You are on page 1of 5

Sobre a Génese da Literatura Angolana

Escrito por Pepetela


 tamanho da fonte
 Imprimir
 E-mail

Classifique este item

 1

 2

 3

 4

 5

(13 votos)
O primeiro livro editado em Angola e escrito por um angolano data de 1849 e foi publicado em
Luanda pouco depois de se ter instalado a Imprensa Oficial. Trata-se de um livro de poemas,
intitulado “Espontaneidades da minha alma”, cujo autor, José da Silva Maia Ferreira, pertencia a
uma família de comerciantes portugueses instalada há muito na colónia.

O primeiro livro editado em Angola e escrito por um angolano data de 1849 e foi publicado em
Luanda pouco depois de se ter instalado a Imprensa Oficial. Trata-se de um livro de poemas,
intitulado “Espontaneidades da minha alma”, cujo autor, José da Silva Maia Ferreira, pertencia a
uma família de comerciantes portugueses instalada há muito na colónia.

Certos indícios fazem crer que outros angolanos se teriam dedicado às letras antes desta data, mas
não encontrámos até hoje as obras, apenas referências esparsas. Preferimos pois referir que na
segunda metade do século passado, e mais particularmente a partir de 1880, se desenvolve o que se
pode chamar um embrião de literatura em Luanda e Benguela, cidades antigas na costa atlântica e
pontos de partida para a colonização do interior. Tratava-se principalmente de obras de carácter
jornalístico, muito activo nessa época marcada por grande agitação na vida da colónia, mas também
poemas, romances e ensaios. Temos uma grande variedade de títulos de jornais, utilizando a língua
portuguesa, kimbundo e kikongo, por vezes bilingues. A vida da maior parte destes jornais era
efémera e embora tivesse sido decretada a liberdade de imprensa, vários deles eram proibidos logo
desde o primeiro número, por razões políticas.

É o contexto social em que se desenvolveu esta literatura que vamos tentar rapidamente examinar,
para pôr em evidência a maneira como se foi criando uma cultura própria que teria um enorme
protagonismo no século actual, servindo de base para as manifestações nacionalistas.

O território que iria ser conhecido mais tarde pelo nome de Angola tornou-se, a partir da fundação da
cidade de Luanda, em 1576, um enorme fornecedor de escravos para as Américas. A norte do
território situava-se o reino do Congo, o qual já participava do tráfico há quase um século, mas
tratava-se de uma entidade política independente na época, só se integrando na colónia de Angola no
século XVII. Toda a economia de Angola vivia de e para o tráfico. E isto durou aproximadamente
três séculos. Os escravos partiam principalmente para o Brasil. Do Brasil, Angola importava todos
os produtos necessários à vida da colónia : da aguardente e pólvora até à carne seca e à madeira para
construção. Portugal contentava-se em enviar pessoas e entre elas um importante contingente de
deportados, condenados por crimes de direito comum e por “delitos religiosos”. Esta categoria era
constituída por judeus e adeptos da reforma protestante. Os colonos eram compostos essencialmente
de traficantes, comerciantes, soldados e deportados. Dadas as circunstâncias específicas em que se
realizava a partida desta população para Angola e dados os objectivos visados, é fácil deduzir que se
tratava de uma população principalmente masculina, o que esteve evidentemente na origem da forte
mestiçagem gerada na colónia.

Até ao século XIX, a situação económica e social sofreu poucas modificações, em Luanda, Benguela
e nos territórios circunvizinhos que constituíam praticamente a colónia de Angola. Era de facto uma
feitoria servindo de base à captura e ao embarque dos escravos. Sendo a sua principal vocação
militar e administrativa, a esta se agregou alguma actividade económica ligada à pesca e a uma
agricultura rudimentar nas quintas à volta das cidades e presídios e, finalmente, o comércio de
alimentação e bebidas. Esta feitoria era de facto desde o século XVII governada pela colónia
portuguesa do Brasil e não directamente pelo Reino de Portugal.

Até ao século XIX, que constitui um período-charneira, como veremos, as características da


população da colónia não variaram. Assim, a categoria dos brancos, que eram em número de dois
mil e se compunham de comerciantes e soldados, permaneceu estável durante séculos. O número de
mestiços aumentou progressivamente e sempre foi superior ao dos brancos. O elemento negro
evoluía de maneira significativa, mesmo se uma parte importante era constituída por escravos que só
ficavam nas cidades o tempo mínimo para se restabelecerem fisicamente do desgaste provocado pela
viagem em caravana do interior para a costa, com o fim de poderem suportar as condições infra-
humanas da viagem para a América. Luanda e Benguela eram com efeito entrepostos de engorda dos
escravos capturados em guerras do interior ou vendidos pelos chefes tribais.

O número reduzido de brancos, a quase inexistência de mulheres brancas, e o facto de os negros


serem escravos em trânsito ou servindo nas casas dos donos, e por isso com poucas possibilidades de
fundar uma família, explicam que a família mestiça tenha predominado nessa altura. Pode mesmo
dizer-se que a família dominante era não somente mestiça mas também patriarcal polígama. Um
homem, que podia ser europeu, mestiço ou raramente um negro com grandes propriedades, tinha
normalmente uma mulher principal e várias secundárias, geralmente escravas (mucambas) que
ajudavam a mulher principal nas lides da casa. Muitas vezes a mulher principal era mestiça e as
secundárias eram negras, independentemente da cor do chefe de família. Se este era rico, as
mulheres eram tratadas com grande luxo e ostentadas publicamente, sem nenhuma reserva, o que
levava a igreja católica a elevar-se constantemente contra “a dissolução dos costumes e a degradação
da moral familiar”. Mas, ao que sabemos, a sociedade fazia pouco caso das invectivas da igreja, não
só porque as condições da colonização a forçavam a isso, mas também porque este factor encontrava
justificação fácil nos costumes da sociedade africana tradicional, polígama por excelência. Assim, a
sociedade mestiçava-se racialmente e se baseava sobre uma síntese cultural entre a estrutura familiar
europeia e a estrutura familiar africana tradicional. Em Luanda, cidade situada em território de
língua kimbundu, era esta língua africana que se usava correntemente na família patriarcal, mesmo
se o chefe fosse branco. Do mesmo modo, inúmeras crenças e costumes africanos perduravam, sob o
manto da europeização e da cristianização, em imprevistos sincretismos religiosos e culturais.

Um outro fenómeno se juntava a esta evolução : o da ascensão de mestiços livres na administração,


os quais representavam uma quinta parte dos funcionários. Esta ascensão social dos mestiços dava
um aspecto particular às sociedades da costa, muito particularmente a Luanda e Benguela. De um
modo geral, os brancos consagravam-se sobretudo ao comércio, fonte real do poder, que lhes
assegurava mais vantagens materiais que os magros salários de funcionários. Por isso uma parte
significativa dos cargos públicos, civis e militares, foi progressivamente ocupada pelos mestiços. No
entanto sempre existiram medidas legais restritivas. Os cargos mais elevados ou de maior prestígio,
compreendidos os de vereadores da Câmara, reclamavam “pureza de sangue”, o que queria dizer que
o candidato não podia ter sido “contaminado” por sangue judeu, mouro ou negro.

A sociedade urbana de fim do século XVIII é melhor conhecida graças ao historiador brasileiro Elias
Correia , que viveu vários anos em Angola e descreveu o quotidiano dos seus habitantes. Ele
considerava a sociedade dominante em Luanda licenciosa e atentatória à moral católica. Refere
também que a cidade era a mais suja do mundo, com as ruas cheias de lama e de estrume, os animais
vivendo nas ruas no meio do lixo atirado de todos os lados. Os habitantes sofriam de paludismo e
desinteria, e todas as pestes provocadas pela atmosfera pútrida em que viviam. As casas estavam
reduzidas a estado de pardieiros e os edifícios com imponentes fachadas mas ameaçando desabar
estavam rodeados de cabanas sombrias e sem ventilação e casas em ruína que serviam de despejo a
toda a espécie de imundícies. No entanto, talvez para reforçar os contrastes, nesta cidade descuidada,
infecta, mal cheirosa, que os grandes senhores se contentavam de disfarçar mandando queimar
alfazema e açúcar no interior das habitações, havia a maior ostentação de luxo. Os senhores e suas
consortes vestiam caras sedas, veludos e brocados, como nas cortes europeias, sem temerem a sauna
a que se condenavam, passeavam pedrarias, espadins e fivelas de ouro nos sapatos, para os
mergulhar logo em seguida no esterco das ruas. Por Elias Correia sabemos ainda que não havia vida
cultural, excepto raras representações teatrais nas igrejas. Os habitantes mais desafogados passavam
o tempo a engolir copiosos repastos que duravam horas, bem regados de aguardente brasileira, e que
terminavam invariavelmente por partidas de cartas com grossas apostas. As fortunas se faziam e
desfaziam numa noite.

Esta sociedade pachorrenta para a qual o desenvolvimento significava quase um insulto sofreu no
século XIX dois grandes abalos que por pouco a faziam desaparecer. O primeiro abalo foi a
independência do Brasil em 1822. Grupos importantes das classes dominantes de Luanda e de
Benguela tentaram fomentar um movimento para se juntarem ao Brasil e prolongarem
constitucionalmente o que existia na prática. A burguesia colonial de Angola vislumbrava grandes
benefícios nesta ligação directa com a região que lhe comprava os escravos e sem ter de enviar o
dinheiro dos impostos do tráfico para Portugal. Mas o poder português reagiu e o número de brancos
aumentou consideravelmente num ano, com o envio de tropas para defenderem os direitos da coroa
europeia. O resultado mais sensível da independência do Brasil foi uma diminuição progressiva da
exportação de escravos, o que provocou uma crise da economia que durou um século.

Em 1836, um segundo abalo iria modificar a face da colónia : a abolição do tráfico de escravos pela
pressão da Inglaterra. E a crise tronou-se pânico e engendrou uma verdadeira debandada. Houve uma
exportação clandestina e massiva de escravos e fuga de capitais e de pessoas para a Metrópole. O
tráfico diminuiu lentamente para desaparecer completamente só no fim do século. Todavia, deixou
de ser a principal e quase única fonte de receitas da colónia. A economia de feitoria terminou,
deixando o lugar a outro tipo de colonização, já timidamente experimentado no passado, com o
envio de maior número de colonos para o interior com o fito de se dedicarem à agricultura. Esse
movimento migratório de brancos modificou pouco a pouco as relações sociais e marcou
definitivamente a vida cultural. As perdas provocadas pelo fim do tráfico foram somente em parte
compensadas pelos benefícios do comércio da borracha e do marfim, e pelo princípio da exploração
do café. Mas a transformação do sistema de produção provocou mudanças importantes numa camada
social que alguns autores qualificam como “classe média africana”, “sociedade crioula” ou “elite
africana”, termos utilizados para designar essencialmente o mesmo fenómeno.

As famílias patriarcais mestiçadas racial e culturalmente, como vimos, tendiam a ser dominantes nas
cidades, senão em termos quantitativos, pelo menos do ponto de vista da influência social e
ideológica. Era esse tipo de família que dava às cidades da costa a sua coloração particular. O pai
branco enviava o filho mestiço para o interior do país para obter escravos ou dirigir o entreposto
comercial. Os outros filhos mestiços estudavam para alcançarem uma carreira administrativa ou
militar. O filho ou filhos brancos, se os houvesse, ficavam com a loja na cidade ou iam estudar para
Portugal, onde muitos se fixavam. Os proprietários negros, ligados ao tráfico de escravos ou ao
comércio de produtos agrícolas, detentores de fazendas nos arredores, também enviavam os filhos à
escola. É por isso que, na segunda metade do século passado, a esmagadora maioria dos alunos das
escolas de Luanda e Benguela eram negros e mestiços, mas com forte predomínio destes.

Assim se formou no decurso dos anos uma camada social de mestiços e negros, incluindo alguns
brancos nascidos em Angola, e possuindo um mesmo fundo cultural formado pela mistura das
diferentes origens, uma tradicional africana e a outra europeia. Se é o substracto cultural que parece
ser o determinante na sua caracterização, é necessário acrescentar que esta camada social gozava de
uma situação económica notável e se encontrava perfeitamente integrada na vida urbana. Embora
tivesse as características de uma classe média por ser fundamentalmente constituída por quadros
intermédios do comércio, da administração pública e por alguns membros das profissões liberais, ela
englobava também proprietários agrários e artesãos, o que aponta para uma camada social mais
complexa e diferenciada.
Com o fim do tráfico de escravos e a chegada de numerosos colonos, com a chamada política de
povoamento, esta camada social encontrou-se confrontada com um violento processo de
concorrência, que se intensificará com a espoliação das melhores terras para o café e a perda
progressiva da sua posição na administração e no comércio, em favor dos metropolitanos. Este
empobrecimento forçado terá consequências também urbanas, mais visíveis no século seguinte mas
já iniciadas no século XIX, com a marginalização constante das famílias mestiças para a periferia e a
concentração dos brancos no centro das cidades. Esta camada social deixa então de se identificar
ideologicamente com o sistema colonial, de que tinha sido no entanto um elemento decisivo. A
ruptura é entretanto lenta e só será definitiva a partir da segunda guerra mundial e do salazarismo.
Mas não antecipemos, pois estamos sempre no século XIX, cadinho em que as ideias se cruzam e
florescem.

Como era inevitável, esta camada social foi a base de uma elite intelectual muito activa no último
quarto do século e estreitamente ligada à actividade jornalística e literária em geral. Nos jornais, os
escritores “filhos do País” ou “angolenses”, como se designavam, reivindicavam uma identidade
ameaçada pela portugalização da vida económica, social e cultural. Luanda e Benguela tornaram-se
centros de intensa actividade cultural e de debates onde eram abertamente defendidos em
publicações os ideais da Revolução Francesa, e onde se foi desenvolvendo uma crescente vontade de
autonomia política. Sucederam-se os títulos de publicações cujos caminhos vão de um jornalismo
que cultua o gosto pela polémica até à defesa dos valores e interesses da camada social de que fazem
parte os seus autores. A partir das denúncias de corrupção e abusos da autoridade, impressos nas
páginas de periódicos como A Civilização da África Portuguesa, O Comércio de Loanda, O Cruzeiro
do Sul, O Futuro de Angola, O Pharol do Povo, O Arauto Africano, o Muen'exi, O Desastre e O
Polícia Africano, emergem os sinais de descontentamento com a situação sociopolítica da colónia.
Estes artigos são de facto um questionamento frontal do poder estabelecido. A história da literatura
angolana regista os nomes de alguns brilhantes jornalistas e escritores que estão na base do que se
chamaria mais tarde a identidade cultural angolana, presságio de uma nacionalidade em formação a
partir das cidades. Arriscando-me à injustiça de deixar alguns de lado, distingo Cordeiro da Matta,
José de Fontes Pereira, Pedro Félix Machado, Francisco Ribeiro Castelbranco, Pedro da Paixão
Franco, Apolinário Van-Dunem e Alfredo Troni, jornalistas, escritores e homens públicos. Os seus
nomes são ainda hoje os de algumas grandes famílias urbanas.

Desta elite de jornalistas e escritores, podemos distinguir dois nomes que têm uma importância certa
na génese da literatura angolana, apenas porque algumas das suas obras puderam chegar até nós.
Alfredo Troni e Cordeiro da Matta foram sem dúvida dois intelectuais dos mais representativos deste
momento histórico, embora com origens e percursos diferentes.

O primeiro esteve ligado a vários jornais, como o Jornal de Angola, Mukuarimi (kimbundo, cujo
significado é falador, maldizente) e Os Concelhos do Leste, e é autor do texto considerado percursor
da prosa angolana em língua portuguesa : Nga Mutúri, novela publicada em forma de folhetim pela
imprensa de Lisboa em 1882. Nascido em Portugal, Alfredo Troni, bacharel em Direito pela
Universidade de Coimbra, revelou rara inteligência e cultura, com sentimentos humanitários que o
levaram a combater a escravatura, sendo autor do regulamento da lei que declarou definitivamente
extinto o estado de escravidão. Tal como se podia prever, essas posições não agradaram ao governo
colonial. Eleito deputado por Angola, a eleição foi posteriormente anulada e ele foi transferido
compulsivamente para Moçambique. Recusou a transferência, demitiu-se de todas as funções
públicas e passou a viver do seu trabalho como advogado, até 1904, ano em que morreu, em Luanda.

Cordeiro da Matta pelo seu lado procurou na sua actuação como professor, filólogo, etnógrafo, poeta
e ficcionista, promover a divulgação da cultura popular que vinha sendo desprezada pelo
pensamento dominante. Como autor do Ensaio de Dicionário Kimbundo-Português e da Cartilha
Racional para se aprender a ler o Kimbundo, tentou também demonstrar que através dessa língua se
veiculavam valores éticos e filosóficos. Ao publicar Delírios, antologia poética, Cordeiro da Matta
reforçou a nota de ruptura em relação à lírica tradicional portuguesa, uma vez que escolheu como
tema a questão racial, até então intocada pela poesia angolana. Esse desejo de romper com os
padrões metropolitanos, como parte de um programa maior, confirmou-se quando na edição de um
volume intitulado Philosophia popular em provérbios angolenses convocou os seus compatriotas
para a missão de dedicar "algumas horas de ócio ao estudo do que Angola tiver de interessante, para
termos uma literatura nossa". As suas palavras registam a vontade de ter na literatura um traço de
identidade e a convicção de que o pré-requisito para isso era um mergulho mais fundo naquele
universo que, de facto, diferenciava a sua terra daquela de onde vinham os exploradores. De
Cordeiro da Matta ainda se pode citar a História de Angola, editada em folhetins em O Pharol do
Povo. Consta que escreveu também O Loandense da Alta e da Baixa Esfera e o Dr. Gaudêncio ,
cujos originais se perderam. Há ainda vagas referências a respeito de um romance jamais publicado,
A verdadeira história da Rainha Jinga.

Se numericamente o material deixado por esta geração nos parece exíguo, o seu maior legado está no
entanto na capacidade que estes intelectuais tiveram de imprimir através da palavra, num contexto
extremamente difícil e hostil, os primeiros passos para a transformação das consciências que
desembocaria, décadas depois, no movimento dos "Novos Intelectuais de Angola", núcleo fundador
do nacionalismo moderno.

Devo no entanto sublinhar que esta camada social urbana de finais do século passado, considerada
legitimamente na origem do moderno nacionalismo angolano, tinha uma posição algo equívoca, a
qual transparece por vezes nos seus escritos. Esta elite denunciava as discriminações e o racismo
coloniais, e defendia as mesmas oportunidades para todas as raças. Da mesma forma denunciava o
pouco caso que a administração fazia do desenvolvimento do território e da educação das
populações, batendo-se pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e censurando violentamente a
corrupção que grassava nas altas esferas do Poder, quase se colocando em posição de advogar a
independência do País. No entanto, ao mesmo tempo aplaudia as campanhas do exército colonial
contra os chefes tradicionais que todos os anos se iam revoltando e encorajava a ocupação militar
dos reinos do interior que Portugal devia submeter para legitimar a sua posse, em face das
obrigações ditadas pela Conferência de Berlim para a partilha de África. Para a elite urbana, as
populações do interior eram bárbaras e ignorantes, por isso não lhe repugnava a sua integração pela
força das armas, para que essas populações pudessem “receber as luzes da civilização e da Fé
católica”. Haveria também algum interesse material, pois a ocupação do maior número de territórios
favorecia o aprovisionamento em mão-de-obra barata, através do trabalho forçado, o
desenvolvimento do comércio e o aumento do número de postos administrativos, possibilidades de
crescimento económico a que esta camada não era evidentemente indiferente. Republicanos e
democratas para si próprios, não conseguiam ainda estender esses ideais para benefício de toda a
população. Seria pedir demais, pois não devemos esquecer que estas grandes famílias guardavam na
memória os sinais de esplendor da sua origem, provenientes essencialmente do tráfico de escravos
que se fazia em detrimento das populações do interior.

Pepetela

1 - Estatísticas de 1799 revelam que existiam 110 postos de funcionários na colónia de Angola, dos
quais 20 % eram ocupados por mestiços (supomos que de Angola), 6 % por brancos nascidos em
Angola, 3 % por negros e 12 % por brancos vindos da Metrópole, o que significa que cerca de 60 %
dos funcionários eram originários do Brasil. Uma outra estatística de 1818 indica que Angola
importou do Brasil mercadorias que representavam 95,1 % do valor global, enquanto apenas 4,9 %
vinham de Portugal. Quanto às exportações faziam-se exclusivamente para o Brasil, a saber 98,6 %
em escravos, o resto sendo representado por uma percentagem irrisória de cera e marfim. Estes
dados revelam que Angola era de facto uma colónia do Brasil até à data da independência do gigante
sul-americano, colónia especializada no comércio de escravos, o que se reflectiu evidentemente na
sua composição social e no seu substracto cultural.
2 - Elias A. Correia, "História de Angola", Ática, Lisboa, 1937
3 - Lisboa, Edição do Autor, 1891 4 CHAVES, Rita de Cássia – "Entre intenção e gestos – A
formação do romance angolano", tese de Doutoramento, Universidade de São Paulo, 1993

You might also like