ‘poder’ em seu
sentido mais restrito: referindo-nos ao poder sobre outras pessoas.”
[Ted Kaczynski, em carta a Último Reducto — de 21/03/2009
(original em inglês) — N.T.]

181
ffer47 se refere em seu livro — The True Believer48. Mas
nem todos os fanáticos são do mesmo tipo psicológico
dos esquerdistas. Seguramente, um nazista fanático, por
exemplo, é psicologicamente muito diferente de um es-
querdista fanático. Devido à sua capacidade de devotar-
-se obstinadamente a uma causa, os fanáticos são um in-
grediente útil, talvez mesmo imprescindível, de qualquer
movimento revolucionário. Isso representa um proble-
ma — e teremos de reconhecer que não sabemos como
tratá-lo. Não estamos seguros acerca de como aproveitar
a energia do fanático em favor de uma revolução contra
a tecnologia. No momento, tudo o que podemos dizer é
que nenhum fanático representará um recrutamento se-
guro para a revolução, a menos que seu compromisso se
limite única e exclusivamente à destruição da tecnologia.
Afinal, se ele se comprometesse também com qualquer
outro fim, talvez pudesse querer usar a tecnologia como
ferramenta para atingir esse outro fim. (Vejam-se os pa-
rágrafos 200-201.)

223. Alguns leitores talvez digam: “Tudo o que esse


texto diz sobre o esquerdismo não é mais que uma sandi-

47 Eric Hoffer foi um importante filósofo político e psicólogo


social estadunidense. [N.T.]

48 The True Believer (1951) foi o primeiro, o mais conhecido e tido


como o mais importante livro de Eric Hoffer, no qual, entre outros as-
suntos, ele investiga a conexão entre entre autoestima, comportamento
e política — com especial atenção para os casos de governos totalitários.
Existe tradução para o português: Do Fanatismo — O Verdadeiro Cren-
te e a Natureza dos Movimentos de Massas, Guerra e Paz, 2007. [N.T.]

182
ce. Eu conheço Fulano e Beltrana, que simpatizam com
o esquerdismo, e eles não dão mostras de todas essas ten-
dências totalitárias.” É certo que muitos dos esquerdis-
tas, possivelmente mesmo o maior número deles, sejam
uma gente honesta que acredita sinceramente em uma
tolerância (esta, até certo ponto) aos valores das outras
pessoas, e que não quereriam usar métodos despóticos
para alcançar suas metas sociais. Nossas afirmações acerca
do esquerdismo não pretendem ser aplicáveis a todo in-
divíduo esquerdista, porém sim descrever o caráter geral
do esquerdismo, tomado como movimento. E o caráter
geral de um movimento não se faz determinar, necessa-
riamente, pela proporção numérica dos distintos tipos de
pessoas que o constituem.

224. As pessoas que chegam a posições de poder nos


movimentos esquerdistas tendem a ser do tipo de esquer-
distas com maior sede de poder, porque estes últimos são
os que mais duramente se esforçam para chegar a essas
posições. Uma vez que os esquerdistas sedentos de po-
der tomam o controle do movimento, há muitos outros
esquerdistas de um tipo mais afável que, em seu foro ín-
timo, desaprovam muitas das ações dos seus dirigentes;
esses, contudo, não são capazes de oferecer enfrentamen-
to à sua direção. Tais esquerdistas NECESSITAM con-
tinuar acreditando no movimento e, como não podem
deixar de acreditar, continuam acatando a autoridade de
seus líderes. É verdade que ALGUNS esquerdistas têm a
gana suficiente para se oporem a essas tendências tota-
litárias; entretanto, no geral, fracassam em seu intento,

183
já que os esquerdistas sedentos de poder, frequentemen-
te, estão mais bem organizados, são mais desapiedados e
maquiavélicos e costumam ter a precaução de construir,
previamente, uma sólida base para seu poder.

225. Fenômenos desse tipo, claramente, ocorre-


ram na Rússia e em outros países nos quais o poder foi
tomado pelos esquerdistas. De um modo similar, antes
que se produzisse a queda do comunismo na URSS, os
ocidentais de orientação esquerdista raramente critica-
vam esse país. Se atiçados, acabavam admitindo que a
URSS tinha muitas coisas ruins, porém tentavam es-
cusar os comunistas e passavam a falar dos defeitos
do Ocidente. Sempre se opunham à resistência mili-
tar frente às agressões comunistas. Os simpatizantes
do esquerdismo de todo o mundo protestaram ener-
gicamente contra a atuação militar estadunidense no
Vietnã, contudo, quando a URSS invadiu o Afeganis-
tão, nada fizeram. E não é que aprovassem as ações
soviéticas; o que então ocorria é que, devido à sua fé
esquerdista, não eram capazes de se posicionar con-
trários ao comunismo. Hoje em dia, naquelas nossas
universidades nas quais a “correção política” se tornou
dominante, é provável que haja muitas pessoas com
inclinações esquerdistas que, privadamente, desapro-
vem a supressão da liberdade de cátedra; porém, de
qualquer maneira, toleram-na.

226. Por conseguinte, o fato de que muitos es-


querdistas, tomados individualmente, sejam pessoas

184
afáveis e tolerantes, não impede de modo algum que
o esquerdismo, tomado como movimento, tenha uma
tendência totalitária.

227. Nossos comentários acerca do esquerdismo so-


frem de uma séria debilidade. Continua pouco claro o
que entendemos por “esquerdista”. Não parece que pos-
samos fazer muita coisa a respeito. O esquerdismo atu-
al está fragmentado num amplo leque de movimentos
ativistas. Contudo, nem todos os movimentos ativistas
são esquerdistas, e alguns movimentos (por exemplo,
o ecologismo radical49) parecem contar em suas fileiras
com pessoas de tipo esquerdista e com pessoas que — em
absoluto — não são esquerdistas, e que deveriam saber
que não convém colaborar com os esquerdistas. Esquer-
distas e não esquerdistas de diversos tipos misturam-se
gradualmente e, no caso de alguns indivíduos, nós mes-
mos muitas vezes estaríamos atrapalhados se tivéssemos
de determinar se são ou não são esquerdistas. Dado que
não está completamente definida, a nossa concepção do
esquerdismo fica expressa pelos comentários que temos

49 Essa afirmação dos autores refere-se ao ecologismo radical es-


tadunidense. Em outros países, no geral, como no caso do Brasil,
dentre os poucos indivíduos ou grupos que adotam uma atitude que
se possa propriamente denominar de “ecologista radical”, aqueles
que não são em absoluto esquerdistas se constituem em raríssimas
exceções, já que, fora dos Estados Unidos, o ecologismo “radical” em
geral — assim como as correntes, grupos e discursos dele aparenta-
dos — está sempre associado e subordinado, de um ou outro modo,
a “lutas” inerentemente esquerdistas. [N.T.]

185
feito nesta obra, e somente podemos aconselhar ao leitor
que use sua própria capacidade de julgamento quando a
decidir quem é um esquerdista.

228. Mas pode ser que seja útil enumerar alguns


critérios para se diagnosticar o esquerdismo. Esses cri-
térios não podem ser aplicados de maneira estrita e ma-
temática. Alguns indivíduos podem se enquadrar em
alguns desses critérios sem serem esquerdistas e alguns
esquerdistas podem não se enquadrar em qualquer um
dos critérios. E, novamente, o leitor deverá usar sua
própria capacidade de julgamento.

229. O esquerdista sente inclinação para o cole-


tivismo em grande escala. Realça o dever do indiví-
duo de servir à sociedade e o dever da sociedade de
cuidar do indivíduo. Tem uma opinião negativa a res-
peito do individualismo. Comumente, adota um tom
moralista. Tende a ficar a favor do controle de armas
de fogo,50 da educação sexual e de outros métodos

50 Novamente, os autores mencionam um exemplo sem muita


validade para fora dos Estados Unidos. No Brasil, por exemplo, os
esquerdistas não costumam preocupar-se muito com a promoção do
controle das armas de fogo pelo governo, apenas pelo fato de que
essa regulação, apoiada em um discurso pela promoção do combate
ao crime, já vinha sendo aplicada nesse país, num crescendo e quase
sem oposição, já há muitos anos. Não é o que ocorre nos Estados
Unidos, onde, na ausência de uma regulação legal mais precisa, uma
parcela da população (em meio a esta, muitos esquerdistas), por um
lado, exige a implantação ou o endurecimento dessa regulação, e,

186
psicopedagógicos “liberais”, do planejamento social,
das ações afirmativas, do multiculturalismo 51. Tende
a se identificar com as vítimas. Tende a ficar contra
a competência e a violência; porém, frequentemen-
te, encontra desculpas para aqueles esquerdistas que
levam a cabo ações violentas. Encanta-lhe usar as ex-
pressões clichês típicas da esquerda, como “racismo”,
“sexismo”, “homofobia”, “capitalismo”, “imperialis-
mo”, “neocolonialismo”, “genocídio”, “mudança so-
cial”, “justiça social”, “responsabilidade social”. Tal-
vez o melhor traço diagnóstico do esquerdista seja sua
tendência a simpatizar com os seguintes movimentos:
feminismo, direitos dos homossexuais, direitos étni-
cos, direitos dos incapacitados, direitos dos animais,
correção política, etc. Quem quer que demonstre
uma forte simpatia por TODOS esses movimentos
é, com quase total segurança, um esquerdista.[NOTA 36]

230. Os esquerdistas mais perigosos, ou seja,


aqueles que têm uma maior sede de poder, muitas
vezes se caracterizam por sua arrogância ou por sua
adesão dogmática à ideologia. No entanto, os esquer-

por outro lado, formam-se grupos organizados em defesa do direito


à posse e ao porte livres de armas de fogo. [N.T.]

51 O “multiculturalismo” é uma ideologia promovida pelos es-


querdistas (…), a qual pretende difundir conhecimentos acerca de
todas as culturas do mundo, sem distinção; todavia, na realidade,
recalca os defeitos da cultura ocidental enquanto minimiza os das
outras culturas. [Nota de Ted Kaczynski, acrescentada à versão espa-
nhola (original em espanhol).]

187
distas mais perigosos de todos talvez sejam certos indi-
víduos sobressocializados, que evitam dar as irritantes
demonstrações de agressividade e se abstém de deixar
transparecer seu esquerdismo, entretanto trabalham
calada e discretamente para promover valores cole-
tivistas, técnicas psicológicas “progressistas” para so-
cializar as crianças, a dependência dos indivíduos em
relação ao sistema, etc. Esses criptoesquerdistas — po-
deríamos assim chamá-los —, no que concerne à ação
prática, assemelham-se a certos indivíduos de tipo
burguês; contudo, deles se diferenciam na psicologia,
na ideologia e na motivação. O burguês típico trata
de submeter as pessoas ao controle pelo sistema para
proteger seu estilo de vida, ou o faz apenas porque suas
atitudes são as convencionais. O criptoesquerdista tra-
ta de submeter as pessoas ao controle pelo sistema por-
que é um fanático, adepto de alguma ideologia coleti-
vista. O criptoesquerdista se diferencia do esquerdista
sobressocializado pelo fato de que sua necessidade de
rebeldia é mais débil e está mais profundamente so-
cializado. Ele se diferencia também do típico burguês
bem socializado pelo fato de que há nele alguma pro-
funda carência, a qual obriga-o a comprometer-se com
uma causa e a diluir-se em uma coletividade. E, talvez,
sua (bem sublimada) sede de poder seja maior que a
do burguês típico.

188
Nota Final

231. Ao longo deste artigo, temos feito afirmações


imprecisas e afirmações que merecem ser interpretadas
com todo tipo de considerações e reservas — e algu-
mas dessas afirmações talvez sejam totalmente falsas. A
falta de informação suficiente e a necessidade de brevi-
dade tornam impossível formular tais asserções de um
modo mais preciso ou acrescentar todas as explicações
necessárias. E, certamente, numa discussão desse tipo,
há que se confiar consideravelmente na capacidade de
juízo intuitivo, e isso, por vezes, pode ser um erro.
Desse modo, não pretendemos que neste escrito se ex-
presse mais que uma rudimentar aproximação no sen-
tido da verdade.

232. De qualquer modo, estamos razoavelmente


seguros de que os traços gerais deste quadro que acaba-
mos de pintar são bastante acertados. Só há um possível
ponto frouxo que precisa de menção. Temos retratado o
esquerdismo em sua forma moderna como um fenômeno
próprio de nosso tempo, e um sintoma da perturbação
do processo de poder. Mas é possível que estejamos equi-
vocados a respeito. É certo que, desde há muito tempo,
existem indivíduos sobressocializados que tratam de sa-
tisfazer sua necessidade de poder impondo sua moralida-
de a todo mundo. Mas PENSAMOS que é uma peculia-
ridade do esquerdismo moderno que os sentimentos de
inferioridade, a baixa autoestima, a impotência, a iden-
tificação com as vítimas da parte de pessoas que não são

189
vítimas elas mesmas desempenhem um papel decisivo em
sua psicologia. A identificação com as vítimas da parte de
pessoas que não são vítimas elas mesmas se pode observar,
em certa medida, no esquerdismo do século XIX e entre
os primeiros cristãos, contudo, pelo que sabemos, os sin-
tomas de baixa autoestima, etc., não eram tão evidentes
nesses movimentos, ou em quaisquer outros movimen-
tos, como o são no esquerdismo moderno. No entanto,
não podemos afirmar com certeza que não tenha havido
qualquer movimento com essas mesmas características e
num grau similar antes do esquerdismo moderno. Essa
é uma questão importante, à qual os historiadores deve-
riam dedicar sua atenção.

Notas

Nota 1 (§ 19). Não pretendemos dar a entender


que todos, nem mesmo uma maioria dos valentões e
dos competidores desapiedados, sofram de sentimen-
tos de inferioridade.

Nota 2 (§ 25). Durante a época vitoriana, muita


gente sobressocializada sofria sérios problemas psicológi-
cos causados pela repressão ou pela própria tentativa de
reprimir seus sentimentos sexuais. Freud, aparentemente,
embasou suas teorias nesse tipo de gente. Nos dias atuais,
a socialização tem deixado de concentrar-se na repressão
do sexo para concentrar-se na repressão da agressão.

190
Nota 3 (§ 27). Isso não inclui, necessariamente, os
especialistas das engenharias ou das ciências puras.

Nota 4 (§ 28). Há muitos indivíduos de classe mé-


dia e alta que resistem a alguns desses valores, porém,
normalmente, sua resistência está encoberta em maior
ou menor medida. Tal resistência aparece nos meios de
comunicação de massas somente de maneira muito limi-
tada. A tendência dominante da propaganda em nossa
sociedade é em favor dos valores mencionados.
A principal razão pela qual esses valores conver-
teram-se nos valores oficiais de nossa sociedade, por
assim dizer, é que são úteis para o sistema industrial.
A violência é condenada porque perturba o funciona-
mento do sistema. O racismo é condenado porque os
conflitos étnicos também desestabilizam o sistema; e a
discriminação faz que o talento de membros de grupos
minoritários, que poderia resultar útil para o sistema,
não seja aproveitado. A pobreza deve ser erradicada, já
que a classe baixa causa problemas ao sistema e o conta-
to com ela mina os ânimos das outras classes. Animam-
-se as mulheres a desenvolverem carreiras profissionais
por que suas aptidões são úteis para o sistema e, o que
é ainda mais importante, por que, ao terem empregos
normais, as mulheres são integradas ao sistema e ficam
atadas diretamente a ele, em lugar de o ficar às suas
famílias. Isso ajuda a debilitar a solidariedade familiar.
(Os dirigentes do sistema dizem que querem favorecer
a família, todavia, o que isso realmente significa é que
eles querem que a família sirva como uma ferramenta

191
eficaz para socializar seus filhos de acordo com as neces-
sidades do sistema. Nos parágrafos 51 e 52, explicamos
por que o sistema não pode permitir-se deixar que a fa-
mília ou outros grupos sociais de pequena escala sejam
fortes ou autônomos.)

Nota 5 (§ 42). Poderia objetar-se que a maioria dos


indivíduos não quer tomar suas próprias decisões, e que
preferem sim que os líderes pensem por eles. Isso, em par-
te, é certo. Às pessoas lhes agrada tomar suas próprias de-
cisões acerca de pequenos assuntos, contudo, para tomar
decisões concernentes a questões difíceis e fundamentais,
requer-se o enfrentamento de um conflito psicológico, e
a maioria das pessoas odeia os conflitos psicológicos. Por
conseguinte, tendem a buscar a ajuda de outros no mo-
mento de se tomar decisões difíceis. De todo modo, isso
não significa que lhes agrade que se imponham a elas as
decisões sem que tenham qualquer oportunidade de nelas
influir. A maioria das pessoas são naturalmente seguido-
ras, não são líderes — lhes agrada porém ter acesso pessoal
a seus líderes, querem ser capazes de influenciá-los e, até
certo ponto, participar até mesmo na tomada das decisões
difíceis. Necessitam, ao menos, esse grau de autonomia.

Nota 6 (§ 44). Alguns dos sintomas enumerados são


similares aos que manifestam os animais enjaulados.
Explicamos, a seguir, como se produzem esses sinto-
mas a partir de perturbações do processo de poder:
A interpretação da natureza humana através do senso
comum nos indica que a falta de metas cuja consecução

192
exija esforço conduz ao tédio, e que este, quando se man-
tém por muito tempo, frequentemente acaba provocando
depressão. O fracasso na consecução de metas causa frus-
tração e queda da autoestima. A frustração produz enfa-
do, o enfado leva à agressão, o que frequentemente toma
a forma de maus-tratos à esposa ou aos filhos. Observa-
-se que a frustração contínua, durante um longo período
de tempo, frequentemente conduz à depressão, e que esta
tende a causar ansiedade, sentimento de culpa, transtor-
nos da alimentação e do sono e sentimentos ruins acerca
de si mesmo. Aqueles que tendem à depressão buscam o
prazer como antídoto; daí o hedonismo insaciável e o sexo
excessivo, com a prática de perversões para se desfrutar de
novas sensações. O tédio também tende a provocar uma
busca excessiva de prazer, já que, na falta de outras me-
tas, as pessoas frequentemente tomam o prazer como uma
meta. Veja-se o diagrama ao final desta nota.
O que acabamos de mencionar é uma simplificação.
A realidade é mais complexa e, com certeza, a perturba-
ção do processo de poder não é a ÚNICA causa possível
dos sintomas descritos.
Ademais, quando falamos da depressão, não nos re-
ferimos necessariamente às formas de depressão que são
suficientemente graves para serem tratadas por um psi-
quiatra. A depressão a que nos referimos toma frequente-
mente apenas formas leves. E quando falamos de metas,
não nos referimos, necessariamente, a metas meditadas e
em longo prazo. Para muita gente, talvez para a maioria
das pessoas ao longo de grande parte da história da hu-
manidade, as necessidades imediatas da existência (sim-

193
plesmente conseguir o alimento diário para si mesmo e
sua família) têm sido metas mais que suficientes.

Diagrama dos Sintomas Derivados


das Perturbações do Processo de Poder
Ausência de metas cuja Fracasso na consecução
conquista exija esforço de metas

Frustração

Enfado
Aborrecimento
Maus-tratos

Baixa
autoestima

Busca excessiva Ansiedade


de prazer
Tendência à
Culpa
depressão

Transtornos
do sono

Hedonismo Perversões Excessos na Transtornos da


insaciável sexuais alimentação alimentação

Nota 7 (§ 52). Pode-se fazer exceção parcial de al-


guns grupos passivos e fechados, como os “amish”52, os
quais têm pouca influência sobre o resto da sociedade. Es-
ses a parte, existem algumas comunidades genuinamente
de pequena escala nos Estados Unidos da atualidade. Por

52 Seita cristã menonita de origem suíça. Seus membros vivem


em fazendas sem água encanada, eletricidade, telefone ou comodida-
des tecnológicas modernas. [N.T.]

194
exemplo, os bandos juvenis e certas seitas excêntricas53.
Todo mundo os considera perigosos, e realmente o são,
porque os membros desses grupos mostram-se leais uns
com os outros antes que com o sistema, e, portanto, o
sistema não pode controlá-los.
Ou tomemos, como exemplo, os ciganos. Os ciga-
nos geralmente saem impunes das acusações de roubo ou
fraude, porque sua lealdade mútua é tal que sempre en-
contram outros ciganos que testemunhem em seu favor,
“provando” assim a sua inocência. Obviamente, o sistema
teria sérios problemas se muita gente pertencesse a gru-
pos desse tipo.
Alguns dos pensadores chineses do início do século
XX, que estavam preocupados em modernizar a China,
reconheciam a necessidade de se decompor os grupos
sociais de pequena escala, tais como a família: “[Segun-
do Sun Yat-sen] o povo chinês necessitava uma nova in-
jeção de patriotismo, a qual o levasse a transformar sua
lealdade à família em lealdade ao Estado. (...) [Segundo
Li Huang,] os vínculos tradicionais, sobretudo com a
família, tinham de ser abandonados, se se quisesse que
o nacionalismo se desenvolvesse na China.” (Chester C.
Tan, Chinese Political Thought in the Twentieth Century,
ps. 125 e 297.)

53 “Cults”, no original. [N.T.]


Os “cults” são pequenos grupos religiosos cujas crenças ou con-
dutas são pouco compatíveis com os valores do sistema tecnoin-
dustrial. [Nota de Ted Kaczynski, acrescentada à versão espanhola
(original em espanhol).]

195
Nota 8 (§ 56). Sim, sabemos que os Estados Uni-
dos, no século XIX, tinham os seus problemas, e graves;
entretanto, a exigência de brevidade fez com que tivésse-
mos de nos expressar de maneira simplificada.

Nota 9 (§ 61). Estamos falando da população em


geral, ou seja, da sua maioria. Deixaremos de lado, pois,
a classe mais baixa.

Nota 10 (§ 62). Alguns cientistas sociais, educado-


res, profissionais da “saúde mental” e gente desse tipo es-
tão fazendo todo o possível para conseguir que as necessi-
dades sociais sejam situadas no grupo 1, ao pretender que
todo mundo tenha uma vida social satisfatória.

Nota 11 (§§ 63 e 82). É o desejo inesgotável de


aquisição de bens materiais, realmente, uma criação
artificial da indústria da publicidade e do marketing?
Na realidade, não existe um desejo inato de aquisição
material nos seres humanos. Tem havido muitas cultu-
ras nas quais as pessoas têm desejado poucas riquezas
materiais para além dos objetos que lhes eram neces-
sários para satisfazer suas necessidades físicas básicas
(os aborígenes australianos, os camponeses tradicionais
mexicanos, algumas culturas africanas). Por outro lado,
tem havido também muitas culturas pré-industriais
nas quais a aquisição material terá desempenhado um
importante papel. Desse modo, não podemos afirmar
que a cultura atual, baseada na aquisição material, seja
exclusivamente produto da indústria da publicidade e

196
do marketing. No entanto, está claro que a indústria
da publicidade e do marketing tem muito a ver com a
criação de tal cultura. As grandes empresas que gastam
milhões em publicidade não converteriam essas somas
sem sólidos indícios de que as recuperarão com acrésci-
mos. Um membro do FC conheceu, alguns anos atrás,
um chefe de vendas que foi suficientemente franco para
dizer-lhe: “nosso trabalho consiste em fazer que as pes-
soas comprem coisas que não querem, que nem sequer
necessitam”. Então lhe explicou que, se um vendedor
novato oferecesse ao público um produto mostrando-
-o tal como é, poderia nada vender, em absoluto, en-
quanto que um vendedor experiente faria muitíssimas
vendas desse mesmo produto, às mesmas pessoas. Isso
demonstra como as pessoas são manipuladas para com-
prar coisas que realmente não desejam.

Nota 12 (§ 64). O problema da falta de objetivos


vitais parece ter se tornado menos agudo durante os úl-
timos quinze anos, aproximadamente54, porque agora as
pessoas se sentem física e economicamente menos segu-
ras que antes, e a necessidade de segurança proporciona-
-lhes uma meta. Mas a falta de objetivos tem sido substi-
tuída pela frustração devida à dificuldade de se alcançar
essa segurança. Insistimos quanto ao problema da falta
de objetivos, porque os liberais e os esquerdistas deseja-
riam resolver nossos problemas sociais fazendo com que
a sociedade garantisse a segurança de todos; entretanto,

54 Há que se ter em conta que isso se refere aos quinze anos ante-
riores a 1995, nos Estados Unidos. [N.T.]

197
se esse desejo se realizasse, a única coisa que conseguiriam
seria agravar o problema da falta de objetivos. A questão,
na realidade, não é se a sociedade proporciona bem ou
mal segurança às pessoas; o problema é que as pessoas
dependem do sistema para que este garanta sua seguran-
ça, no lugar de tê-la elas mesmas em suas próprias mãos.
Esse, diga-se de passagem, é um dos motivos pelos quais
algumas pessoas consideram tão a sério o direito de se
possuir armas; a posse de uma arma de fogo põe parte de
sua seguridade em suas próprias mãos.

Nota 13 (§ 66). Os esforços dos conservadores para


reduzir o número de regulamentos governamentais são
de pouca utilidade para o homem comum. Por um lado,
somente uma pequena fração do total de regulamentos
pode ser eliminada, já que a maioria dos regulamentos é
necessária. Por outro lado, a maioria das desregulamen-
tações afeta o mundo dos negócios em vez do indivíduo
médio, pois seu principal efeito é tomar poder do gover-
no e passá-lo às grandes empresas privadas. O que isso
implica para o homem comum é que a interferência do
governo em sua vida privada é substituída pela interferên-
cia em sua vida por parte das grandes empresas, as quais,
por exemplo, poderiam ser autorizadas a derramar mais
produtos químicos nas reservas de água potável e, assim,
ocasionar-lhe um câncer. Os conservadores simplesmen-
te estão enganando o homem comum, aproveitando seu
ressentimento em relação ao governo, para favorecer o
poder das grandes empresas.

198
Nota 14 (§§ 73, 114 e 131). Quando alguém con-
corda com a finalidade para a qual a propaganda é usada
num determinado caso, então, normalmente, chama-a de
“educação” — ou utiliza algum outro eufemismo seme-
lhante para denominá-la. Mas propaganda é propaganda,
independentemente do propósito para o qual se a utiliza.

Nota 15 (§ 83). Não estamos a manifestar-nos nem


a favor nem contra a invasão do Panamá. Nós a estamos
usando, unicamente, como exemplo para ilustrar esse
ponto do texto.

Nota 16 (§ 95). Quando as colônias norte-america-


nas estavam sob o domínio britânico, a liberdade estava
legalmente menos garantida, e de uma forma menos efi-
caz que depois da Constituição Estadunidense entrar em
vigor; contudo, havia mais liberdade pessoal na América
pré-industrial, tanto antes como depois da Guerra da In-
dependência, que ocorreu depois da Revolução Industrial
ter sido realizada nesse país. Citamos Violence in America:
Historical and Comparative Perspectives, obra organizada
por Hugo Davis Graham e Ted Robert Gurr, Capítulo
12, escrito por Roger Lane, ps. 476-478:
“O progressivo aumento das exigências acerca do
que era considerado social e moralmente apropriado,
junto à crescente confiança em que o governo faria cum-
prir as leis [nos Estados Unidos do século XIX] (...) foi
algo geral em toda a sociedade... [A] mudança no com-
portamento social se produziu tão rapidamente, e de um
modo tão amplo, que sugere uma conexão com o proces-

199
so social contemporâneo mais fundamental, o da própria
urbanização industrial...
“Massachusetts, em 1835, tinha uma população de
uns 660.940 habitantes, dos quais 81% era população
rural, majoritariamente pré-industrial e nascida naque-
la mesma zona. Seus cidadãos costumavam desfrutar de
uma considerável liberdade pessoal. Fossem carroceiros,
fazendeiros ou artesãos, estavam acostumados a estabe-
lecer seus próprios horários, e a natureza de seu trabalho
fazia com que fossem fisicamente independentes uns dos
outros... Os problemas individuais, as faltas cometidas
ou mesmo os assassinatos, normalmente, não causavam
uma preocupação social generalizada...
“Mas o impacto das duas movimentações simultâ-
neas, para a fábrica e para a cidade, ambas já emergentes
em 1835, teve um efeito progressivo no comportamento
pessoal ao logo do século XIX e mesmo adiante, já no
século XX. A fábrica exigia regularidade no comporta-
mento, uma vida governada pela obediência aos ritmos
do relógio e do calendário, às ordens do capataz e do su-
pervisor. Na cidade ou no povoado, as limitações da vida
em vizinhanças estreitamente apertadas inibiram muitas
ações que anteriormente eram consideradas aceitáveis.
Nas grandes instalações, os empregados de colarinho azul
e de colarinho branco eram mutuamente dependentes;55

55 As expressões usadas, no original em inglês, são “blue-collar” e


“white-collar”. Essas expressões designam os membros da “working
class” (a classe trabalhadora: os assalariados, em geral) que, respec-
tivamente, realizam os trabalhos chamados braçais ou manuais e os
trabalhos administrativos ou gerenciais. As expressões equivalentes

200
como o trabalho de um homem tinha de se encaixar com
o dos outros, a obra de cada homem deixou de ser pro-
priamente sua.
“Os efeitos da nova organização da vida e do tra-
balho fizeram-se evidentes ali por 1900, ano em que se
considera que aproximadamente 76% dos 2.805.346 ha-
bitantes de Massachusetts viviam em zona urbana. Gran-
de parte dos comportamentos violentos ou desregrados,
que haviam sido toleráveis na precedente sociedade infor-
mal e independente, deixou de ser aceitável na atmosfera
mais formalizada e cooperativa do período posterior... O
deslocamento para as cidades produziu, em resumo, uma
geração mais dócil, mais socializada, mais ‘civilizada’ que
suas predecessoras.”

Nota 17 (§ 117). Os partidários do sistema se agra-


dam em citar casos de eleições nas quais um ou dois votos
têm sido decisivos; no entanto, tais casos são bem raros.

Nota 18 (§ 119). “Hoje em dia, nas regiões tecno-


logicamente avançadas, os homens levam vidas muito se-
melhantes, apesar de suas diferenças geográficas, religio-
sas e políticas. As vidas cotidianas de um empregado de
banco cristão em Chicago, de um empregado de banco
budista em Tóquio e de um empregado de banco comu-
nista em Moscou são muito mais parecidas entre si do
que seria a vida de qualquer um deles em relação à vida
de qualquer homem que vivesse há mil anos atrás. Essas
semelhanças são o resultado de terem uma tecnologia em

em português existem, contudo, não são muito usadas. [N.T.]

201
comum...” (L. Sprague de Camp, The Ancient Engine-
ers, Edições Ballantine, p. 17.)
As vidas dos três empregados de banco não são
IDÊNTICAS. A ideologia exerce também ALGUMA
influência. Mas todas as sociedades tecnológicas, para
poderem sobreviver, têm de evoluir seguindo APROXI-
MADAMENTE a mesma trajetória.

Nota 19 (§ 123). Imagine-se, por exemplo, que


um irresponsável engenheiro genético criasse uma pen-
ca de terroristas.

Nota 20 (§ 124). Outro exemplo adicional das con-


sequências indesejáveis do progresso médico: suponha-
mos que se descubra uma cura eficaz para o câncer. Ainda
que o tratamento fosse por demais oneroso para ficar ao
alcance de um qualquer, e só a elite pudesse recebê-lo,
isso por si só já reduziria bastante os interesses em se deter
a dispersão de substâncias cancerígenas no ambiente.

Nota 21 (§ 128). Dado que a muitas pessoas pode


parecer paradoxal a ideia de que um grande número de
coisas boas pode acabar se constituindo em algo ruim,
iremos ilustrá-la com uma analogia. Vamos supor que o
Sr. A está jogando xadrez com o Sr. B. O Sr. C, que é um
Grande Mestre, está atrás do Sr. A, olhando por cima de
seu ombro. O Sr. A, seguramente, quer ganhar a partida,
de modo que, se o Sr. C indicar ao Sr. A alguma boa jo-
gada que ele possa fazer, estará fazendo-lhe um favor. Mas
suponhamos agora que o Sr. C diz ao Sr. A como fazer

202
TODAS as suas jogadas. Em cada ocasião particular, o Sr.
C fará um favor ao Sr. A, ao mostrar-lhe a melhor jogada;
contudo, ao fazer TODAS as jogadas por ele, estraga-lhe
o jogo, já que não tem qualquer sentido que o Sr. A siga
jogando se, na realidade, é outro quem realiza todas as
suas jogadas.
A situação do homem moderno é análoga à do Sr. A.
O sistema torna mais fáceis inumeráveis aspectos da vida
dos indivíduos; porém, ao fazê-lo, priva-lhes do controle
sobre seu próprio destino.

Nota 22 (§ 137). Aqui temos somente considerado o


conflito de valores tal como convencionalmente se mani-
festa. Por uma questão de simplicidade, temos deixado de
lado valores “marginais”, como a ideia de que a Natureza
selvagem é mais importante que a prosperidade econômica.

Nota 23 (§ 137). Os interesses próprios não são,


necessariamente, interesses próprios MATERIAIS. Po-
dem consistir-se na satisfação de alguma necessidade
psicológica, como, por exemplo, promover a própria
ideologia ou religião.

Nota 24 (§ 139). Uma nuança: permitir certo grau


de liberdade predeterminada em algumas circunstâncias
favorece os interesses do sistema. Por exemplo, a liber-
dade econômica (com as devidas limitações e restrições)
tem demonstrado ser eficaz para promover o crescimento
econômico. Todavia, só a liberdade planificada, restrin-
gida e limitada favorece os interesses do sistema. O indi-

203
víduo deve permanecer sempre acorrentado, ainda que,
por vezes, as suas correntes sejam bastante alongadas.
(Vejam-se os parágrafos 94 e 97).

Nota 25 (§ 143). Não pretendemos dar a entender


que a eficiência ou a capacidade de sobrevivência de uma
sociedade tenham sido sempre inversamente proporcio-
nais à quantidade de incômodos ou pressão que tal so-
ciedade exerça sobre as pessoas. Esse, certamente, não é
o caso. Há boas razões para se crer que muitas sociedades
primitivas submetiam as pessoas a menos pressão que a
sociedade europeia, porém, a sociedade europeia provou
ser muito mais eficiente que qualquer sociedade primiti-
va, e, a partir do renascimento, foi sempre vitoriosa nos
conflitos com aquelas outras sociedades, devido à vanta-
gem que a tecnologia lhe conferia.

Nota 26 (§ 147). Se alguém acredita que um aparato


policial e judiciário mais eficiente é algo inequivocamente
bom porque reprime a violência, então deveria conside-
rar que o crime, assim como o sistema o define, não é ne-
cessariamente a mesma coisa que TAL OU QUAL PES-
SOA chamaria de crime. Hoje em dia, fumar maconha
é um “crime”, e, em alguns lugares dos Estados Unidos,
também o é ter um revólver não registrado.56 Amanhã, a

56 Em muitos dos estados norte-americanos o consumo recre-


ativo de maconha ainda é criminalizado, e em alguns outros já
não o é — assim como também não o é em alguns países, como
em Portugal, por exemplo. Em 2014, nos estados norte-america-
nos de Colorado e Washington, o consumo recreativo de maco-

204
posse de QUALQUER arma de fogo, registrada ou não,
poderá ser um crime, e o mesmo poderá ocorrer com os
métodos politicamente incorretos de se criar e educar os
filhos, como o das surras no traseiro. Em alguns países,
a expressão de opiniões políticas dissidentes é um crime,
e não se pode assegurar que isso não vá acontecer jamais
nos Estados Unidos, já que nenhuma constituição e ne-
nhum sistema político duram para sempre.
Se uma sociedade tem necessidade de um gran-
de e poderoso aparato policial e judiciário para fazer
cumprir a lei, então é que há algo de gravemente erra-
do nessa sociedade — a qual tem de submeter as pes-
soas a enormes pressões, já que tantas pessoas há que se
recusam a seguir as normas, ou que as seguem apenas
por que se as obrigam. Muitas sociedades, no passado,
estiveram bem arranjadas com bem poucas ou nenhu-
mas forças policiais e instituições que velassem pelo
cumprimento da lei.
nha foi legalizado — com seu cultivo e comercialização feitos por
empresas autorizadas e controladas por autoridades governamen-
tais —, em moldes assemelhados aos adotados na Espanha, na
Holanda e no Uruguai. Quanto ao controle da comercialização,
posse e porte de armas de fogo, a legislação estadunidense ainda
se distingue da de outros países por considerá-la como um direito
civil fundamental; somente em Massachusetts ocorrem restrições
à sua comercialização e ao seu porte. Há, no entanto, fortes pres-
sões de alguns setores da sociedade civil norte-americana no sen-
tido de se instituir uma regulação federal sobre as armas de fogo,
as quais ganharam alguma força com as investidas do Presidente
Barack Obama sobre o Congresso dos Estados Unidos, em favor
dessa regulação. [N.T.]

205
Nota 27 (§ 151). Certamente, as sociedades do pas-
sado tinham também seus métodos para influenciar o
comportamento humano, os quais, porém, eram toscos
e pouco efetivos, se comparados com os meios tecnológi-
cos que estão sendo desenvolvidos na atualidade.

Nota 28 (§ 152). Entretanto, alguns psicólogos têm


expressado publicamente seu desprezo pela liberdade
humana. E o matemático Claude Shannon57, citado na
Omni58 (agosto de 1987), dizia: “imagino um tempo em
que os humanos seremos para os robôs como os cães são
hoje para os humanos, e eu estou do lado das máquinas”.

Nota 29 (§ 154). Isso não é ficção científica! Depois


desse parágrafo ter sido escrito, encontramos um artigo
na Scientific American59 segundo o qual há cientistas que
estão desenvolvendo ativamente técnicas para identificar
possíveis futuros delinquentes e para submetê-los a trata-
mento através de métodos psicológicos e biológicos. Al-
guns cientistas defendem a aplicação compulsória desse
tratamento, o qual estará disponível num futuro próxi-
mo. (Ver “Seeking the Criminal Element”, por W. Wait

57 Claude Shannon foi um matemático e engenheiro eletrô-


nico estadunidense, conhecido como “o pai da teoria da infor-
mação”. [N.T.]

58 Omni foi uma revista de divulgação e ficção científica publica-


da nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. [N.T.]

59 Scientific American é uma tradicional revista de divulgação


científica dos Estados Unidos. [N.T.]

206
Gibbs — Scientific American de março de 1995.) Talvez
alguém pense que isso esteja bem, já que o tratamento
seria aplicado àqueles que poderiam converter-se em de-
linquentes violentos. Mas, seguramente, isso não irá pa-
rar por aí. Em continuidade, se aplicará um tratamento
àqueles que poderão se converter em condutores bêbados
(que também põem em perigo a vida humana), depois,
talvez, às pessoas que batem em seus filhos, em seguida
aos ecologistas que sabotem equipamentos da indústria
madeireira, e, finalmente, a qualquer um cujo comporta-
mento viesse a ser inconveniente ao sistema.

Nota 30 (§ 184). Uma vantagem adicional da Na-


tureza como ideal oposto à tecnologia é que, para muita
gente, a Natureza inspira o tipo de reverência que cos-
tuma ser associado à religião, de modo que a Natureza
poderia, quiçá, ser idealizada de uma maneira religio-
sa. O certo é que, em muitas sociedades, a religião tem
servido para manter e justificar a ordem estabelecida;
contudo, também é certo que a religião tem frequente-
mente proporcionado um embasamento para a rebelião.
Consequentemente, poderá vir a ser útil a inclusão de
um elemento religioso na rebelião contra a tecnologia,
e, com mais efeito ainda, quando a sociedade ocidental
atual está a carecer de fundamentos religiosos sólidos. A
religião é usada, hoje em dia, de uma maneira torpe e
ostensiva, para a manutenção de um egoísmo estreito e
obtuso (alguns conservadores usam-na desse modo), ou
é cinicamente explorada para se conseguir dinheiro fácil
(caso de muitos evangelistas), ou tem degenerado em

207
um irracionalismo grosseiro (seitas protestantes funda-
mentalistas, certas seitas excêntricas), ou simplesmente
se tem acabado calcificada (Catolicismo, correntes ma-
joritárias dentro do Protestantismo). O mais próximo
de uma religião forte, dinâmica e amplamente estendi-
da, que o Ocidente tenha visto em épocas recentes, terá
sido a semirreligião do esquerdismo; no entanto, o es-
querdismo atual está fragmentado e não tem uma meta
clara, unificada e estimulante. Por conseguinte, há um
vazio religioso em nossa sociedade que talvez pudesse
ser preenchido por uma religião centrada na Natureza,
em oposição à tecnologia. Mas seria um erro se ten-
tar criar artificialmente uma religião que cumpra essa
função. Uma religião pré-fabricada desse tipo, provavel-
mente, seria um fracasso. Tome-se a religião de “Gaia”60,
como exemplo. Seus seguidores REALMENTE creem
nela ou, simplesmente, estão fazendo uma encenação?
Se só estão interpretando um papel, sua religião acabará
por ser um fiasco.
Provavelmente será melhor não se tentar incluir a
religião no conflito entre a Natureza e a tecnologia, a me-
nos que haja quem REALMENTE creia nessa religião e

60 “Lá pela época em que o ‘Manifesto’ foi escrito, alguns mem-


bros do Earth First! [uma organização ecologista presente e atuante,
principalmente, em alguns países anglófonos], e outros radicais as-
semelhados, consideravam-se entre eles como adoradores de ‘Gaia’
ou ‘Gaea’. Não ficava claro se, para eles, ‘Gaia’ era a própria Terra
(considerada, talvez, como um ser sensível), ou se era uma deusa
que representava a Terra.” [Fragmento de carta de Ted Kaczynski a
Último Reducto — de 12/09/2008 (original em inglês) — N.T.]

208
que se descubra que ela provoca uma resposta profunda,
forte e genuína em muitas outras pessoas.

Nota 31 (§ 189). Considerando-se que tal impul-


so final chegue a produzir-se. Talvez não seja totalmente
descartável cogitar que o sistema industrial possa ser eli-
minado de pouco em pouco, de uma maneira mais ou
menos gradual. (Ver parágrafos 4 e 167, e a Nota 32).

Nota 32 (§ 193). É possível até mesmo se imaginar


(com algum distanciamento) que a revolução pudesse se
consistir somente numa transformação massiva das atitu-
des em relação à tecnologia, a qual traria como resultado
uma desintegração do sistema industrial relativamente
gradual e indolor. Mas, se isso vier a se suceder assim,
terá sido que tivemos muita sorte. É muito mais provável
que uma transição para uma sociedade não tecnológica
seja muito difícil e esteja cheia de conflitos e desastres.

Nota 33 (§ 195). A estrutura econômica e tecnológica


de uma sociedade é muito mais importante que sua estrutu-
ra política, ao se determinar a forma pela qual vive o homem
comum. (Ver parágrafos 95 e 119, e as Notas 16 e 18.)

Nota 34 (§ 215). Essa afirmação se refere à nossa


própria versão do anarquismo.61 Uma ampla variedade

61 “Porquanto ‘anarquista’ seja um termo algo vago, que tem sido


aplicado a múltiplas formas diferentes de pensamento, é preciso que
nos expliquemos melhor. Nós nos autodenominamos anarquistas
porque nos apeteceria (temos isto como um ideal) a desagregação

209
de atitudes sociais tem sido denominadas “anarquistas”,
e é possível que muitos daqueles que se consideram a si
mesmos como anarquistas não aceitem nossa afirmação
do parágrafo 215. Cabe esclarecer, e o fazemos de passa-
gem, que existe um movimento anarquista não violento
cujos membros provavelmente negarão que o FC seja
anarquista, e que, seguramente, não aprovarão os méto-
dos violentos do FC.

Nota 35 (§ 219). Muitos esquerdistas estão moti-


vados também pela hostilidade, porém, tal hostilidade
provavelmente é o resultado de sua frustrada necessida-
de de poder.

Nota 36 (§ 229). É importante entender que nos


referimos aos que simpatizam com esses MOVIMEN-
TOS tais como existem em nossa sociedade hoje em
da sociedade em seu conjunto, em unidades bem pequenas, comple-
tamente autônomas. Lamentavelmente, não enxergamos que exista
qualquer via clara para se atingir essa meta, de modo que poster-
gamos o tratar-se de alcançá-la para algum momento indefinido,
no futuro. Temos uma meta mais imediata, a qual, esta sim, con-
sideramos que seja alcançável durante as próximas décadas, que é a
completa destruição, em escala mundial, do sistema industrial. Atra-
vés de nossos atentados, esperamos promover a instabilidade social
na sociedade industrial, propagar as ideias anti-industriais e trazer
ânimo àqueles que odeiam o sistema industrial.” [FC — em carta
aparecida no New York Times de 26 de abril de 1995. Fragmento
traduzido para o espanhol por Último Reducto, desde o original em
inglês, posteriormente publicado por Green Anarchist, sob o título:
“Unabomber’s Communique” — N.T.]

210
dia. Nem todo aquele que acredite que as mulheres, os
homossexuais, etc., deveriam estes ter os mesmos di-
reitos que quaisquer outros, será, necessariamente, um
esquerdista. O movimento feminista ou o movimento
a favor dos direitos dos homossexuais, etc., tais como
existem em nossa sociedade mostram um tom ideológi-
co particular que caracteriza o esquerdismo; entretanto,
que alguém acredite, por exemplo, que as mulheres de-
veriam ter igualdade de direitos, não necessariamente
significa que deva simpatizar com o movimento femi-
nista, tal como ele existe na atualidade.

211
Posfácio ao
Manifesto 62

— Industrial Society and Its Future

62 Este “Posfácio” foi inicialmente produzido para uma cole-


tânea dos escritos de Ted Kaczynski, publicada em inglês e francês
pelas Éditions Xenia, em 2008 — que se chamou The Road to Re-
volution —, uma edição que carregava muitos problemas, desde
diversas falhas na impressão de alguns dos textos até a inclusão
do artigo de um comentador que interpretava o pensamento de
Ted Kaczynski por um viés claramente esquerdista; uma segunda
edição revisada, corrigida e ampliada dessa obra foi publicada em
inglês pela Feral House, em 2010 — intitulada Technological Sla-
very. O “Posfácio” original continha um curto parágrafo (nele, o
penúltimo), com um breve comentário que se estendia do Mani-
festo para os demais textos da coletânea, o qual, por perder o sen-
tido fora desse contexto, e com a autorização de Ted Kaczynski,
foi retirado de sua versão em espanhol — e também desta em
português. [N.T.]

213
O Manifesto — A Sociedade Industrial e seu Futu-
ro — tem sido criticado como “pouco original”, porém
isso não é importante. O Manifesto nunca pretendeu ser
original. Seu propósito era expor certas questões acerca
da tecnologia moderna de uma maneira clara e relativa-
mente breve, de modo que essas questões pudessem ser
lidas e entendidas por pessoas que nunca leriam nem en-
tenderiam um texto tão difícil como The Technological
Society63, de Jacques Ellul64.
A acusação de falta de originalidade, em todo caso,
é irrelevante. Seria importante para o futuro do mundo
saber se Ted Kaczynski é original ou não? Obviamente,
não! Mas, ao contrário, é sim importante para o futuro
do mundo saber se a tecnologia moderna está nos levando

63 Título original, em francês: La Technique ou l’Enjeu du Siècle


(1954). Existe tradução para o português: A Técnica e o Desafio do
Século, Paz e Terra, 1968. [N.T.]

64 Jacques Ellul foi um sociólogo e filósofo (anarquista e cristão),


e também um teólogo (ecumênico), nascido em 1912, na cidade de
Bordéus (França). Jacques Ellul estudou nas universidades de Bor-
déus e de Paris, participou d’A Resistência francesa à ocupação alemã
durante a Segunda Guerra Mundial, e, depois disso, tornou-se co-
nhecido como pensador e escritor — tendo elaborado e desenvolvido
uma obra vasta, original e polêmica, até seu falecimento, em 1994;
também conhecido como um crítico da sociedade tecnológica e de-
fensor de uma revolução de cunho espiritual, Jacques Ellul escreveu
diversos livros sobre estes assuntos, como La Technique ou l’Enjeu du
Siècle (1954), Autopsie de la Révolution (1969), Le Système Technician
(1977), Les Combats de la Liberté (1984) ou Le Bluff Technologique
(1988). [N.T.]

214
pelo caminho do desastre, se algo além de uma revolução
poderia evitar esse desastre e se a esquerda política é um
obstáculo para que se produza essa revolução. Se assim
é, por que a maioria dos críticos tem ignorado a essência
dos argumentos levantados no Manifesto e desperdiçado
tinta com assuntos sem importância, como, por exemplo,
a alegada falta de originalidade do autor e seus defeitos
de estilo? Está claro, os críticos não podem contestar as
ideias essenciais expressadas nos argumentos do Manifes-
to, de modo que pretendem desviar desses argumentos
sua própria atenção e a dos demais, atacando aspectos
irrelevantes do Manifesto.
Não é necessário ser original para se dar conta de
que o progresso tecnológico está nos levando pelo cami-
nho do desastre, e que nada menos do que a completa
destruição do sistema tecnológico, em sua totalidade, é
o que irá nos tirar desse caminho. Em outras palavras,
somente aceitando um grande desastre por agora é que
poderemos evitar um desastre muito pior no futuro.
Mas a maioria de nossos intelectuais — e uso aqui este
termo num amplo sentido — preferem não afrontar esse
dilema aterrador, pois, apesar de tudo, não são muito
valentes, e lhes resulta ainda ser mais cômodo dedicar
seu tempo a aperfeiçoar soluções para velhos problemas
da sociedade do século XIX, tais como as desigualdades
sociais, o colonialismo, a crueldade com os animais e
coisas semelhantes.

Eu não cheguei a ler tudo o que foi escrito acerca


do problema da tecnologia, e é possível que o Mani-

215
festo tenha sido precedido por algum outro texto que
expusesse o problema de uma forma igualmente breve
e acessível. Mas, mesmo que assim fosse, isso não im-
plicaria que o Manifesto fosse supérfluo. No entanto,
os pontos dos quais trata, por muito familiares que se-
jam para os cientistas sociais, esses pontos ainda não são
objeto da atenção de muitas outras pessoas que deve-
riam deles ser conscientes. Ainda mais, o conhecimento
disponível acerca desse tema não está sendo aplicado.
Eu nem mesmo acredito que, na atualidade, muitos de
nossos intelectuais possam negar que haja um problema
tecnológico, contudo, quase todos eles declinam falar
desse problema. No melhor dos casos, discutem proble-
mas particulares criados pelo progresso tecnológico, tais
como o aquecimento global ou a proliferação de armas
nucleares. O problema da tecnologia, tomada em seu
conjunto, é simplesmente desconsiderado.
Por conseguinte, seja quanto for que se chegue a re-
petir a verdade dos fatos acerca do progresso tecnológico
e das suas consequências para a sociedade, ainda assim
será valido continuar a repeti-la outro tanto mais. Mes-
mo as pessoas mais inteligentes podem se recusar a en-
frentar uma verdade dolorosa, até que esta verdade lhes
tenha sido insistentemente calcada muitas e muitas vezes.
Se há algo novo em minha teoria, é que conside-
rei seriamente a revolução como uma proposta prática.
Muitos ecologistas radicais e anarquistas “verdes” falam
de revolução, contudo, ao menos pelo que conheço, ne-
nhum deles tem demonstrado entender como se pro-
duzem as revoluções reais, e tampouco parecem com-

216
preender o fato de que o único objetivo da revolução
deva ser a tecnologia em si mesma, não o racismo, o
sexismo ou a homofobia. Uns poucos pensadores sérios
têm sugerido a revolução contra o sistema tecnológico;
por exemplo, Ellul em Autopsy of Revolution65. Mas Ellul
somente sonha com uma revolução que fosse o resulta-
do, vagamente definido, de uma transformação espiri-
tual da sociedade — e está muito próximo de admitir
que a revolução espiritual que propõe é impossível. Eu
creio, ao contrário, que seja possível que as condições
prévias para a revolução possam estar se desenvolven-
do na sociedade moderna, e me refiro a uma revolução
real, não fundamentalmente diferente, em essência, de
outras revoluções que ocorreram no passado. Mas tal
revolução não se tornará realidade sem um movimen-
to revolucionário bem definido, dirigido por líderes
apropriados — líderes que tenham uma compreensão
racional do que estão fazendo, não adolescentes irados
atuando unicamente com base na emoção.

Ted Kaczynski
31 de julho de 2007

65 Título original, em francês: Autopsie de la Révolution (1969).


Existe tradução para o português: Autópsia da Revolução, União
Editorial, 1973. [N.T.]

217
Nota sobre o Manifesto 66

— Industrial Society and Its Future (ISAIF)

Ao longo dos anos, ocasionalmente, há quem me


tenha perguntado se eu ainda mantinha os pontos de vis-
ta expressos em ISAIF, ou se minhas opiniões mudaram
desde que o documento foi publicado pela primeira vez,
em 1995. Eu tenho respondido que ainda aceito todos
os principais pontos estabelecidos em ISAIF, e que mo-
difiquei minhas opiniões apenas a respeito de algumas
questões de importância secundária. Durante os últimos
dois anos (2010-2012), entretanto, comecei a sentir que
ISAIF, em alguns aspectos, está suficientemente distan-
te daquela época, para que possa ser retomado em uma
grande revisão. Eu não posso empreender um reexame

66 Esta “Nota” foi produzida para a presente edição como aten-


dimento a uma sugestão feita pelo editor de Isumatag a Ted Ka-
czynski — tendo sido traduzida para o português do original em
inglês ainda em 2012. [N.T.]

219
completo no presente pois, por razões que não devo ex-
plicar aqui, tenho muitas coisas para fazer e bem pouco
tempo no qual fazê-las. Então eu vou mencionar apenas
os dois pontos que parecem mais importantes.
Primeiro. Muito do que o tecnófilo Ray Kurzweil
prevê para o futuro da sociedade tecnológica (em seu
livro The Singularity Is Near, por exemplo) é apenas
ficção científica. Mas em alguns aspectos importantes,
Kurzweil está absolutamente certo. Entre outras coisas,
ele aponta, corretamente, que a maioria das pessoas,
ao pensar sobre o futuro, não leva suficientemente em
conta a aceleração inexorável do progresso tecnológico.
As coisas acontecem mais e mais rápidas, e mais rápido
ainda, aparentemente sem limitações. Até os últimos
anos, durante os quais a aceleração da inovação tecno-
lógica tornou-se demasiado evidente para ser ignorada,
eu mesmo não avaliei suficientemente este fator, e, con-
sequentemente, os prazos sugeridos em ISAIF, quase
certamente, estão bem errados. Veja-se, por exemplo,
o parágrafo 177, em que escrevi sobre o que poderia
acontecer dentro de “poucos séculos”, desde o presente.
Por agora, parece muito mais provável que a tecnologia
terá transformado o mundo, para além do que nos fosse
reconhecível, já pelo ano de 2100, ou mesmo talvez até
desde várias décadas antes.
Em conexão com a aceleração tecnológica, há que
se tomar o cuidado de não se deixar enganar pelo fato de
que o desenvolvimento de uma determinada área da tec-
nologia possa parecer parar, de modo que o seu progresso
seja mais lento que o previsto, pois, enquanto a pesquisa

220
em uma área está atolada em dificuldades, haverá outras
áreas em que a rapidez do progresso supera todas as ex-
pectativas (ou ao menos todas as expectativas daqueles
que não são especialistas no campo em questão).
Segundo. No parágrafo 174 de ISAIF, eu sugeri a pos-
sibilidade de uma sociedade futura em que uma elite de
“liberais generosos de coração e mente” governaria todos
os seres humanos como se fossem animais domésticos, os
quais iriam ser mimados e manipulados para seu próprio
bem. Em 2007, quando eu estava preparando The Road
to Revolution para sua publicação, eu ainda estava em dú-
vida sobre este ponto (isso pode ser visto ainda em sua
segunda edição, a qual apareceu sob o título Technological
Slavery, 2010 — p. 217-218, nota 2). Mas agora me sin-
to razoavelmente seguro de que o futuro verá o apenas o
tratamento cada vez mais cruel dos seres humanos, que
estão se tornando supérfluos pelo advento de uma tecno-
logia que pode fazer o seu trabalho melhor e mais barato
que eles. Baseio esta opinião tanto em considerações te-
óricas (como exposto em um artigo meu, ainda inédito,
intitulado “Why the Technological System Will Destroy
Itself ” quanto em tendências incipientes que são observá-
veis nos Estados Unidos, e talvez também, em menor ex-
tensão, em outros países tecnologicamente “avançados”.

Ted Kaczynski
20 de junho de 2012

221
Apêndice
— Esquerdismo67:
Função da pseudocrítica e da pseudo-
-revolução na sociedade tecnoindustrial

Por Último Reducto


67 Esclarecimento:
Talvez “esquerdismo” não seja o termo mais adequado para expressar o
conceito ao qual Último Reducto quer aqui se referir. Todo mundo tem
certa noção intuitiva do que é o “esquerdismo”, porém, frequentemente,
tais noções variam notavelmente de uns indivíduos para outros, e poucos
são capazes de explicar correta e coerentemente qual é sua ideia de “es-
querdismo”. Ademais, como no manicômio (e não por mera casualidade),
nisto das noções intuitivas do esquerdismo, normalmente, nem estão ali
todos os que o são, nem o são todos os que ali estão (certas noções ou
definições incompletas, frequentemente, não abarcam todas as formas de
esquerdismo realmente existentes — por exemplo, consideram esquerdis-
mo apenas ao marxismo-leninismo, ou apenas ao anarcossindicalismo,
ou apenas à subcultura “oposicionista”... — e certas noções ou definições
excessivamente vagas ou amplas poderiam abarcar correntes que, na reali-
dade, não são realmente esquerdistas — por exemplo, certos islamismos).

223
Definição

Qualquer corrente ou tendência social que se funda-


mente nos seguintes valores: igualdade, solidariedade in-
discriminada e compaixão por presumidos grupos de su-
postas vítimas (com estes e outros nomes: “justiça social”,
“cooperação”, “fraternidade”, “amor Universal”, “paz”...).
Em geral, inclui quase qualquer corrente aparentemen-
te crítica que não trate realmente de combater a sociedade
moderna, e sim de “melhorá-la”.68 O esquerdismo, no ge-
ral, não pretende acabar com a sociedade tecnoindustrial,
apenas trata de que esta cumpra os valores antes apontados.
Que seja (mais) “justa”, (mais) “igualitária”, (mais) “solidá-
ria”, etc. Mesmo que haja também esquerdismos “radicais”
que afirmem sua pretensão de combater o Sistema (normal-
mente, acrescentam-lhe o adjetivo “capitalista” e/ou “pa-
triarcal”), sempre o fazem baseando-se nesses valores básicos.
O esquerdismo inclui, em geral, isso que nor-
malmente se entende por “esquerda”, porém não ape-
nas isso. O conceito de “esquerda” costuma ser usado
(quase) como sinônimo de “socialismo” (em quase to-

Tudo isso complicará a definição e interpretação do conceito ao qual


Último Reducto se refere com o termo em questão. No entanto, o
importante aqui é tratar de expressar, esclarecer e captar tal conceito
sem nos perdermos na discussão de como chamá-lo. Que cada qual
o denomine como bem o queira ou possa.

68 A sociedade tecnoindustrial deve ser combatida, e não refor-


mada, porque atenta inevitavelmente contra a autonomia do funcio-
namento dos sistemas não artificiais, ou seja, da Natureza selvagem,
tanto externa quanto interna aos seres humanos.

224
das as suas versões — incluídas as libertárias ou “anar-
quistas”), porém há, também, “esquerdismos” não so-
cialistas (por exemplo, todas as correntes e iniciativas
humanitárias derivadas exclusivamente do liberalismo
filosófico ou da filantropia cristã — certas associações
de base, certas organizações de caridade, algumas mis-
sões, etc.). De fato, ao menos alguns dos valores e ide-
ais fundamentais da maior parte disso que hoje em dia
se costuma chamar “direita” são, no fundo, os mesmos
do que se denomina “esquerda”.
O esquerdismo, concretamente, abarca todas as lu-
tas e iniciativas, governamentais ou não, pela igualdade
e pelos direitos de presumidos grupos de supostos “opri-
midos” (“antipatriarcalismo” em geral e feminismo em
particular, “liberação” homossexual, antirracismo, solida-
riedade aos imigrantes, ajuda aos pobres, iniciativas para
a integração social dos marginalizados e excluídos, defesa
dos trabalhadores, dos desempregados, dos inválidos, dos
animais...), em favor do desenvolvimento (“sustentável”,
acrescentam frequentemente), da justiça, da paz, das
“liberdades” e direitos e da democracia em geral (lutas
pela distribuição da riqueza, correntes favoráveis à “le-
galização” das drogas ou à “liberação sexual”, antimili-
tarismos, pacifismos, “ecologismos” sociais — correntes
aquelas quais, ainda que denominando-se ecologistas,
centram-se prioritariamente em assuntos meramente
sociais, antepondo-os aos problemas realmente ecológi-
cos — e ambientalismos — correntes cuja função real é
manter um perímetro suficientemente habitável para que
a população possa continuar cumprindo otimamente as

225
exigências da sociedade tecnoindustrial —, anticapitalis-
mos, etc.). Abarca, pois, praticamente a totalidade dis-
so que se chama “movimentos sociais”, “contestatórios”,
“oposicionistas”, “alternativos”... assim como a imensa
maioria das ONGs, além de qualquer iniciativa, oficial
ou não, baseada em favorecer a igualdade, a solidariedade
(indiscriminada) e a defesa de presumidas vítimas ou de-
ficientes (isso que, hoje em dia, abarca grande parte das
atividades dos governos e instituições).
Costuma-se considerar que “progressismo” e “es-
querdismo” são sinônimos, e, certamente, assim o é,
normalmente — porém não sempre. Se a ideia de pro-
gresso que algum progressismo69 defende está baseada em
aumentar-se a igualdade, a solidariedade (indiscrimina-
da) e a defesa de presumidas vítimas ou de “fragilizados”
(que acontece com frequência ser precisamente a noção
de progresso de quase todos os progressismos atuais), tal
progressismo é esquerdismo. Mas nem todo progressismo
tem essa ideia humanitária de progresso: o colonialismo
do século XIX, por exemplo, baseava-se em outra ideia
de progresso bem menos “suave”, e em nada compatível
com o progressismo esquerdista.
Por outro lado, ainda que o esquerdismo, frequente-
mente, seja abertamente progressista, há também corren-
tes esquerdistas minoritárias presumidamente contrárias
ao progresso, vale dizer, supostamente não progressistas.70
69 Progressismo: crença na bondade absoluta de algum tipo de
processo de desenvolvimento.

70 Se bem que, na realidade, todas elas defendem, de um modo


ou de outro, alguma forma de progresso, ainda que seja apenas um

226
Hoje em dia, desde ao menos uma década, a ide-
ologia dominante na sociedade tecnoindustrial é es-
querdista. As instituições e os meios de comunicação
de massas baseiam-se nos valores básicos esquerdistas de
Igualdade, Solidariedade (indiscriminada) e vitimismo,
e os transmitem e põem em prática adotando, apoiando
e fomentando muitas das propostas que, antigamen-
te, defendiam-nas exclusivamente uns setores minori-
tários (os esquerdistas — há uns poucos anos). Basta
observar-se minimamente a propaganda institucional,
as notícias, as formas massivas de arte e entretenimento,
a publicidade... para então dar-se conta disso. Conse-
quentemente, a população em geral tem assumido os
valores esquerdistas dessa propaganda, em maior ou
menor grau.
No entanto, muita gente está convencida de que
esses valores esquerdistas são não apenas minoritários,
como são mesmo contrários aos da sociedade moderna
atual, a qual consideram não solidária e promotora de de-
sigualdade. Essa própria crença é, por sua vez, parte fun-
damental do esquerdismo, pois o justifica e o promove.

progresso imaterial, moral, “espiritual”...

227
Valoração

Todo aquele que venha, realmente, aspirar ao com-


bate eficaz do sistema tecnoindustrial deveria rechaçar o
esquerdismo, por que:
a) A igualdade, a solidariedade aos indivíduos e
grupos não afins e a ajuda às presumidas vítimas
e “fragilizados” são imprescindíveis para evitar
conflitos, tensões e comportamentos antisso-
ciais contrários ao funcionamento eficiente da
maquinaria social. Tais valores são necessários
para se manter a coesão do sistema tecnoindus-
trial e evitar sua desagregação e desorganização.
Ao assumi-los como próprios e promovê-los, o
esquerdismo ajuda o Sistema.
b) O esquerdismo se baseia, por conseguinte, em
valores que são essenciais para a sociedade tec-
noindustrial. Consequentemente, o que o es-
querdismo põe em questão não é o Sistema em
si, e sim apenas que, segundo os esquerdistas,
o Sistema não cumpre suficientemente tais va-
lores, e tampouco, portanto, não persegue sufi-
cientemente os fins que estes implicam. Assim,
pois, o efeito do esquerdismo nunca pode ser
o de acabar com o Sistema, e sim o de “aper-
feiçoá-lo”, de modo que funcione mais eficien-
temente. Por conseguinte, o esquerdismo é
inevitavelmente reformista, e jamais será real-
mente revolucionário. Quando o esquerdismo
não se reconhece a si mesmo como reformista e

228
se apresenta como “revolucionário”, é pseudo-
-revolucionário (coisa habitual nas formas de
esquerdismo mais “radicais”).
c) O esquerdismo é um mecanismo de alarma, au-
torreparação, automanutenção e autocatálise do
funcionamento e desenvolvimento do próprio
Sistema. Com suas pseudocríticas, o esquerdis-
mo atua como mecanismo de alarma que indica
os pontos frouxos, as contradições, os limites,
as falhas, etc., do Sistema. E com suas propos-
tas, favorece seu reparo e reajuste, promovendo
“melhoras”, ou, no mínimo, paliativos, atuações
que servem para reduzir as tensões sociais, psi-
cológicas ou ecológicas que possam impedir a
manutenção, funcionamento e desenvolvimen-
to da sociedade tecnoindustrial. O esquerdismo
lubrifica a maquinaria social, não a destrói.
d) Com suas propostas, ativismo, grupos, círculos,
estética, parafernália, ideologia, etc., aparente-
mente críticos, combativos, rebeldes e pseudo-
-radicais, oferece substitutivos artificiais, inó-
cuos para a sociedade tecnoindustrial, de certas
tendências e necessidades psicológicas humanas
naturais incompatíveis com a manutenção e de-
senvolvimento do Sistema (por exemplo, subs-
titui a sociabilidade natural humana que exige,
para poder ser plenamente satisfeita, que os gru-
pos sociais sejam de pequena escala — grupos
nos quais todos os seus membros sejam capazes
de se conhecer e relacionar diretamente entre

229
si —, pela sensação de pertinência a grandes
organizações e/ou aos círculos e subgrupos es-
querdistas). Também reconduz, e converte em
inofensivos para o Sistema, certos impulsos e
reações que, por expressarem-se de maneira es-
pontânea, poderiam ser danosos ou até mesmo
destrutivos para a estrutura e o funcionamen-
to da sociedade tecnoindustrial (por exemplo,
o ativismo esquerdista serve para o desafogo da
hostilidade provocada pela frustração crônica
gerada pelo modo de vida tecnoindustrial, de
modo que esta não prejudique real e seriamente
o funcionamento e estrutura do Sistema). As-
sim, o esquerdismo, com suas propostas, oferece
aos indivíduos a falsa ilusão de que, abraçando-
-o, possam atuar natural e livremente dentro da
sociedade tecnoindustrial, e, com suas práticas,
lhes oferece a impressão, não menos falsa, de
estarem rebelando-se. Funciona, pois, também
como válvula de escape psicológica do Sistema.
e) Ademais, devido à sua função como válvula
de escape psicológica e de seu aspecto, muitas
vezes, pseudocrítico e pseudo-revolucionário,
o esquerdismo atua como uma armadilha que
atrai pessoas e grupos realmente críticos e po-
tencialmente revolucionários, desativando-os e
transformando-os, por sua vez, em esquerdistas.
Os círculos e correntes esquerdistas servem-se da
sobressocialização politicamente correta (tabus
e dogmas) para prender, dentro dos esquemas

230
ideológicos e psicológicos esquerdistas, as ideias,
os valores, as motivações, os fins, etc. — natu-
rais, originais e potencialmente revolucionários
—, de muitos dos que estabelecem contato com
eles. Assim, aqueles que de maneira independen-
te chegam a sentirem-se descontentes com o que
a sociedade tecnoindustrial está fazendo com o
mundo não artificial e com a natureza humana,
em seu intento de contatar outros indivíduos
com inquietudes semelhantes, aproximam-se,
muitas vezes, de correntes, círculos e grupos es-
querdistas, já que estes aparentam ser críticos.
Muitos caem inconsciente e psicologicamente
aprisionados por esses círculos, ao estabelecer
com eles afinidades e vínculos socioafetivos que
anulam sua capacidade de reação e de crítica,
e acabam assim, em maior ou menor medida,
tácita ou explicitamente, e de bom grado ou re-
lutantemente, abandonando ou atalhando seus
próprios valores e atitudes originais e adotando
os valores, os dogmas, os tabus, os discursos, as
teorias, a (sub)/cultura, etc., dos esquerdistas.
E também funciona no sentido inverso: quan-
do surgem lutas, círculos, correntes, teorias ou
iniciativas críticas quanto à sociedade tecnoin-
dustrial, em princípio alheias ou pouco afins ao
esquerdismo, muitos esquerdistas (em especial
os mais pseudo-radicais) sentem-se frequente-
mente atraídos por elas, invadem esses círculos
e lutas críticos originalmente alheios ao esquer-

231
dismo e/ou adotam seus discursos como seus
próprios, adulterando-os, para que se ajustem às
teorias e aos valores básicos esquerdistas, dando
como resultado a conversão ao esquerdismo des-
sas lutas ou iniciativas inicialmente não esquer-
distas, e com isso, a sua desativação como lutas
potencialmente revolucionárias.
O esquerdismo atua, portanto, também como
mecanismo de autodefesa do Sistema, ao anu-
lar impulsos, iniciativas e atitudes rebeldes,
disfuncionais e potencialmente perigosos para
o Sistema e aproveitando-os (ao modo de um
“jiu-jitsu” psicológico e ideológico) em favor da
sociedade industrial, integrando-os em círculos
e correntes esquerdistas.
f ) O esquerdismo é fruto da alienação, de um
estado de debilidade e alheamento psicológi-
co, frequentemente causado pelas condições
de vida inerentes à sociedade industrial. A tec-
nologia moderna nega aos indivíduos a pos-
sibilidade de desenvolver e satisfazer plena e
autonomamente suas tendências, capacidades
e necessidades naturais, vale dizer, sua liberda-
de, inibindo ou pervertendo sua natureza. Pri-
va-os totalmente da possibilidade de exercer
controle sobre as condições que afetam suas
próprias vidas e atenta contra sua dignidade,
ao convertê-los em seres desamparados e com-
pletamente dependentes do Sistema. Obriga-
-os a viverem em condições antinaturais para

232
as quais não estão biologicamente preparados
(ruído, alta densidade populacional, ritmo de
vida acelerado, rápidas mudanças no ambien-
te ao redor, ambientes hiperartificializados,
etc.). Regula e restringe seu comportamento
natural em muitos aspectos... Tudo isso gera
mal-estar psicológico em muitos indivíduos
(baixa autoestima e sentimentos de inferiori-
dade, tédio, frustração, depressão, ansiedade,
enfado, vazio...). E esse mal-estar se expressa
na forma de vitimismo, hedonismo, hostilida-
de... Esses sentimentos e atitudes são habitu-
ais na sociedade tecnoindustrial e dão lugar a
diversos comportamentos antinaturais. O es-
querdismo é um desses comportamentos. Seus
valores fundamentais são inspirados pelos
sentimentos de inferioridade — e por detrás
de muitas de suas teorias, discursos e ativida-
des estão a falta de confiança em si mesmo, a
hostilidade e o tédio. E como o esquerdismo,
na realidade, favorece o desenvolvimento da
sociedade tecnoindustrial, atua como um me-
canismo de retroalimentação da alienação, e,
com ela, de si mesmo.71

71 Isso é só uma aproximação geral à psicologia do esquerdis-


mo. Caberia fazer muitas considerações a respeito de seus matizes,
como, por exemplo, que nem sempre é a alienação provocada pela
vida moderna a causa dos traços psicológicos próprios do esquer-
dismo. Muitos esquerdistas, simplesmente, são psicologicamente
frágeis por natureza.

233
g) Os valores e ideias esquerdistas são falsos e
equivocados, contrários à Realidade, à razão,
à verdade e à Natureza (humana ou não). Em
muitos casos, isso é efeito da alienação ine-
rente à sociedade tecnoindustrial em geral, e
ao esquerdismo em particular, e, por sua vez,
retroalimenta-os. A maioria das teorias es-
querdistas é lógica, empírica e filosoficamen-
te absurdas. E os valores básicos esquerdistas,
assim como alguns outros que em geral e fre-
quentemente aparecem associados ao esquer-
dismo são, no melhor dos casos, perversões
de valores naturais e corretos (por exemplo, a
solidariedade indiscriminada é uma adultera-
ção coletivista da solidariedade natural entre
indivíduos afins), e no pior, meros disparates
(o relativismo, por exemplo). O esquerdismo
necessita, pois, falsear os fatos para ajustá-los
à sua teoria e aos seus valores.
h) O esquerdismo é uma ameaça para a autono-
mia da Natureza selvagem, incluída a verdadeira
liberdade humana. Ao situar a igualdade, a so-
lidariedade indiscriminada ou a defesa das víti-
mas acima de qualquer outro valor, descura, ou
até mesmo deprecia a autonomia do não artifi-
cial — porque, de fato, esta é incompatível com
esses valores básicos esquerdistas.

234
Conclusão

[Este ponto, em especial, vai dirigido a todos aqueles


que gostariam poder fazer algo para, de fato, acabar com
o sistema tecnoindustrial — contudo, por sentirem uma
genuína e justa rejeição ao esquerdismo, mostram acerta-
damente muita suspeição quanto à maioria das correntes
presumidamente críticas da sociedade industrial atual.]

Como atuar em relação ao esquerdismo?

— Criticá-lo, revelando o que realmente é: um en-


gano, uma armadilha, um mecanismo do próprio Siste-
ma para perpetuar-se e crescer mais fácil e eficientemen-
te, um pobre sucedâneo da verdadeira rebelião e uma
loucura, fruto das condições antinaturais inerentes à vida
moderna...
Mas sem que tal crítica se converta num objetivo
em si. Só há de ser um meio, um requisito prático, im-
prescindível hoje em dia, para tratar de se alcançar um
fim muito mais importante: eliminar o sistema tecnoin-
dustrial e acabar com o submetimento da Natureza selva-
gem — interna e externa aos seres humanos — que este
inevitavelmente implica.
— Evitar cair na armadilha. Mantermo-nos estrita-
mente separados do esquerdismo, de sua influência, de
seus círculos, de seus valores, teorias e discursos. E vice-
-versa — manter afastado o esquerdismo de nós mesmos;
tratar de que nossos valores, teorias e discursos não sejam

235
absorvidos, pervertidos e desativados pelo esquerdismo.72
— Não envergonhar-se de ter valores e ideias não
esquerdistas; não deixar que as reações sobressocializado-
ras73, que os dogmas e os tabus esquerdistas politicamen-
te corretos nos influenciem.
Isso, por sua vez, ajudará a manter afastados os es-

72 A esse respeito, se há de não cair na ingenuidade e superficia-


lidade de se crer que todo aquele que parece recusar o esquerdismo
não é, realmente, esquerdista. Não basta simplesmente que se use
o termo “esquerdismo” de modo depreciativo. Muitos esquerdistas
que cumprem paradigmaticamente a definição de esquerdismo dada
neste texto (por exemplo, muitos anarcossocialistas, autonomistas,
anticapitalistas, insurrecionistas, situacionistas, anarcoprimitivistas,
marxistas, etc.), em geral, se batem com algo que eles frequentemen-
te chamam de “esquerdismo”, dando a entender que eles mesmos
não se reconhecem como o que de fato realmente são: esquerdistas
— por sua vez. Para identificar os esquerdistas, há que se concentrar
na questão de quais são seus valores básicos, seus ideais, seus objeti-
vos, suas referências e determinações ideológicas, etc., e não apenas
em se, no seu discurso, expressam explícita e ostensivamente uma
recusa do “esquerdismo”.

73 Sobressocialização: interiorização excessiva, por parte dos in-


divíduos, dos valores de seu ambiente social, em grande medida fa-
vorecida por este, de modo que aqueles são incapazes de transgredi-
-los sem sentir vergonha ou remorsos. Afeta, em maior ou menor
medida, a quase todas as pessoas, porém, em especial aos indivíduos
que são mais suscetíveis às influências de seu ambiente social. É um
fenômeno habitual na sociedade tecnoindustrial atual (ainda que
não só nela) e é especialmente profuso e intenso em seus subsistemas
esquerdistas. Tem muito a ver, por exemplo, com a noção do “politi-
camente correto”, já que é o que permite que esta se imponha.

236
querdistas de nossas teorias, discursos, círculos, de nossa
luta, e evitar, assim, sua nefanda influência.
— Avançar na criação e difusão de uma ideologia
realmente crítica, não esquerdista, verdadeiramente revo-
lucionária e contrária ao sistema tecnoindustrial, à Civi-
lização e a toda forma de sistema social que inevitavel-
mente atente contra a autonomia de funcionamento dos
sistemas não artificiais.

237

You might also like