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JOSUÉ DE CASTRO

SETE PALMOS DE TERRA E


UM CAIXÃO

ENSAIO SOBRE O NORDESTE, ÁREA EXPLOSIVA

2.ª EDIÇÃO

EDITORA BRASILIENSE

SÃO PAULO

1967
Das abas do livro:
JOSUÉ DE CASTRO era o representante do Brasil na Conferência
do Desarmamento de Genebra quando foi surpreendido com o decreto
da cassação de seus direitos políticos. Não sendo um político de
grande projeção no Governo passado ou que nele tivesse exercido
Uma influência muito marcada, a sua cassação pareceu a muitos
incompreensível. Na realidade, era a sua obra que atraía sobre ele a ira
das forças que subiram ao poder com o movimento de Abril de 1964
— esta mesma obra que, traduzida em 19 idiomas e divulgada no
mundo inteiro numa tiragem que hoje alcança mais de um milhão de
exemplares, fez de Josué de Castro um vulto de imensa projeção
internacional. Os seus trabalhos foram considerados, no campo da
alimentação, tão revolucionários quanto os de Copérnico no domínio
da astronomia. Ele denunciou a fome universal como uma praga
fabricada pelo homem e não como um fenômeno natural, mostrando a
inconsistência e o falso das teorias neomalthusianas, que visam apenas
a defesa das minorias privilegiadas contra os interesses autênticos das
maiorias espoliadas, as grandes massas deserdadas do mundo
subdesenvolvido.
Escritor, cientista e professor universitário foi ele o pioneiro no
Brasil dos estudos científicos sobre alimentação, tendo realizado em
1933 o primeiro inquérito levado a efeito para apurar as condições de
vida de nosso povo. Natural de Recife, impressionou-se com a miséria
em que vivia a maioria de sua população, atormentada pela fome. A
princípio deu expansão à sua sensibilidade em obras de ficção, contos
hoje reunidos em seu livro "Documentários do Nordeste" nos quais
retratou com impressionante vigor literário a tragédia daquele povo.
A fome passou a ser o objetivo de seus estudos. Passou a estudá-la
cientificamente, tal como ela se manifesta em nosso país, publicando
sua conhecida obra "Geografia da Fome"; para, em seguida aplicando
o seu novo método de trabalho sociológico em escala universal,
apresentar o seu livro "Geopolítica da Fome", que teria imensa
repercussão internacional. Seu livro foi laureado pela Academia
Americana de Ciências Políticas com o prêmio Franklin D. Roosevelt
e ao mesmo tempo pelo Conselho Mundial da Paz com o prêmio
Internacional da Paz, evidenciando assim tratar-se de uma obra
profundamente humana elaborada acima das posições partidárias e das
intolerâncias políticas. A Associação Brasileira de Escritores e a
Academia Brasileira de Letras também laurearam a obra de Josué de
Castro com os prêmios Pandiá Calogeras e José Veríssimo.
Mas Josué de Castro não se limitou a publicar o seu grande livro
"Geopolítica da Fome". Dedicou toda sua vida ao estudo deste flagelo,
publicando os trabalhos nos seus outros volumes de ensaios — o de
Biologia Social e o de Geografia Humana, trabalhos que lhe valeram
ser eleito em 1951 para o alto cargo de Presidente da Organização de
Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (F.A.O.), e acaba de
publicar seu último ensaio sobre o Nordeste, "Sete Palmos de Terra e
um Caixão". É a lista de seus livros que vêm chamando a atenção de
nosso povo sobre um grave problema do nosso país que parece não
merecer a devida atenção dos nossos governantes, o da situação de
miséria e atraso em que vivem milhões de brasileiros, principalmente
no Nordeste do nosso país.
Os seres humanos são muito propensos a querer ignorar ou
considerar do domínio da utopia os problemas que não podem resolver
ou que lhes parecem de difícil solução. Afora o seu valor científico e
literário, aí reside o sentido prático da obra de Josué de Castro; o de
chamar a atenção de nosso povo para um problema cuja solução não
comporta mais delongas.
OBRAS COMPLETAS DE
Josué de Castro
A OBRA CULTURAL BRASILEIRA MAIS DIFUNDIDA E COMENTADA
NO MUNDO INTEIRO

Publicada no mundo num total de mais de 400.000 exemplares.


Premiada nos E.U.A. com o Prêmio Franklin Delano Roosevelt — 1952.
Traduzida em 19 idiomas.
Consagrada com o Prêmio Internacional da Paz — 1954.
Selecionada nos E.U.A. pela organização do livro do mês, do Book Find Club.
Distinguido um dos seus livros — a Geopolítica da Fome — pela Associação
Americana de Bibliotecas, como um dos "livros notáveis" de 1952, Condensada a
obra pelas publicações "Colliers" e "Reader's Digest Catholic", nos E.U.A. e por
"Constellation", na França.
Prefaciada em suas edições estrangeiras por personalidades invulgares, tais como
Lorde Boyd Orr, Pearl Buck, de André Mayer, Max Sorre, Cario Levi e Pedro
Escudero.
Obra distinguida pela Associação Brasileira de Escritores com o Prêmio Pandiá
Calogeras.
Obra consagrada pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio José Veríssimo.
Constituem as suas Obras Completas os seguintes volumes:

I VOL. — Geografia da Fome


II VOL. — Geopolítica da Fome (I parte)
III VOL. — Geopolítica da Fome (II parte)
IV VOL. — Documentário do Nordeste
V VOL. — Ensaios de Geografia Humana
VI VOL. — Ensaios de Biologia Social
VII VOL. — O Livro Negro da Fome
VIII VOL. — Sete Palmos de Terra e um Caixão

Um aspecto da realidade brasileira e o grande drama do Mundo — a Fome —


estudados por um cientista e divulgados por um escritor de invulgar mérito literário.
A coleção que todo brasileiro deve possuir em sua estante.

EDITORA BRASILIENSE
EM TODAS AS LIVRARIAS OU PELO REEMBOLSO POSTAL
Rua Barão de Itapetininga, 93 - 12º andar . Caixa Postal 30.644 - São Paulo
Convém notar, de logo, que a ciência tem um ponto de partida e que
este ponto de partida é o senso comum.

JEAN WAHL

Pensamos que a obra do sociólogo será sempre uma intervenção e que


será enganar aos outros e iludir a si mesmo, se não tomamos em
consideração esta verdade e a responsabilidade que ela comporta.

CAMILLO PELLIZI
DON FERNANDO DE OLIVEIRA:
Vous ovibliez que des milliers, des millions, d'Indiens brûleraient pour
l'éternité en enfer, si les Espagnols ne leur apportaient pas la foi.

DON ÁLVARO DABO:


Mais des milliers d'Espagnols brûleront pour 1'éternité en enfer, parce
qu'ils seront allés au Nouveau Monde.

DON BERNAL DE LA ENCINA:


Comme si, bien avant Grenade, on n’aimait pas 1'or!

DON ÁLVARO DABO:


On aimait For parece qu'il donnait le pouvoir et qu'avec 1e pouvoir on
faisait de grandes choses. Maintenant on aime le pouvoir parce qu'il
donne l'or et qu'avec cet or on en fait de petites.

Henry de Montherlant
dans la pièce "Le Maître de Santiago"
ÍNDICE

EXPLICAÇÕES .................................................................................. 11
INTRODUÇÃO ................................................................................... 13

CAPÍTULO I
A Reivindicação dos Mortos ........................................................... 23

CAPÍTULO II
Seiscentas Mil Milhas Quadradas de Sofrimento ........................... 37

CAPÍTULO III
A Primeira Descoberta:
O Feudalismo Português do Século XVI ........................................ 95

CAPÍTULO IV
O Brasil Colonial:
A Ausência do Povo ou a Luta Contra o Progresso ...................... 115

CAPÍTULO V
A Segunda Descoberta ou a Conscientização do Povo Nordestino 142

CAPÍTULO VI
O Nordeste e a América Latina ...................................................... 165

CAPÍTULO VII
Anos Decisivos .............................................................................. 183

Biografia do autor ......................................................................... 216


EXPLICAÇÕES

Este livro foi escrito entre outubro de 1962 e fevereiro de 1964.


Quando a 1.° de abril deste ano um movimento militar depôs o
Presidente Goulart, estabelecendo um novo governo no Brasil, os
originais deste livro já se encontravam nas mãos do tradutor, que
terminava a sua versão inglesa. O primeiro impulso do autor foi o de
pedir a devolução destes originais para acrescentar ao livro um novo
capítulo, concernente a este recente episódio, tão ligado em suas
origens e em sua expressão política à luta que se vem travando com
intensidade crescente no Brasil, entre as forças de emancipação
nacional e as forças de contenção do desenvolvimento econômico-
social do país. Mas, melhor refletindo, resolveu o autor deixar que o
livro fosse publicado tal como fora concebido e redigido, antes do
golpe militar de 1.° de abril: Pesou sobremodo nesta sua decisão a
convicção de que nada poderia ele acrescentar ao livro que explicasse
melhor os fatos recentemente ocorridos, do que o conhecimento dos
antecedentes históricos desta região explosiva e da sua interpretação
sociológica, como tentara o autor apresentar neste livro, antes de saber
quando e como poderia ocorrer a explosão. Acrescentar qualquer coisa
depois que suas previsões já começam a se realizar seria tirar o
possível valor do livro como diagnóstico e como prognóstico de uma
situação histórico-cultural. Seria reduzi-lo a um simples inventário das
calamidades que o Brasil atravessa. Preferimos, pois, publicar o
diagnóstico, ou seja, uma interpretação e não um inventário.
Devemos também explicar, que na elaboração deste livro, contou o
autor com a colaboração do sociólogo brasileiro Alberto Passos
Guimarães, a quem se deve a fundamentação dos capítulos dedicados
ao estudo do feudalismo agrário brasileiro e da sua evolução
sociológica. Contou, também, com a cooperação de vários amigos e
colegas do Nordeste, que lhe enviaram informações e dados recentes
da situação econômico--social da região durante o período de
preparação deste ensaio, pensado e escrito na Europa. A todos que
prestaram generosamente sua contribuição à realização deste livro,
desejamos apresentar nossos sinceros agradecimentos.

Genebra, maio de 1964.

J. C.
INTRODUÇÃO
O Nordeste do Brasil foi descoberto pelos portugueses no ano de
1500 e pelos norte-americanos no de 1960. As duas descobertas
foram feitas por engano. Em 1500 graças a um erro de navegação;
em 1960 graças a um erro de interpretação. Os aportugueses erraram
na geografia; os norte-americanos na história. Mas, nos dois casos,
os desvios de rota — a distorção da rota oceânica ou da rota
sociológica — contam decisivamente na História. Sobre o primeiro
engano — a descoberta casual feita por Pedro Álvares Cabral há
quase cinco séculos — existe hoje uma literatura abundante. Sobre a
segunda descoberta, ainda tão recente, a literatura é pobre.
Este livro pretende representar um documento desta segunda
descoberta: uma modesta contribuição à história da redescoberta do
Nordeste brasileiro. Uma espécie, mal comparando, de carta de Fero
Vaz Caminha (1) dos nossos dias, na qual as coisas sejam mostradas
como as coisas são, em sua dura e crua realidade. Mostrando-se
sempre as duas faces da medalha: a face boa e a face má. A que nos
enche de orgulho e a que nos mata de vergonha, Evitaremos desta
forma que aconteça com o Nordeste o que costuma acontecer em
seguida às grandes descobertas: a tendência à disseminação pelos
quatro cantos da Terra de um mundo de lendas, em lugar de fatos,
servindo à formação de uma falsa imagem da terra e do povo
descobertos. Isto é hoje tanto mais perigoso quando vivemos numa
era de slogans. Dos slogans jornalísticos, que tentam reduzir toda a
terra esquematicamente a um tabuleiro de xadrez, com os seus
quadrados exatos e com os exatos limites das suas diferentes
colorações.
Como todo livro significa, em última análise, uma explicação,
pretende começar por explicar este livro, por explicar o seu como e o
seu porquê. Como o autor o concebeu e porque assim o concebeu.
Talvez esta explicação preliminar, na qual o autor procura se
explicar como autor, facilite ao leitor a tarefa de aceitar as
explicações do livro. Isto seria uma grande coisa. Seria alcançar
praticamente todos os nossos objetivos que não são outros senão o de
obter aliados conscientes para defender certas idéias que, a nosso
ver, merecem ser ardorosamente defendidas. Uma das primeiras
coisas que me parece necessário explicar é que este livro foi
especialmente escrito a pedido de uma editora dos Estados Unidos da
América para o público norte-americano. E que desta forma não se
deve admirar o leitor brasileiro de nele encontrar muitas coisas que
lhe parecerão por demais sabidas, desde que ele as conhece como se
fossem traços da palma de sua mão, mas que, no entanto, são coisas
totalmente ignoradas pelo leitor médio dos Estados Unidos, como se
fossem traços da outra face da Lua. Escrevendo para um mundo tão
diferente do nosso, tão distante de nossa realidade social, era preciso
dar uma idéia precisa da região estudada, caracterizando-a com o
que ela tem de mais típico, e, portanto, de mais conhecido no seu
contexto social. Não podia, pois, fugir o autor a esta enumeração de
muita coisa que pode parecer demasiado terra a terra aos olhos dos
habitantes da Terra ou dos estudiosos e dos eruditos, dos seus hábitos
e costumes tradicionais.
Mas, desta tela de fundo bem conhecida em seu conjunto, o autor
procura destacar numa perspectiva, que ele julga até certo ponto
diferente, alguns traços fundamentais já conhecidos e outros, que até
hoje tinham passado desapercebidos da maioria, e desta forma, o
retrato que ele pretende traçar do Nordeste talvez apresente alguma
coisa do novo. Pelo menos naquilo que no próprio Nordeste também é
novo, como é o caso da revolução social que aí se processa em nossos
dias.
Arrisca-se deste modo o autor a ser julgado por uns como um
repetidor maçante de coisas já ditas e por outros como um grande
fantasista, que pinta uma realidade da qual os outros autores nunca
se tinham dado conta. Tínhamos consciência destes riscos, quando
empreendemos nosso projeto, e estamos preparados para correr estes
riscos. Eles constituem mesmo, a nosso ver, parte integrante da nossa
tarefa. É que não tencionamos escrever um livro neutro. Um livro
com pretensões a ser uma fria e rigorosa análise científica da
realidade social do Nordeste. Não. Não é este um ensaio de
sociologia clássica. De uma sociologia acadêmica, espartilhada na
camisa de força de uma metodologia que sempre tentou separar, no
sociólogo, o investigador do homem, c limitando sempre a função do
sociólogo, a de um simples inventariante de tudo aquilo que se
apresenta aos seus olhos, teleguiados por métodos de trabalho
consagrados. O nosso estudo sociológico é o oposto deste gênero de
ensaio. É um estudo de sociologia participante ou comprometida(2).
De uma sociologia que não teme interferir no processo da mudança
social com os seus achados e, por isto mesmo, não tem o menor
interesse em encobrir os traços de uma realidade social, cuja
revelação possa acarretar prejuízos a determinados grupos ou classes
dominantes. De uma sociologia que estudando cientificamente a
formação, a organização e a transformação de uma sociedade em
vias de desenvolvimento, compreende e admite que os valores mais
desejáveis por esta sociedade são os ligados à mudança e não à
estabilidade, e, por isto mesmo, se aplica em aprofundar ao máximo o
seu conhecimento científico do mecanismo destas mudanças. Digo o
conhecimento científico, porque, a meu ver, a sociologia
comprometida com o processo social não deixa de ser científica, por
este seu engajamento. Ao contrário, ela é bem mais cientifica do que a
antiga sociologia, que se presumia científica, mas não passava em seu
falso cientificismo de um instrumento de inconsciente mistificação da
realidade social, cujo contado direto ela sempre evitava, preocupada
pela fragilidade dos sistemas em vigor e pelo receio de que ao menor
contado tudo pudesse vir abaixo. No fundo, a antiga sociologia era
mais utópica do que científica, e a sua utopia consistia exatamente no
seu inconsciente desejo de que o processo social se imobilizasse, para
ser melhor fotografado. Desta forma, a antiga sociologia era bem
mais comprometida do que a sociologia nova, cuja validade científica
defendemos. Mas era comprometida com uma ideologia do
imobilismo, de uma imagem, estática da sociedade, considerada como
uma coisa já feita, definitiva e perfeita, enquanto a nova sociologia
considera a estrutura social como um processo em constante e rápida
transformação. Ademais, a verdadeira sociologia científica, como
qualquer outro ramo da ciência contemporânea, é bem menos
arrogante acerca de suas verdades do que a sociologia clássica,
desde que hoje se sabe muito bem como todas as verdades são
relativas. E que o que chamamos de realidades científicas, não só no
mundo da sociologia, mas mesmo no terreno mais sólido da natureza
física, são sempre produtos da interação entre os próprios fatos e o
ato de observar do pesquisador, e que na verdade não existem
realidades fora do campo de nossa observação. Há apenas
possibilidades. A transição do possível ao real tem lugar sempre
durante o ato de observar, como afirmou Heisenberg, pondo uma nota
de prudência na atitude um tanto imprudente de certos tipos de
cientistas intolerantes(3). As verdades científicas são, pois, sempre
relativas, desde que estão sempre na estrita dependência do momento
da observação e da perspectiva em que se coloca o observador. Não é
outro o sentido mais geral da teoria da relatividade de Einstein,
através da qual se chega à conclusão inapelável de que o que nós
descrevemos, em verdade, não é a Natureza tal qual ela é, mas tal
qual ela se mostra na perspectiva dos nossos métodos de observação.
É esta inserção inevitável do observador sociológico dentro do
processo social que, a nosso ver, torna impossível a sua não
participação nos fenômenos que ele observa, invalidando a sua
pretensão de obter uma imagem do real que não seja deformada, já
não digo por sua ideologia, mas por sua idealização, isto é, pelas
imagens preconcebidas do seu conhecimento existencial(4). Se a
reprodução das imagens do mundo natural é sempre eivada de certas
deformações, imagine-se como não crescem estas deformações,
quando se observa o mundo dos fenômenos sociais: da vida humana
associativa, à qual o observador está ligado por laços de
solidariedade ou de antagonismo, dos quais a própria estrutura do
seu pensamento lógico não poderá jamais se libertar inteiramente(5).
Aí estão as razões porque não acreditamos no que se chama de
sociologia independente, de sociologia neutra sem outras ligações
com os aspectos sociais que os de sua fria e distante observação. É
este o nosso conceito de sociologia, e é esta a perspectiva sociológica
em que levaremos a efeito este ensaio. Os fatos nele expostos deverão
ser tomados sempre como a cristalização do que se está passando no
Nordeste do Brasil, na perspectiva de um estudioso destes problemas,
mas que é ao mesmo tempo um habitante desta região, impregnado de
corpo e alma da vida desta terra e do sentimento de sua gente. Que
embora este estudioso tenha vivido em vários países do mundo, nunca
se libertou inteiramente da crosta telúrica que recobre até hoje a sua
pele e a sua alma, e que dele faz, um eterno regionalista, embora com
pretensões de ser um espírito universal, mas que põe sempre como
termo de comparação ao seu universalismo os valores regionais da
terra onde nasceu e onde formou a sua mentalidade. Na verdade o
que queremos impor ao mundo, com este livro, é um retrato do
Nordeste como o vê um homem desta região, embora extremamente
interessado pelo espetáculo do mundo. Retrato que, a nosso ver,
representa a realidade com menores deformações do que os retratos
do Nordeste, traçados com o maior rigor e probidade cientifica pela
maioria dos estudiosos dos problemas sociais, habitantes de outras
terras ou continentes. E isto porque as perspectivas desses estudiosos,
longe de ajudá-los, os conduzem Irremediavelmente às grandes
deformações. Deformações tanto maiores quanto mais eles tentam
penetrar nossa realidade, para superpô-la, através do método
comparativo, às realidades sociais com que estão familiarizados em
seus países, transformando-se perigosamente naquilo que um
sociólogo brasileiro chamou com muita propriedade de
"transferidores de cultura".
Na verdade, foi nesta direção que partimos. Na busca de um
retrato sociológico do Nordeste. Mas no caminho verificamos que o
retrato assim pintado arriscava a apresentar-se um tanto incompleto:
ser muito estilizado ou muito fotográfico. Duas deformações que
desejávamos evitar. Já demos a entender que o nosso objetivo
fundamental é o de mostrar o processo de transformação social
acelerado que o Nordeste está vivendo. E mostrá-lo, no contexto
integral de suas trágicas contradições e dos dilacerantes
antagonismos de suas forças sociais. São as mudanças, os traços
cambiantes de sua paisagem humana, que desejamos apreender e
retratar: o complexo problema do seu desenvolvimento econômico e
social. Processo de uma tal complexidade, pelo jogo dos múltiplos
fatores que deles participam, que torna difícil o seu approach através
de um ataque unilateral por meio das indagações válidas que lhe
possa fazer qualquer disciplina científica isolada, mesmo quando esta
disciplina é a sociologia habituada a lidar com sistemas complexos. A
verdade é que os especialistas, se sentem submersos diante do mundo
de variáveis que encobrem todo o seu horizonte de observação,
quando procuram analisar o processo de desenvolvimento. Como a
característica essencial da ciência sempre foi a da simplificação e da
eliminação das variáveis em busca de leis gerais, esta tentativa no
campo do desenvolvimento social jamais poderá ser levada a efeito
por um só setor de especialistas: sejam eles geógrafos ou
antropólogos, sociólogos ou economistas.
"Na prática, a complexidade do processo do desenvolvimento,
torna os especialistas ou o técnico auto-suficiente extremamente
perigosos, e isto porque nenhuma mentalidade isolada é capaz de
compreender, em sua totalidade, todas as nuances de uma sociedade
em transição", afirmou um editoria-lista do New Scientist(6). O
assunto realmente extrapola os limites de qualquer disciplina e este
tem sido um dos principais motivos dos seguidos fracassos dos planos
de desenvolvimento elaborados no papel, por economistas
renomados, que dispunham, entretanto, apenas de uma visão
puramente econômica do problema. Para evitar o fracasso
irremediável do retrato que tínhamos em. mente traçar do Nordeste,
fomos conduzidos à necessidade de não limitarmos o nosso ensaio às
fronteiras convencionais da sociologia, mesmo de uma sociologia
libertada das peias do convencionalismo clássico(7). Adiamos que,
para dar ao retrato um colorido que não se distancie muito das
nuances vivas de sua realidade, tínhamos que usar tintas de várias
origens, molhando aqui e acolá o nosso pincel no campo da
geografia, da economia, da antropologia, da etnografia e de várias
outras disciplinas, que tentam surpreender aspectos parciais da vida
coletiva. Foi desta forma que chegamos à conclusão que o nosso
ensaio não podia rigorosamente ser considerado como um ensaio
sociológico. É apenas um ensaio, tomando-se a palavra na acepção
de tentativa: tentativa de penetrar o por-dentro das coisas. É esta uma
tentativa de interpretação desta região, considerada uma das áreas
explosivas do mundo de nossos dias. Isto é, como uma área onde as
tensões sociais, estão alcançando os limites do tolerável — limite em
que os conflitos latentes entram em combustão violenta, provocando a
explosão social. É esta uma das poucas observações válidas no
contexto das lendas que hoje circulam no mundo sobre o Nordeste
brasileiro. O Nordeste é realmente uma área explosiva, como
procuraremos mostrar neste ensaio, com uma carga explosiva bem
maior do que as cargas existentes na maioria das supostas áreas
explosivas da África e do Oriente: no Congo, na África do Sul, na
Índia, no Vietnam. E se nessas zonas da África e da Ásia os sintomas
de explosão se tem manifestado com maior insistência, é que os
fatores capazes de detonar o processo têm sido aí bem mais ativo, e
continuamente postas em ação a propaganda ideológica e a liderança
revolucionária. Bem mais ativos do que no Nordeste do Brasil, onde a
tensão social explosiva nunca foi habilmente canalizada para o
caminho da revolução. Foi, quando muito, estimulada como
instrumento de demagogia política ou como arma de luta de um grupo
contra outro grupo de poderosos, nunca como autêntica força de
libertação através da explosão popular. Mas força explosiva não
falta. O que tem faltado é o estopim, ou quem acenda o estopim. A
análise elucidativa desta situação de suspense social, na qual poderá
de repente se cristalizar uma nova força detonante, capaz de se
propagar rapidamente por toda a. massa explosiva mantida até hoje
sob pressão, constitui um objetivo da mais alta importância para o
Nordeste e para o mundo. Para o Nordeste, porque o conhecimento
exato da situação poderá permitir que sejam essas forças ou tensões
sociais convenientemente dirigidas num sentido construtivo e criador.
E para o mundo, porque o problema das tensões sociais do Nordeste
é, com algumas nuances que o singulariza, o mesmo problema das
tensões sociais reinantes em todo o mundo subdesenvolvido, que
representa em seu conjunto um dos pólos explosivos do mundo atual.
É claro que no esquema geral de nossos objetivos, no que diz respeito
ao próprio Nordeste, não acreditamos que qualquer interpretação de
sua realidade, por mais lúcida que ela seja, possa ter a virtude
mágica de mudar a direção da História e de resolver da noite para o
dia os angustiantes problemas da região. Mas estamos certos de que a
análise acurada dos fatores subterrâneos desse drama sociológico e a
sua revelação à consciência coletiva ajudarão o processo de
conscientização(8) das massas nordestinas, que é o fenômeno mais
característico da dinâmica social desta área nos nossos dias, e
através da qual essas massas tomam hoje consciência de seus
angustiantes problemas e procuram acelerar por todos os meios as
reações sociais, necessárias à sua libertação do círculo angustiante
das privações que criaram a sua angústia ou neurose coletiva. A
psicanálise desta neurose, causada por inúmeros complexos de
frustração de um povo espoliado e oprimido há vários séculos, deve
ser levada a afeito com acuidade e com probidade. Não apenas para
resolver os conflitos psicológicos que geram a própria neurose e que,
desmontados, poderão curá-la, provocando no entanto com a cura o
esvaziamento de toda a energia criadora, indispensável à vida, tanto
dos indivíduos como da coletividade. Não apenas para realizar esta
espécie de castração, que c em certos casos o processo analítico
redutivo, quando em sua cura aparente extermina também a
vitalidade que dá sentido à própria vida, mas sim para revelar tanto a
natureza exata dos problemas, como os caminhos possíveis que
poderão ser encontrados, para se transpor os obstáculos
aparentemente intransponíveis. É dentro destes princípios da técnica
construtiva prescrita por Jung(9), que julgo útil levar a efeito uma
análise da alma coletiva do Nordeste, para que possa o seu povo
consumar o processo de sua revolução social, com o mínimo de
sofrimento e com o mínimo de violência. E para levá-la a efeito com a
necessária convicção que é este o único remédio para os seus males e
que este remédio está ao seu alcance. E, quanto ao mundo, qual a sua
atitude diante deste drama regional? Que interesse poderá ter para o
mundo a sorte destes nordestinos, devorados por seu complexo de
frustração e colocados à margem da História, da qual praticamente
nunca participaram? A nosso ver, o interesse do mundo por esta área
já hoje é bem grande c tende a crescer cada vez mais. E isto por
várias razões. As elites dirigentes dos países líderes começam hoje a
se aperceber que um grande número de seus erros de julgamento, de
desastrosas conseqüências para os seus interesses, foram produtos de
sua quase que total ignorância da carta do mundo (10). Da carta do
grande mundo e não do pequeno mundo das suas preocupações mais
imediatas, no qual se concentrara até a primeira guerra mundial todo
o interesse dos povos bem desenvolvidos: o chamado Mundo
Ocidental. Até então era como se só o Ocidente existisse (e o Ocidente
era apenas o conjunto dos países colocados dos dois lados do
Atlântico Norte), e como se o resto do mundo fosse apenas uma vaga
massa de terra sem maior interesse nem significação. Esta a imagem
que nos evoca Toynbee(11) quando nos fala do Mundo e do Ocidente:
o Ocidente sujeito fabricante da História, e o mundo, isto é, o resto,
apenas como objeto desta História. Esta é a história das agressões do
Ocidente contra o mundo, que Toynbee descreve com tanta lucidez.
Mas, do próprio encontro do Ocidente com o mundo, que o mesmo
Toynbee considera como o mais significativo acontecimento da
história moderna, nasceu uma nova consciência política mundial — a
consciência de que o mundo já não é apenas o Ocidente. Que não há
apenas um centro de gravitação no mundo, que, de acordo com os
historiadores do começo do nosso século, estava colocado no centro
da Europa, considerado como o coração da terra — the heartland —
sendo o resto uma espécie de ilha. A ilha do mundo, de que nos deixou
um mapa expressivo o criador desta teoria do heartland, Halford
Mackinder(12). Hoje, o centro do mundo está por toda parte e a ilha
do mundo passou a fazer parte do continente da História, porque por
toda parte hoje se faz história, e essa história repercute em toda parte
do mundo. Daí a preocupação mundial em nossos dias de conhecer
melhor terras como estas do Nordeste, que até ontem pareciam sem
qualquer significação para o mundo, mas que hoje se apresentam
como um foco de grande interesse internacional, pela carga de
explosão social que encerram, podendo se converter, de repente, no
cenário de profundas transformações históricas.
É constatando hoje a profunda verdade contida na frase de um
estadista do império britânico, quando diz que "o custo da ignorância
geográfica tem sido incomensurável", e não querendo ser tomado de
surpresa pelos fatos históricos em seu acelerado suceder que os
dirigentes do mundo de hoje estão tão interessados em atualizar a sua
carta do inundo e em precisar nela os traços mais significativos
destas áreas de maior tensão social onde as forças de transformação
ameaçam romper os diques das forças de contenção, alterando os
desenhos da carta atual. O Nordeste brasileiro, é sem nenhuma
dúvida, uma destas áreas. Daí o interesse do mundo em obter uma
imagem mais exata de sua realidade social, uma imagem isenta de
preconceitos e de falsas noções. Em obter, numa palavra, uma carta
atualizada da região.
Um dos objetivos deste livro ó o de fornecer elementos
informativos seguros para o levantamento desta carta. E de fornecê-
los principalmente aos Estados Unidos e a certos países da Europa
onde hoje tanto se fala do Nordeste, sem se dizer quase nada do
verdadeiro Nordeste e dos seus autênticos problemas humanos. Foi
esta a razão principal que nos levou a aceitar a proposta de uma
editora norte-americana para escrever este pequeno livro. Livro no
qual tentaremos dar uma imagem mais nítida da realidade social
dessa região onde vinte e três milhões de seres vivos lutam para abrir
o caminho de sua emancipação, através do denso cipoal trançado
pelas circunstâncias históricas adversas, produtos de erros e
omissões, tanto da política nacional como da política internacional. É
este o nosso principal objetivo, ao escrevermos este livro; o de fazer
penetrar um pouco de luz neste cipoal escuro, embora esteja o autor,
certo de que esta luz só chegará aos olhos daqueles que realmente
querem enxergá-la, porque os outros, aqueles que se negam a ver a
evidência, diante de livros como este, ficarão ainda mais cegos —
cegos de raiva ou cegos de medo.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Introdução

1 - VAZ DE CAMINHA, PERO, Carta a El-Rei D. Manuel, 1500.


2 - FERRAROTE, FRANCO, La Sociologia come Partecipazione, Turim, 1961.
3 - HEISENBERG, W., Physique et Philosophie, Paris, 1951.
4 - WAHL, JEAN, Science et Philosophie, in "Civiltà delle Macchine", Roma, n.° 2, 1963.
5 - MERTON, ROBERT K., Social Theory and Social Structure, Glencol, 1957.
6 — Editorial World of Opportunity, in "New Scientist", n.° 326, 14 de fevereiro de 1953.
7 — MACCLUNG LEE, A., Partecipazione ed Analise Nella Recerca Sociológica, in
"Rassegna Italiana di Sociologia", janeiro-março de 1961.
8 - ÁVILA, FERNANDO BASTOS de, A Realidade Brasileira em sua Dimensão
Sociológica, in "Síntese Política, Econômica, Social", Rio de Janeiro, n.° 14, 1962,
9 - MARTIN, P. W., Experiment in Depth, Londres, 1955.
10 - MENDE, TIBOR, Regards sur 1'Histoire de Demain, Paris, 1954.
11 - TOYNBEE, ARNOLD, The World and the West, Oxford, 1953.
12 - MACKINDER, HALFORD, Our Evolving Civilization, an Introduction to Geopolitics,
Toronto, 1947.
CAPITULO I

A REIVINDICAÇÃO DOS MORTOS

Nenhum dos mortos daqui


vem vestido de caixão.
Portanto eles não se enterram
são derramados no chão.

JOÃO CABRAL DE MELLO NETO em "Cemitérios Pernambucanos"

EM 1955, João Firmino, morador do Engenho Galiléia, fundava a


primeira das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro. Não fora seu
objetivo principal, como muita gente pensa, o de melhorar as
condições de vida dos camponeses da região açucareira, ou de
defender os interesses desses bagaços humanas, esmagados pela roda
do destino, como a cana é esmagada pela moenda dos engenhos de
açúcar. O objetivo inicial das Ligas fora o de defender os interesses e
os direitos dos mortos, não os dos vivos. Os interesses dos mortos de
fome e de misérias; os direitos dos camponeses mortos na extrema
miséria da bagaceira. E para lhes dar o direito de dispor de sete
palmos de terra onde descansar os seus ossos e o de fazer descer o seu
corpo à sepultura dentro de um caixão de madeira de propriedade do
morto, para com ele apodrecer lentamente pela eternidade afora. Para
isto é que foram fundadas as Ligas Camponesas. De início, tinham
assim muito mais a ver com a morte do que com a vida, mesmo
porque com a vida não havia muito o que fazer... Só mesmo a
resignação. A resignação à fome, ao sofrimento e à humilhação. Mas,
se já não havia interesse dessa gente em lutar pela vida — em lutar por
uma vida melhor e mais decente, por que este obstinado empenho em
reivindicar direitos na morte? Reivindicação de mortos que nunca
tiveram direito em vida! Por que esta desvairada aspiração de possuir,
depois de morto, sete palmos de terra, por parte de quem na vida não
dispusera, de seu, nem de uma polegada de solo, pertencendo quase
todos, aos imensos batalhões dos sem--terra que povoam o Nordeste
brasileiro? E por que este desespero em possuir um caixão próprio
para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sorte nunca
foram proprietários de nada — nem de terra, nem de casa, nem mesmo
do seu próprio corpo e de sua própria alma, alugados a vida inteira aos
senhores da terra? Por que esta conduta aparentemente tão estranha,
tão em contradição com o conformismo, a apatia, a resignação desta
pobre gente? Tudo isto só tem sentido, quando a gente compreende
que, para os camponeses do Nordeste, a morte é que conta, não a vida,
desde que, praticamente, a vida não lhes pertence. Dela, eles nada
tiram, além do sofrimento, do trabalho esfalfante e da eterna incerteza
do amanhã: da ameaça constante da seca, da polícia, da fome e da
doença. Para eles só a morte é uma coisa certa, segura, garantida. Um
direito que ninguém lhes tira: o seu direito de escapar um dia pela
porta da morte, do cerco da miséria e das injustiças da vida. Tudo
mais é incerto, improvável ou impossível. Daí o interesse do
camponês do Nordeste pelo cerimonial da morte, que ele encara como
o da sua libertação à opressão e ao sofrimento da vida. "Aos pobres de
espírito pertence o reino dos céus", dizem as Escrituras Sagradas.
Palavra consoladora para aqueles que há muito já tinham perdido toda
a esperança de conquistar um lugar decente nos reinos da Terra.
A larga experiência de mais de quatro séculos de um regime
agrário de tipo feudal — ali implantado pelos colonos portugueses sob
a forma do latifúndio escravocrata, produtor de açúcar (1) — e a
resistência invencível deste regime em ceder a qualquer exigência ou
reivindicação dos camponeses para melhorar um pouco suas trágicas
condições de vida acabaram por dar a esta gente o sentimento da
inutilidade de qualquer esforço para sair do atoleiro de sua miséria. A
poesia popular, os a-bê-cês dos cantadores, a tradição e a História
sempre se referiram às antigas revoltas camponesas como a
"Balaiada", "A República de Palmares", "Canudos", nas quais
camponeses desesperados lutaram inutilmente contra os senhores
prepotentes.
É verdade que, para sermos justos, não podemos esquecer que os
escravos descendentes dos negros trazidos da África pelos portugueses
tinham obtido em 1888 a sua libertação. A libertação de sua "galé
perpétua" de que falava Castro Alves, o poeta da Abolição. Mas, ter-
se-ia mesmo libertado, os escravos, da escravidão? Ou apenas se
tinham libertado do opróbrio de serem chamados escravos, para
continuarem os mesmos escravos com o nome de moradores — de
servos de seus antigos senhores feudais? A verdade é que, escravos ou
servos, moradores ou foreiros, o que lhes tocara até hoje fora sempre a
mesma cota de sacrifícios, de trabalhos forçados, de fome e de
miséria: a mesma herança que lhes havia legado a escravidão.
Deixando de serem escravos de um dono, para serem escravos de um
sistema: escravos do latifúndio açucareiro.
Para serem triturados como bagaço pela engrenagem deste sistema
econômico, dos mais desumanos que ainda perduram na superfície da
Terra. Mas que foi, sem nenhuma dúvida, há quatro séculos, o sistema
que deu consistência política e base econômica ao país em formação.
Que permitiu que se implantasse neste Nordeste a primeira
organização econômica de além-mar, que daria no século XVI à
metrópole portuguesa o monopólio de um produto nos mercados
europeus: o monopólio da plantação da cana, da indústria e do
comércio açucareiros. Tudo isto feito à base do trabalho escravo. Da
total escravidão do homem e da terra, submetidos incondicionalmente
a serviço da ambição dos grandes senhores feudais de enriquecerem
depressa, plantando sempre mais cana e produzindo sempre mais
açúcar. E entregando-se de corpo e alma a esta audaciosa aventura
açucareira, sem medir suas conseqüências e sem atender a qualquer
sentimentalismo, obedecendo apenas ao insaciável apetite do ouro e
ao desadorado apetite da cana, objeto de sua adoração. Ao feroz
apetite desta planta, de dispor sempre de novas terras para serem
engolidas pelos canaviais e de dispor sempre de mais braços humanos
para serem quebrados ou esgotados, no eito, plantando, limpando e
colhendo cana, ou, nas estradas, puxando e empurrando os carros de
cana, ou nas moendas, ou na esteira das usinas, ou nos cais,
carregando e descarregando os sacos de açúcar. Se com o tempo a
paisagem da região parece ter mudado um pouco — a grande usina
moderna tomando o lugar do velho engenho de água ou de lenha, o
palacete do dono da usina se erguendo no lugar da casa-grande do
engenho — a paisagem humana permaneceu quase que a mesma. Os
antigos escravos, que então viviam na senzala, agora espalhados pelas
choças e pelos casebres no campo e nas aldeias, ou amontoados nas
favelas dos mocambos das cidades, verdadeiras senzalas
remanescentes, fraccionadas em torno das novas casas-grandes, os
palacetes dos novos senhores da terra. Nenhuma força fora capaz de
quebrar o sistema opressor do latifúndio, que vem pesando há séculos,
como uma fatalidade sobre a vida do camponês.
Os cantadores de feira, sempre exaltaram a coragem indômita dos
líderes populares, sacrificados nas ondas violentas da repressão. Mas
de que serviu todo este esforço, toda esta violência? Não serviu para
nada. Nem a força da bala dos cangaceiros, nem a força da fé dos
místicos e dos beatos deram fim ao sofrimento e à opressão, de que até
hoje padecem os camponeses. Nem Antônio Silvino e Lampião, heróis
do banditismo, cantados pela poesia popular, nem o Padre Cícero de
Juazeiro e seus místicos adoradores, puderam mudar o rumo do
destino dessa pobre gente, condenada por seu destino histórico a
permanecer sempre no fundo do abismo. A se sentirem impotentes,
como se o carro de seus destinos se tivesse atolado até o eixo no barro
mole das estradas da cana, no massapê fofo e pegajoso onde se atolam
os carros de boi. E quanto mais força se faz, mais o carro se atola,
como se o diabo ou o destino, ou os dois juntos, agarrassem, de dentro
do barro, os raios da roda do carro. Ou como se todos os
companheiros de infortúnio tivessem sido empurrados pelo mesmo
destino, para dentro de um redemoinho, que fosse como um inferno
d'água, com a força da miséria puxando sempre, como a correnteza,
mais para o fundo, O atoleiro da vida ou o redemoinho da fatalidade
são imagens populares com que a gente do Nordeste exprime, em seu
linguajar simples, a sua revelação de um fenômeno social, que os
cientistas de hoje, chamaram com Winslow de "processo circular
cumulativo" (2). Processo social no qual uma constelação de fatores
negativos atuam de tal forma imbricados, que os grupos pobres ficam
sempre cada vez mais pobres, enquanto os ricos cada vez enriquecem
mais. É a mesma noção do chamado "círculo vicioso da pobreza" de
Nurkse (3), no qual a fome e a pobreza, agindo e reagindo como dois
fatores de ação cumulativa, fazem com que os famintos não possam
comer porque não são capazes de produzir e não produzem porque são
famintos. O homem do Nordeste ignora estas sutilezas dos sociólogos,
estes brilhantes jogos de palavras nos quais se fala de fatores
negativos agindo como causa e efeito dentro do processo social, mas
sente na sua carne a realidade da miséria estagnante e vê sempre
crescer diante dos seus olhos a riqueza descomunal dos que
enriquecem cada vez mais à custa de sua fome. E é esta revelação que
lhe faz dizer, sem exteriorizar a sua revolta, que é assim mesmo, que a
água só corre para o mar. E correndo sempre para o mar, a água deixa
na miséria a terra seca do sertão, e na angústia, a alma ressequida do
homem do Nordeste. Tão ressequida que, de vez em quando, esta alma
vira pedra — a alma e o coração de pedra dos cangaceiros. Na sua
visão fatalista do mundo, estes seres primitivos chegam à conclusão
de que não há barragens que possam estancar esta tendência inevitável
do destino, que leva sempre a água para o mar, onde menos falta ela
faz. Um sentimento de total impotência e da própria desvalia ,se
apoderou da alma do camponês nordestino. Daí a sua humildade e o
seu aparente conformismo diante dessa conspiração invencível das
forças naturais e das forças sociais, associadas ambas, para o
esmagarem em suas pretensões de obter qualquer melhoria de
condições de vida?
Não foi, portanto, pensando em reivindicações dos direitos
espoliados, nem com o desejo de se organizarem para lutar contra a
exploração do regime agrário reinante, que os humildes camponeses
do Engenho Galiléia fundaram as Ligas Camponesas. Não se chamava
o seu engenho Galiléia? O mesmo nome da Terra Santa, onde o doce
Jesus pregou pela primeira vez a doutrina da igualdade e da
fraternidade humanas, doutrina revolucionária, que, durante dois mil
anos, ainda não conseguiu penetrar de verdade na alma empedernida
dos falsos cristãos, que dominam uma grande parte do mundo?
Portanto, quem melhor armado para entender o profeta da Galiléia do
que essa pobre gente do Engenho Galiléia, nesse Nordeste do Brasil?
Pobres como os amou Cristo, que por eles se deixou crucificar para
que o reino dos céus se estabelecesse na Terra. Quem melhor para
sentir os ensinamentos e as lições de amor do grande profeta da
Galiléia do que esta gente destituída de tudo, sem maiores ambições
neste mundo? Apenas ambicionando um dia se apresentarem bem
diante dos olhos de Deus. E foi neste ponto que as suas aspirações
pareceram um tanto excessivas aos olhos dos outros cristãos, os
cristãos proprietários de terras, donos de engenho, senhores do
Nordeste. A aspiração dos associados da Liga era de se prepararem
para sua apresentação no juízo final, em condições que não lhes
fossem totalmente desvantajosas, de forma a serem ouvidos pela
Autoridade Suprema. A primeira condição seria, sem dúvida, a de se
apresentarem diante de Deus com as mãos limpas de crimes e com a
alma limpa de vícios. E isto não seria difícil para a maioria deles. Mas
no seu entender simplista, seria também necessário se apresentarem
com um mínimo de decência, numa hora de tamanha importância e de
tanta solenidade: a hora do juízo final. E é aí que a sua extrema
miséria não lhes permitia este mínimo de decência. É um hábito
nessas terras miseráveis que os pobres lavradores, no termo de suas
vidas de miséria, sejam levados ao cemitério num caixão "de
caridade", que a Prefeitura empresta, mas que tem que ser restituído
na boca da cova, para servir outros defuntos. Ora, ser enterrado desta
forma, constitui a humilhação suprema para essa pobre gente, cuja
vida não passa de um rosário de humilhações. Mas esta é a maior de
todas, porque é uma humilhação que passará para o outro lado da vida
— uma humilhação que durará toda a eternidade. A Liga foi criada
para evitar esta suprema humilhação.
Quando em 1960 um jornalista entrevistou um dos principais
dirigentes da Liga, o velho José Francisco de Souza, e lhe perguntou o
que tinha a Liga feito em benefício dos pobres camponeses, ele
respondeu tranqüilamente: "Veja, moço. Antes da Liga, quando um de
nós morria, o caixão era emprestado pela Prefeitura. Depois que o
corpo era levado à vala comum, o caixão voltava para o depósito
municipal. Hoje a Liga paga o enterro e o caixão desce com o morto".
Ali estava o primeiro resultado patente da iniciativa que haviam
tomado João Firmino e seus companheiros do Engenho Galiléia, ao
fundarem nessas terras de tanta pobreza, uma sociedade civil
beneficente, de auxílio-mútuo, para ajudar seus moradores a morrer
com decência: com uma vela na mão, com os olhos fitos na chama
desta vela, que os ajudaria a orientar seus primeiros passos na
escuridão do além, e com a confortadora certeza de que dispunham
dos seus sete palmos de terra onde pousar o seu caixão e nele esperar
tranqüilo o juízo final. Esta instituição beneficente foi denominada
"Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco". Mas
o nome não pegou. O que pegou foi o apelido. É que logo em seguida
à sua criação, começaram a chamar a sociedade de Liga. De Liga
Camponesa. O apelido foi botado para desfazer dela. Para dar-lhe uma
origem considerada suspeita pelos conservadores, com ocultas
ligações com o movimento revolucionário iniciado há muitos anos
noutros pontos do Nordeste, sob a forma de organizações camponesas,
visando reunir os trabalhadores da cana numa espécie de sindicato que
lhes desse força política suficiente para reclamar e para reivindicar. E
estas primeiras tentativas tinham sido chamadas de Ligas
Camponesas, provavelmente sob a remota inspiração das Ligas
Camponesas da Idade Média, criadas pelo campesinato europeu como
instrumento de luta dos servos da gleba contra a opressão intolerável
dos príncipes e dos barões feudais. Não se pode esquecer que a
colonização brasileira se iniciou no Nordeste sob o signo do
medievalismo feudal, no qual se inspirou Portugal, para introduzir
nestas terras o regime das Capitanias Hereditárias, entregues de mão
beijada aos Donos dos Feudos, os barões do Novo Mundo. É que,
embora no começo do século XVI, quando o Brasil foi colonizado, já
estivéssemos em plena Renascença européia, a Península Ibérica,
desviada da sua rota histórica por sua interminável luta com o Islã, e
isolada geograficamente do resto da Europa pela barreira dos Pirineus,
continuava encastelada no seu feudalismo agrário, caracteristicamente
medieval(4). E Portugal, ainda mais do que a Espanha, separado do
grande mundo por toda a espessa muralha da Meseta Castelhana. Este
secular retardamento histórico fez com que a colonização ibérica no
Novo Mundo se constituísse como uma empresa de tipo medieval,
como uma sobrevivência das Cruzadas, impregnada de um espírito ao
mesmo tempo religioso e guerreiro, místico e de desenfreada cobiça.
Sob este aspecto bem diferente da colonização inglesa da América,
mais de índole burguesa e de espírito moderno, pós--renascentista e
pós-luterano. Dentro do patrimônio medieval trazido pelos colonos
portugueses, com seus hábitos arraigados no complexo do latifúndio
feudal, é bem possível que tenham os camponeses do Nordeste,
também, herdado a tradição das Ligas Camponesas do Medievo
europeu, que um dia iria repontar com inesperada violência no
processo da evolução social do Nordeste. Como herdeiros presumíveis
desta tradição secular as 140 famílias que habitavam as terras do
Engenho Galiléia, criaram a sua Liga Camponesa e depois de
elegerem sua primeira diretoria, convidaram, num gesto de tradicional
humildade do servo para com o senhor, o próprio senhor do engenho
para ser seu presidente de honra. E ele aceitou. E fez-se a sua posse
com solenidade, com festas e com foguetes. E registrou-se o estatuto
da sociedade, no qual, além da ajuda funerária, figuravam como
objetivos mais remotos, a aquisição de sementes e de instrumentos
agrícolas e a possível obtenção de uma ajuda governamental. Mas não
durou muito esta lua de mel do senhor das terras com os seus servos,
associados da Liga. É que outros latifundiários da redondeza, senhores
de engenho como ele, se apressaram em alertá-lo da loucura que ele
tinha feito em se deixar envolver por esta perigosa aventura. Em ter
consentido a instalação em suas terras deste perigoso instrumento de
agitação social. Desta espécie de cavalo de Tróia, introduzido
disfarçadamente dentro dos seus domínios de porteiras fechadas, para
abrir na calada da noite todas as porteiras ao comunismo. E o homem
assombrou-se e não quis mais ser o presidente da sociedade. E exigiu
mesmo o seu fechamento imediato. Foi aí que a história mudou de
rumo. A maioria dos camponeses resistiu ao fechamento, e a partir
deste momento, sob a pressão dos acontecimentos, a .sociedade
mutualista funerária virou mesmo uma Liga Camponesa para lutar
pelos direitos dos camponeses contra a opressão dos mortos, ela iria
agora se constituir como instrumento de reivindicação dos direitos dos
vivos. Mas, não é mesmo morrendo que melhor se aprende a viver?
Pelo menos no Nordeste brasileiro. Foi tratando dos problemas da
morte que os camponeses do Engenho Galiléia abriram seus olhos
para a vida. E viram melhor, e melhor compreenderam as injustiças da
vida e quais eram os autores destas injustiças. Era a tomada de
consciência da sua realidade social, fenômeno que vem ocorrendo em
nossos dias por todo o mundo chamado subdesenvolvido — mundo
escravizado e espoliado — e que naquele dia se cristalizava como uma
força nova na sociedade fechada e primitiva dos moradores do
Engenho Galiléia. E com esta força eles enfrentaram o patrão. Não se
submeteram como faziam até então, com sua costumeira docilidade,
às suas ordens absurdas. Contam que o senhor do engenho, como
revide à obstinação do grupo em não querer fechar a Liga, determinou
a suspensão de uma ordem que tinha dado para que fosse retirada de
suas matas a madeira necessária à construção de uma capela. Os
camponeses protestaram contra esta suspensão e o patrão os ameaçou
com a polícia, sob o pretexto de que eles pretendiam devastar as suas
matas. Seguem-se as intimações, as chamadas à Delegacia e as
ameaças dos capangas. Mas, diante de tudo isto, aumentou cada vez
mais a hostilidade dos camponeses. Surgem então os processos
judiciários contra os mais responsáveis, responsabilizados como
agitadores e terroristas. E finalmente apareceram as ações de despejo,
a expulsão sumária dos camponeses da terra onde sempre viveram,
feita em nome da lei. Nesta altura da luta, os camponeses fincaram o
pé. Não sairiam em paz da terra onde nasceram, onde sofreram todas
as agruras da vida e onde esperavam ver enterrados os seus ossos. É
que nenhum povo do mundo se mostra mais enraizado à terra, mais
profundamente ligado ao seu solo natal do que o povo do Nordeste.
Sondando a alma complexa e singular do povo chinês, o qual, embora
sofrendo há milênios as agruras periódicas de todos os tipos de
cataclismos naturais, com que lhes brinda sua terra martirizante — as
secas, as inundações, os terremotos, as nuvens de gafanhotos — se
mostram sempre tão indissolüvelmente ligados a esta terra,
Keyserling(5) escreveu as seguintes palavras: "Não há outro camponês
no mundo que dê tal impressão de identificação total com a terra. De
participar tão intensamente da vida da terra. Tudo na China — toda a
vida e toda a morte — se desenrola na terra herdada. É o homem que
pertence à terra, não a terra que pertence ao homem". Mas há. Há
outro camponês no mundo, tão identificado com a terra quanto o
chinês: é o camponês do Nordeste brasileiro, que Keyserling nunca
conheceu e do qual o mundo inteiro sempre teve bem pouco
conhecimento, vivendo o Nordeste à margem do mundo, relegado em
sua obscuridade e em sua solidão. Mas por isto mesmo, por sua
solidão forçada, o homem do Nordeste, abandonado do resto do país e
do mundo, se voltou para a sua paisagem circundante e nela fincou as
raízes de sua alma. Mesmo o homem do sertão semi-árido, que vive
uma vida de semi-nômade, escorraçado de vez em quando pelo
cataclismo das secas, é extremamente apegado à sua terra e a ela
aspira voltar, .sempre que o cataclismo passa. Até os seus nomes são
nomes da terra — dos lugares, das aldeias, dos povoados, onde
nasceram: Antônio Pedro do Juazeiro, Jucá da Serra Talhada, Manoel
João da Lagoa Grande... nomes de homens e de terra, como na Idade
Média, afirma com certo orgulho o escritor sertanejo Luís da Câmara
Cascudo(6). Este desadorado amor à terra que sempre lhe fez sofrer,
faz com que o homem do Nordeste a defenda sempre, até o extremo
limite de suas forças e tenha sempre desta terra um ciúme tão intenso,
como se ela fosse uma mulher. É como se ele não pudesse viver longe
dela, exilado deste amor. E se agora, no meio desta luta intensa,
queriam expulsar de suas terras os moradores do Engenho Galiléia em
nome da lei, usando contra eles os subterfúgios da lei, que eles
candidamente ignoravam, era necessário, para que eles pudessem ,se
defender e resistir, que fosse consultado um advogado, versado na lei.
Mas advogado custa muito dinheiro e a caixa da Liga estava bem
pouco provida de recursos. Pressionados pelas circunstâncias,
procuraram os dirigentes da Liga um advogado modesto, até então
obscuro, mas que já havia aceito defender outras causas de
camponeses escorraçados pelos donos de latifúndios noutras terras:
este advogado se chamava Francisco Julião. Aceitando patrocinar a
sua causa, Julião deu início à luta judiciária pela permanência dos
camponeses na Galiléia. Seu instrumento de luta era o Código Civil,
que ele cedo verificou ser uma arma de pouca serventia para defender
os direitos dos pobres, tendo sido elaborada para defender os
interesses dos ricos, enquanto o Código é que fora concebido para ser
aplicado aos pobres(7). Perdendo terreno na arena judiciária, Julião
apelou para outro campo de luta, usando, ao lado da tribuna do Foro, a
tribuna política, aproveitando a circunstância de dispor de um
mandato de Deputado Estadual na Assembléia do Estado de
Pernambuco. E foi assim que o advogado Julião se foi transformando
pouco a pouco em agitador social. Em denunciador público dos crimes
hediondos do latifundiarismo. E foi assim que as Ligas Camponesas
começaram a se espalhar por toda a região, com a criação de novos
núcleos, que se constituíram sob a pressão das circunstâncias — da
violência e da opressão desbragadas do latifundiarismo — num
instrumento de ação política libertadora, esgrimindo a ideologia, o
proseletismo, a doutrinação. Nesta fase de acesa luta, a imprensa
começou a tomar conhecimento das escaramuças mais importantes,
relatadas sempre com violentos ataques aos "terroristas" na página
policial dos jornais. Depois o assunto passou para a página política,
fornecendo matéria para os artigos de fundo. E as Ligas camponesas
foram assim tomando corpo e ganhando nova alma. Começaram a
assustar seriamente o Nordeste inteiro, como se fossem uma espécie
de dragão ameaçando engolir toda a terra dos grandes proprietários do
Nordeste e destruir a paz, a ordem e a riqueza de que sempre gozaram
esses proprietários tão amantes da ordem. Nessa onda de violências,
de mistificações e de falsas interpretações no choque entre as
aspirações populares e as resistências conservadoras, ambas
radicalizadas ao extremo, as Ligas foram criando raízes, projetando a
sombra de suas verdes esperanças e de suas negras ameaças, pelo país
inteiro. Falava-se delas como se fosse o próprio Apocalipse e de
Julião, como se fosse o anticristo. Foi neste momento que os Estados
Unidos da América redescobriram o Nordeste. E esta descoberta se
deve em grande parte ao obscuro e incipiente movimento das Ligas
Camponesas. Em fins de 1960, com o seu povo extremamente sensível
aos perigos da revolução comunista de Fidel Castro em Cuba e à sua
possível propagação para o continente, a imprensa norte-americana se
lançou com um dramático interesse sobre o Nordeste brasileiro
explosivo e ameaçador. E os Estados Unidos que tinham descoberto
vagamente o Nordeste brasileiro durante a segunda guerra mundial,
quando os aviões de transporte, em viagem para a África e a Europa
faziam pouso na região, principalmente no aeroporto de Natal, que se
transformou na época no maior aeroporto do mundo, voltaram a
descobrir, desta vez com atônita e perplexa curiosidade, essa terra
ignota. Esse estranho mundo que parecia uma nova Cuba em
formação: a Cuba continental. Como Cuba, miserável e revoltado.
Como Cuba possuindo um líder considerado um marxista, conduzindo
à revolução, essa massa de deserdados e fanatizados, dispostos a tudo,
como foi mostrado em várias reportagens, publicadas nos grandes
jornais dos Estados Unidos, e mostrado em imagens de um colorido
impressionante, num filme apresentado numa grande cadeia de
televisão. Era o Nordeste na ordem do dia como vedete, como uma
espécie de novo far-west, a acender a imaginação de milhões de
indivíduos que poucos dias antes ignoravam mesmo a sua existência
geográfica (8).
Esta inesperada revelação de um mundo tão estranho à
mentalidade do norte-americano médio, levada pela imprensa sem a
menor preparação ou apresentação ao seu público, criou uma grande
perplexidade e certa confusão nos Estados Unidos. De um lado, um
sentimento de pânico pelos perigos desta nova explosão social tão
ameaçadora, e de outro lado, um grande desejo de ajudar, de fazer
alguma coisa para evitar explosão. Mas a falta de uma serena visão
dos fatos, o desconhecimento total da realidade social do Nordeste e
das raízes históricas que tinham dado origem a essa aberração social,
tornavam bem difícil um approach razoável e deformante, ou o da
fantasmagoria histórica das manchetes apocalípticas. E assim, o
Nordeste, descoberto quando ajudava os Estados Unidos na última
guerra e agora redescoberto, quando parecia ajudar os inimigos dos
Estados Unidos no continente, continuou, na verdade, como um
desconhecido dos Estados Unidos. E por que não dizer a verdade
como um desconhecido do mundo. Embora no cartaz, o que dele se
apresenta por toda parte é, em geral, uma falsa imagem do seu papel
histórico, tanto no passado como no futuro. Falsa imagem tanto das
suas possibilidades, como das suas deficiências e dificuldades. Do que
é possível se fazer de bem pelo Nordeste, como do que é possível que
o Nordeste venha a fazer de mal ao mundo: à sua segurança e à sua
tranqüilidade.
Se dedicamos ao estudo das Ligas Camponesas o primeiro capítulo
deste livro, foi com a premeditada intenção de mostrar, como uma
iniciativa brotada das tradições do feudalismo agrário, aí reinante,
com objetivos humanitários e pacíficos, pode-se transformar num
instrumento revolucionário, de explosiva agitação social, em face da
cega incompreensão e da obstinada resistência da própria estrutura
feudal. E mostrar, também como pode um fenômeno social ser
totalmente distorcido em sua realidade pelas falsas interpretações do
jornalismo tendencioso ou sensacionalista. De fato, a imagem das
Ligas Camponesas difundida pela imprensa de certos países, como
sendo um instrumento do comunismo internacional, fabricado em
Moscou e implantado no Nordeste brasileiro, para repetir nessa área o
episódio de Cuba e comunizar o continente inteiro, é uma imagem
totalmente falsa, que não resiste a uma análise fria dos fatos. Uma
análise que ponha em linha de conta, como estamos tentando fazer, os
principais personagens e os episódios centrais das origens desse
movimento.
Criadas dentro do espírito do cristianismo primitivo, que até hoje
impregna a alma coletiva da população nordestina, as Ligas
Camponesas foram mesmo, em certa fase, mal vistas e tenazmente
combatidas pelos líderes marxistas da região. E, se posteriormente se
aliaram as Ligas aos comunistas, na luta comum pela emancipação da
massa camponesa, não quer isto dizer que a sua inspiração brotara da
doutrina de Marx ou da ação política de Lenine ou de Fidel Castro,
mas na experiência vivida e sofrida por essa massa humana em sua
luta desigual por um mínimo de aspirações, em face ao máximo de
resistência dos seus opressores feudais. Tem toda razão o jornalista
Robert Coughlan da revista Life, quando afirma com excepcional
lucidez que atribuir o descontentamento social da América Latina "a
um complot forjado em Moscou, como fazem muitos, é ser
perigosamente ingênuo. Suas raízes mergulham fundo no seu passado,
que conta, como ingredientes, a conquista, a exploração, a fome e a
extrema miséria".
Outra razão da prioridade dada às Ligas Camponesas no plano
deste livro deriva do fato incontestável de que foram elas que
projetaram o Nordeste na imprensa norte--americana, provocando a
redescoberta desta região e determinando em grande parte a criação da
"Aliança para o Progresso" como uma tentativa dos E.U.A. de evitar a
suposta bolchevização do continente.
Antes de terminar este capítulo, julgamos indispensável deixar
bem claro que, a nosso ver, as Ligas Camponesas nunca alcançaram
uma importância política destacada: uma estruturação funcional e uma
liderança suficientemente vigorosa para desencadearem um verdadeiro
processo revolucionário. Longe disto. Sempre foram, como
instrumento revolucionário, uma arma quase infantil. E se esta arma
de brinquedo assustou tanto aos grandes senhores feudais e seus
associados, é que eles se encontram há muito tempo num estado de
pavor permanente. Pavor que os leva a ver no menor gesto ou atitude
de inconformismo das massas espoliadas, um perigo tremendo para a
manutenção dos seus privilégios. O perigo das líricas Ligas
Camponesas sempre fora pequeno, o medo delas é que era grande e
continua crescendo cada vez mais.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - PRADO JR., CAIO, História Econômica do Brasil, 1945.


2 - WINSLOW, E. A., The Cost of Sickness and the Price of Health, Genebra, 1951.
3 — NURKSE, RAGNAR, Some Aspects of Capital Accumulation in
Underdeveloped Countries, Cairo, 1952.
4 - SANCHEZ ALBORNOZ, CLÁUDIO, La Edad Media y la Empresa de America,
La Plata, 1934.
5 - KEYSERLING, HERMANN, Journal de Voyage d'un Philosophe, 1952.
6 - CASCUDO, LUÍS DA CÂMARA, Viajando pelo Sertão.
7 — JULIÃO, FRANCISCO, Que são as Ligas Camponesas, Rio de Janeiro, 1962.
8 - HIRSCHMANN, ALFRED, Journeiy Toward Progress, Nova Iorque, 1963.
CAPITULO II

SEISCENTAS MIL MILHAS QUADRADAS DE


SOFRIMENTO

O TRAÇO mais marcante da carta ou fisionomia do Nordeste é o


sofrimento. E não apenas o sofrimento do homem, mas também o
sofrimento da terra. Terra e homem, martirizados há séculos por uma
espécie de complot de forças adversas: de forças naturais e de forças
culturais. O sofrimento, ou melhor, as marcas da sua presença, são tão
constantes na paisagem nordestina, que dão a impressão à gente de
que toda a terra do Nordeste não passa de um cenário especialmente
montado para nele ser representada uma grande tragédia. E no fundo,
é isto que é o Nordeste: um imenso cenário de cerca de 600 mil milhas
quadradas de superfície, exibindo, por toda parte, os sinais
inconfundíveis de seu sofrimento cósmico.
Terra de sofrimento, o Nordeste se estende do Estado do Maranhão
ao Estado de Alagoas, compreendendo uma tal variedade de paisagem
que, na verdade, dentro do conceito científico da área geográfica, não
se pode falar de uma área do Nordeste, mas de várias áreas naturais
diferentes, compondo a região do Nordeste. Áreas distintas por seu
clima, seu tipo de solo, seu revestimento vegetal e mesmo por sua
organização econômico-social. Procurando esquematizar ao máximo
estas nuances geográficas, podemos considerar o grande Nordeste
como composto pelo menos de dois nordestes: O Nordeste Oriental ou
Marítimo e o Nordeste Ocidental ou Central. São estes dois nordestes
tradicionalmente mais conhecidos como o Nordeste do açúcar e o
Nordeste das secas, porque se num deles tudo sempre girou em torno
da economia da cana, noutro o que sempre marcou sua existência foi o
tremendo drama de suas secas periódicas, a trágica história do seu
clima incerto e inclemente. A verdade é que foi realmente o clima que
delimitou os dois nordestes. Enquanto no Nordeste Oriental, próximo
da costa marítima, o clima é úmido, com uma grande abundância e
regularidade de chuvas, no Nordeste Central, o clima é seco, as chuvas
são escassas e, principalmente, muito irregulares, imprimindo um
facies semi-árido à região. Foi esta marcante diferença dos dois climas
que determinou o marcante contraste entre as paisagens naturais das
suas áreas: uma área toda ela recoberta de verde — outrora o verde
das suas matas, e hoje o verde dos infindos canaviais — e outra área
toda em tons acinzentados, com a sua terra seca, quase sempre nua de
vegetação, ou apenas revestida em pontos limitados por tufos isolados
de uma vegetação rasteira, coberta de poeira e eriçada de espinhos:
vegetação formada de bromeliáceas e de cactáceas, plantas adaptadas
ao extremo à condição de secura do meio ambiente. Uma área de solo
espesso, poroso, permeável, embebido da água das chuvas abundantes
— o famoso massapê de extrema fertilidade — e a outra área, de solo
duro, de tipo arenoso, rico em seixos rolados e pobre em elementos
nutritivos, quase mais pedra do que solo. O Nordeste é este contraste
vivo estampado nas duas paisagens: na paisagem acolhedora,
envolvente, da área da mata, com sua gradação de verdes, as suas
manchas d'água, as suas sombras frescas, e na paisagem ríspida, seca,
do sertão, com as suas planícies descampadas, o seu solo pedregoso, o
seu céu sempre sem nuvens e o seu sol de fogo. Nestes dois quadros
naturais tão diferentes se formaram também duas sociedades distintas,
embora complementares, tanto em sua economia como em sua
história. E a história econômico-social dessas duas comunidades
contíguas representa o patrimônio histórico de toda a região do
Nordeste.
Embora o passado tivesse acumulado nessa região uma grande
reserva de tradições e uma apreciável riqueza cultural de sabor típico e
original, o que mais se acumulou entretanto nesta zona, como já
afirmamos, foi mesmo o sofrimento. É o sofrimento a grande herança
cultural do Nordeste. Realmente que terra poderá dar maior impressão
de sofrimento do que essa terra do sertão nordestino, com seu solo
curtido e roí do pelos rigores do clima? Com a pele do seu solo magro,
mal encobrindo o seu esqueleto de granito e de calcáreo, dilacerada
em vários pontos, rompida pelas pontas das rochas mais duras que
irrompem no meio da paisagem em brancos blocos escarpados, como
se fossem mesmo os ossos da terra descarnada. E como se revela
como uma dor pungente, como uma expressão de desolador
sofrimento, essa terra toda aberta de fundas feridas, de grandes
brechas, rompidas no seu corpo pela violência das grandes torrentes
erosivas! Outro traço do sofrimento telúrico da paisagem, que nos
chama a atenção e que oprime o nosso espírito, é o da própria secura
da terra em certas épocas do ano. Da terra toda crestada, toda rachada,
como se fosse um pedaço de couro velho deixado ao Sol. Não é menor
o sofrimento da terra que foi devorada pela cana. Da terra que a
monocultura da cana-de-açúcar, introduzida nessa região, devorou em
poucos anos, com um apetite insaciável, consumindo todo o seu
húmus, engolindo todo o seu solo. Mas a história dessa cultura
autofágica da cana-de-açúcar, que acaba por devorar sua própria
economia, é uma história que merece ser analisada mais adiante, em
maiores detalhes, para bem mostrar como ocorreu o processo dessa
aventura mercantil, que deu origem à sociedade do Nordeste: a
exploração monocultora e latifundiária da cana-de-açúcar.
Nesse fundo cinzento do sofrimento da terra — da terra traída pelo
clima, ofendida pela seca, degradada ao extremo pela exploração
colonial — se destaca gritante a permanência invariável do sofrimento
do homem.
No Nordeste, as marcas mais fundas da presença do homem
parecem não ser as marcas de sua vida, mas as marcas de sua morte. A
presença da morte se manifesta com uma tal força que parece
sobrepujar na região à própria força da vida. A morte é uma tal
constante, um fator social de tamanha importância na vida da região,
que em certas cidades do interior, parece que o que mais prospera são
os cemitérios, apresentando-se como os recantos mais florescentes
dessas pequenas cidades: sempre murados, ajardinados e urbanizados.
Enquanto as cidades ao seu lado são às vezes simples enovelados de
sórdidas ruelas, sem ordem sem higiene, sem o mínimo conforto. É
como se os vivos não existissem na paisagem. Só existissem mesmo, a
reclamar cuidados, os mortos. E foi talvez por isto que um poeta do
Nordeste, num poema em que fala destes cemitérios, se inquietou
diante dos muros que os separam das cidades, que isolam esses
cemitérios do resto da paisagem que é também tão morta, que ele a
chama de paisagem defunta:

"Por que iodo este muro?


Por que isolar estas tumbas
do outro ossário mais geral
que é a paisagem defunta?"(1)

A paisagem defunta é esta paisagem impregnada da presença


constante da morte, da expectativa da morte, da fraternal
promiscuidade dessa gente com a morte. É que os índices de
mortalidade nestas terras ,são extremamente altos, dos mais altos do
mundo, principalmente os da mortalidade infantil. Morre tanta criança
no Nordeste que chega a parecer que morre mais gente do que nasce, e
isto principalmente porque se nasce discretamente, enquanto a morte
implica sempre na cerimônia pública do enterro, que chama tanto a
atenção. De fato, o enterro é um dos traços mais vivos e mais
presentes na paisagem social do Nordeste, como ocorre na Sicília,
como ocorre na China, enfim, em todos os povos muito ligados à
terra, que fazem um grande alvoroço ao voltarem ao seio dessa terra.
É verdade que a maior parte deles volta cedo, logo nos primeiros
meses de vida, como se se tivesse arrependido de ter nascido numa
terra tão pobre, ou como se não tivessem vindo preparados para uma
viagem mais longa. O fato é que as crianças nascem mais para morrer
do que para viver. Mais para povoar os céus como anjos, na consola-
clora crença dos seus pais, do que para povoar a terra como homens.
Há cidades do Nordeste onde a mortalidade infantil alcança a casa de
500 por 1000, o que quer dizer que metade dos que nascem apenas
espiam a vida um breve instante e antes de um ano já se foram para
debaixo da terra. É este um dos traços mais característicos das áreas
de geografia da fome, como é o caso desta área do Nordeste — desta
estranha geografia, onde não é a terra que dá de-comer ao homem, é
antes o homem que nasce apenas para dar de-comer à terra. Para
alimentar esta terra-cemitério, que engorda com a sua matéria
orgânica. E que, quando acontecer escapar, é para sobreviver sempre
assustado desta presença da morte, sentindo sempre o seu bafo frio
como uma constante ameaça. Qual a causa desta tão desadorada
mortalidade do Nordeste? A explicação está no fato de ,ser o Nordeste
realmente uma área subdesenvolvida. E que o subdesenvolvimento
impõe sempre a existência de altos índices de mortalidade, como
também de altos índices de natalidade. Os do Nordeste são os mais
elevados do Brasil. Esse tipo de evolução demográfica, chamado de
antieconômico porque nele nasce muita gente e também morre muita
gente, constitui uma das características fundamentais do
subdesenvolvimento, o que explica, aliás, que apesar de toda esta
mortalidade terrível, as regiões subdesenvolvidas mantenham suas
populações num ritmo de crescimento explosivo, ameaçando explodir
a sua miséria. Há quem acredite que esta explosão da capacidade
reprodutora seja uma forma de defesa da espécie ameaçada, que, para
lutar contra a força impiedosa da morte, joga na arena da luta os seus
excessos de crianças, para serem sacrificadas, dizimadas, em sua
maioria, mas sobrando sempre algumas para manterem a
sobrevivência da espécie. Na verdade, é através de um complexo
mecanismo bio-social que o subdesenvolvimento entretém estes tão
altos índices de natalidade e de mortalidade. No que diz respeito à alta
natalidade nas regiões de fome e de miséria, já tentei explicar o
fenômeno em outro livro e não pretendo voltar ao assunto neste
ensaio, porque o julgo aqui supérfluo. Desnecessária a explicação
tanto para os estudiosos do assunto, como para os habitantes do
Nordeste. Para os estudiosos basta o fato indiscutível, evidenciado
através da eloqüência dos números. Dos extraordinários, índices de
natalidade das regiões subdesenvolvidas. Para os habitantes do
Nordeste, não há necessidade de explicações, porque, na verdade,
muito antes de nós, eles já se tinham apercebido do fenômeno quando
repetiam o ditado popular: "A mesa do pobre é escassa, mas o leito da
miséria é fecundo". Se não vamos insistir em explicar porque são tão
altos os coeficientes de natalidade, desejamos entretanto explicar em
detalhes porque são também tão altos os coeficientes de mortalidade.
De que morre tanta gente no Nordeste? Morre-se de tudo, mas
principalmente de fome. É a fome em seus variados e múltiplos
disfarces, o mais ativo dos cavaleiros do Apocalipse que arrasa as
populações nordestinas. Em sua faina destruidora, a fome mata como
doença — como a mais grave e generalizada das doenças de massa
das regiões subdesenvolvidas — e como fator preparatório do terreno
para a ação nefasta de outras doenças. Principalmente das doenças
infectuosas, parasitárias, que atuam endemicamente nessas áreas, em
combinação com a fome, tendo a mesma preparado o terreno para a
sua ação deletéria. Não encontramos em toda a área do Nordeste um
só e mesmo tipo de fome dizimando as suas populações! Enquanto na
área do Nordeste açucareiro, grassa um tipo de fome crônica e
endêmica, o que nós encontramos no sertão são as epidemias de fome
aguda, que aparecem nos períodos de seca. Mas, para que se
compreenda bem como se instalou no Nordeste o reino da fome, como
essas diferentes manifestações da doença se apresentam nas duas áreas
nordestinas, é preciso que se conheça melhor a estrutura econômico-
social destas áreas, determinante, em última análise, deste estado de
fome.
Quando se estudam as condições de alimentação da área do açúcar,
o que logo surpreende o investigador é o contraste marcante entre as
possibilidades geográficas existentes e a extrema exigüidade dos
recursos alimentares da região. Que uma região árida como o Saara
seja uma zona de fome, que a região amazônica com suas florestas
impenetráveis sofra também o flagelo da fome, ,são fenômenos que se
explicam naturalmente. A fome nessas zonas pode decorrer
principalmente de fatores naturais, da pobreza natural do meio
ambiente. Já no Nordeste, o fenômeno da fome é bem mais chocante,
porque não se pode explicá-lo à base de razões naturais. Tanto as
condições de solo, como as do clima regional, sempre foram das mais
propícias ao cultivo certo e rendoso de uma infinidade de produtos
alimentares, que poderiam permitir a organização de uma dieta
alimentar satisfatória. O solo desta área, em sua maior parte do tipo
massapê — terra escura, gorda e pegajosa, que recobre em espessa
camada porosa os xistos argilosos e os calcáreos do cretáceo — é de
uma magnífica fertilidade. É um solo de qualidades físico-químicas
privilegiadas, com grande riqueza de húmus e sais minerais. O clima
tropical, sem o excesso de água de outras regiões tropicais, com um
regime de chuva de estações bem definidas, também contribui
favoravelmente para o cultivo fácil e seguro de uma grande variedade
de cereais, frutas, legumes e de verduras. A própria floresta nativa
dispunha de excepcional abundância de árvores frutíferas, e outras
árvores, transplantadas de continentes distantes, se aclimataram tão
bem no Nordeste como se estivessem em suas áreas naturais. É o caso
da fruta-pão, trazida das distantes ilhas da Oceania, do coco, da manga
e da jaca, trazidos pelos colonizadores do Oriente longínquo. Todas
essas plantas, integradas na paisagem nordestina, produziam frutos
excepcionalmente valiosos para a alimentação humana. Tudo brotava
com tamanho ímpeto e produzia com tanta exuberância nessas
manchas de terra gorda do Nordeste, que não se pode acusar de
descabido exagero a famosa frase do escritor Pero Vaz de Caminha,
autor da primeira carta sobre estas terras do Brasil, de que "a terra é
em tal maneira dadivosa, que, em se querendo aproveitar, dar-se-á
nela tudo" (2). Infelizmente, não se quis. Não o quis o colonizador
português. De nada valeram as grandes possibilidades naturais que a
terra oferecia, pois que foram malbaratadas e inteiramente
desaproveitadas em sua capacidade potencial de fornecer alimentos às
populações regionais.
Descobrindo cedo que as terras do Nordeste se prestavam
maravilhosamente ao cultivo da cana-de-açúcar, os colonizadores
sacrificaram todas as outras possibilidades da terra ao exclusivo
cultivo dessa planta. Aos interesses de sua monocultura intempestiva,
destruindo quase que inteiramente o revestimento vivo, vegetal e
animal da região, subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da
paisagem e entravando, por todos os meios, quaisquer tentativas de
cultivo de outras plantas alimentares, degradando desta forma ao
máximo, os recursos alimentares da região. Esta influência nefasta da
cana sobre as condições da alimentação regional não se fez
principalmente pela ação direta da cana sobre o solo, mas sim, por sua
ação indireta, através do sistema de exploração da terra, que a
economia açucareira impôs: o sistema da exploração monocultora e
latifundiária. Trazendo a cana-de-açúcar para as terras do Brasil, já o
português conhecia bem esta planta, com as suas exigências
específicas, desde que havia utilizado as ilhas atlânticas da Madeira e
do Cabo Verde, como verdadeiras estações experimentais para o ,seu
cultivo. E conhecia também os segredos do comércio açucareiro, que
se apresentava no momento o mais promissor do mundo. Com esta
experiência da agricultura e do comércio do açúcar o português sabia
que este produto só se poderia constituir como uma atividade
econômica compensadora, se produzido em grande escala, com terra
suficiente para o cultivo extensivo da planta com mão de obra
abundante e barata para o trabalho agrícola e com capitais suficientes
para o estabelecimento de sua indústria, em bases de um verdadeiro
monopólio do produto. Por isso organizou ele a sua empresa com os
mais abundantes capitais até então trazidos para estas bandas e
impulsionou a vinda dos escravos da costa da África e se assenhoreou
de terra boa e suficiente ao empreendimento ousado. Lançado na
aventura açucareira, o colonizador português sabia que se tinha que
entregar de corpo e alma à cana-de-açúcar, sob pena de fracassar em
sua empresa E a cana se mostrou realmente capaz de dar muito lucro,
mas de exigir também muita coisa em compensação. De exigir, como
já dissemos, uma escravidão tremendamente dura, não só do homem
mas também da terra ao seu serviço. Homem e terra que tiveram de se
despojar de inúmeras prerrogativas para satisfazer o apetite
desadorado da cana: o seu apetite insaciável de boas terras, bem
preparadas e bem drenadas para o crescimento da planta. Já afirmou
alguém, com razão, que a exploração da cana-de-açúcar se processa
sempre num regime de autofagia: a cana devorando tudo em torno de
si, engolindo terras e mais terras, consumindo o húmus do solo,
aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano
que serviu de base à sua vida. E é a pura verdade. A história da
economia canavieira no Nordeste, como em outras zonas de
monocultura da cana, no mundo, tem sido sempre uma demonstração
categórica desta capacidade que tem a cana de dar muito no princípio,
para devorar tudo depois autofàgicamente. Donde a caracterização
inconfundível das diferentes áreas geográficas do açúcar, com seu
ciclo econômico típico, com uma rápida fase de ascensão e de
esplendor transitório, e uma fase seguinte de irremediável decadência.
Ciclo, este, que se processa tanto mais rapidamente quanto menores
forem os recursos de terra disponíveis. Daí a semelhança de aspectos
entre as diferentes áreas geográficas do açúcar no mundo, entre esta
área do Nordeste do Brasil e Cuba, Haiti, Java, Porto Rico, Barbados.
A ilha de Barbados, por sua limitada extensão, representou uma
espécie de laboratório de sociologia experimental, onde se
processaram com impressionante nitidez as sucessivas fases do ciclo
da economia monocultora da cana, permitindo ao investigador analisar
a fundo as reações-sociais intempestivas, que a introdução do cultivo
da cana provocou na sociedade local. Vincent Harlow(3), que estudou
a fundo a história desta ilha, mostra-nos como a princípio a
colonização de Barbados se fizera à base da policultura, dividindo as
suas terras em pequenas propriedades produtoras de algodão, tabaco,
frutas cítricas, gado vacum e suíno e outros produtos de sustentação.
Que, nessa primeira fase da sua história, compreendida entre 1625 e
1645, as condições de vida eram bem favoráveis na ilha, e a população
de raça inglesa crescera bastante, subindo nas seguintes proporções:
1.400 habitantes em 1628, 6.000 em 1636 e 37.000 em 1643. Com o
desenvolvimento da cana-de-açúcar, que se processou a partir dos
meados do século XVII, aí transplantada pelos holandeses fugidos do
Nordeste do Brasil, a policultura foi sendo asfixiada, as pequenas
propriedades agrícolas engolidas pelo latifúndio açucareiro e as
reservas alimentares da ilha ficando cada vez mais limitadas. Esta
evolução econômica, tão desfavorável, provocou o êxodo em massa
para outras terras, dos habitantes da raça branca. Começou então a
descida da curva demográfica: em 1667 só havia 20.000 brancos na
ilha, em 1786, 16.000, em 1807, 15.500, e atualmente cerca de 15.000.
O braço escravo veio substituir o do branco, passando a constituir a
base do trabalho agrário. Assim se desenvolveu em Barbados esta
economia latifundiária, escravocrata, com esplendor fugaz, que durou
de 1650 a 1685, entrando logo a seguir em decadência. Já nesta época,
estava a ilha praticamente esgotada. Suas florestas, que a princípio
eram tão densas que fora difícil achar espaço para a fundação da
colônia(4), estavam inteiramente devastadas, com todas as culturas de
sustentação estagnadas e o açúcar economicamente arruinado, por não
ser mais possível produzi-lo a preços capazes de agüentar a terrível
concorrência internacional.
Esta é a história do transitório ciclo do açúcar em Barbados,
contada por Harlow e confirmada em seus traços mais característicos
por outros historiadores idôneos. Em Jamaica, em Trinidad, em Cuba,
e noutras antilhas açucareiras, o processo seguiu as mesmas diretrizes,
apenas num ritmo menos acelerado, como se pode verificar através
estudos dos historiadores da colonização inglesa e espanhola do Mar
das Caraíbas(5).
Fizemos esta digressão acerca do processo evolutivo da economia
açucareira em outras zonas, para pôr em evidência o fato de que a
fraqueza do colono português diante do ímpeto avassalador da cana do
Nordeste brasileiro não foi específica deste colonizador. Nenhum
outro colono, nem o inglês de Barbados, nem o francês do Haiti, nem
o espanhol de Cuba, pôde escapar à sua esmagadora prepotência. Ao
contrário, deixaram-se todos dominar, sob certos aspectos, mais ainda
do que o português do Nordeste. Porque, se na luta para adaptar-se ao
meio tropical, o português cedeu com bastante plasticidade às
contingências de certas forças naturais, soube também, por outro lado,
escapar tecnicamente a muitas delas, através do uso inteligente de
certos fatores de aclimatação, que os colonos de outras raças e de
outras culturas não souberam manejar com tanta precisão, fracassando
por isso em suas tentativas de levar a feito uma colonização de
enraizamento em terras tropicais(8).
Deve-se, sem nenhuma dúvida, ao desenvolvimento da cana-de-
açúcar, com todos os seus nocivos exageros de planta individualista,
com sua hostilidade quase mórbida por outras espécies vegetais, uma
grande parte do trabalho de enraizamento e de consolidação da
colonização portuguesa nos trópicos, a qual já há cerca de um século,
vinha ensaiando outros processos menos frutíferos, sem conseguir
estabelecer nada de mais firme do que simples feitorias comerciais nas
costas da África, da América e do Extremo Oriente.
O processo de transformação e de desvalorização que a cana
realizou no Nordeste, começou pela destruição da floresta, que
recobria praticamente toda a chamada Região da Mata, abrindo, com
as queimadas, as clareiras para o seu cultivo e alargando depois essas
clareiras par estender os seus canaviais sem fim. A destruição da
floresta alcançou tal intensidade, e se processou em tal extensão, que
nesta região, outrora chamada da mata do Nordeste, hoje restam
apenas pequenos retalhos esfarrapados deste primitivo manto florestal.
Com a destruição da floresta, contribuiu também a monocultura para o
empobrecimento rápido e o esgotamento violento do solo, diminuindo
de um lado a renovação do seu húmus formado pela decomposição da
matéria orgânica vegetal, e de outro lado facilitando ao extremo, os
processos de lavagem do solo e sua conseqüente erosão. Ward
Shepard, antigo especialista do Departamento de Agricultura dos
Estados Unidos(6), estudando o fenômeno da erosão no continente
americano, aponta a área do Nordeste do Brasil como uma das mais
sacrificadas, e sacrificada, principalmente, pelo cultivo intempestivo
da cana-de-açúcar. De fato, despida do seu manto florestal, estas terras
se deixaram facilmente arrastar pela ação erosiva das águas, desde que
os pequenos rios que atravessam a região nordestina e que a princípio
se haviam mostrado tão dóceis e serviçais, ajudando o colono a
conquistar a terra e aí desenvolver a economia agrária da cana, logo
que sentiram as suas margens desprotegidas de árvores pelo
desflorestamento abusivo e despido de vegetação os seus vales, se
transformaram da noite para o dia em rios devastadores, rios ladrões
de terra, arrasando o solo úmido das planícies e levando com as águas
das enxurradas, os elementos minerais e o húmus dissolvidos,
transformando-se, enfim, num bárbaro fator de degradação da riqueza
do solo. Não foi apenas degradando a riqueza do solo, fazendo
minguar os recursos vegetais, que o desflorestamento se constitui num
fator negativo para a região, mas também destruindo praticamente os
recursos da fauna regional, cuja vida estava tão intimamente ligada à
própria vida da floresta(7). Os recursos representados pelas caças que
aí existiam em grande abundância nos primeiros tempos da
colonização, praticamente desapareceram, desde que os animais foram
afugentados pelas coivaras, se escondendo nas nesgas de mata cada
vez mais ralas, mais limitadas, até quase se extinguirem de vez. O que
é mais grave nesse complexo da cultura da cana em relação à
alimentação regional, é que não foi apenas destruindo o que havia de
aproveitável como alimento-riqueza da fauna, da flora e do próprio
solo — que a cana foi prejudicial, mas também, e principalmente,
dificultando e hostilizando em extremo a introdução de quaisquer
outros recursos de subsistência que encontrariam nessas terras
condições das mais propícias ao seu desenvolvimento.
Com estes dados que apresentamos, já não pode haver nenhuma
dúvida de que foi realmente a monocultura da cana-de-açúcar, o
principal fator de degradação do tipo de alimentação desta região.
Tipo de alimentação que seria bem melhor se fosse possível aos
colonos portugueses, que aportaram às costas do Nordeste brasileiro,
manterem nessa área a tradição do regime alimentar das terras onde
nasceram, do tipo de alimentação de Portugal, caracterizado,
principalmente, por uma relativa riqueza e variedade de vegetais — de
frutas, legumes e verduras — produtos do cultivo intensivo, fino e
delicado da horta e do pomar, cultivo introduzido há séculos na
Península Ibérica pelos invasores árabes e aí transmitido a portugueses
e espanhóis. Infelizmente, esse tipo ibérico de alimentação,
equilibrado e bem adaptado às condições da vida tropical, constituindo
até certo ponto um verdadeiro fator técnico de aclimatação, não se
pôde manter nas terras do Brasil.
O primeiro obstáculo à sua fixação nestas novas terras foi a
impossibilidade de aí se encontrar ou se produzir o alimento básico da
área alimentar do Mediterrâneo europeu de clima temperado, que é o
trigo. Não dispondo do trigo, o português teve que substituí-lo no
regime alimentar pela farinha de mandioca, alimento bem inferior sob
o ponto de vista nutritivo, com um teor de proteína, de sais minerais e
vitaminas, bem inferior ao do cereal europeu. Procurando-se ajustar às
novas contingências naturais, o colonizador português, de início,
incentivou não só o cultivo da mandioca, mas de outras plantas nativas
que o índio cultivava, tais como o aipim, o amendoim, o ananás, e
procurou introduzir no Nordeste outras plantas que sua experiência de
conquistador de terras tropicais lhe fazia saber propícias ao novo
quadro geográfico. Assim se fez no Nordeste uma tentativa de
policultura, que deveria dar de sobra para manter num regime sadio,
os primeiros colonos da terra de Santa Cruz. Mas como ocorreu em
Barbados, a policultura iniciada tão promissoramente fora logo
estancada pelo furor da monocultura da cana, as roças de mandioca
abandonadas praticamente aos cuidados primitivos do indígena, sem o
amparo e o interesse do colono; as plantações de frutas limitadas aos
pequenos pomares, para uso exclusivo da família do senhor de
engenho, e assim se desfez toda a influência benéfica que a cultura
peninsular poderia ter trazido ao tipo de dieta do Nordeste do Brasil.
É verdade que o índio nativo procurou reagir a essa limitação,
negando-se a colaborar na agricultura do açúcar, no plantio da cana
para a fabricação deste produto de exportação. Mas faltava-lhe força
para influenciar a formação da nova sociedade. A sua influência se
limitou a esta resistência à pressão da monocultura, fugindo para a
floresta e fazendo dela o seu reduto, e defendendo-a com arcos e
flechas, moderando desta forma enquanto pôde, a expansão
monocultora e suas funestas conseqüências.
Já os negros, trazidos da África e sentindo na sua própria carne os
efeitos terríveis da fome, desde que já nos barcos negreiros em que
eram conduzidos morriam em grande número de fome, procuraram
reagir com mais eficácia contra a monotonia alimentar instituída na
região pelos portugueses. Como povo de tradição agrícola, de um tipo
de agricultura de sustentação, o negro trazido da África reagia contra a
monocultura de forma bem mais efetiva do que o índio.
Desobedecendo às ordens do senhor e plantando às escondidas o
seu roçadinho de mandioca, de batata-doce, de feijão e de milho,
sujando aqui e acolá o verde monótono dos canaviais com pequenas
manchas diferentes de outras culturas. Benditas manchas salvadoras
da monotonia alimentar da região. Que o negro nunca perdeu este
instinto policultor, este amor à terra e à agricultura de sustentação,
apesar da brutalidade com que fora arrastado de sua terra, com todas
as suas raízes culturais violentamente arrancadas, é o que podemos
verificar através do estudo da organização econômico-social dos
quilombos, isto é, dos núcleos de negros fugidos e escondidos no
mato. Palmares, que foi o mais significativo dos núcleos de libertação
negra da tirania monocultora, se apresenta como uma demonstração
decisiva da absoluta integração do negro à natureza regional,
aproveitando integralmente os seus recursos naturais, e
desenvolvendo, a favor de suas possibilidades, novos recursos.
Na paisagem cultural de Palmares, com os traços naturais da terra
tão bem ajustados às necessidades do homem, vamos encontrar um
regime de policultura sistemática(8). Uma das principais atividades
dos negros de Palmares era a agricultura de sustentação: agricultura de
milho, de batata-doce, de mandioca, de banana, de feijão, e de outras
plantas alimentares. Infelizmente, essa ação restauradora do negro
também foi limitada, não adquirindo consistência e extensão, capazes
de atuar decisivamente na economia alimentar da região, como
aconteceu na ilha de Jamaica, por exemplo, onde o negro, rebelado
contra a ganância dos plantadores, contribui para melhorar
sensivelmente o regime alimentar da ilha.
No Brasil, a resistência dos índios abstencionistas e dos negros
rebeldes dos quilombos, e mesmo a dos colonos brancos e mestiços,
mais pobres, desprovidos de terra e desejosos de cultivá-la a seu
modo, não deu para vencer a força opressiva do latifundiarismo, para
vencer as proibições contra a agricultura de outras utilidades e a
criação de qualquer espécie, contra as interdições estabelecidas nas
cartas regias(9), e reforçadas ao máximo pela autoridade ilimitada dos
senhores de engenho, onipotentes em seu regime de vida escravocrata
e patriarcal. Homens com ciúme de suas terras maior do que de suas
mulheres e horrorizados com o perigo de que essas terras se
rebaixassem devassamente a produzir qualquer outra coisa que não
fosse cana, qualquer coisa menos nobre, seja de origem índia, seja de
origem negra: mandioca, milho, amendoim, feijão. Assim, subjugados
pela forte pressão dos fatores de natureza econômica, cederam todos à
influência da cana, e o complexo alimentar da região se fixou em
torno da farinha de mandioca, de cultivo fácil e barato, sem grandes
exigências nem de solo, nem de clima, nem de mão de obra.
Complexo da alimentação terrivelmente pobre, que arrastou a área do
Nordeste açucareiro à condição de uma das zonas de mais acentuada
subalimentação do país, mais do que isto, de zona realmente de fome e
de fome crônica e endêmica.
Em todos os tempos, os viajantes que por essas regiões passaram,
sempre se referiram à pobreza e à monotonia de sua alimentação.
Através de escritos como o do Padre Fernão Cardim, das cartas do
Padre Vieira, das impressões de viagem de ingleses e franceses, dos
estudos com certo ar científico dos doutores da época e de outros
documentos históricos, verifica-se a constante precariedade da
alimentação regional, podendo-se concluir que, desde quase o início
da colonização brasileira até hoje, a alimentação dessa área do
Nordeste sempre fora de má qualidade.
O que não se sabia com exatidão era até que ponto essa
alimentação defeituosa influía na saúde dos habitantes da região.
Procurando esclarecer o assunto, levamos a efeito em 1932, um
inquérito sobre as condições alimentares do povo dessa área, e seus
resultados, confirmados por outros vários inquéritos posteriormente
realizados, vieram provar que o regime alimentar do Nordeste
açucareiro, era um regime de fome e era de fome que mais se morria
no Nordeste: das conseqüências da fome crônica em que vivem há
séculos as populações regionais. Sofre-se nessa região de todas as
variedades de fomes específicas, de fomes parciais, de fomes ocultas.
De fome de proteínas, de fome de sais minerais, de fome de vitaminas.
Enumerar as várias espécies de fomes aí reinantes, seria um desfilar de
contas de um interminável rosário, seria um nunca--acabar de
doenças, de males, a serem exibidos. Por isso, apenas apresentamos
algumas das formas de fome existentes na região: as formas mais
graves, as mais extensas, as mais generalizadas. A primeira
manifestação de fome nessa região é a deficiência ou insuficiência
calórica da dieta.
Por sua conta decorre em grande parte a reduzida capacidade de
trabalho dessa gente e, portanto, a sua limitada capacidade produtiva,
desde que essa gente se cansa ao menor esforço, não sendo capaz de
acompanhar o ritmo de trabalho do operário de outras regiões, de
melhor tipo de alimentação, do sul do país, ou mesmo dos habitantes
da zona do sertão. O sertanejo sempre se sentiu superior ao habitante
do brejo, isto é, da área do açúcar, tachando-o de preguiçoso por sua
menor capacidade de trabalho. Outra deficiência específica, e esta a
mais grave de todas da dieta regional, é a sua carência permanente em
proteínas — a falta de ácidos aminados em quantidades adequadas ao
perfeito desenvolvimento e equilíbrio funcional do indivíduo. Não se
poderia mesmo esperar a obtenção de um regime equilibrado em
proteínas com uma alimentação quase que exclusivamente vegetal, à
base de feijão e farinha. Com as proteínas incompletas do feijão e da
farinha, que entram na composição do regime local. A primeira
manifestação clara da carência protéica é o crescimento lento e
precário do homem da bagaceira dos engenhos. São populações
inteiras formadas de indivíduos de estatura abaixo do normal,
evidenciando em sua constituição a carência crônica de proteínas no
seu regime alimentar. Mas não se limitam apenas a uma estatura
insuficiente as conseqüências das carências protéicas sobre essas
populações esfomeadas. Todas as outras manifestações, até o próprio
edema de fome, surgem na região, principalmente entre as crianças
dessa zona do país. Das carências minerais, sem nenhuma dúvida, a
mais generalizada e patente, é a carência de ferro que se manifesta
sobre a forma de anemia alimentar. Anemia que faz dos habitantes
dessa área uns tipos pálidos, chamados pejorativamente de amarelos
pelos habitantes de outras zonas, principalmente pelos sertanejos de
sangue mais rico, com melhores cores na cara, e que constitui um
característico antropológico do homem da área do açúcar, com sua
pobreza de hemoglobina por falta de ferro, e com seu sangue já ralo,
espoliado também pela verminose e por outras parasitoses que são
endêmicas nessa região. Para se ter uma idéia da freqüência desse tipo
de anemia, basta referir os resultados de uma pesquisa levada a efeito
entre os escolares numa capital do Nordeste e na qual foi encontrada
uma percentagem de 40% das crianças com anemia declarada (10).
Confirmando a origem alimentar dessa anemia estão os exames
hematológicos realizados após o uso, durante quatro meses, de um
complemento alimentar contendo ferro. A proporção dos anêmicos
havia baixado de 40^ para 3%, apresentando-se a taxa de hemoglobina
em 90% dos casos com um teor de 90-100%. Como conseqüência
dessa fome crônica em ferro e certamente de outros elementos
minerais, decorre a grande incidência nessa zona do fenômeno da
geofagia, isto é, do hábito de comer terra, generalizado entre os
meninos de engenho. Das avitaminoses, as mais comuns no Nordeste
são a avitaminose A, sob a forma de xeroftalmias, que até hoje cega
muita gente, e as avitaminoses do grupo B, entre as quais se destaca a
pelagra.
Junte-se a estas manifestações específicas de fome, que são
doenças típicas de carência, os estados lavrados, discretos,
dissimulados de fome, e todas as suas conseqüências sobre a saúde
física e mental dessas populações, e tem--se um balanço bem negativo
da economia do açúcar nessa região. Porque a verdade é que a fome
de que sofrem os habitantes dessa região do Nordeste não é produto de
fatores naturais, mas exclusivamente de causas artificiais, todas
oriundas do complexo econômico do latifúndio açucareiro, desse
complexo econômico, introduzido no Brasil em 1534 com o regime
das grandes capitanias de tipo feudal, instituídas por Dom João III de
Portugal, e que se mantém neste país até hoje, como uma espécie de
sobrevivência social. Não se pode negar que foram bem poucas as
tentativas empreendidas para lutar contra esta situação de penúria
alimentar da região.
A primeira destas tentativas foi feita pelos holandeses durante a
sua ocupação nesta área, que durou do ano de 1629 ao de 1654. Os
dirigentes holandeses da nova colônia — entre eles principalmente o
Conde Maurício de Nassau, que aí chegou em 1637 — impressionou
com a carestia dos gêneros alimentícios, baixou, um edital
determinando o plantio obrigatório da mandioca em todos os
engenhos de açúcar, lutando, assim, contra a monocultura avassalante
da cana. Mas esse edital não teve maior significação social porque, em
verdade, os holandeses nunca penetraram no interior do território
brasileiro, permanecendo apenas nos centros urbanos do litoral, nos
portos fortificados, de onde exportavam o açúcar a cargo da
Companhia das índias Ocidentais, para a Europa. E não podiam desta
forma influir grandemente na economia agrícola da região, fazendo
mudar os hábitos e as regras da exportação do açúcar, conforme os
haviam ditado sempre os senhores da terra. A ocupação holandesa
passou e a fome continuou soberanamente plantada nas terras do
Nordeste.
Outras tentativas de luta contra o regime de utilização das terras no
Nordeste foram ainda mais efêmeras, porque não passaram da
tentativas de revoluções, que fracassaram em suas origens, e o quadro
da miséria alimentar perdurou até os nossos dias, apesar dos enormes
progressos realizados na indústria do açúcar com a instalação das
grandes usinas modernamente equipadas e apesar de todos os esforços
do Governo Federal em ajudar a economia da região. Esta rápida
análise das expressões e manifestações de fome do Nordeste serve
para comprovar que Sorokin (11) tinha razão ao afirmar que a fome,
como expressão de calamidade social, é raramente um produto de
fatores naturais, sendo via de regra provocada por circunstâncias
sócio-culturais que tornam a sociedade incapaz de obter com seu
trabalho os necessários recursos alimentares. O que se verifica no
Nordeste açucareiro é que a fome de que sofrem suas populações é
produto exclusivo do seu tipo de organização econômica, da
exploração econômica de tipo colonial, estabelecido sob o signo do
feudalismo agrário em torno da monocultura do açúcar. A fome
aparecendo como uma espécie de subproduto da economia da cana, e
os famintos como uma forma de bagaço de sua estrutura social : o
bagaço humano do latifúndio açucareiro.
Na área do sertão a fome se apresenta com características bem
diferentes, refletindo outro complexo geo-econômico distinto do
complexo do Nordeste açucareiro. Não se trata da fome atuando de
maneira permanente, condicionada pelos hábitos da vida cotidiana,
mas da fome apresentando-se episòdicamente em surtos epidêmicos.
Surtos agudos de fome que surgem com as secas, intercalados
ciclicamente com os períodos de relativa abundância que caracterizam
a vida do sertanejo nas épocas de normalidade. As epidemias de fome
dessas quadras calamitosas não se limitam, no entanto, aos aspectos
discretos e toleráveis das fomes parciais, das carências específicas,
encontradas nas outras áreas até agora estudadas. São epidemias de
fome global quantitativa e qualitativa, alcançando com incrível
violência os limites extremos da desnutrição e da inanição aguda e
atingindo indistintamente a todos: ricos e pobres, fazendeiros
abastados e trabalhadores do eito. Homens, mulheres e crianças, todos
açoitados de maneira impiedosa pelo terrível flagelo das secas.
Na extensa zona semi-árida, que constitui o chamado "polígono
das secas", vivem cerca de oito milhões de habitantes, num regime
que tem como alimento básico o milho. É esta zona das secas uma
área alimentar do milho. Do milho associado a outros produtos
regionais, em combinações as mais das vezes felizes, permitindo que,
fora das quadras dolorosas das secas, viva essa gente em perfeito
equilíbrio alimentar, num estado de nutrição bastante satisfatório, e
que nas épocas de calamidade possua energia e vigor suficientes para
sobreviver em parte ao flagelo, evitando o despovoamento total da
região.
Constitui a área do sertão do Nordeste um caso verdadeiramente
excepcional, entre as diversas zonas de alimentação à base do milho,
no mundo, todas elas áreas de fome, de graves deficiências
alimentares, tais como a da América Central(12), com suas alarmantes
carências de toda categoria, a do Sul dos Estados Unidos da América,
com .suas populações negras assoladas pela pelagra, as da Itália e da
Rumânia, grandes focos pelagrosos condicionados pela alimentação à
base do milho. Verifica-se, assim, que, no mundo inteiro, as áreas do
milho são áreas de miséria alimentar, à exceção da do sertão
nordestino. É que, nesta área, o gênero de vida local, com seus hábitos
tradicionais, condicionou nesta zona, um complexo alimentar em que
as graves deficiências protéicas e vitamínicas do milho, são
compensadas por outros componentes habituais da dieta.
Se o sertão do Nordeste não fosse exposto às secas periódicas, ou
mesmo sofrendo esse flagelo, se a sua economia se tivesse
consolidado de forma a garantir à sua população um poder aquisitivo
razoável, estou certo que o .sertão do Nordeste não figuraria entre as
áreas de fome do continente americano.
Infelizmente, as secas periódicas, desorganizando por completo a
economia primaria da região, extinguindo as fontes naturais de vida,
crestando as pastagens, dizimando o gado e arrasando as lavouras,
reduzem o sertão a uma paisagem desértica, e seus habitantes, sempre
desprovidos de reservas, ao estado de inanição. Morrendo de fome
aguda ou escapando esfomeados, aos magotes, para outras zonas,
fugindo atemorizados à morte que os dizimaria de vez, na terra
devastada.
O característico fundamental desta extensa área geográfica é, como
já vimos, o seu clima semi-árido. Clima tropical, seco, com chuvas
escassas e principalmente irregulares. Toda a paisagem natural, a sua
topografia, as características do seu solo, a fisionomia vegetal, a
fauna, a economia e a vida social da região, tudo traz marcado, com
uma nitidez inconfundível, a influência da falta d'água, da
inconstância da água nessa região semidesértica. O solo arenoso,
pouco espesso, quase sempre pobre em elementos nutritivos e rico em
seixos rolados, é um produto dos extremos climáticos, dos largos
períodos de exagerada insolação e dos aguaceiros intempestivos,
desagregando as rochas areníticas e acelerando todos os processos de
demolição que nelas se realizam. Mas, não é só deste tipo de solo de
decomposição de arenito que é formada toda a capa agrológica da
região. Em certos pontos, principalmente nas depressões e nos baixios,
surgem manchas bem mais férteis de solos argilosos, mais ou menos
vermelhos, ou mesmo de barro escuro, formando os tabuleiros
aluvionais e as várzeas de tabuleiros (13). Nestes pontos, não só a
composição mas as qualidades físico-químicas do solo são bem
diferentes, tornando-os humíferos e férteis. São, porém, pequenas
manchas limitadas.
Nos solos do sertão, desenvolvem-se tipos de vegetação que
permitem aos geógrafos a caracterização de três subáreas climato-
botânicas: a agreste, a caatinga e o alto sertão.
O agreste constitui uma faixa de transição entre o Nordeste semi-
árido e espinhento e o outro Nordeste úmido e verdejante dos
canaviais. Há sempre na paisagem dessa subárea a presença da água.
Rios que não chegam a secar inteiramente no verão, mantendo sempre
um magro filete de água ou empoçados em certos pontos do seu leito.
A vegetação se organiza sob a forma de florestas espinhentas — scrub
forests, —prolongando no solo semi-árido do sertão a mata da região
úmida. Já a caatinga é o reino das cactáceas. No solo ríspido e seco
estouram as coroas-de-frade e os mandacarus eriçados de espinhos. As
árvores acocoradas em arbustos e as formações herbáceas completam
a paisagem adusta da caatinga. É a zona de maior aridez do Nordeste,
com seus rios transformados nas épocas secas em faixas de areia seca,
os leitos ardentes expostos ao Sol. No alto sertão, o clima se ameniza
levemente, a vegetação, do tipo de savana, se enfeita, em certas zonas,
com as fitas verdes dos carnaubais, enlaçando os vales férteis da
região. Rareiam um pouco as espécies espinhentas e as secas são
menos impiedosas. Verifica-se, assim, que a caatinga é o verdadeiro
coração do deserto. Aí se localizam os principais centros de aridez da
região. Aí se apresenta a vegetação no máximo de sua agressividade e
no máximo de sua convergente adaptação ao rigor climático, à
extrema secura ambiente. O agreste e o alto sertão são formas
atenuadas da caatinga(14).
Embora nas características de seu revestimento vivo, e mesmo em
certos aspectos de sua geografia econômica, cada uma dessas subáreas
apresente traços que lhes dão individualidade e impõe num estudo de
geografia humana, uma análise particularizada, para os objetivos deste
livro é perfeitamente dispensável a caracterização detalhada de cada
uma dessas subáreas, desde que em todas elas o regime alimentar
mantém a mesma unidade de hábitos e de composição, apenas com
pequenas nuances locais, variações de amplitudes semelhantes às de
quaisquer outras áreas alimentares de certa extensão. Sob o ponto de
vista alimentar, podemos pois englobar, as três subáreas numa só: a
área do milho do sertão nordestino.
A flora de toda a região é do tipo xerófito, adaptada aos rigores da
secura ambiente: à falta d'água no solo e do vapor d'água se atmosfera.
As espécies arbóreas reduzem seu porte, se arbustizam em postura
nanicas para sobreviver. O frondoso cajueiro da praia — Anacardium
occidentale — na caatinga adusta se inferioriza em arbusto, o cajuí do
sertão — Anacardium humilis,— em cajueiro anão das chapadas
arenosas. As folhas se reduzem ao mínimo para evitar a evaporação,
os caules se impermeabilizam, as raízes se espalham em todas as
direções para sugar a umidade escassa. Todos os órgãos da planta se
aprestam nesta luta incessante contra a falta d'água. Às espécies que
sobrevivem o fazem, ou à custa de uma economia rigorosa em seus
gastos, ou à custa da formação de reservas aquosas nos bulbos, raízes
e caules.
Entre as famílias que compõem a flora xerófita destacam-se as
cactáceas, tais como as palmatórias, os mandacarus, os xiquexiques e
os facheiros. Plantas dum valor inestimável na época das secas,
ajudando a gente e o gado a escapar aos seus rigores mortíferos. Ao
lado das ríspidas cactáceas, dando cor e característica à flora do
sertão, estão as resistentes bromeliáceas, — as suas macambiras, croás
e croatás, exibindo as lâminas recurvas e afiadas de suas folhas em
sabre. Pertencem as cactáceas e as bromeliáceas a uma categoria
especial de plantas chamadas, por Saint-Hilaire, de fontes-vegetais e
por Bernardin de Saint-Pierre, de mananciais vegetais do deserto.
Nas zonas de solo mais espesso e menos árido surgem, ao lado das
cactáceas, as leguminosas como as juremas e os angicos, as
bignoniáceas e as anacardiáceas. Nas depressões úmidas, nas vargens
viçosas crescem certas espécies de grande porte, como o juazeiro —
Zizifus juazeiro — e o umbuzeiro — Spondias tuberosa, — que se
levantam frondosos e altaneiros no meio da paisagem acachapada da
savana adusta. São os correspondentes na caatinga brasileira dos
baobabs e das acácias da savana africana (15).
Recobre o solo, nas épocas que se seguem às chuvas, o manto, em
certas zonas contínuo e espesso, noutras um tanto ralo e esfarrapado,
dos pastos naturais. É a babugem, formada pela associação de várias
plantas, principalmente gramíneas, de ciclo vegetativo extremamente
rápido, nascendo, crescendo e dando flor e sementes num abrir e
fechar dos olhos. É esta vegetação rasteira que dá ao fenômeno da
ressurreição da natureza nordestina após as chuvas, um signo de
transformação sobrenatural, mudando a cor de toda a paisagem em
alguns dias, assustando o viajante que um dia atravessou o deserto e
poucos dias depois, voltando pelo mesmo caminho, se embevece em
meio à verdura. A babugem é uma vegetação semelhante ao acheb
saariano. Vegetação das regiões estepárias do Norte da África que
Gauthier assim descreve: "o acheb não é uma planta determinada, é
uma categoria de vegetais que possuem sua tática própria de luta
contra a seca. Vegetais que sobrevivem por suas sementes cuja
resistência à seca é de duração quase infinita. Quando cai a chuva o
grão de acheb a utiliza com energia admirável. Em poucos dias ele
germina, lança sua haste, cobre-se de flores e lança suas sementes. Ele
sabe que não tem tempo a perder, está organizando para tirar todo
partido da dádiva excepcional, pois o acheb morre depois de uma
breve existência. Mas sua semente carregada pelo vento e recoberta
pela areia, guardada nas anfractuosidades da rocha, esperará, se for
preciso, dez anos por novas chuvas. São vegetais que sacrificam tudo
pela reprodução, são verdadeiros buquês de flores. Este é o pasto que
dá pena ver-se deglutido pela garganta dos camelos" (16).
A babugem do Nordeste é uma espécie de acheb, por conta do qual
correm "as mutações de apoteose da paisagem", na linguagem sempre
intensamente colorida de Euclides da Cunha.
Tais são, em síntese rápida, as características da flora sertaneja na
peneplanície cristalina e nos chapados de pouca altitude. Nas
montanhas mais altas, a maior pluviosidade e principalmente a
estrutura diferente do solo dão origem a uma vegetação de aspecto
doce, com tons de verde mais úmido e carregado. Vegetação higrófila,
semelhante à das zonas do brejo(17). Nestas áreas, onde a altitude
subverte o quadro climato-botânico da região, alteiam-se em capões
outras espécies arbóreas, algumas delas frutíferas, como a mangaba —
Hancornia speciosa, — o araçá — Psidium araçá, — cambuí —
Myrciaria sphacrocarpa — espécie de uva silvestre, constituindo
verdadeiros oásis de alta significação na vida econômico-social do
sertão semi-deserto. São os oásis de verdura dos flancos das serras do
Araripe, de Baturité, da Borborema, algumas delas com plantas
européias bem aclimatadas na zona, produzindo uvas, pêssegos,
melões e outros frutos de clima temperado, em plena área tropical.
Não exagerando a importância destes pequenos oásis, devemos
concluir que a flora do sertão é bastante pobre em espécies que
forneçam bons alimentos. Está longe de possuir uma riqueza tão
espetacular em frutas como a do outro Nordeste, o Nordeste da mata
tropical. Afora o umbuzeiro e o piquizeiro — sobre os quais
voltaremos a falar com mais vagar — as plantas nativas do sertão
produzem frutos de segunda classe, que nos tempos normais quase
não despertam interesse ao apetite do sertanejo. As quixabas, os juás,
os frutos dos cactos, dos xiquexiques, dos cardeiros, quase só são
aproveitados nas terríveis épocas de seca, quando ,se come de tudo,
tudo quanto é alimento brabo, sementes venenosas, cascas de árvores
e até solado de alpercatas. As próprias palmeiras estão longe de
apresentar uma riqueza nutritiva semelhante às da bacia amazônica. A
carnaubeira — Copernicia cerífera, — que constitui a espécie de
palmácea mais abundante no alto sertão, fornece tudo em abundância,
menos alimento ao homem. Só nos maus tempos, a medula da planta
nova, o palmito, é usado como recurso alimentar. É verdade que,
conforme refere Euclides da Cunha, "com estrépitos da palmeira
ouricuri — Cocus mucronata, — ralados e cozinhados, prepara-se nas
épocas secas, uma espécie de pão, infelizmente de má qualidade, "pão
sinistro", "o bró", que incha o ventre num enfarte ilusório,
empanzinando o faminto" (18).
Também a fauna do sertão fornece poucos recursos alimentares.
Os rios e os próprios açudes, hoje bastante disseminados na região,
têm as suas águas bem mais pobres em peixes do que as da zona da
mata. É que a evaporação violenta neste clima abrasador e a
irregularidade das chuvas, fazendo variar com certa rapidez e em
graus extremos a salinidade das águas, torna-as pouco propícias à vida
das espécies aquáticas. Só os rios perenes como o São Francisco,
mantêm apreciável riqueza piscícola em suas águas. A fauna terrestre
está também longe de fornecer grande auxílio alimentar. Se não possui
carnívoros de grande porte, que ponham em perigo a vida humana na
região, possui, no entanto, alguns animais de rapina, como raposas,
gaviões, caracarás, que disputam ao homem alguns dos recursos mais
importantes da fauna comestível desta zona. Não só da selvagem, mas
também da doméstica, das suas criações de galinha, cabras e ovelhas.
As aves são relativamente numerosas, principalmente os
psitacídeos — periquitos, jandaias e papagaios — e certos tipos de
pombas, das quais devemos destacar, por seu valor econômico, as
aves de arribação, que viajam em enormes bandos em migrações
periódicas, fornecendo ao sertanejo, em certas quadras, valioso
subsídio alimentar.
A riqueza em aves desta região de poucos recursos alimentares se
explica por esta capacidade migratória de todas elas, capacidade que
se desenvolveu como fenômeno de convergência, permitindo a sua
adaptação num meio de exigüidade alimentar através da intensiva
mobilidade do animal.
Diante destas parcas reservas e das condições pouco atrativas da
paisagem, que possibilidades viram nessa região os seus primeiros
desbravadores? Foi o espírito de aventura, o instinto de liberdade, de
que nos fala Capistrano de Abreu, e a ambição do ouro e das pedras
preciosas que levaram os primeiros aventureiros europeus a terras tão
distantes do litoral. Verificada, porém, a inexistência das minas no
sertão nordestino e a pouca serventia das suas terras para uma
agricultura de grande rendimento, como se praticava na zona da mata,
cedo se desviou a atividade do colono sertanejo para a pecuária. Para a
criação do gado vindo de Portugal ou do Arquipélago do Cabo Verde,
o qual se aclimatava muito bem neste ar seco e saudável e se
desenvolvia maravilhosamente nas suas pastagens naturais, formadas
de variadas espécies de gramíneas.
Loreto Couto, nos Desagrados do Brasil, assim nos informa:
"Treze gêneros se contam de erva que servem de pasto aos animais,
por cuja bondade é em Pernambuco tão grande a cota de gado vacum
e cavalar, que destes consumindo-se infinitos nos serviços destas
Capitanias, saem para fora todos os anos mais de 40.000, são ligeiros
na carreira, dóceis ao ensino e tão forte no trabalho que saindo de
Pernambuco para Minas Gerais com a carga de 6 arrobas andam 600
léguas desferrados e chegam sem diminuição nos alentos". Vê-se,
assim, que as condições propícias à criação desenvolveram no
Nordeste as fazendas, não só de gado vacum, mas de cavalos e mulas
que constituíam o meio de transporte único através da selva inóspita.
Entrando por Pernambuco, o gado se espalhou em currais pelo sertão
do Nordeste, fazendo-se as entradas pelas estradas naturais dos rios,
principalmente através do São Francisco, a grande artéria viva do
ciclo econômico do couro no Nordeste (19).
O grande mercado de bois em que cedo se constitui a zona da
mata, tão necessitada de sua força de tração para os trabalhos dos
engenhos e, bem assim, de sua carne apetitosa para alimentação de
populações cada vez mais densas e mais absorvidas no exclusivo
trabalho do açúcar, foi um dos motivos impulsionadores da pecuária
no alto sertão. Outro impulso decisivo lhe foi dado a seguir pelo surto
de mineração dos estados centrais. Vinham do Nordeste pelos
caminhos dos currais, os bois que deveriam alimentar as populações
repentinamente concentradas nos campos de mineração do Sul. Nessas
zonas de mineração faltava tudo e importava-se de outras áreas os
recursos alimentares de toda ordem. "A não ser o porco, que vive
intimamente legado à cozinha ou à couve, que cresce abandonado no
quintal atrás da casa, compra-se fora tudo o que é necessário à
economia doméstica. A família mineira não vive na fartura. Os
comerciantes a exploram vendendo gêneros a preços exorbitantes e o
senhor da lavra, absorvido inteiramente pelas minerações, imaginando
que o ouro dá de sobra para tudo, submete-se às exigências dos
mascates." — assim nos informa Miran Latif, em As Minas Gerais.
Completando este quadro da falta de recursos alimentares nas zonas
mineradoras, escreve Paulo Prado: "No,s primeiros tempos das
descobertas um boi chegou a valer 100 oitavas de ouro em pó, um
alqueire de farinha, 40. A situação só melhorou quando chegaram as
boiadas de Curitiba e ao Rio das Velhas o rebanho dos campos
baianos." (20) Tal miséria alimentar, com preços tão exorbitantes dos
alimentos na zona de mineração, documenta mais uma vez as graves
conseqüências a que foram arrastadas as coletividades brasileiras pelas
diferentes formas de exploração econômica que sucessivamente foram
estabelecidas no país, todas elas indiferentes ao amparo e ao
desenvolvimento sistemático dos cultivos de subsistência. Como no
drama da Califórnia, o pioneiro Sutter(12), possuidor de riquíssimas
terras, cobertas de lavoura e de cabeças de gado, se arruinara por
completo ao encontrar nos seus domínios riquíssima mina de ouro,
também no Brasil o ouro empobrecia o país e "morria-se de inanição
ao lado de montes de ouro pelo abandono da cultura e da criação."
Com dois mercados — o Nordeste açucareiro e o Sul minerador — a
disputarem com avidez o produto, o sertão nordestino prosperou à
custa dos ótimos preços encontrados para o gado. E não foi só para o
gado vacum a que se mostrou tão propício o meio ambiente, mas
também, e principalmente, para o gado caprino, mais resistente aos
assaltos da seca e muito menos exigente de bons pastos, se
acomodando a qualquer vegetação de serrotes e de lajedos, formada
de duras gramíneas, ou mesmo à vegetação arbórea a arbustiva, da
qual ele come as cascas e os caules ou as folhas. Esta a razão que fez
do Nordeste o grande centro de criação de cabras, concentrando-se
nos Estados de Pernambuco e da Bahia mais de 50 dos rebanhos
caprinos de todo o país.
De tal forma as cabras se desenvolveram e se integraram no
quadro ecológico da região, que vêm contribuindo como um
verdadeiro fator geográfico para modificar a fisionomia botânica da
mesma. O botânico Loefgren, estudando a devastação das árvores e
das matas nas terras do Ceará, atribui papel importante nesta
degradação vegetal às cabras soltas na região: "Um outro fator não
desprezível na devastação das matas, ou pelo menos para conservar a
vegetação em estado de capoeiras são as cabras. Sabe-se como este
animal é daninho para a vegetação arborescente e arbustiva e como a
criação de cabras soltas no Ceará é, talvez maior que o do gado, sendo
fácil imaginar-se o dano que causa à vegetação alta" (22).
Desfavorável à vegetação, foi a criação de cabras, no entanto, muito
favorável à alimentação regional, pois tanto a sua carne como o seu
leite são consumidos, na quase totalidade nos mercados locais.
Na contínua expansão dos seus currais, da qual nos legaram
preciosa documentação Fernão Cardim e Antonil, não se deixou o
sertanejo absorver numa atividade exclusivista que seria
extremamente nociva à sua vida econômica: na pura criação. Não
encontrando na Zona da Mata, para onde enviava a maior parte dos
seus bois, possibilidades de abastecimento adequado e seguro para
suas necessidades alimentares, e sendo distantes e difíceis os
caminhos noutra direção, ele teve que se dedicar um pouco ao plantio
de certos gêneros de sustentação para o seu auto-abastecimento. Fez-
se, assim numa saudável atuação colonizadora, vaqueiro e agricultor
ao mesmo tempo.
Não se constituiu o sertanejo, de início, num agricultor de produtos
de exportação, para fins comerciais, como se praticava nas terras do
litoral, mas um plantador de produtos de sustentação para seu próprio
consumo. Um semeador, em pequena escala, de milho, feijão, fava,
mandioca, batata-doce, abóbora e maxixe, plantados nos vales mais
humosos, nos baixios, nos terrenos de vazante, como culturas de horta
e jardim. Pequenas boladas de verdura que os senhores de engenho do
brejo, plantadores de extensíssimos canaviais sempre olharam com
desdém, chamando depreciativamente a este tipo de policultura do
sertanejo, de "roça de matuto". Roças de matuto diante das quais o
homem do açúcar torcia o nariz de grande senhor agrário, e que,
entretanto, vieram a constituir um magnífico elemento de valorização
das condições de vida regional, de diversificação do regime alimentar
do sertanejo, bem superior em épocas normais, ao da área da cana.
À base da criação de gado e da agricultura de sustentação e de
certos recursos um tanto escassos do meio ambiente — da caça e da
pesca — o sertanejo, usando métodos de preparo e de cozinha
aprendidos de outro continente, adaptando, até certo ponto, criou um
tipo de alimentação característico. Alimentação sóbria, porém bem
equilibrada, a qual constitui um bom exemplo de como pode um grupo
humano retirar de um meio pobre recursos adequados às necessidades
básicas de sua vida.
Vejamos quais as características desse regime de alimentação. Não
dispomos de documentação abundante acerca dos hábitos alimentares
do sertanejo, principalmente documentação com rigor científico,
encarando o problema à luz dos atuais conhecimentos da nutrologia.
Os inquéritos alimentares levados a feito na região são pouco
numerosos e quase que se limitam ao de Orlando Parahim (23),
realizados em 1939 no município de Salgueiro, no alto sertão de
Pernambuco, bem no centro geográfico da grande área assolada pelas
secas, ao de José Guimarães Duque(24), realizado em 1936, entre
famílias do posto agrícola de São Gonçalo e ao de Trajano Pires da
Nóbrega (25), que estudou em 1941 as condições econômico-sociais
dos municípios de Itaparica e Floresta, às margens do São Francisco.
O estudo da cozinha, da elaboração culinária no sertão, também
não tem atraído a atenção dos comentaristas, desde que ela tem sido
ofuscada em seus gostos moderados e em seu paladar comedido pelo
esplendor tão comentado e tão exaltado da cozinha do litoral. Afora
alguns comentários inteligentes deste incansável esquadrinhador do
folclore nordestino, Luís da Câmara Cascudo (26), existe muito pouca
coisa de valor com referência às tradições culinárias e ao estilo da
cozinha da região.
Baseados nos resultados dos inquéritos mencionados e nas
referências encontradas na bibliografia sobre os sertões nordestinos e
em observações diretas que fizemos em viagens pelo interior de
Pernambuco e da Paraíba, vamos tentar um levantamento do mapa
alimentar do sertão, dos hábitos tradicionais da alimentação da gente
sertaneja.
Já vimos que o componente fundamental de sua dieta é o milho,
alimento muito incompleto, com falhas graves por seu baixo teor
protéico, com deficiências desta sua proteína em ácidos aminados
indispensáveis, com sua pobreza relativa de sais minerais e de certas
vitaminas. Enfim, alimento tão pobre, que nas zonas ricas, onde o
homem dispõe de outros recursos nutritivos, é ele abandonado à
alimentação do gado. É o caso do corn-belt norte-americano, onde a
maior produção de milho do mundo é em 90% do seu consumo total
utilizada na alimentação animal, reservando-se apenas 10% para a
alimentação humana (27). Em áreas mais pobres, nas quais o milho é
usado como fornecedor de proteínas e vitaminas, seja quase puro, com
um exclusivismo de conseqüências funestas como no México(28), seja
misturado com outros alimentos incompletos como em Cuba (29),
associado ao feijão, surgem sempre manifestações carenciais entre as
populações assim alimentadas, evidenciando sérias deficiências do seu
equilíbrio nutritivo.
No sertão nordestino escapam as populações a esta sorte porque o
milho, embora seja o alimento básico, consumido quase que pela
totalidade de seus habitantes e em quantidades relativamente altas
(204 g diárias per capita, na cidade de Salgueiro, segundo inquérito de
O. Parahim) e mais ainda em plena zona rural, não constitui no
entanto, a fonte obrigatória nem de proteínas, nem de vitaminas, nem
de sais minerais do sertanejo. Mas apenas a sua base calórica, o
fornecedor do grosso do total energético de sua ração, ficando o
fornecimento dos outros princípios alimentares a cargo de outras
substâncias.
Usado sob as mais variadas formas, como angu, canjica,
cuscuz(30), o milho é quase sempre consumido juntamente com o
leite, numa combinação muito feliz, completando a caseína do leite as
deficiências em aminoácidos da zeína do milho.
O cuscuz é um prato típico da cozinha sertaneja, cuja técnica de
preparo constitui uma simples variante dos processos árabes de
fabricação de seu prato nacional — o kous-kous. Apenas, em lugar do
grão de trigo, usa-se o de milho pilado, no Nordeste como na Arábia,
num pilão especial. Para se ver até que ponto o milho pilado em casa
representa um traço definitivamente integrado no complexo cultural
da região, basta dizer que o sertanejo, mesmo dispondo das farinhas e
xeréns de milho já preparados, não abre mão dos seus métodos
tradicionais de preparo caseiro do grão. Conta Orlando Parahim que,
tendo um industrial de Salgueiro, aberto uma refinaria de milho para
preparo de variados tipos de farinha, teve que fechar sua indústria
"porque o caatingueiro preferiu sempre fazer o cuscuz com milho
batido no ,seu pilão em domicílio" (31). Felizmente, na preparação do
milho, para pilá-lo não usa o nordestino o nocivo processo de
acrescentar-lhe cal, como na área do México, destruindo esse meio
alcalino a maior parte da riqueza vitamínica que o milho possa conter.
Em experiências que levamos a efeito no Instituto de Nutrição da
Universidade do Brasil, acerca do valor nutritivo da mistura do milho
com leite, ficou demonstrado de maneira categórica o fato
surpreendente de que ratos alimentados com esta mistura
apresentavam um desenvolvimento superior aos dos animais que
dispunham de uma dieta cuja fonte de proteínas era exclusivamente o
leite. Demonstraram, assim, estas experiências que as proteínas do
milho e do leite em conjunto possuem um valor biológico superior ao
do próprio leite(32).
E não é só com milho que se consome leite em abundância no
sertão do Nordeste, mas de muitas outras formas. Misturado com café
de manhãzinha, ou como coalhada fresca ou escorrida, ou sob a forma
de derivados, manteiga ou queijo. Principalmente manteiga fresca e
requeijão, tipo de queijo gordo de que os sertanejos fazem largo uso,
cru ou assado. Em nenhuma outra zona do país, mesmo no Sul e no
Centro-Oeste, onde os rebanhos de gado são bem mais abundantes, o
leite constitui um alimento tão constante da dieta, entrando em
preparo de tantas combinações alimentares, como no Nordeste
pastoril. É que nas zonas de criação do Sul, o leite, produzido em
muito maior escala, constitui um produto comercial para o
abastecimento das cidades populosas, ligadas às áreas de criação por
fáceis meios de transporte.
Já no Nordeste, a quase inexistência de comunicações práticas com
as grandes cidades do litoral afastou sempre o leite sertanejo dos
mercados urbanos. O leite, a manteiga e o queijo do sertão ficaram
sendo até hoje produtos de consumo local, elementos integrantes da
dieta do sertanejo. Das duas refeições matinais, de angu e cuscuz com
leite; dos seus pratos de fôlego — carne com abóbora e leite — e até
de suas sobremesas, como a sua célebre umbuzada, preparada com
leite e umbus bem maduros numa combinação de excepcional valor
nutritivo, extraordinariamente rica em proteínas e vitaminas,
lembrando a associação admirável de leite e tâmaras de que fazem uso
os nômades do deserto saariano, os quais se apresentam, por conta de
sua dieta, com uma compleição superior a todos os povos da
Europa(33).
Além do leite, tem o sertanejo uma fonte liberal de proteínas na
carne. Carne de boi, carne de carneiro e, principalmente, carne de
cabrito, que constitui o grosso do consumo da região. Abatendo o seu
gado para alimentar-se, o sertanejo come, no dia da matança, as
vísceras e partes mais perecíveis em famosas buchadas(34) e
paneladas, reservando para outros dias a carne dos músculos, fresca
ou seca como charque ou secada ao sol e ao vento. Este último
processo de preparação constitui o método mais usual no sertão, para
conservação da carne: o preparo da carne-de-sol ou de-vento. Da carne
secada ao sol no mais primitivo dos processos de desidratação, o qual
só dá resultado satisfatório em climas de pouca umidade atmosférica.
Processo importado do reino e também aprendido dos habitantes do
deserto. Esta carne-de-sol e o charque são usados de várias maneiras,
sendo a mais comum pelos vaqueiros nas suas lidas, sob a forma de
paçoca, ou seja, de carne moída, pilada e misturada com farinha de
mandioca torrada e temperada. Constitui este prato um dos poucos
traços da influência nitidamente indígena na cozinha do matuto. Se o
índio contribuiu com uma boa dose de sangue para formação da raça
sertaneja, pouco trouxe como contribuição aos hábitos alimentares
dessa zona.
Embora a quantidade de carne consumida pelo vaqueiro do
Nordeste não seja muito grande, estando longe de alcançar a
liberalidade e muitas vezes o exagero do uso dos vaqueiros dos
pampas — do gaúcho — o seu consumo é, contudo, generalizado por
todas as populações do sertão.
Além do milho, do leite e da carne, fazem habitualmente parte da
alimentação do sertanejo, o feijão, a farinha, a batata-doce, o inhame,
a rapadura e o café. O feijão, embora em menor proporção do que o
milho, é largamente usado em suas diversas variedades — de arrancar,
de rama e de corda, principalmente do tipo macassar, reforçando o
total protéico da ração, embora com proteína incompleta (35). A
batata-doce colabora com o milho no perfazer o total energético,
.substituindo o pão, de uso muito limitado na região sertaneja(36).
Constituem falha visível da alimentação do sertanejo a pobreza e
irregularidade em que as frutas participam do seu regime habitual. Já
vimos como a flora nativa é exígua em frutas, e o sertanejo, sob a
ameaça das secas periódicas, não se tem animado a desenvolver a
pomicultura. Não que o solo e o clima sejam obstáculos realmente
intransponíveis a esse gênero de agricultura. Mas porque o risco de
perder o trabalho é maior neste tipo de plantação, que exige largos
anos para a colheita, do que nos tipos de cultura de colheita rápida —
do milho, da mandioca e do feijão.
Provando que o meio ecológico permite a fruticultura com
rendimentos compensadores, estão os resultados obtidos pelas
estações agrícolas experimentais da Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas. As tentativas de fruticultura realizadas nas terras
irrigadas pelos grandes açudes têm surpreendido aos próprios técnicos
encarregados deste Serviço.
Infelizmente, estes ensaios de fruticultura estão ainda limitados à
escala experimental e até hoje "no sertão do Nordeste somente existe
produção de cereais, verduras e frutas junto aos açudes, e sendo esta
produção ainda pequena, exclusivamente as populações desses
núcleos são beneficiadas", conforme afirma o antigo técnico da
Inspetoria das Secas, José Guimarães Duque.
Sem cultivo de plantas frutíferas, resta ao sertanejo o recurso bem
limitado das frutas silvestres — do umbu, do piqui, do quibá, da
cajarana e da quixaba. A escassez de boas frutas criou, por mecanismo
que já explicamos, tremendos tabus contra as mesmas, e assim se
constituiu um novo obstáculo ao consumo liberal de frutas por parte
do sertanejo. Frutas só de manhã, de tarde dá sezões e maleita. De
noite chega a matar. O consumo de verduras é também limitado à
abóbora — Cucurbita máxima — ao maxixe — Cucumis anguria — e
às cebolinhas e coentros usados como tempero.
Caracterizada em seus principais componentes a alimentação do
sertanejo e conhecida a sua relativa abundância em certos alimentos
protetores, como o leite e a carne, bem assim a sua pobreza evidente
em outros, como as frutas e as verduras, passaremos agora a analisar
este regime como um todo unitário, que abastece o homem do sertão
nos princípios nutritivos de que ele necessita para sobreviver.
A verdade fácil de se apreender é que esta alimentação tão sóbria e
tão enxuta, de tão espartana sobriedade, contrastando violentamente,
na simplicidade de seus processos culinários, com a rebuscada cozinha
do Nordeste açucareiro, sempre tão adocicada ou lambuzada de azeite,
representa um traço de alta compreensão do colono português e do
mameluco seu descendente em face das contingências especiais do
meio geográfico. Colono que, sempre que a cobiça exagerada não lhe
vinha turvar os propósitos de vida, se apresentava com uma aguda
capacidade de compreender e de contornar as exigências mais tenazes
e as necessidades mais prementes à sua boa adaptação ambiente. Sua
sobriedade alimentar, no caso, longe de significar miséria e
decadência, traduz uma sábia aplicação de economia biológica.
As características da alimentação sertaneja, um tanto magra e
despida de qualquer excesso de tempero, harmonizam-se
admiràvelmente com os traços naturais da terra também magra dos
sertões nordestinos. Por outro lado, o seu preparo simples,
desnaturalizando ao mínimo os alimentos, criando combinações de
admirável primitivismo, como a da abóbora com leite, do queijo com
rapadura, da batata-doce com café, representa um traço quase que
obrigatório das cozinhas de todos os povos nômades ou
seminômades(37), condenados a reduzir os seus utensílios de cozinha
ao pouco que se possa enrolar dentro de uma tenda ou de uma rede, ou
da matulagem do retirante, do tange-dor de gado, do bandoleiro ou do
cangaceiro itinerante.
O regime alimentar do sertanejo, embora na aparência pouco
abundante, alcança alto potencial energético, graças às doses liberais
em que entram o milho, a batata-doce e a manteiga. É bem verdade
que nem sempre obtêm estes ascéticos vaqueiros um tal teor calórico
em sua ração e mais raramente ainda dispõem de um excesso de
energia alimentar que se possa acumular sobre a forma de reserva, de
depósito de gordura e de glicogênio, que seriam de inestimável valor
na época difícil das "vacas magras". É esta mesma parcimônia calórica
e sem margem de luxo que faz do sertanejo um tipo magro e anguloso,
de carnes enxutas, sem arredondamentos de tecidos adiposos e sem
nenhuma predisposição ao artritismo, à obesidade e ao diabete,
doenças essas provocadas, muitas vezes, por excesso alimentar. O tipo
característico do sertanejo é o atlético. Não o do atleta de capa de
revista, nem de herói de fita de cinema, atraindo os olhares femininos
com suas formas apolíneas, mas o do atleta fisiológico, com o seu
sistema neuromuscular equilibrado, com bastante força e agilidade e
com excepcional resistência, nos momentos oportunos.
Este tipo constitucional do sertanejo é característico da maioria dos
povos pastores, todos de vida frugal e de grande atividade física. Veja-
se a descrição que nas dá Bulnes(38) do tipo do pastor árabe: "O árabe
é rude como a areia, ensimesmado como o deserto, seco e esbelto
como a palmeira, amargo e nobre como o seu café e quase desprovido
de gordura, por viver submetido a dois fogos: o do Sol e o do solo".
Chega-se, assim, à conclusão de que vive o sertanejo à base de um
regime que se apresenta quantitativamente suficiente para suas
necessidades básicas, sem sobras, sem margem para excessos. Se isto
não é o ideal, constitui, contudo, nas contingências especiais do meio,
uma circunstância mais favorável do que se fosse este um regime
excessivo em teor energético à custa de hidrocarbonados que não se
fizessem acompanhar das vitaminas necessárias à sua perfeita
metabolização. A frugalidade se ajusta sabiamente dentro do
equilíbrio alimentar, sendo que os excessos são muitas vezes mais
prejudiciais do que as próprias deficiências.
Qualitativamente, é este um regime sem falhas graves. Já vimos
que o teor de proteínas é relativamente alto e subscrito em boa parte
por várias espécies de proteínas completas: da carne, do leite e do
queijo. O teor protéico liberal, associado a boas doses de vitaminas
fornecidas ao sertanejo pelo leite e pela manteiga, constitui um dos
fatores do seu crescimento proporcional, da boa estatura da população
e da polarização do biótipo numa tendência acentuada à longitipia, ao
aparecimento dos tipos longilíneos, em contraste marcante com a
tendência das populações do brejo para os tipos brevilíneos(39). Não
queremos dizer com isto que seja a alimentação o fator único desta
seletiva diferenciação dos longetipos no sertão nordestino. Outros
fatores trabalharam no mesmo sentido, sobressaindo entre eles os de
base hereditária: a influência ancestral dos colonizadores da região,
que, na qualidade de desbravadores e pioneiros, devem ter sido, em
acentuada maioria, desse tipo constitucional a cujo painel morfológico
se associa quase sempre a psicologia do aventureiro. "Foi o longilíneo
astênico que colonizou o sertão, e a ele coube a tarefa ingente de
dilatar e integrar o território nacional. O brevilíneo parou na zona
agrária para trabalhar; o longilíneo aventureiro e idealista varou o
sertão", concluem Álvaro Ferraz e Andrade Lima Júnior, em seu bem
planejado ensaio sobre a diferenciação do biótipo do Nordeste.
É alimentação bem servida de proteínas que dá ao sertanejo essa
resistência um tanto impressionante para os habitantes de outras zonas
do país (40). Na carne de bode, no leite e no queijo do sertão, estão em
boa parte as justificativas biológicas que respaldam a hoje famosa
frase de Euclides da Cunha, que "o sertanejo é, antes de tudo, um
forte". Realmente, só um povo forte pode "exibir esta força, esta
resistência surpreendente às fadigas e às vicissitudes mais
exarcebadoras, esta disposição incansável ao trabalho, esta
constituição férrea que o torna sobranceiro às intempéries, aos
reveses, às endemias, e o leva com freqüência a cometimentos
titânicos"(41).
O equilíbrio profético alimentar deve entrar como importante fator
na maior resistência que manifesta o sertanejo em face das doenças
infectuosas, principalmente em face da tuberculose, que aí se
apresenta muito menos destrutiva do que nas zonas da mata e do
litoral.
E assim se completa a análise da dieta do sertanejo em tempos
normais. Dieta que, sem ser nenhuma maravilha de perfeição e
abundância, está, no entanto, muito acima do que era de esperar de um
meio aparentemente tão pobre, tão pouco dadivoso. Dieta que pelo
menos se mostra eficiente para evitar o aparecimento das carências
endêmicas de toda natureza e para dar ao sertanejo esta fibra
desadorada de lutador, capaz de enfrentar impávido o tremendo
fatalismo climático das secas.
A verdade é que, com chuvas regulares, com as águas
transbordando das margens dos seus rios e fecundando suas terras
trabalhadoras, o sertanejo vive mesmo uma época de abundância e de
fartura.
Com as secas desorganiza-se completamente a economia regional
e instala-se a fome no sertão. Os seus efeitos sempre desastrosos são
de amplitude variável, conforme se trate de uma seca parcial, limitada
à pequena área, ou uma grande seca abrangendo considerável
extensão, ou, finalmente, de uma seca que excepcionalmente atinja
todo o sertão em bloco.
A trágica história destes cataclismos periódicos, deste calendário
de calamidades, tem sido registrada por grandes escritores brasileiros,
desde um Euclides da Cunha, condensando em quadros de fulgurante
beleza todos os horrores indescritíveis da seca, a um Felipe Guerra
com as tétricas descrições de detalhes macabros acerca desta heróica
epopéia dos nordestinos. Tomás Pompeu, Rodolfo Teófilo, Ildefonso
Albano, José Américo de Almeida, Raquel de Queiroz, Alceu de
Lellis, Clodomiro Pereira e tantos outros nos apresentaram em páginas
de intenso realismo o excruciante espetáculo de fome e de miséria.
Não vamos repisar no presente ensaio estas cenas tão bem conhecidas
no país e mesmo no mundo, que a palavra Nordeste evoca quase
sempre o espetáculo das secas e dos flagelados: o espetáculo de um
povo sempre em fuga, em busca da terra da promissão.
Destes estudos e relatos apenas utilizaremos o essencial, para
compreensão de como se instala a fome no sertão nestas épocas
calamitosas. Para o estudo de suas principais manifestações e de suas
conseqüências mais marcantes sobre o estado físico e mental dessa
gente: sobre sua vida orgânica e sobre sua vida cultural.
Nestes sinistros períodos em que o clima se nega a regar com
chuvas benfazejas o solo adusto da caatinga, toda a vida regional se
vai exaurindo da superfície da terra.
O despovoamento da região resulta do fato de que, não só os
animais domésticos como os que fazem parte da fauna nativa
emigram, ou são em sua maior parte dizimados nas épocas de secas
prolongadas. Von Spix e Von Martius(42), atravessando o sertão
baiano numa destas quadras secas, admiraram-se da desolação da
paisagem regional, quase isenta de vida: "a fauna parecia ter
completamente abandonado este deserto adusto. Só observamos e
movimentação nas casas de cupim, de forma cônica, tendo às vezes
até cinco pés de altura. Aves e mamíferos pareciam ter emigrado para
regiões mais ricas de água."
As culturas desaparecem dos roçados com as sementes enterradas
na poeira esturricada, ou com as plantas tenras dessecadas pela
soalheira. O pasto seco se esfarinha e é arrastado pelos ventos quentes,
ficando o gado à míngua de água e de alimentos. Recorre o vaqueiro
ao recurso das ramas e dos cactos, queimando os espinhos dos
mandacarus e dos facheiros e picando os seus gomos a facão para
evitar a extinção imediata dos rebanhos.
As próprias reses esfomeadas procuram arrancar com os cascos e
com as bocas sangrando os espinhos dos cactos aquosos que lhe
mitiguem por um momento a fome e a sede(43).
Não dura, porém, muito que o gado se deixe aniquilar pela
morrinha, pela inanição e pelas pestes, e comece a entrevar, a cair e a
morrer como moscas. Os pátios das fazendas vão ficando coalhados
de cadáveres, transformando-se as campinas em pouco tempo em
grandes ossários, com as carcaças alvejando na amplitude cinzenta dos
chapadões descampados.
Golpeado a fundo pelo cataclismo, com suas fontes de produção
estagnadas, o sertanejo quase sempre desprovido de reservas cai
imediatamente num regime de subalimentação. Começa por limitar a
quantidade de sua ração e a variedade de seus componentes. A sua
dieta nesta fase se reduz logo a um pouco de milho, de feijão, de
farinha. Mas se a seca persiste, estes poucos gêneros desaparecem do
mercado, ficando o sertanejo reduzido aos recursos das "iguarias
bárbaras", das "comidas brabas" — raízes, sementes e frutos silvestres
de plantas incrivelmente resistentes à dessecação do meio ambiente.
Fazem parte desta dieta forçada dos flagelados pela seca inúmeras
substâncias bem pouco propícias à alimentação, das quais os
habitantes de outras zonas do país nunca ouviram falar que fossem
alimentos. Substâncias de sabor estranho, algumas tóxicas, outras
irritantes, poucas possuindo qualidades outras além da de enganar por
mais algumas horas a fome devoradora, enchendo o saco do estômago
com um pouco de celulose. "Esgotados os recursos naturais de
alimentação, tangidos pela fome, esses infelizes se atiram aos últimos
recursos vegetais, em geral impróprios à alimentação, ricos apenas de
celulose, por vezes mesmo, tóxicos, tais como a mucunã e a
macambira, que tantos casos fatais ocasionaram nas secas passadas e
que agora mesmo alguns produzem", escreveu Amadeu Fialho no ,seu
Relatório sobre a Seca de 1932.
Do cardápio extravagante do sertão faminto fazem parte as
seguintes iguarias bárbaras: farinha de macambira, de xiquexique, de
parreira brava, de macaúba e de mucunã; palmito de carnaúba nova,
chamada de guandu, raízes de umbuzeiro, de pau-pedra, de serrote ou
de mocó, maniçoba e maniçobinha; sementes de fava-brava, de
manjerioba, de mucunã; beijus de catolé, de gravata e de macambira
mansa.
Quando o sertanejo lança mão destes alimentos exóticos é que o
martírio da seca já vai longe e que ,sua miséria já atingiu os limites de
sua resistência orgânica. É a última etapa de sua permanência na terra
desolada, antes de se fazer retirante e descer aos magotes em busca de
outras menos castigadas pela inclemência do clima.
Realizamos análises de vários destes alimentos bárbaros, sendo
alguns deles de apreciável valor nutritivo. Mas a maioria é de difícil
digestibilidade e de valor alimentício praticamente nulo. Apenas
servem para enganar a fome, não para alimentar.
Embora com os conhecimentos incompletos que se têm dos
alimentos bárbaros não seja possível determinar com rigor o valor
nutritivo da dieta dos retirantes da seca, não resta nenhuma dúvida de
que se trata de um regime extremamente carenciado, não sendo
possível ao organismo manter-se por muito tempo com tal
alimentação. Ademais, esses recursos silvestres são limitados e, em
pouco tempo, com um exército de raizeiros à sua cata, rareiam e se
esgotam por completo. Baseado em testemunhas locais, conta
Ildefonso Albano, como na famosa seca de 1915, quase se acabou a
macambira em certas regiões do sertão nordestino (44).
Assim, esgotadas as suas esperanças e reservas alimentares de toda
ordem, iniciam os sertanejos a retirada, despejados do sertão pelo
flagelo implacável. Sem água e sem alimentos, começa o terrível
êxodo. Pelas estradas poeirentas e pedregosas ondulam as
intermináveis filas dos retirantes como se fossem uma centopéia
humana. Homens, mulheres e crianças, todos esqueléticos,
"deformados pelas perturbações tróficas, com a pele enegrecida colada
às longas ossaturas, desfibrados e fétidos pelo efeito da autofagia"
(45). Afrânio Peixoto dá-nos impressionante descrição sobre a
arrancada dos retirantes, nestes trágicos momentos: "Queimam-se os
espinhos e dá-se ao gado, cujos beiços se enrijecem com as cicatrizes
que os acúleos lhes deixaram, sangrentos, doloridos, depois
calejados... Vai-se buscar água nos poços ou cacimbas a quatro léguas
de distância em lombo de burro, nos jegues incansáveis. Mas o
cacimbão vai mostrando o fundo. Se o gado morre à míngua, não há
mais a esperar, a retirada... Uma trouxa do que se pode salvar e levar,
e com os outros que passam na estrada é a mesma amargura, o
calvário de mais passos apenas... O homem esgota tudo em torno para
nutrir-se: o cardo, o xiquexique, em beijus; a batata de macambira em
farinha; a maniçoba como se fora mandioca; as sementes da mucunã
torradas, pisadas, lavadas, relavadas em nove águas, em goma;
carnaúba ou sopa; o umbu é um agrado da Providência... O palmito da
carnaúba, a palmeira providencial, até ela, último recurso... Que
extrair desta parca e até, às vezes nociva alimentação? Nem alento,
nem esperanças... Fugir, se não se cai vencido ante esta resolução que
tanto custa... Deixar a terra onde se sofre tanto..."(46).
São as sombrias caravanas de espectros caminhando centenas de
léguas em busca das terras e dos brejos, das terras da promissão. Com
os seus alforjes quase vazios, contendo quando muito um punhado de
farinha, um pedaço de rapadura; a rede e a filharada miúda grudada às
costas, o sertanejo dispara através da vastidão dos tabuleiros e
chapadões descampados disposto a todos os martírios. Sem recursos
de nenhuma espécie, atravessando zonas de penúria absoluta, gastando
na áspera caminhada o resto de suas energias comburidas, os retirantes
acentuam no seu êxodo as conseqüências funestas desta fome. Vê-los
é ver em todas as suas pungentes manifestações o drama fisiológico da
inanição. Nas descrições que nos legaram os cronistas e os médicos,
testemunhas oculares principalmente das secas de excepcionais
proporções, como as de 1744, de 1790, de 1846, de 1877, de 1915 e
de 1932, encontram-se instantâneos destes retirantes em todos os
graus e formas da penúria orgânica, caindo de fome à beira das
estradas.
A fome quantitativa se exterioriza de logo pela magreza
aterradora, exibindo todos faces chupadas, secos, mirrados, com os
olhos embutidos dentro de órbitas fundas, as bochechas sumidas e as
ossaturas desenhadas em alto-relevo por baixo da pele adelgaçada e
enegrecida. Indivíduos que mesmo no tempo de abundância — nas
épocas do verde — nunca foram de muita gordura, apresentando--se
sempre com sua carne um tanto enxuta, chegam a perder, nas épocas
das secas, até 50% de seu peso.
Mas, não se vêem apenas estas esqueléticas figuras, magras e
chupadas pela fome. Vêem-se também as vítimas das terríveis
carências específicas nas suas mais grotescas e trágicas variedades. As
deficiências qualitativas de toda ordem se associando e modelando,
numa macabra riqueza de detalhes, os mais variados quadros
mórbidos. São as crianças as que exibem, com características mais
vivas as doenças de carência. Atingidas pela fome negra em pleno
crescimento, elas param por completo seu desenvolvimento e chegam
em certos casos, como a involuir a um período anterior. Refere Felipe
Guerra que, segundo a tradição, na seca de 1774, a fome foi tão
tremenda "que os meninos que já andavam tornaram ao estado de
engatinhar"(47). Muitas destas crianças ficaram marcadas a vida toda
com suas estaturas mirradas pelo nanismo alimentar, com suas
deformações das osteopatias da fome e suas endocrinopatias
carenciais, manchando e afeando o conjunto de homens fortes que
consitui a raça sertaneja.
Além da parada do crescimento nas crianças, as carências
protéicas se manifestam em larga escala pelos edemas de fome e
outros distúrbios tróficos. Os edemas, sejam discretos, sejam
generalizados em disformes anasarcas, constituem um dos sinais mais
constantes e com maior freqüência referido em todos os relatos sobre
as secas do Nordeste. Nas levas de retirantes encontram-se sempre as
figuras grotescas de famintos, com suas pernas de graveto carregando
enormes ventres estufados pela hidropisia, dando ironicamente uma
impressão de plenitude e de saciedade.
Neste estado de penúria orgânica, os retirantes perdem toda sua
resistência e capacidade de defesa contra os agentes mórbidos de toda
categoria, principalmente os de natureza infectuosa e tornam-se presas
fáceis de inúmeras doenças. Em sua incerta peregrinação, sem os
menores rudimentos de higiene, comendo alimentos poluídos e
poluindo tudo em torno com os seus excretas, sem água para sua
limpeza, sem cuidados de espécie alguma contra o contágio que a
promiscuidade intensifica, a retirada se constitui numa verdadeira
marcha fúnebre em busca da morte. É por isto que o brado popular
canta esta marcha com dolorosa melancolia:

Marchemos a encarar
Trinta mil epidemias
Frialdade, hidropisia,
Que ninguém pode escapar.
Os que para o brejo vão
Morrem de epidemia
Sofrem fome todo dia
Os que ficam no sertão (48).

Os que resistem às extenuantes caminhadas e chegam às terras


úmidas dos brejos são as mais das vezes atacados de graves doenças
infectuosas, para as quais lhes falta a necessária imunidade, e morrem
aos milhares. Em todas as grandes secas do Nordeste seguem-se
sempre à fome, a calamidade das pestes para completar o quadro da
tragédia nordestina. Na seca de 1877, os retirantes que desciam dos
sertões cearenses e se concentravam na capital da província eram
exterminados em massa pelas epidemias de varíola, de febres biliosas,
de disenterias. A epidemia de varíola tomou tão tremendo vulto, que
Fortaleza, com sua população de 124.000 indivíduos, assinalou a
existência de 80.000 variolosos. Naquele terrível ano de 1878 "a febre
biliosa, o beribéri, a anasarca, a disenteria, a varíola, haviam povoado
os cemitérios", diz-nos Rodolfo Teófilo. "Na cidade de Fortaleza em
doze meses sepultaram--se nos cemitérios de São João Batista e Lagoa
Funda, 56.791 pessoas, mortandade espantosa para uma população de
124.000 almas". As pestes despovoavam a cidade, o cataclismo da
seca se estendia em suas funestas conseqüências até a costa.
Num depoimento antigo, dando um balanço das perdas na terrível
seca, depoimento transcrito por Edmar Morel no seu interessante
livro-reportagem sobre o Padre Cícero do Juazeiro, encontram-se estas
cifras assustadoras: "o século dezenove vê dez grandes invernos e sete
grandes secas. Destas, a de 1845 tem gravíssimas conseqüências para
o gado e a de 1877-1879 torna-se célebre. Ela determina a mortandade
de 500.000 habitantes do Ceará e vizinhanças, ou cerca de 50% da
população. Nas grandes secas em geral, porém, a média da
mortandade não costuma exceder 33^. Dos mortos de 1877 a 1879,
calcula-se que 150.000 faleceram de inanição indubitável, 100.000 de
febres e outras doenças, 80.000 de varíola e 180.000 da alimentação
venenosa ou nociva, de inanição ou mesmo exclusivamente de sede"
(49).
Dos retirantes que, acossados pelo flagelo, em suas múltiplas
investidas, se dirigiam para a Amazônia atraídos pela miragem do
ouro branco calcula-se que meio milhão (50) foi dizimado pelas
epidemias, pelo paludismo, pela verminose e pelo beribéri.
O grosso dos casos de beribéri verificados na epidemia que
assolou a Amazônia, durante o ciclo da borracha, era formado por
nordestinos da área da seca. Sertanejos que chegavam ao inferno
verde sem nenhuma reserva de vitaminas, e que se não caíam de
beribéri na sua própria terra é que lá pouco comiam, não
sobrecarregando o organismo com material a metabolizar. Na
Amazônia, com um novo regime alimentar quantitativamente mais
abundante à custa das conservas e da farinha de mandioca,
processava-se o desequilíbrio nutritivo e surgia a praga terrível das
polinevrites beribéricas.
A Amazônia, ou melhor o Acre, que era seu ponto de atração mais
forte, foi o grande sorvedouro de vidas sertanejas: "O Acre é como
outro mundo: pode ser muito bom mas quem vai lá, não volta mais",
diz em tom melancólico um personagem de A Bagaceira (51), que
assim fala mas que também acaba partindo passivamente para o
inferno verde.
Assim, as populações de retirantes vão sendo rarefeitas em sua
peregrinação macabra, acossadas por todos estes males que se
enxertam sobre o mal da fome. Dos que sobrevivem a estes diferentes
males e passam a constituir populações adventícias das cidades do
litoral, grande parte fica sempre aguardando as notícias de cima,
notícias de que o flagelo passou com a queda das primeiras chuvas,
para voltar à sua gleba e recomeçar o seu destino de predestindos, a
lutar sem esperanças de vitória contra o eterno ciclo de calamidades.
Assim se constituíram grandes massas de populações marginais
nas capitais do Nordeste. Muitas cidades do litoral nordestino mantêm
permanentemente populações deste tipo. No Recife, nos mangues do
Capibaribe, desenvolveu-se uma verdadeira cidade de mocambos que
cresce em seguida a cada seca com os novos casebres levantados no
charco por novas levas de retirantes. A maior parte dos que descem do
sertão acossados pelo flagelo aí fica vivendo uma vida de inadaptados
e vencidos, num regime de carência crônica que é uma continuação do
martírio da fome no sertão. Numa série de contos que enfeixamos em
volume, sob o título de Documentário do Nordeste já fixamos quadros
da vida dessa gente que "vive atolada nos mangues, se sustentando da
pesca de caranguejos e siris, chafurdando nesse charco onde tudo é,
foi ou vai ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela.
A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré
traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela
e vive nela. E o homem que aí vive se alimenta desta lama, sob a
forma de caranguejo". As populações mantidas através desse trágico
ciclo do caranguejo representa um resto do monturo humano que o
vento quente das secas joga nas praias do Nordeste. Em torno de
Fortaleza vivem populações ainda mais miseráveis, algumas se
alimentam apenas de verduras silvestres — beldroegas e
manjangomes — cozinhadas com sal e comidas com os aruás (espécie
de molusco), muito abundantes nas lagoas da região.
Mas, não é somente agindo sobre o corpo dos flagelados, roendo-
lhes as vísceras e abrindo chagas e buracos na sua pele, que a fome
aniquila a vida do sertanejo, mas também atuando sobre o seu espírito,
sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta social. Nenhuma
calamidade é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido
tão nocivo a personalidade humana como a fome quando alcança os
limites da verdadeira inanição (52). Fustigados pela imperiosa
necessidade de alimentar-se, os instintos primários se exaltam e o
homem, como qualquer animal esfomeado, apresenta uma conduta
mental que pode parecer a mais desconcertante(53). Muda o seu
comportamento como muda o de todos os seres vivos alcançados pelo
flagelo nesta mesma área geográfica.
Lê-se numa memória do Padre Joaquim José Pereira(54), vigário
no Rio Grande do Norte, que na seca de 1792 apareceu na região "uma
tal quantidade de morcegos que mesmo de dia atacava as pessoas e os
animais". Confirma o fato Rodolfo Teófilo quando escreve que "a
praga de morcegos conhecida em todas as secas, com especialidade na
de 1792, começava a aparecer fazendo estragos em alguns pontos da
província". Verifica-se, assim, que estes animais, comumente de vida
noturna, excitados pela fome passavam a agitar-se durante o dia,
atacando os próprios homens, aos quais normalmente eles temem. As
pragas de serpentes, pestes de cascavéis, que surgem habitualmente
após as grandes secas, traduzem a mudança de comportamento desses
animais que, nas quadras de abundância, vivem quase sempre em suas
tocas e que, em conseqüência da fome, nos períodos de seca passam a
se agitar de maneira alarmante.
"Depois da grande seca (1877) desenvolveu-se em toda a província
um mal terrível. A cascavel — Crotalos horridos — devastou os
sertões de um modo assombroso. Apareciam estes terríveis répteis
com tal abundância, que indivíduos havia que tinham morto mais de
quinhentos em pouco tempo. A vida do sertanejo e do gado que
escapou da seca corria o risco de acabar ao dente do peçonhento
animal". Assim escreve Virgílio Erigido, no prefácio de A fome, de
Rodolfo Teófilo. É evidente que a idéia aí desenvolvida, da
assombrosa abundância de répteis, exprime, na verdade, a maior
freqüência com que eles aparecem e topam com o sertanejo. Embora
Roquette Pinto atribua ao calor excessivo uma mais rápida evolução
nos ovos da cascavel, temos a impressão de que a peste é mais produto
da mudança de hábitos do animal do que de um aumento de
proliferação da espécie, mesmo porque são animais ovíparos e o calor
só muito indiretamente poderia afetar o número de filhos de cada
ninhada, É a fome que joga as cobras fora de suas tocas, espalhando-
as famintas e furiosas pelos caminhos, pelos currais, pelos pátios e até
pelas casas dos fazendeiros.
Noutras áreas de fome do mundo, observadores avisados têm
verificado estranhas mudanças na conduta de animais tanto
domésticos como selvagens, quando expostos aos rigores da fome.
Conta Pedro y Pons que, durante a epidemia de fome que grassou em
Barcelona com a guerra civil espanhola de 1936 a 1939, os cães
vagabundos aumentaram consideravelmente, enchendo as ruas com
suas tropelias.
"As imagens da rua oferecida pelos cães que buscavam com afã
alimentar-se, uns secos, com as costelas salientes, outros fofos e
inchados, com andar fatigado e pêlos caducos, freqüentemente com
paralisia de uma pata traseira, foram contempladas por qualquer
indivíduo medianamente observador", escreve Pedro y Pons, em seu
livro Enfermidade por Insuficiência Alimentícia, 1940. Na descrição
rápida que o autor faz destes animais logo se identificavam as várias
espécies de fomes específicas de que padeciam: carências protéicas e
avitaminoses. Como animais domésticos, integrados à vida dos grupos
humanos, os cães se apresentam com aspectos muito semelhantes aos
das populações humanas submetidas ao flagelo da fome. Contam
cientistas da "Smithsonian Institution", de Washington, que na região
de Waterberg, no Transvaal africano, depois da terrível seca de 1913,
mudaram os costumes dos animais da região: "Muitos carnívoros
noturnos caçam agora de dia e os leopardos, contrariamente aos seus
hábitos, atacam de tarde os acampamentos. Os baboons, grandes
monos que antigamente não se moviam no escuro, parecem não
dormir mais em busca de alimentos noite e dia. Os cães selvagens
passaram a ser extremamente agressivos e assim por diante". Como
estes animais, voltamos a insistir, também o homem é capaz de alterar
a sua conduta, quando acossado pelos martírios e estragos da fome.
Para que se possa entender a possível interferência deste fenômeno
sobre o comportamento social da coletividade sertaneja, temos
necessidade de fixar em rápidas linhas como atuam biològicamente a
falta prolongada de alimentos sobre a organização psíquica do
indivíduo.
"Quando uma calamidade desaba sobre nossa vida, nossas
sensações e percepções, nossos órgãos de sentido tendem a tornar-se
extremamente sensíveis a todos os fenômenos dessa calamidade e a
todos os objetos e fatos correlatos", escreveu P. Sorokin(55). Quanto à
irritabilidade nervosa, chega-se mesmo a um estado de fúria ou raiva
chamada pelos navegadores dos séculos XVI e XVII, bons
conhecedores das crises de alimentos, de "hidrofobia da fome".
Encontramos um depoimento curioso desses estados nervosos na obra
de Jean de Léry, quando conta seu regresso do Brasil à Europa em
1558, a bordo do navio Jacques. Diz o cronista: "Vindo a faltar por
completo os víveres, em princípio de maio dois marinheiros morreram
de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar como de praxe". E
depois de narrar as peripécias da fome a bordo do navio desgarrado,
conclui que " durante estas fomes rigorosas os corpos se extenuam, a
natureza desfalece, os sentidos se alienam, o ânimo se esvai, e isso
não só torna as pessoas ferozes, mas ainda provoca uma espécie de
raiva, donde o acerto do dito popular: fulano enraivece de fome, para
dizer que alguém está sofrendo falta de alimento" (56).
A sensação de fome não é uma sensação contínua, mas um
fenômeno intermitente com exacerbações e remitências periódicas. De
início, a fome provoca uma excitação nervosa anormal, uma extrema
irritabilidade e principalmente uma grande exaltação dos sentidos, que
se acendem num ímpeto de sensibilidade, a serviço quase que
exclusivo das atividades que conduzam à obtenção de alimentos e
portanto, à satisfação dos instintos mortificadores da fome. Destes
sentidos há um que se exalta ao extremo, alcançando uma acuidade
sensorial incrível: é o sentido da visão. No faminto, enquanto tudo
parece ir perecendo aos poucos em seu organismo, a visão cada vez
mais se vai acendendo, vivificando-se espasmòdicamente.
Veja-se a descrição que nos faz dos flagelados um escritor do
Nordeste: "Mais mortos do que vivos. Vivos, vivíssimos só no olhar.
Pupilas do sol das secas. Os olhos espasmódicos de pânico como se
estivessem assombrados de si próprios. Agônica concentração de
vitalidade faiscante.”(57). Sob a ação desta dolorosa sensação, o
homem mais do que nunca se manifesta como um animal de rapina
com o olhar certeiro, varando os espaços em busca da presa que lhe
aplaque a fome. O animal de rapina, assevera Spengler, "é a forma
suprema da vida movediça: significa o máximo de liberdade, com
respeito aos outros e a si mesmo, o máximo de responsabilidade
própria e de solidão, o extremo da necessidade de afirmar-se lutando,
vencendo e aniquilando"(58). É nestas horas que o sertanejo se torna
um caçador insuperável, pressentindo no movimento leve de uma
folha ou na queda quase imperceptível de um torrão de barro a
vibração assustada no nambu, que se oculta numa touceira de
macambira, ou da preá faminta açoitada nos serrotes. É também nesta
hora que ele se faz muitas vezes cangaceiro.
Em penetrante e sutil ensaio sobre a arte da caça, que serve de
prefácio ao sugestivo livro do Conde de Yebes, Veinte Años de Caça
Mayor, Ortega y Gasset, analisando os motivos geradores do caçar,
aponta como dos fundamentais, a escassez da própria caça, "O fato de
que no Universo se cace pressupõe que exista e tenha existido sempre
pouca caça. Se superabundasse, não existiria este peculiar
comportamento dos animais, entre eles o homem, que distinguimos
com o preciso nome da arte de caçar. Como o ar existe de sobra não
há uma técnica da respiração e respirar não é caçar ar" (39). Crê, pois,
o filósofo espanhol que a conduta do animal caçador se moldou sob o
influxo da relativa escassez do animal presa em seu mundo
circundante. Mostra, a seguir, o pensador, como o sentido que mais
agudamente trabalha no caçador é a visão: "O caçador é o animal
alerta. É a vida com o integral alerta, é a atitude que o animal mantém
na selva. Aproxima-se o caçador do animal selvagem, vivendo com a
vivacidade e a iminência da selvageria".
Nesta fase desaparecem todos os outros desejos e interesses vitais
e o pensamento se concentra ativamente em descobrir o alimento por
quaisquer meios e às custas de quaisquer riscos. Exploradores e
pioneiros que, em suas aventuras, caíram nas garras da fome, nos
deixaram uma documentação rica de detalhes desta obsessão do
espírito, polarizada num só desejo, concentrada numa só aspiração —
comer (60). Em seguida a esta fase de exaltação, vem a fase de apatia,
de tremenda depressão, de náusea e de dificuldade de concentrar-se.
Knut Hamsum descreve muito bem estas crises cíclicas de
emotividade no seu herói autobiográfico da Fome, passando da
irritabilidade extrema ao quietismo mórbido, ora irritado, ora manso,
ora perverso, ora magnânimo, sem aparente razão de ser. Este ritmo
psíquico que se evidencia tão caracteristicamente nas épocas
calamitosas do sertão deve ter pesado nos julgamentos de alguns
autores quando, procurando caracterizar o temperamento do sertanejo,
vêem nele um tipo ciclotímico(61), um sintonizado com as extremas
solicitações ambientes.
A verdade é que, se por algumas de suas qualidades mentais — seu
realismo e seu sentido prático das coisas — o sertanejo insere sua
personalidade individual na vida social, à maneira dos ciclotímicos de
Kretshm&r, por outras muitas de suas características psicossomáticas
lembra mais um esquizotímico acentuado. Sua tendência ao
isolamento e seu exaltado sentimento de liberdade, características
estas, a que Martius e depois Capistrano de Abreu (62) deram grande
e justa importância, como fatores de povoamento da região e também
sua constituição biotipológica de longilíneos atléticos ou displásticos,
todas estas qualidades dão ao sertanejo nordestino um painel com
muitos traços de uma esquizotimia típica, atingindo, em certas
eventualidades, às raias da patologia individual e social, com seus
esquizóides e esquizofrênicos francos: seus cangaceiros sanguinários e
seus beatos fanáticos.
A nossa impressão é que este é o tipo predominante no sertão: o
esquizotímico, com sua curva de temperamento instável. Estes estados
de espírito extremos representam, em última análise, a exteriorização
do tremendo conflito interior que se trava entre os impulsos e instintos
da fome e os que levam à satisfação de outros desejos e aspirações.
Entre a alma do homem e a do animal de rapina, entre o anjo e o
demônio que simbolizam a ambivalência mental da condição humana.
"(Nestes limites já bem perigosos para a segurança de espírito, a
personalidade se vai desagregando, se esfumaçando e apagando as
suas reações normais a inúmeras outras solicitações do meio exterior,
sem correlação com a fome. Nesta desintegração do eu desaparecem
as atividades de autoproteção, de controle mental e dá-se, finalmente a
perda dos escrúpulos e das inibições de ordem moral.
Esta total transformação da personalidade se constata facilmente
nos vaqueiros, protótipo da estrutura social da região. Nos sertões do
Nordeste o vaqueiro é, em geral, sério, de uma honestidade a toda
prova. É gente capaz de tratar durante anos uma rês perdida, ficando
sempre à espera do legítimo dono. É Euclides da Cunha que nos conta
este velho hábito sertanejo: "Quando surge no seu logradouro um
animal alheio, cuja marca conhece, restitui de pronto. No caso
contrário, conserva o intruso, tratando como aos demais. Mas não o
leva à feira anual nem o aplica em trabalho algum, deixa morrer de
velho. Não lhe pertence. Se é uma vaca e dá cria, ferra esta com o
mesmo sinal desconhecido que reproduz com perfeição admirável e
assim pratica com toda a descendência daquela. De quatro em quatro
bezerros, porém, separa um para si, é a sua paga. Estabelece com o
patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E
cumpre estritamente sem juizes e sem testemunhas o estranho contrato
que ninguém escreveu ou sugeriu". Fruto exclusivo de sua férrea
honestidade. Também quando uma rês qualquer de ferro desconhecido
dá para ladrona, derrubando cercados e devastando lavouras, conta-
nos Xavier de Oliveira que os fazendeiros da redondeza se reúnem,
"avaliam-na, cotizam-se entre si, fazem uma matutagem da mesma e a
dividem proporcionalmente à cota de cada um, e quando o dono
aparece recebe a quantia exata por que foi avaliada sua rês. É isto tão
nobre e honroso como comum na velha virtude sertaneja"(63). Pois
esta gente, de princípios morais tão elevados, dá na época de seca,
para roubar o gado alheio, para roubar cabras, como aquele Chico
Bento, personagem de O Quinze, que num delírio de fome, perdeu os
escrúpulos morais e, "com as mãos trêmulas, a garganta áspera e os
olhos afogueados", derrubou a cacete o animal alheio que se
atravessou em seu caminho de retirante. Estes desvios das convenções
morais constituem muitas vezes o começo de uma vida de bandoleiro,
numa terra de princípios morais tão rígidos, onde depois da
transgressão, já não é possível voltar aos caminhos honestos e
esquecer o erro cometido.
Apagada assim a consciência, prossegue o conflito inconsciente
entre as forças de satisfação do instinto de nutrição e as forças de
outros interesses humanos, predominando um dos dois grupos, de
acordo com o que Sorokin chama "a lei da diversificação e
polarização dos efeitos", originando, em certos casos, as psicopatias
graves, verdadeiras psicoses reacionais ou de situação. Assim se
geram os bandidos e os santos — sinners and saints — das eras de
calamidade.
Contribuem, desta forma, as secas e as fomes periódicas que delas
decorrem para a cristalização desses tipos característicos da vida do
sertão: o cangaceiro e o beato fanático. Tipos tão significativamente
inseridos, por suas raízes culturais, na vida sertaneja, a tal ponto
associados em sua atuação social, que se constituem muitas vezes
como uma só personalidade — o beato-cangaceiro, como o célebre
Bento da Cruz, de Juazeiro, assassino de seu pai, que "com uma cruz
numa mão e um punhal na outra", distribuía justiça na povoação, ou
como os truculentos Batistas, que, na campanha de Canudos, serviram
de ajudantes-de-ordens a Antônio Conselheiro e que eram "capazes de
carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários..."
(Euclides da Cunha).
O cangaceiro, que irrompe como uma cascavel doida deste
monturo social, significa, muitas vezes a vitória do instinto da fome
— da fome de alimento e da fome de liberdade — sobre as barreiras
materiais e morais que o meio levanta. O beato fanático traduz a
vitória da exaltação moral, apelando para as forças metafísicas a fim
de conjurar o instinto solto e desadorado. Em ambos, o que se vê é o
uso desproporcionado e inadequado da força — da força física ou da
força mental — para lutar contra a calamidade e seus trágicos efeitos.
Contra o cerco que a fome estabelece em torno destas populações,
levando-as a toda sorte de desesperos.
Estudando a gênesis do jagunço, os fatores que condicionam a
formação de um Antônio Conselheiro, fanático cangaceiro, síntese de
toda a psicologia da sociedade que o formou, Euclides da Cunha dá
grande relevo ao fator alimentar, ao ascetismo forçado ou voluntário
do herói: "Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das
angústias recalcadas e das misérias fundas... Abeirara muitas vezes a
morte nos jejuns prolongados com requinte de ascetismo que
surpreenderia Tertuliano, este sóbrio propagandista da eliminação
lenta da matéria." Demonstrativas desta influência da fome periódica
na gênesis do cangaceiro são as seguintes palavras de Gustavo
Barroso: "Ribeiras houve regadas longos anos seguidos por invernos
fecundos e abastecidas por colheitas abundantes. Durante o período da
fartura, não surgiu um só bandido. Os enxotados das vizinhanças não
poisavam, porque lhes davam caça. Vieram secas. Os seareiros
fugiram para os povoados, emigraram para a Amazônia ou de
agricultura se tornaram míseros cabreiros. As terras amaninharam-se
abandonadas. O cangaceiro veio de fora e domiciliou-se ou irrompeu
da própria gente arruinada"(64). O mesmo pensou Afonso Arinos
quando escreveu: "Em períodos de instabilidade social, provocados
por causas de natureza econômica (causas estas que evidentemente
não são as mesmas, embora produzissem resultados análogos), o tipo
humano a que se convencionou dar, no Nordeste, o nome de
cangaceiro, aparece, se instala e domina a imaginação e até certo
ponto a vida popular da região"(65).
Não se pense que, num impulso de biologismo que seria um tanto
ingênuo, vamos chegar ao extremo de atribuir às fomes periódicas
uma ação determinante e exclusiva na formação destes tipos sociais.
Claro que não. Inúmeros outros fatores hoje bem conhecidos e
estudados interferem em sua elaboração, traçando mesmo as diretivas
gerais do fenômeno, esboçando em linhas um tanto imprecisas as suas
tendências básicas, mas não há dúvida que o cataclismo social
precipita seu aparecimento, provocando a sua cristalização definitiva.
Estribando-se em nossas concepções, Roger Bastide procurou
analisar este fenômeno sociológico com mais profundidade, em dois
estudos mais recentes e no qual se encontram preciosas observações
(66).
Nestes estudos este ilustre sociólogo francês, que viveu durante
muito tempo no Brasil afirma que é fora de dúvida a existência de um
vínculo entre os fenômenos de banditismo e fanatismo religioso e o
cataclismo das secas periódicas. E afirma mais ainda que este vínculo
é mais visível, mais fácil de evidenciar-se no caso do fanatismo
religioso.
Além desta ação direta sobre a personalidade dos sertanejos,
fazendo-os uns desorientados e desajustados, age a fome periódica,
desorganizando ciclicamente e economia da região e criando um meio
social extremamente receptível às atividades do cangaceirismo e do
beatismo. Meio social formado de massas humanas predispostas à
aceitação, e à adoração desses tipos singulares que simbolizam a sua
aspiração de fuga à miséria — fuga pela força do fuzil ou pela força
da magia. A verdade é que, para o sertanejo, o cangaceiro raramente é
um criminoso, um celerado, sendo cantado e louvado como um
homem valente, que joga cavalheirescamente a sua vida para defender
os oprimidos e alimentar os famintos, roubando dos ricos para
distribuir com os pobres.
As conexões entre a fome e a adoração mística são
sociologicamente tão claras e conhecidas que quase não merecem
comentários. Todos sabem que os grandes líderes religiosos, Moisés,
Cristo e Maomé, todos apregoavam os benefícios do jejum, tanto para
permitir uma maior elevação do sentimento místico individual como
para desenvolver nos crentes uma maior força de adoração mística.
Não foi por simples coincidência que a Idade Média, com suas
fomes devastadoras, se tornou o grande período místico do mundo,
apresentando as massas humanas, alternativamente atacadas de "uma
estúpida e desesperada apatia" (67) e de um intenso furor místico,
atirando-as impunemente em mortíferas guerras religiosas para
acalmar a sua sede de fanatismo e seu apetite de esfomeados crônicos.
O sertão nordestino viveu até bem pouco a sua Idade Média. Os
primeiros povoadores portugueses que aí se embrenharam no século
XVI viviam como demonstrou Sanchez Albornoz(68) ao estudar a
empresa colonizador a ibérica na América, saturados de
medievalismo. Viviam dentro de um espírito caracteristicamente
medieval, ao mesmo tempo religioso e guerreiro, místico e de
desenfreada cobiça, contrastando com o espírito burguês e heterodoxo
de signo moderno, pós-renascentista e pós-luterano, que presidiu a
colonização inglesa na América. Se, como afirma aquele historiador, a
luta contra o Islã desviou a rota da Península Ibérica e lhe deu um
atraso secular em seu medievalismo, maior ainda foi esse atraso
histórico em Portugal, metido "em seu desterro geográfico, separado
do grande mundo pela espessa muralha da Meseta Castelhana deserta
e dura"(69). No sertão do Nordeste o forçado isolamento dessa gente,
a falta de contatos mais seguidos com o resto do mundo prolongou
estas sobrevivências do medievalismo português até quase nossos
dias.
O drama das secas marca, desta forma, profundamente a
mentalidade do povo sertanejo. Embora, hoje, graças a alguns
progressos realizados principalmente em matéria de comunicações e
transportes, as conseqüências do flagelo se tenham atenuado, ainda
resta a alma do sertanejo impregnada do pavor da seca e da fome. E,
como veremos mais adiante estes sentimentos influem decisivamente
no comportamento do povo nordestino e nas suas manifestações
sociais de toda ordem.
Esta exposição um tanto detalhada do sofrimento do homem do
Nordeste, ou melhor do homem dos dois Nordestes, submetido
permanentemente ao flagelo da fome e esmagado pelo pavor constante
da morte sempre presente na sua paisagem humana, talvez ajude a
compreensão do complexo drama social que vive esta região: a sua
surda agitação política e a sua tensa explosividade. Mas antes de
abordarmos o estudo das tensões sociais geradas por esta trágica
situação reinante, parece-nos necessário indagar como foi gerada esta
situação, indagar de suas origens e dos fatores que a entretêm, uma
espécie de desafio à própria História: à evolução social e ao progresso
que hoje se processam aceleradamente nos quatro cantos do mundo.
A análise destas raízes históricas é tanto mais necessária para que
se possa ter uma interpretação fiel da atual realidade social do
Nordeste quando hoje sabemos que suas características fundamentais
— sua fome e sua miséria — são muito mais produtos das estruturas
sociais reinantes do que das condições naturais da região. Muito mais
produtos da organização econômica defeituosa do que da base física
considerada pobre. Nada mais falso, mais empírico, mais destituído de
qualquer fundamento científico do que a idéia de que a fome e a
miséria nordestina são produtos exclusivos da irregularidade e
inclemência do seu clima. De que tudo é causado pelas secas que
periodicamente desorganizam a economia da região. Nada mais longe
da verdade. Nem todo o Nordeste é seco, nem a seca é tudo, mesmo
nas áreas do sertão. Há tempos que nos batemos para demonstrar, para
incutir na consciência nacional o fato de que a seca não é o principal
fator da pobreza e da fome nordestinas. Que é apenas um fator de
agravamento agudo desta situação cujas causas são outras. São causas
mais ligadas ao arcabouço social, do que aos acidentes naturais, às
condições ou bases físicas da região.
Muito mais do que a seca, o que acarreta a fome e a miséria no
Nordeste é a proletarização progressiva de sua população, cuja
produtividade é mínima e está longe de permitir a formação de
quaisquer reservas com que seja possível enfrentar os períodos de
escassez — os anos das vacas magras, mesmo porque no Nordeste já
não há anos de vacas gordas. Tudo é pobreza, é magreza, é miséria
relativa ou absoluta. Sem reservas alimentares e sem poder aquisitivo
para adquirir os alimentos nas épocas de carestia, o sertanejo não tem
defesa e cai irremediavelmente nas garras da fome.
Se a região do Nordeste não fosse uma área subdesenvolvida de
economia tão fraca e rudimentar, poderia resistir perfeitamente aos
episódios das secas sem que sua vida econômica fosse ameaçada e as
suas populações acossadas pela fome. Poderiam mesmo esses
episódios funcionar como um fator de propulsão e de expansão de sua
economia. Não há nada de paradoxal nesta nossa assertiva. Ela deriva
de observações levadas a efeito em diferentes pontos do mundo por
sociólogos e economistas que, libertos das idéias preconcebidas, são
capazes de analisar os fatos em toda sua objetividade. Sobre este
aspecto André Piatier(70) nos traz uma preciosa contribuição quando
afirma que o nível de desenvolvimento pode ser medido ou aferido
pelo grau de resistência duma estrutura econômica em face de uma
catástrofe natural ou social: seca, inundação, revolução, guerra.
Enquanto os países subdesenvolvidos se deixam esmagar, os países
realmente, desenvolvidos reagem às catástrofes de forme positiva,
estimulando suas funções de defesa e de conservação, conseguindo
rapidamente apagar os efeitos catastróficos. Em sua relação chegam
mesmo estes países, em face do impacto, a ultrapassar o seu ritmo
habitual de progresso. Para comprovar esta sua teoria, Piatier cita o
caso da França se reconstruindo dos efeitos da última guerra, no prazo
de cinco anos, e alcançando em dez anos um ritmo de crescimento
como o país jamais conhecera. Cita o caso da Holanda, diante da
catástrofe do rompimento de seus diques há poucos anos, e o da
Alemanha, aparentemente desmantelada por sua derrota militar e, no
entanto, em dez anos refeita e economicamente poderosa. De outro
lado apresenta o caso da Grécia, que não dispõe de forças para se
recompor em face dos estragos da guerra ou das inundações que
sofreu nos últimos anos.
O Nordeste subdesenvolvido, como a Grécia, ou a índia, ou o
Ceilão, não resiste ao impacto da catástrofe.
A luta contra a fome no Nordeste não deve, pois, ser encarada em
termos simplistas de luta contra a seca, muito menos de luta contra os
efeitos da seca. Mas de luta contra o subdesenvolvimento em todo o
seu complexo regional, expressão da monocultura e do latifúndio, do
feudalismo agrário e da subcapitalização na exploração dos recursos
naturais da região.
Desta forma tanto o diagnóstico como a terapêutica dos males do
Nordeste só poderão ,ser encontrados, se mergulharmos a fundo na
verdadeira fonte destes males, nas suas origens históricas. Para
encontrá-las, temos pois, que recuar aos tempos da formação social do
Brasil — à época de sua primeira descoberta.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - MELO NETO, JOÃO CABRAL DE, Cemitérios Pernambucanos.


2 - VAZ DE CAMINHA, FERO, Carta a El-Rei D. Manuel, 1500.
3 - HARLOW, VINCENT, A History of Barbados, Oxford, 1926.
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Nova Iorque, 1928.
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1933.
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9 - SIMONSEN, ROBERTO, História Econômica do Brasil, 1937.
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12 - QUINTANA, EPAMINONDAS, El Problema Dietetico del Caribe, in
"América Indígena", vol. 2.", n.° 11, abril de 1942.
13 - TEIXEIRA, A. DA SILVA, Contribuição ao Estudo do Solo de
Pernambuco", n.° 1, março de 1938.
14 - FREISE, FRIEDRICH, The Drought Region of Northeastern Brazil, in
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LOEFGREN, ALFREDO, Notas Botânicas, in "Boletim da I.F.O. C.S.", n.° 2, 1923.
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Escolares Salgueirenses em face da Alimentação do Operário Sertanejo durante a
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24 - DUQUE JOSÉ GUIMARÃES, O Fomento da Produção Agrícola, in
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26 - CASCUDO, LUÍS DA CÂMARA, Viajando pelo Sertão.
27 - MCARTHY, HAROLD, The Geographic Basis of the American Economic
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28 - RAMOS ESPINOSA, ALFREDO, La Alimentación en México, 1939.
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30 - GOUGNET, A., 11 Ventre dei Popoli, 1905.
31 — PARAHIM, ORLANDO, A Alimentação do Operário Sertanejo durante
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32 - CASTRO, JOSUÉ DE e PECKNICK, EMILIA, Valor Nutritivo de la
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2, 1951.
33 - MACCOLLUM e SIMMONDS, The Newer Knowledge of Nutrition, 1929.
34 - COSTA COUTO, Panorama da Alimentação Brasileira, in "Cultura
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35 - ROCCA, JUAN e LLAMAS, ROBERTO, Estúdio del Frijol como
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36 - NEVES, CARLOS ALVES DAS, A Batateira Doce e sua Cultura no
Sertão e nas Bacias de Irrigação dos Açudes do Nordeste, in "Boletim da
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37 - COUGNET, A., I1 Ventre dei Popoli, 1905.
38 - BULNES, FRANCISCO, El Porvenir de las Naciones Latinoamericanas,
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39 - FERRAZ, ÁLVARO c ANDRADE LIMA JR. A Morfologia do Homem do
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40 - COUTINHO, RUY, Valor Social da Alimentação.
41 - MENEZES, DJACIR, O Outro Nordeste, 1937.
42 - VON SPIX e VON MARTIUS, Através da Bahia, trad. e notas de Pirajá da
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43 - MARION, Las Maravillas de la Vegetación, 1873.
44 - ALBANO, ILDEFONSO, O Secular Problema do Nordeste, Rio de
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45 - ALMEIDA, JOSÉ AMÉRICO DE, A Paraíba e seus Problemas, 1937.
46 - PEIXOTO, AFRÂNIO, Clima e Saúde, 1938.
47 - GUERRA, FELIPE, Sêca contra a Seca.
48 - NASCIMENTO, NICANDRO NUNES DO e VIEIRA, BERNARDO,
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49 - MOREL, EDMAR, Padre Cícero, Rio de Janeiro, 1946.
50 - PINHEIRO, AURÉLIO, A Margem da Amazônia, S. Paulo, 1937. 1936.
51 - ALMEIDA, JOSÉ AMÉRICO DE, A Bagaceira, Rio de Janeiro,
52 - MORGULIUS, SERGIUS, Fastinity and Under-nutrition, Nova Iorque,
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53 - BARROSO, GUSTAVO, Heróis e Bandidos, 1917.
54 - PEREIRA, PADRE JOAQUIM JOSÉ, Citado por J. Américo de Almeida
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55 - SOROKIN, P., Man and Society in Calamity, 1942.
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58 - SPENGLER, OSWALD, El Hombre y la Técnica, 1921.
59 - ORTEGA Y GASSET, Dos Prólogos - a un Tratado de Montería, a una
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60 - NANSEN, E., Farthest North, 1897; Peary, R., Northward over the Great
Ice, 1898; MIKELSEN, E., Lost in the Artic, 1913.
61 — KRETSCHMER, Théorie et pratique de Psychologie médicale, 1927.
62 - ABREU, CAPISTRANO DE, Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil,
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63 - OLIVEIRA, XAVIER DE, Beatos c Cangaceiros, 1920.
64 - BARROSO, GUSTAVO, Heróis e Bandidos, 1917.
65 - ARINOS, AFONSO, in Prefácio ao livro de Ademar Vidal, Terra de
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66 - BASTIDE, ROGER, O Messianismo e a Fome in "O Drama Universal da
Fome", simpósio publicado em 1958; e Brasil, Terra de Contrastes.
67 - GRUSCHMANN, F., Hungersnote im Mittelalter, citado por V. Sorokin, in
Man and Society in Calamity, 1942.
68 - SÁNCHEZ ALBORNOZ, CLÁUDIO, La Edad Media y hi Empresa de
América, La Plata, 1934.
69 - FIGUEIREDO, FIDELINO DE, Últimas Aventuras, 1943.
70 — PIATIER, ANDRÉ, Developpement économique regional et
developpement économique national; conferência feita no Cairo em 1957.
CAPITULO III

A PRIMEIRA DESCOBERTA:
O FEUDALISMO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI

A PRIMEIRA descoberta do Brasil, no ano da graça de 1500, não


teve, a princípio, grande repercussão. Passou quase que despercebida,
como um episódio secundário, totalmente abafado por outras façanhas
mais ilustres da epopéia da navegação portuguesa no começo do
século XVI. A verdade é que esta descoberta casual estava fora dos
planos ou objetivos mais imediatos das conquistas ultramarinas de
Portugal, cuja obsessão naquele momento era a de encontrar o
caminho marítimo para as terras do Oriente, cujos produtos
importados, por intermédio dos mercadores árabes, tinham
enriquecido outros países europeus mais afortunados no comércio.
Desviado de sua rota pelas correntes marítimas e pelos ventos
contrários, ao topar com esta terra ignota, Pedro Álvares Cabral,
limitou-se a "refrescar" as suas naus e a prosseguir sua viagem em
busca das índias Orientais. Desta sua descoberta das terras das índias
Ocidentais, mandou, no entanto, uma notícia circunstanciada ao Rei
de Portugal, expressa no primeiro documento da História do Brasil —
a célebre carta de Pero Vaz de Caminha. A notícia, contudo, não
causou maior impressão no Reino, e durante mais de trinta anos o
Brasil permaneceu praticamente abandonado, salvo esporádicas
concessões para exploração do pau-brasil, única riqueza então
encontrada na nova terra. Conforme os primeiros cronistas, era de
"paz e sossego" a vida brasileira antes da descoberta. Dela assim nos
fala Jean de Léry, um dos primeiros cronistas a registrar as condições
de existência aqui surpreendidas pelos conquistadores vindos de além-
mar.
A terra era um bem comum, pertencente a todos, e muito longe se
achavam os seus donos de suspeitar que pudesse alguém pretender
transformá-la em propriedade privada.
Dispunham os primitivos brasileiros de casas e excelentes terrenos
"em quantidade muito superior às suas necessidades" — escrevera
Léry. "No que toca à repartição das terras, cada pai de família escolhe
algumas geiras onde lhe apraz e nelas planta suas roças; e quanto a
isso de heranças e pleitos divisórios são cuidados que deixam aos
demandistas e avarentos da Europa" (1).
Conclusões semelhantes, sobre a vida tranqüila e a índole pacífica
do gentio, deveriam ter chegado, ao aqui aportarem, os tripulantes da
frota de Cabral, cerca de cinqüenta anos antes. "Vinham todos rijos
para o batei, e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos, e
eles o puseram" — registra Pero Vaz de Caminha, em sua famosa
carta a El-Rei D. Manuel.
Após os contactos iniciais, poucos dias de convívio bastaram para
que fossem lançadas as bases de um recíproco entendimento e
introduzida a prática do escambo entre os povos do velho e do novo
mundo. "Resgataram lá, por cascavéis e por outras coisinhas de pouco
valor que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e
dois verdes pequenos, e carapuças de penas verdes e um pano de pena
de muitas cores, maneira de tecido, assaz formoso".
E esse foi também o meio por que obtiveram os homens brancos
tudo quanto precisavam para "refrescar" suas naus. "Acarretavam
dessa lenha quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam aos
batiés, e andavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós
andávamos entre eles."
Por muitos anos adiante, tal método de resgate das riquezas da
terra e de aliciamento da mão-de-obra nativa dera provas de completa
eficácia. Assim fora preparada e embarcada a carga da nau Bretoa, à
altura do ano 11 da Descoberta, e assim também se procedera com o
carregamento de outros barcos que a precederam, sobre os quais se
têm notícias menos precisas. Portugueses e franceses, que vararam a
costa, do Cabo Frio ao Cabo de São Roque, nesses primeiros tempos,
devastaram florestas na apanha de milhares de toros de pau de tinta,
sem que precisassem empregar, nas suas relações com o gentio, outros
elementos mais persuasivos que a oferta, em troca da riqueza extraída,
de uma reduzida variedade de bugigangas.
E para que tivessem sido tão bem sucedidos em sua empresa, os
traficantes europeus da época não poderiam ter lidado com tribos tão
inabordáveis e hostis como depois as imaginaram, com intenções
preconcebidas, vários conhecidos historiadores.
Pelo que se sabe de sua vida primitiva, nossos índios, em diversas
regiões, já haviam ultrapassado a fase superior do Estado Selvagem e
penetrado na fase inferior da Barbárie, adotando-se a classificação de
Lewis Morgan. Conheciam a cerâmica e teciam suas redes.
Praticavam uma agricultura rudimentar, nos períodos de
sedentariedade que se alternavam com os de nomadismo, cultivando a
mandioca e o milho. Desses dois gêneros obtinham uma série de
produtos, particularmente a farinha, cuja preparação exigia certa
experiência de trabalho de tipo mais elevado. Sua antropofagia, tão
alardeada para conveniência dos conquistadores, parecia estar em
declínio, e restringia-se a meras formas rituais, havendo informações
de que, numa ou noutra área, seus prisioneiros já eram poupados.
Dificilmente se poderá determinar o grau de desenvolvimento e de
generalização das práticas escravistas entre os índios nessa época. De
um lado, exageravam-se as notícias sobre a antropofagia, quando se
tinha interesse em justificar a preia do gentio, que, dessa maneira,
aparecia como um ato de filantropia dos conquistadores. Doutro lado,
exageravam-se as notícias sobre a escravatura, quando se pretendia
apresentar o trabalho escravo como uma tradição indígena, e não a
resultante da coação dos homens brancos.
A elucidação desse aspecto controverso e obscuro, mas não tão
obscuro quanto aparenta, é muito importante para a explicação dos
fatos históricos que decidiram do caráter da colonização portuguesa.
Teriam os nossos índios evoluído espontaneamente da
antropofagia, para o sistema da escravidão em época anterior ao
contacto dos brancos? É pouco provável que isso sucedesse.
Mais aceitável é a hipótese de haver sido a escravidão introduzida
após aqueles contactos, antes ou depois de Cabral, sem que tivesse
alcançado alguma amplitude, por lhe faltarem as condições requeridas
para o seu desenvolvimento, no estágio em que se achava o gentio.
As referências do Padre Nóbrega a índios vendidos em Porto
Seguro aos portugueses pelos próprios índios, assim como outras que
se conhecem, bem como as que tratam dos casos em que estes se
entregavam ao cativeiro, premidos pela fome ou pelas calamidades
naturais, não são de molde a convencer-nos, senão de acontecimentos
esporádicos, e, assim mesmo, tardios, pois se prendem ao tempo em
que os hábitos civilizados já tinham penetrado em algumas
comunidades nativas. E são igualmente tardias as notícias sobre
guerras que entre si moviam as tribos para fazer prisioneiros e
negociá-los com os colonizadores que os vendiam ou os submetiam ao
trabalho escravo.
Que a escravidão penetrou na História da Humanidade com a
civilização, depois que o homem passou a viver sedentàriamente,
abandonando o canibalismo e aproveitando os prisioneiros de guerra
como trabalhadores escravos, não padece dúvida. Seria, porém,
duvidoso que isto tivesse acontecido na pré-história brasileira, antes
que as comunidades indígenas houvessem atingido toda a plenitude de
uma vida sedentária, antes que praticassem a domesticação de animais
e conhecessem o uso dos metais.
Note-se, a propósito, que os portugueses se cercavam de todos os
cuidados a fim de que os índios se mantivessem na ignorância de
muitos costumes civilizados, chegando a proibir que, nas zonas
distantes da costa, os desbravadores brancos fundissem metais, para
que não transmitissem aos da terra conhecimentos que se tornariam
perigosos se utilizados na feitura de armas e instrumentos de trabalho.
O período relativamente curto de duração do escambo, como
forma dominante nas relações entre o índio e os conquistadores, é
outro argumento contra a possibilidade da existência de um sistema
desenvolvido de escravidão no seio das comunidades indígenas. Se a
frota de Cabral aqui encontrasse disponibilidade farta dessa
mercadoria humana — o escravo — foco da cobiça dos traficantes de
além-mar, dela não só falariam amplamente as crônicas desses
primeiros tempos, quando se referissem ao escambo, como se teria
constituído um fator de relevo na expansão das trocas e, ainda, de
permanência das relações pacíficas entre os povos da nova terra e os
de além-mar. Ao invés disso, entretanto, as crônicas acentuam que as
guerras dos brancos contra os índios, visando a escravizá-los, teriam
coincidido com o declínio do escambo.
Por que precisariam os colonizadores encetar as sanguinárias
campanhas para a preia do gentio se o poderiam adquirir facilmente,
trocando quantos prisioneiros escravizados houvesse por produtos de
insignificante valor?
A extensão e ferocidade assumidas por essas campanhas
demonstram, sobejamente, que não apenas eram escassas ou
inexistentes as reservas de índios escravizados no seio das tribos,
como ainda que a sua apropriação pelo branco seria impossível por
outras formas que não a violência.
Iria terminar, por esse motivo, a fase das relações pacíficas entre
ambos os povos, aproximando-se igualmente do fim o período em que
o escambo assegurara aos portugueses o caminho para o saque das
riquezas da região descoberta.
Não foi a falta de habilidade dos conquistadores portugueses que
motivou a substituição do escambo pela violência no trato com o
gentio. As mudanças, que se processaram nesse terreno, foram simples
decorrência das necessidades econômicas da metrópole que a levaram
a optar por outras formas de exploração da terra conquistada.
Quando predominava a mercancia dos produtos florestais, o que
mais preocupava era a paz com o gentio. Os capitães da frota de
Cabral revelaram essa intenção ao se reunirem para decidir que "não
curassem aqui de, por força, tomar ninguém, nem fazer escândalo,
para o de todo mais amansar e pacificar". Mandaria a prudência, em
nome dos objetivos a que se propunham, que, mesmo quando os que
"por força" tomassem índios nos primeiros lustros, o fizessem "sem
escândalo", e assim deveriam também ter agido os demais capitães das
naus que por aqui passaram, sem excluir a Bretoa.
A política então vigente na metrópole orientava-se no sentido de
tornar o gentio a principal força de trabalho na exploração extrativa.
Recebia ele em quinquilharias, cartas de baralho e quejandos, o
pagamento de seus serviços, que consistiam no corte, na preparação e
no transporte do pau-brasil e no abastecimento de tudo quanto pudesse
interessar às frotas de guarda-costas e mercadores. A mão-de-obra
indígena não-escrava foi ainda utilizada nas roças que se formavam
em torno das feitorias, durante os primórdios da ocupação portuguesa.
Mantivera-se nesses termos, ao que tudo indica, até a instituição
das Capitanias Donatárias, era 1532, o convívio entre o íncola e os
conquistadores, respeitado pelos últimos, em certa medida, o regime
comunal da propriedade sob o qual viviam os primeiros, da pré-
história brasileira.
Daí por diante, a preia do gentio, antes furtiva e acessória, foi
estendendo-se a todas as regiões, vindo a constituir-se paulatinamente
numa das atividades mais lucrativas, quer como fonte de suprimento
de mão-de-obra para a formação das lavouras, quer como gênero de
exportação.
Conta Frei Vicente do Salvador que, quando começaram as
entradas, muitos colonizadores não estavam convencidos de que esse
sistema fosse o mais conveniente para os fins propostos. "As guerras,
diziam eles, afugentavam os Gentios" para a distância de muitas
léguas da costa, acreditando ser "melhor trazê-los por paz e por
persuasão de Mamelucos; que por eles saberem a língua, e pelo
parentesco os trariam mais facilmente que por armas".
Por todo o tempo de vigência das Donatárias, que se pode tomar
como a fase de transição entre as formas pacíficas e o uso da coação
nas relações com o gentio, o escambo se tornaria cada vez mais
escasso. A habilidade e a astúcia dos comerciantes de costa, dos
mercadores experimentados no entendimento com os povos das
índias, deixariam de ser os elementos fundamentais de ligação entre as
duas sociedades que, mais tarde, deveriam forçosamente hostilizar-se.
Acresce que entravam em jogo, agora, interesses e objetivos
diferentes da simples aventura da conquista, que havia empolgado os
traficantes e mercadores. Não se tratava apenas de vir buscar e
transportar para os mercados da Europa os frutos do continente
descoberto e sim de fundar aqui novas fontes de riqueza com a
ocupação e exploração da terra, empresa a que se lançavam os mais
audazes representantes da fidalguia lusa.
Aos princípios e métodos da conquista sucediam os princípios e
métodos da colonização. A missão confiada aos colonizadores era a de
submeter o íncola, apropriar-se de suas terras e seus bens, impor-lhe
suas concepções e transformá-lo num agente dócil de seus objetivos
de domínio.
A partir do momento em que algo mais do que a riqueza extrativa
passa a despertar a cobiça da metrópole portuguesa, começam a
apagar-se os vínculos que nos atavam à pré-história. A transformação
da terra conquistada em colônia de exploração exige novas
instituições jurídicas, novas formas de propriedade, que somente
poderiam viçar sobre as ruínas das instituições primitivas.
Incipiente ainda a caça aos escravos indígenas, não havia até então
a rutura definitiva entre esses e os conquistadores, o que se verificaria
irremissivelmente mais tarde, com a expropriação, em larga escala, de
suas terras. Tanto assim que seriam encontradiços na "história das
várias donatárias, os exemplos de população européia e nativa vivendo
em excelente relação e até mesmo em estreito convívio", o que,
evidentemente, não resultaria do "modo de ser natural" dos
portugueses, como quer Paulo Merea(2), mas do fato de não terem
esses ainda abandonado, por essa época, os meios pacíficos de
cooperação econômica.
Uma reconstituição lógica desse período de iniciação da história de
nosso país, sobre o qual são escassas e contraditórias as notícias, nos
fará compreender que a dualidade de métodos — o do comércio
pacífico e o do emprego da força — que por muito tempo coexistiram
nas relações com os silvícolas, de certo refletiria o conflito de
interesses e de concepções, a disputa entre castas e facções, que
dividiam e minavam a sociedade seiscentista de além-mar.
A monarquia agrária portuguesa(3), com um atraso secular em sua
história, provocado pela interminável luta dos povos ibéricos contra o
Islã, vivia ainda na época da descoberta do Brasil, a sua Idade Média.
Se, em 1500, os países da Europa colocados ao norte dos Pirineus já
estavam em plena Renascença, a Espanha e Portugal permaneciam
ainda em pleno regime medieval. É o que nos demonstra com farta
documentação historiadores idôneos, como um Cláudio Sánchez
Albornoz(4) ao estudar a empresa colonial na América, ou como um
Northcote Parkinson(5) ao afirmar que "Portugal e Espanha eram mais
medievais do que renascentistas quando começou a sua aventura
ultramarina. Viviam ainda num mundo de santos e de cavaleiros
andantes, de monges e castelos medievais". O fato de se terem esses
dois povos empolgado pela cobiça do ouro e pela aventura comercial
não tira a marca do medievalismo de suas empresas de conquista.
Há muito que a sociedade medieval se vinha infiltrando destas
ambições materiais que acabaram por dar origem ao capitalismo como
sistema econômico que substituiria o sistema feudal decadente. No
fundo, as cruzadas da Idade Média não obedeciam apenas a um
impulso místico de propagação da fé, mas, em boa parte, a um
impulso mais material de conquista de novas riquezas e de
alargamento do comércio dos países cristãos, principalmente com os
"infiéis", habitantes do misterioso Oriente, considerado como
fabulosamente rico e, portanto, ambicionado. É dentro desta ordem de
idéias que se pode admitir a conquista das terras da América pelos
povos ibéricos, como a última de suas cruzadas — uma cruzada
marítima — trazendo no bojo dos seus barcos a mesma cruz e a
mesma espada das cruzadas terrestres de vários séculos da história
medieval.
No caso de Portugal, a sua sociedade estava ainda bem longe de ter
adquirido as astúcias da arte mercantil, e os seus navegantes e
colonizadores em tudo revelam a sua inexperiência neste novo metier,
em comparação com outros povos mais avançados no mercantilismo
— os holandeses, por exemplo. Encontramos uma demonstração cabal
da inexperiência mercantil e do comportamento medieval dos
portugueses do começo do século XVI na própria ocupação e
colonização por parte deste povo das terras do Nordeste do Brasil. O
achado ocasional dessas terras pusera Portugal em situação difícil.
Com apenas 1 milhão de habitantes e todas as esperanças do país
voltadas para as vantajosas conquistas ultramarinas na Ásia e África,
pouco sobrava a Portugal em gente e em recursos materiais para tentar
a colonização de um território imenso, habitado por tribos nômades
ainda na idade da pedra. Mas, em pouco tempo, a lenda de fabulosas
riquezas ocultas na nova terra acende o apetite de certos povos
europeus que se apresentam para disputar a posse desses tesouros, e
Portugal se decide a fazer um grande esforço para ocupá-la e defendê-
la a qualquer preço.
Foi assim, premido por uma série de fatores econômico-sociais(6)
ligados às condições internas da metrópole e à necessidade urgente de
melhor defender e explorar a colônia, que D. João III de Portugal
resolveu, em 1534, transformar os raros núcleos de população já
existentes na costa brasileira em grandes capitanias de tipo feudal. A
Duarte Coelho, velho soldado da índia, foi doada a Capitania de
Pernambuco, numa extensão de sessenta léguas de costa,
compreendida entre os rios Iguarassu e São Francisco. Chegando aos
seus novos domínios para nele implantar uma economia agrária
estabelecida à base da cana-de-açúcar, Duarte Coelho tratou de fundar
a capital do seu feudo, erguendo o burgo de Olinda no topo de uma
colina, distante vários quilômetros do porto, por onde deveriam ser
exportados os produtos da terra. A simples localização desta capital do
novo reino mostra bem, como já acentuava Oliveira Lima, a
incapacidade comercial dos portugueses, o seu total divórcio do
espírito mercantilista. Como fazer comércio marítimo, voltando as
costas para o porto, situado na desembocadura dos dois rios, o
Capibaribe e o Beberibe, em cujos vales férteis a cana já começara a
medrar, por onde desde 1526 eram exportadas as caixas de açúcar para
Lisboa e onde se concentraria nos dois séculos a vir o monopólio
quase que exclusivo da produção de açúcar no mundo? Subindo as
encostas de Olinda e lá plantando o seu burgo medieval, os
portugueses revelaram de maneira cabal que, apesar de cobiçosos de
riquezas, estavam bem longe de possuir aquele agudo sentido
mercantilista de caráter tipicamente burguês, de signo pós-
renascentista e pós-luterano que possuíam os holandeses, por
exemplo, e que por isto iriam em breve se apossar do comércio do
mundo. E foram estes mesmos holandeses que, atraídos pelo cheiro do
açúcar, aportavam nesse mesmo Nordeste no começo do século
seguinte, estabelecendo uma colônia e fundando para sua capital a
cidade do Recife, situada numa ilha ao lado do porto e ligada por
pontes ao próprio porto. Sem a aventura da ocupação holandesa no
Brasil, é possível que nunca houvesse sido fundada a cidade do
Recife, que é hoje a capital do Nordeste. Este fato histórico marca
bem a distância sócio-econômica que separava, na época, os
portugueses feudais, dos holandeses mercantilistas.
Outra prova da pouca habilidade dos portugueses no tráfico
comercial é o fato de que, tendo-se lançado na aventura das índias
para eliminar do comércio dos seus produtos o intermediário árabe,
que os vendia aos países europeus, principalmente ao grande empório
mercantil de Veneza, em breve estavam eles, portugueses,
substituindo os árabes e funcionando apenas como intermediários,
entregando os produtos a outros povos europeus que auferiam lucros
bem mais polpudos com a simples distribuição das mercadorias nos
centros consumidores. Mantendo o monopólio da refinação do açúcar,
Veneza, que recebia o produto bruto de Portugal, se reservava um
terço dos lucros apenas para refiná-lo.
Não resta sombra de dúvida que o Portugal desta época continuava
a viver dentro da ordem feudal. É Oliveira Lima quem afirma com
ênfase que toda tentativa de mercantilismo por parte dos portugueses
se evidencia tardia e obtusa, em comparação com o agudo sentimento
comercial de outros povos, principalmente o holandês: "Em matéria de
comércio nunca se chegou na Península a um sistema vantajoso.
Lisboa foi, no século XVI quando de sua maior prosperidade, um
mero entreposto por onde transitavam, a caminho de Flandres, as
cargas ultramarinas. O Reino não soube criar relações mercantis com
outras nações da Europa".
É evidente que o feudalismo português começava a dar sinais de
decadência e de profunda desagregação social.
O regime feudal desagregava-se, o poder absoluto da aristocracia
agrária entrava em decomposição e os senhores de terras que
escapavam à ruína buscavam nas atividades urbanas novos caminhos
para a conservação de seus privilégios. A aristocracia rural trocava os
poderes da nobreza pelos do dinheiro.
Mas não ,se conclua daí que, nas novas terras da América,
Portugal prolongaria ininterruptamente sua história. Nesse erro
incorreram muitos historiadores daqui e d'além-mar. Transplantando
para o Brasil o quadro de fenômenos da sociedade portuguesa, muitos
historiadores foram levados a admitir o mesmo desenvolvimento aqui,
sem qualquer interrupção no seu curso. A colonização, como fruto de
expansão do comércio marítimo e da desagregação do regime feudal,
deveria, de acordo com esse ponto de vista incorreto, seguir no Brasil
os moldes da nova sociedade que germinava na metrópole. Nesse
caso, nas relações sociais implantadas no Brasil, haveriam de
predominar, não os traços da economia feudal decadente, mas os da
economia mercantil em formação; e, por conseguinte, a exploração
latifundiária, aqui, não teria as características fundamentais do
feudalismo, mas as do capitalismo.
Percebe-se o conteúdo apologético dessa concepção errônea, pois
com ela se admite que o sistema colonial, ao invés de transportar para
o território conquistado os elementos regressivos do país dominante,
como de fato aconteceu, abandonaria à sua sorte esses elementos,
selecionaria os fatores novos determinantes da evolução social e deles
se serviria para fundar, onde quer que fosse, sociedades de um tipo
mais avançado que a metropolitana(7).
Ao contrário desse imaginoso, quadro, incorporado ao fabulário do
colonialismo, a História nos mostra, não só em relação à colonização
portuguesa como no que se refere a todas as outras, que as metrópoles
sempre exportam para as colônias, processos econômicos e
instituições políticas que procurem assegurar a perpetuação de seu
domínio.
Por isso, sempre que a empresa colonial precisa utilizar processos
econômicos mais adiantados, ela recorre, como contrapartida
obrigatória, a instituições políticas e jurídicas muito mais atrasadas e
opressivas. Desse modo, quando os instrumentos de coação
econômica se mostram incapazes de atender aos objetivos
preestabelecidos, o sistema de coação extra-econômico é acionado
com o máximo rigor e levado às últimas conseqüências.
O exemplo brasileiro ilustra e confirma esse imperativo histórico.
A despeito do importante papel desempenhado pelo capital comercial
na colonização do nosso país, ele não pôde desfrutar aqui a mesma
posição influente que começava a assumir na metrópole e não
conseguiu impor à sociedade colonial as características fundamentais
da economia mercantil, tendo que submeter-se e amoldar--se à
estrutura tipicamente nobiliárquica e ao poder feudal instituídos na
América Portuguesa.
Por conseguinte, o processo evolutivo em curso na sociedade lusa,
não veio continuar-se no Brasil-Colônia, onde o regime econômico
instaurado significou um recuo em relação ao seu ponto de partida na
metrópole. Para que assim acontecesse, a classe senhorial, despojada
ali de seus recursos materiais, empenhou-se a fundo na tarefa de fazer
girar em sentido inverso a roda da História, embalada pelo sonho de
ver reconstituído o seu passado.
A grande ventura, para os fidalgos sem fortuna, seria reviver aqui
os tempos áureos do feudalismo clássico, reintegrar-se no domínio
absoluto de latifúndios intermináveis como nunca houvera, com
vassalos e servos a produzirem, com suas mãos e seus próprios
instrumentos de trabalho, tudo o que ao senhor proporcionasse riqueza
e poderio.
Cedo se desvaneceriam as esperanças nesta reconstituição integral
das instituições já caducas na sociedade portuguesa. A propriedade da
terra era, ainda nesse tempo, um cabedal de nobreza, e a participação
da Ordem de Cristo nos frutos da exploração vinha acrescentar aos
dons nobiliárquicos a origem mística do direito dominial.
Isso, porém, não bastaria, como não bastou, para que a empresa
colonial produzisse os rendimentos que dela era lícito esperar. Daí o
fracasso das primeiras tentativas de colonização, o qual poderia muito
bem explicar-se pela impossibilidade de uma pura e simples
transposição para o Novo Mundo de todos os componentes da
estrutura reprodutiva da economia medieval.
Onde não havia o servo da gleba a produzir renda com seus braços,
seus animais e seus instrumentos de trabalho, onde a mão-de-obra
nativa se mostrava cada vez mais rebelde e reagia violenta ou
passivamente contra o cativeiro, a exploração agrária exigiria outros
recursos de que a nobreza não dispunha. Naturalmente, em um mundo
já invadido pelo poder da moeda, o domínio da terra, nobre, místico,
absoluto como fosse, não se transformaria em fonte de riqueza sem
um complemento indispensável: o capital-dinheiro.
Os "homens de qualidade", provindos da fidalguia peninsular
endividada ou arruinada, não estavam preparados para colher,
sozinhos, os pomos de ouro que deveriam nascer da terra. "Esses
fidalgos — escreveu Oliveira Viana — vêm de uma sociedade ainda
modelada pela organização feudal: só o serviço das armas é nobre, só
ele honra e classifica. Falta-lhes aquele sentimento de dignidade do
labor agrícola, tão profundo entre os romanos do tempo de
"Cincinnatus"."
Mas o que mais lhes faltava, realmente, era dinheiro.
Por todas essas razões, a empresa colonial teve de realizar-se
mediante a associação de fidalgos sem fortuna e plebeus enriquecidos
pela mercancia e pela usura, mas sob uma condição: o predomínio dos
"homens de qualidade" sobre os "homens de posse".
Recordemo-nos de que na Península, Portugal inclusive, mais que
noutra parte, as formas políticas, os costumes, as idéias religiosas,
todas as forças ideológicas do medievalismo estavam profundamente
arraigadas. As aventuras marítimas, principal fonte de acumulação
primitiva do capital comercial, tinham possibilitado a formação de
uma burguesia já bem nutrida de recursos monetários, à qual não se
havia, contudo, transferido parcela substancial e decisiva do poder do
Estado.
Diogo de Gouveia, que tinha inspirado e formulado os planos da
colonização portuguesa da América, não era, positivamente, um
ideólogo da burguesia, mas da nobreza. "A verdade era dar, Senhor, as
terras a vossos vassalos" — aconselhara ele em sua carta datada de
1532 a El-Rei D. João III.
A posição dominante dos "homens de qualidade" na empresa
colonial é um fato bastante explícito em nossa história. Prova-o, sem
deixar lugar a dúvidas, o espírito de casta que presidiu a divisão do
vasto território conquistado ao gentio, particularmente daqueles
quinhões maiores e melhores.
Desde o instante em que a metrópole se decidira a colocar nas
mãos da fidalguia os imensos latifúndios que surgiram dessa partilha,
tornar-se-ia evidente o seu propósito de lançar, no Novo Mundo, os
fundamentos econômicos da ordem de produção feudal. E não poderia
deixar de assim ter procedido, porque o modelo original, de onde
necessariamente teria de partir — a ordem de produção peninsular no
século da Descoberta — continuava a ser, por suas características
essenciais, a ordem de produção feudal.
É certo que o feudalismo do Portugal seiscentista não guardava
mais o mesmo grau de pureza dos primeiros tempos: já havia passado
do estágio da economia natural para o da economia mercantil. Mas
nenhuma mudança na estrutura social se dera em Portugal, que
pudesse justificar sua assemelhação a outro regime historicamente
mais avançado.
Eis porque erraram redondamente alguns historiadores e
economistas notáveis ao classificarem como capitalista o regime
econômico colonial implantado no continente americano.
A extraordinária expansão do comércio marítimo e, como sua
decorrência, o enorme incremento da economia mercantil no seio do
Portugal feudal do século XVI, levaram Roberto Simonsen a perfilhar
tão grave equívoco e a introduzir na historiografia brasileira a tese que
influenciou numerosos setores de nossa intelectualidade:
"Na verdade — afirmou Roberto Simonsen — Portugal, em 1500,
já não vivia sob o regime feudal. D. Manuel, com sua política de
navegação, com seu regime de monopólios internacionais, com suas
manobras econômicas de desbancamento do comércio de especiarias
de Veneza, é um autêntico capitalista"(8).
E partiu daí para as seguintes conclusões:
"Não nos parece razoável que a quase totalidade dos historiadores
pátrios acentuem, em demasia, o aspecto feudal do sistema das
donatárias, chegando alguns a classificá-lo como um retrocesso em
relação às conquistas políticas da época. Portugal, desejando ocupar e
colonizar a nova terra e não tendo recursos para fazê-lo à custa do
erário real, outorgou para isso grandes concessões a nobres e fidalgos,
alguns deles ricos proprietários, e outros já experimentados nas
expedições das índias. Sob o ponto de vista econômico, que não deixa
de ser básico em qualquer empreendimento colonial, não me parece
razoável a assemelhação desse sistema ao feudalismo".
Como se vê, Simonsen não se contentara em negar o caráter feudal
do regime econômico implantado no Brasil--Colônia; indo mais além,
deu por extinto, já no começo do século XVI, o feudalismo em
Portugal.
No entanto, os argumentos aduzidos pelo eminente historiador são
insuficientes para a comprovação de sua tese. A imagem por ele
tracejada do Portugal seiscentista revela uma sociedade onde a
produção comercial havia alcançado elevado nível de evolução, onde
as trocas monetárias tinham atingido apreciável desenvolvimento e já
existia o capital-dinheiro, condições essas, peculiares, em proporções
crescentes, a toda a longa história vivida pela economia mercantil,
desde os primórdios da civilização.
Mas não bastaria a presença de tais categorias econômicas, por
maiores que fossem sua amplitude e significação na época, para
caracterizar como capitalista o regime econômico de Portugal. Se
tomássemos como ponto de referência, para definir e classificar os
regimes econômicos, os fenômenos inerentes à circulação,
acabaríamos por aceitar a absurda igualdade entre todos os sistemas
sociais por que passou a Humanidade, a contar do momento em que
abandonou a vida primitiva. Não teríamos, pois, como estabelecer
distinção entre os períodos correspondentes à escravidão, ao
feudalismo e ao capitalismo, de vez que, em todos esses regimes, com
maior ou menor grau, o sistema mercantil está presente.
O básico num regime econômico é o sistema de produção, isto é, o
modo por que, numa determinada formação social, os homens obtêm
os meios de existência. Assim, o modo por que os homens produzem
os bens materiais de que necessitam para viver é que determina todos
os demais processos econômicos e sociais, inclusive os processos de
distribuição ou circulação desses bens. - No Portugal seiscentista, a
principal fonte de produção de bens materiais era a agricultura,
embora, como talvez sucedesse, fosse já superior à dos senhores de
terras a parcela da riqueza acumulada nas aventuras marítimas pela
burguesia comercial, que emergia da sociedade como uma classe de
forte potencial econômico.
Essa classe repartia com a realeza o poder do Estado, havia já mais
de um século, mas não ocupava ali uma posição dominante e não
dispunha de forças suficientes para destruir a ordem de produção
vigente, que continuava a ser a ordem feudal.
A ordem feudal vigente na sociedade portuguesa de 1500 tinha sua
base interna no monopólio territorial. E como a terra era, então,
indiscutivelmente, o principal e mais importante dos meios de
produção, a classe que possuía sobre ela o domínio absoluto estava
habilitada a sobrepor às demais classes o seu poderio, por todos os
meios de coação econômica, e, notadamente, de coação extra-
econômica.
Quando a metrópole decidiu lançar-se na empresa colonial, não lhe
restava outra alternativa política senão a de transplantar para a
América Portuguesa o modo de produção dominante no além-mar. E o
fez cônscia de que a garantia do estabelecimento da ordem feudal
deveria repousar no monopólio dos meios de produção fundamentais,
isto é, no monopólio da terra. Uma vez assegurado o domínio absoluto
de imensos latifúndios nas mãos dos "homens de qualidade" da
confiança de El-Rei, todos os demais elementos da produção seriam a
ele subordinados.
E assim aconteceu. O monopólio feudal da terra impôs soluções
específicas para os problemas que teve de vencer, sem contudo perder
as características essenciais da formação social que tomara por
modelo.
O feudalismo clássico havia dado um passo à frente sobre o regime
econômico que o antecedeu, com a transformação do escravo em
servo da gleba e obteve deste, à custa do estímulo proporcionado por
sua condição mais livre, uma produtividade no trabalho bastante
superior.
Na impossibilidade de contar com o servo da gleba, o feudalismo
colonial teve de regredir ao escravismo, compensando a resultante
perda do nível de produtividade, em parte com a extraordinária
fertilidade das terras virgens do Novo Mundo e, em parte, com o
desumano rigor aplicado no tratamento de sua mão-de-obra. Teve
ainda, de dar outros passos atrás, em relação ao estádio mercantil que
correspondia ao seu modelo, restabelecendo muitos dos aspectos da
economia natural. Mas, em compensação, pôde desenvolver o caráter
comercial de sua produção, não para o mercado interno, que não
existia, mas para o mercado mundial. E, com o açúcar, vinculou-se
profundamente à manufatura.
Nenhuma dessas alterações, a que precisou amoldar--se o
latifúndio colonial, foi bastante para diluir o seu caráter feudal. Muito
freqüentemente as formas escravistas entrelaçaram-se com as formas
servis de produção: o escravo provia o seu sustento dedicando certa
parte do tempo à pesca ou à lavoura em pequenos tratos de terra que
lhe eram reservados. Desse modo, o regime de trabalho escravo se
misturava com o regime medieval da renda-trabalho e da renda-
produto, além de outras variantes da prestação pessoal de trabalho.
Não faltava aos senhorios coloniais a massa de moradores "livres" ou
de agregados, utilizados nos serviços domésticos ou em atividades
acessórias desligadas da produção, os quais coloriam o pano de fundo
do cenário feudal.
Fruto dessa estrutura, o sistema de plantação, que vários
economistas e historiadores pretenderam apontar como uma unidade
econômica do tipo capitalista, constituiu, de fato, e sem qualquer
dúvida, a expressão consumada do feudalismo colonial.
No sistema de plantação, como aliás no conjunto da economia pré-
capitalista do Brasil-Colônia, o elemento fundamental, a característica
dominante, à qual estavam subordinadas todas as demais relações
econômicas, é a propriedade agrária feudal, sendo a terra o principal e
mais importante dos meios de produção.
O fato de se destinarem ao mercado exterior, sob o controle da
metrópole, os produtos obtidos através desse sistema, só contribui
para juntar àquele um novo elemento: a condição colonial.
Deter-se nessa controvérsia em busca de um ponto de vista
firmado sobre a classificação do regime econômico colonial pode
parecer, aos menos avisados, uma inútil perda de tempo e um esforço
desnecessário. Entretanto, não se trata de um debate meramente
acadêmico e desligado de qualquer sentido prático. Nele estão
envolvidas questões de enorme significação para o desenvolvimento
econômico e social do país, bem como interesses políticos da máxima
relevância, como iremos ver.
A simples eliminação em nossa história da essência feudal do
sistema latifundiário brasileiro e a conseqüente suposição de que
iniciamos nossa vida econômica sob o signo da formação social
capitalista significa, nada mais nada menos, do que considerar como
supérflua qualquer mudança ou reforma profunda de nossa estrutura
agrária.
Supondo-se inicialmente capitalista o regime econômico
implantado no Brasil-Colônia, estaria implícita uma solução
inteiramente diversa daquela preconizada pelos partidários da reforma
agrária. Se a estrutura agrária brasileira sempre teve uma
"configuração capitalista", por que revolucioná-la, por que reformá-la
para promover o desenvolvimento capitalista do país?
Partindo desse ponto de vista, evidentemente falso, concebe-se
uma estratégia política não-reformista ou não--revolucionária, uma
estratégia evolucionista: o desenvolvimento gradual, sem reformas.
De acordo com ele, acrescentando-se à atual estrutura agrária alguns
ingredientes — mais adubação, mais mecanização, numa palavra:
mais capital — alcançaríamos a fórmula milagrosa para acelerar o
progresso agrícola em geral, sem precisarmos apelar para qualquer
reforma de base.
A teoria do capitalismo colonial não é, assim, um achado histórico
tão inocente quanto parece. É uma teoria conservadora, reacionária
que, bem arrumada, se encaixa perfeitamente nos esquemas políticos
mais retrógrados.
A negação ou mesmo a subestimação da substância feudal do
latifundismo brasileiro retira da reforma agrária sua vinculação
histórica, seu conteúdo dinâmico e revolucionário.
Esse conteúdo dinâmico e revolucionário, na presente etapa da
vida brasileira, expressa-se pelo objetivo principal do movimento pela
reforma agrária, que é o de extirpar e destruir, em nossa agricultura, as
relações de produção do tipo feudal e não as relações de produção do
tipo capitalista.
Por aí se vê que, ao admitir-se que a estrutura agrária existente em
nosso país foi, desde os mais remotos tempos, e continua sendo,
capitalista, está-se admitindo, por coerência, a inoportunidade e a
desnecessidade de uma reforma revolucionária, de uma mudança
democrática dessa mesma estrutura. Que restaria por fazer, se se
tratasse de tornar mais capitalista nossa estrutura agrária já capitalista?
Deixá-la como está, inalterada, e apenas injetar nela mais dinheiro,
mais capital?
A experiência brasileira encarregou-se de demonstrar que têm sido
infrutíferas as tentativas de salvar nossa agricultura latifundiária da
crise crônica em que mergulha há cerca de um século, à custa de
transfusões de recursos, privilégios e favores, de "valorizações"
artificiais, da "fixação do homem à terra", de "reajustamentos
econômicos" e outras panacéias do gênero.
Agora, já penetrou na opinião nacional a consciência de que há, no
campo, relações de produção caducas, que precisam ser substituídas
por novas relações de produção, sem o que as forças produtivas de
nossa agricultura não estarão desimpedidas de desenvolver-se. Quais
são essas relações de produções caducas? Essas velhas relações de
produção que travam o desenvolvimento de nossa agricultura não são
de tipo capitalista, mas heranças do feudalismo colonial. A primeira e
mais importante dessas relações de produção, cuja destruição se
impõe, é o monopólio feudal e colonial da terra, o latifundismo feudo-
colonial.
O monopólio feudal e colonial é a forma particular, específica, por
que assumiu no Brasil a propriedade do principal e mais importante
dos meios de produção na agricultura, isto é, a propriedade da terra. O
fato de ser a terra o meio de produção fundamental na agricultura
indica um estágio inferior da produção agrícola, peculiar às condições
históricas pré-capitalistas. À medida que o capitalismo penetra na
agricultura, vão-se desenvolvendo e aumentando sua produção no
conjunto os demais meios de produção, isto é, os meios mecânicos de
trabalho, as máquinas ou os instrumentos de produção, as construções,
os elementos técnicos e científicos, etc, de tal maneira que, numa
agricultura plenamente capitalista, esses passam a ser (e não mais a
terra) os principais meios de produção. Quanto à agricultura brasileira,
é fato comprovado pelos dados estatísticos que continua a caber à
terra aquele papel predominante no conjunto dos meios de produção.
Por isso, na situação objetiva de nossa agricultura, dominar a terra,
açambarcá-la, monopolizá-la, significa ter, praticamente, o domínio
absoluto da totalidade dos meios de produção agrícola.
Acresce que o monopólio da terra, nas condições pré-capitalistas
de nossa agricultura, assegura à classe latifundiária uma força maior
do que o poderio econômico, uma outra espécie de poder que
freqüentemente supera e sobrevive àquele — o poder extra-
econômico.
O poder extra-econômico é uma característica e uma sobrevivência
do feudalismo. Ele se exerce, ainda nos nossos dias, através do
"governo" das coisas e das pessoas dentro e em torno dos latifúndios.
Aquilo que Antonil recriminava no século XVIII: "Quem chegou a ter
o título de senhor, parece que em todos quer dependência de servos"
(9), e Koster observava no século XIX: "O grande poder do agricultor,
não somente nos seus escravos mas sua autoridade sobre as pessoas
livres das classes pobres" (10), revive no século XX, sob a forma do
"coronelismo" de antes de 1930, e, com algumas modificações no
estilo, permanece até hoje.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - LÉRY, JEAN DE, Viagem à Terra do Brasil, cd. de 1941, Rio de Janeiro.
2 — MEREA, PAULO, História da Colonização Portuguesa, vol. III, Lisboa.
3 - AZEVEDO, J. LÚCIO DE, Épocas de Portugal Econômico, Lisboa, 1947.
4 - SANCHEZ ALBORNOZ, CLÁUDIO, La Edad Media y Ia Empresa de
América, La Plata, 1934..5 - NORTHCOTE PARKINSON, C., East and West,
Londres, 1963.
6 — OLIVEIRA LIMA, Pernambuco e seu Desenvolvimento histórico, Leipzig,
1895.
7 - GUIMARÃES, A. PASSOS, Quatro Séculos de Latifúndio, S. Paulo, 1963.
8 - SIMONSEN, ROBERTO, História Econômica do Brasil, S. Paulo,
1937.
9 — ANTONIL, A. J., Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas,
ed. do 1923. 10 - KOSTER, HENRY, Traveis in Brazil, Londres, 1817.
CAPITULO IV

O BRASIL COLONIAL:

A AUSÊNCIA DO POVO OU A LUTA CONTRA O


PROGRESSO

DIVIDIAM-SE AS simpatias da metrópole portuguesa entre os


"homens de qualidade" e os "homens de posse", estes os mais
desejados quando se tratava de fixar na agricultura os grandes
interesses da exploração colonial.
Na luta entre a decadente classe senhorial portuguesa, detentora de
grandes poderes feudais, apoiada pela Igreja, herdeira das tradições
mais vivas do medievalismo, e a burguesia nascente que se ligava por
muitos interesses comuns à realeza, nesse conflito que foi a
característica dominante do século XVI, é possível encontrar-se a
explicação de muitos dos aspectos ainda obscuros de nossa história.
Eram interesses contraditórios os daquelas classes e por isso as
concessões da realeza aos nobres feudais (em muitos casos sob o
patrocínio da Igreja) e, vice-versa, as vitórias dos comerciantes sobre
os interesses da nobreza, apareciam no cenário da colônia como outras
tantas contradições não muito fáceis de explicar, se se toma uma
sociedade ou uma nação como um todo indivisível.
Se no fim do século XV o feudalismo ainda imperava quase que
despòticamente, em meados do século seguinte tomava corpo uma
classe mercantil cosmopolita, rica e influente, com tendências e
interesses opostos aos dos barões feudais.
Daí por diante, tendiam a agravar-se os choques de interesses entre
um mundo decadente — o do feudalismo — e o que nesse mundo se
gerava, como fruto de suas entranhas — o mundo da burguesia.
Haveria de corresponder aos interesses dos mercadores utilizar as
colônias para fins exclusivamente de comércio, tendo por base a
riqueza extrativa, a preia de índios, o tráfico de escravos. Ao
contrário, os cavaleiros feudais miravam as colônias, vendo-lhes
principalmente o colosso territorial.
A legislação de sesmarias representava, em Portugal, uma tentativa
para salvar a agricultura decadente, para evitar o abandono dos
campos, que se acentuava à medida que se decompunha a economia
feudal, na razão do crescimento das atividades dos centros urbanos.
Era, em sua interferência na propriedade agrária, uma tímida restrição
ao Direito Feudal, embora, bem se possa avaliar, muito difícil de ser
praticada.
Devia ser bastante grave, no Portugal seiscentista, a situação da
agricultura, a miséria e o despovoamento das zonas rurais, para
justificar as medidas que com tanta freqüência aparecem nos forais e
nas ordenações da época. As leis cominavam penas aos proprietários
que não mantivessem suas terras cultivadas. Advertidos, se não
voltassem a produzir dentro de um certo tempo (seis meses, um ano
ou dois anos), perderiam por completo o domínio sobre suas terras, as
quais passariam a pertencer a quem as cultivasse.
Eis porque, às voltas com tais problemas, sem ter meios de
resolvê-los no limitado espaço da Península, não poderia interessar-se
a metrópole pela granjearia das novas terras cuja grandeza só enchia
de fascinação os olhos dos fidalgos. A nova classe dos ricos já era, a
esse tempo, bastante esperta para não considerar fácil negócio a
aventurosa agricultura no além-mar. É quando surge um produto
milagroso — o açúcar — capaz de modificar os rumos da História.
Os nossos ricos massapês provavam ser terras de primeira ordem
para as plantações de sua matéria-prima: a cana. Quanto à técnica, a
Ilha da Madeira fornecê-la-ia. Indústria das mais rendosas, em plena
revolução dos preços, havia que subverter um princípio sagrado da
colonização, instalando-se suas fábricas em território colonial e não
metropolitano como as demais manufaturas. É que sua matéria prima
não fora feita para as travessias distantes. Tinha de ser industrializada
no próprio sítio onde se plantasse, sob pena de ressecar e se perder. A
experiência já havia indicado que, se receios houvera da parte da
metrópole, estes se dissipariam. A própria geminação da agricultura
com a fábrica se fizera e continuaria a se fazer com a submissão da
fábrica à agricultura, ao domínio absoluto e nobiliárquico da terra.
Estando a propriedade nas mãos da fidalguia lusa, nada havia que
recear quanto às tendências emancipadoras da indústrias.
Caberia ao açúcar uma função excepcionalmente importante. O
seu modo de produção permitiria a Portugal materializar, numa
admirável síntese, a solução dos seus problemas fundamentais, do seu
dualismo econômico. Viria o açúcar possibilitar a ocupação da terra
em moldes inteiramente ao gosto feudal da época. Por outro lado, a
certeza de grandes lucros bastaria para atrair a classe dos mercadores,
cujos representantes seriam intermediários e banqueiros dos nobres na
empresa do açúcar.
O afluxo dos metais preciosos aumentava na Europa. Expandiam-
se o comércio e os mercados, os preços continuavam a elevar-se e o
consumo de todos os artigos, inclusive do açúcar, crescia
progressivamente. Os navegadores portugueses viriam, igualmente,
colher benefícios com a produção do produto milagroso, que chegou a
ser, durante quase um século, o gênero predominante no comércio
internacional.
Foi o modo de produção do açúcar aqui implantado que
configurou nos primeiros tempos da colonização o regime de terras e,
demais, toda a sociedade que então sobre ele ,se erguia. Modo de
produção talvez sui-generis na história, pois que reunia elementos de
três regimes econômicos: o regime feudal da propriedade, o regime
escravista do trabalho, o regime capitalista do comércio. A sesmaria
encontrara no açúcar o seu destino econômico.
Coube a Martim Afonso de Souza, a quem a metrópole conferira
amplos poderes, lançar as bases, na colônia ainda desprezada, de uma
nova política econômica que se apoiaria sòlidamente em duas
instituições — a sesmaria e o engenho — as quais constituíram os
pilares da antiga sociedade colonial.
Desse modo, passaria a Colônia de Vera Cruz a uma etapa mais
adiantada de sua exploração. À fase puramente extrativa, em que não
haviam medrado satisfatoriamente umas poucas feitorias esparsas, se
sucederia uma fase de exploração melhor organizada, tendo por base a
utilização extensiva da terra e o imediato aproveitamento de sua
matéria-prima fundamental: a cana-de-açúcar.
A substituição da riqueza extrativa desorganizada, sobre a qual não
se poderia exercer um mínimo de controle fiscal e administrativo, pela
produção organizada, tendo por centro a lavoura açucareira e seu
aproveitamento industrial, caracterizou as origens do sistema agrário
cujas marcas profundas até hoje permanecem nítidas em nossa
história.
Simultaneamente, acompanhando os primeiros passos da formação
da propriedade, germinavam as sementes do Estado: "Quando D. João
III dividiu sistematicamente o nosso território em latifúndios
denominados Capitanias, já existiam aqui capitães-mores nomeados
para as Capitanias do Brasil. O que se fez então foi demarcar o solo,
atribuir--lhes e declarar-lhes os respectivos direitos e deveres e os
direitos, foros, tributos e cousas que tinham os colonos de pagar ao
Rei e aos Donatários, passando-se a cada um deles a sua carta de
doação, ou donatária, com a soma dos poderes forais, que eram uma
espécie de contrato em virtude do qual os sesmeiros ou colonos se
constituíam perpétuos tributários da Coroa, ou dos seus donatários ou
capitães-mores. A terra dividida em senhorios, dentro do senhorio do
Estado, eis o esboço geral do sistema administrativo na primeira fase
de nossa história (1).
Estruturavam-se, assim, tanto a propriedade como o Estado, sob os
mesmos moldes e princípios que regiam os domínios feudais: grandes
extensões territoriais entregues a senhores dotados de poderes
absolutos sobre as pessoas e as coisas.
Dentro desse sistema regulava-se a hierarquia, tanto pelo
isolamento das distâncias geográficas, quanto pela força das armas. E
como a extensão das terras, da mesma maneira que a quantidade das
armas, existiam muitas vezes em função do poder do dinheiro, não é
exclusivamente o sangue, mas, daí por diante, a posse da terra e da
riqueza em geral que se torna o brasão da aristocracia rural.
As duas instituições fundamentais, a sesmaria e o engenho,
transformaram-se numa unidade econômica, numa mesma unidade
produtora. A ela a Coroa dispensa todas as suas atenções e não são
raras as provas de que o sistema aplicado ao Brasil, já experimentado
com êxito em outras colônias portuguesas, para aqui se transplantava
deliberadamente, em virtude de um plano preestabelecido.
Nada há de acidental, por conseguinte, no fato de se iniciarem as
atividades econômicas em nossa terra, sob o signo da grande
propriedade, da grande lavoura. A intenção da metrópole era realizar o
que efetivamente foi cumprido : pôr nas mãos da fidalguia o
monopólio de grandes tratos de terreno, enfeudá-los segundo as suas
mais puras tradições jurídicas e, ao lado disso, associar na empresa os
"homens grossos", os mais diletos filhos da classe burguesa,
enriquecida na mercancia.
Também não seria obra do acaso o ter-se enfeixado nas mãos de
Martim Afonso poderes para doar terras e construir engenhos, missão
dúplice que o Alcaide-Mor da Casa de Bragança soube muito bem
cumprir.
Tão prático se mostrou o Alcaide-Mor que, segundo se conta,
tratou de associar-se a banqueiros flamengos e alemães para a
instalação de boa parte dos engenhos aqui montados.
Os empreendimentos de Martim Afonso, depois da ausência deste,
encontraram continuador à altura no donatário de Pernambuco, Duarte
Coelho, cujos esforços nos são revelados através de sua
correspondência ao Rei de Portugal: "Dey ordem de se fazerem
enjenhos daçuquares que de lá de Portugal trouxe contratados" e "cedo
acabaremos hum enjenho mui grande e perfeito e amdo ordenando de
começar outros" — dizia em carta de 27 de abril de 1542. Também em
carta de 14 de abril de 1549, Duarte Coelho se referia a um engenho
"de minha lavra", empenhando-se em fundar outros "que he cousa
reall e que muito aumenta e acrescenta ho bem da terra"(2).
Eram passados já 15 anos desde que Martim Afonso recebera as
suas três cartas regias e a instalação de engenhos continuava a ser a
principal preocupação dos colonizadores, como se vê dos termos dessa
mesma missiva de Duarte Coelho, datada de 1549: "entre todos os
moradores e povoadores huns fazem enjenho daçuquer porque são
poderosos para ysso, outros canaveaes e outros algodoaes e outros
mantymentos que he a principall e mais necessarya cousa pera a
terra... outros são mestres demjenhos e outros mestres daçuqueres,
carpynteiros ferreiros oleiros e ofycyaes de formas e synos para os
açuqueres ... e os mando buscar a Portugal e a Calyza e as Canareas as
minhas custas e alguns que os que vem a fazer enjenhos trazem" (3).
Outras atividades nasciam, é evidente, mas em torno das sesmarias
transformadas em engenhas. A agricultura dos mantimentos, apesar de
reconhecidamente a cousa principal e mais necessária da terra,
continuaria a ser, pelos séculos afora, subordinada ao poder
absorvente do açúcar, isto é, ao monopólio da terra, o que equivale a
dizer, à monocultura.
Noventa anos mais tarde, em 1639, ao tempo da dominação
holandesa, Van der Dussen, às voltas com a escassez de alimentos,
clamava em seu relatório dirigido à Câmara dos XIX da Companhia
das índias Ocidentais, em Amsterdã: "Assim V. Ex.as devem manter
sempre os armazéns bem providos de víveres sem fazer conta dos
produtos da região — nem dos víveres que os comerciantes ou os
particulares enviam para lá — porque estes são quase todos
consumidos nos engenhos e vendidos pelo interior. De modo que,
quando as misérias surgem e se pensa em obter algo dos comerciantes,
encontra-se tudo vazio, como nos aconteceu nos extremos que
passamos."
Este o quadro que permanecia durante todo o período colonial. A
terra enfeudada açambarcava a energia humana disponível, aplicando-
a exclusivamente a serviço dos senhores daqui e d'além-mar. Obter o
máximo de rendimento em riqueza e tributos era o objetivo da
dominação, pouco se lhe dando atender às prementes necessidades dos
que, desaquinhoados, nada possuíam além de sua força de trabalho.
Não que faltassem leis, de certo impotentes quando se tratava de
contrariar o regime dos senhorios.
A "mesquinha plantação de mandioca" como a chamava, em 1807,
Rodrigues de Brito, "que se dá em toda a qualidade de terra", não
caberia nos "raros e preciosos torrões de massapê, aos quais a natureza
deu privilégio de produzirem muito bom açúcar"(4).
Mas, como não somente os torrões de massapê e sim toda a terra
próxima aos centros de consumo pertencia aos grandes senhores, onde
assentar as culturas de subsistência?
A verdade é que, desde suas origens, a sesmaria e o engenho
erguiam intransponível barreira à cultura dos mantimentos, à pequena
e pouco rendosa agricultura de subsistência.
Elevava-se bem alto, nessa época, o prestígio econômico e também
político dos senhores, a julgar pelo que confessava Duarte Coelho
numa de suas cartas de 1549: — "antes vou contra o povo que contra
os donos dos engenhos."
Acontecimentos da maior importância para a evolução da
economia brasileira assinalam-se porém, a partir da época em que foi
instalado, na Bahia, o governo de Tomé de Sousa.
"Para a Bahia e Pernambuco, nota Felisberto Freire, afluía de
preferência quem queria tirar da terra a renda por meio de escravos e
do agregado. O proprietário territorial que vivia na capital, no gozo da
Corte, tinha quem desbravasse as florestas e amanhasse suas terras. Já
no Rio e em São Paulo e Espírito Santo, principalmente no século
XVI, é o próprio lavrador quem, ao lado do seu escravo, vai fazer o
trabalho agrícola".
Revela o autor da História Territorial do Brasil, o caráter de classe
que presidia as doações de terras desde o primeiro século da
colonização: "As concessões no Norte abrangiam em geral uma maior
extensão territorial do que no Sul. Com exceção feita da donatária do
Visconde de Asseca, em Campos, as sesmarias no Sul não excediam
de três léguas de extensão, quando no Norte havemos de encontrar
concessões de 20, 50 e mais léguas. Basta assinalar as concessões de
Garcia d'Ávila e seus parentes que se estendiam da Bahia até o Piauí,
em uma extensão de 200 léguas"(5).
E quais os motivos que teriam determinado essa tremenda
diferenciação quantitativa e qualitativa nas concessões de sesmarias?
Responde Felisberto Freire: "A causa disto está na desigualdade social
do colono que vinha para o Brasil... Essa diferença de colonização
torna evidente que no Norte o trabalho de povoamento encontrou
óbices e deles o principal eram as extensas concessões que foram
feitas, colocando o membro do povo na posição de ser ou um simples
arrendatário ou colonizar as zonas do sertão, cheias de índios e das
maiores dificuldades, perante as quais escasseavam os recursos do
pobre.
Vem daí o fato de ter surgido primeiramente no Norte, e antes de
findo o século XVI, a renda agrária no seu típico sentido parasitário,
antiprogressista, e com ela uma casta separada da produção, por
conseguinte supérflua e nociva aos interesses da sociedade. "Em geral
os concessionários eram a nobreza da capital da capitania, muitos
deles órgãos e representantes do próprio governo. Aí estão D. Álvaro
da Costa, Tome de Sousa, Miguel de Moura e muitos outros, cujas
sesmarias, pela sua grande extensão territorial, eram verdadeiras
donatárias. Iniciou-se, então, o regime do arrendamento aos pequenos
colonos. Aí está o procurador de D. Álvaro a subdividir a doação por
entre eles, criando-se assim a classe dos agregados agrícolas, que tanto
contribuiu para a prosperidade do agricultor. Foi essa classe
justamente que, entre nós, criou a primeira forma do trabalho livre, na
indústria agrícola, ao lado do trabalho escravo".
O preceito das Ordenações do Reino, estabelecendo que as
doações de sesmarias deveriam ser limitadas à capacidade de
exploração de cada concessionário, de modo que não se "dessem
maiores terras a huma pessoa que as que razoavelmente parecer que
poderão aproveitar", tornara-se prática ineficiente. O Regimento de
Tome de Sousa viera ratificar, e não introduzir, como afirma Cirne
Lima(6), em lei expressa aplicável a toda à colônia, o "espírito
latifundiário" que influenciava as datas de terras.
Para os poderosos de então, que tivessem o prestígio da nobreza ou
do dinheiro, as concessões não encontrariam limites, além dos
confinados pela força das armas nas lutas pela expropriação do
indígena.
Os favores da metrópole inclinavam-se para os pretendentes que
dispusessem de recursos bastantes para iniciar numa parte apenas dos
senhorios uma exploração qualquer, contanto que erigissem
fortificações e defesas para manter os seus domínios através de
regiões incomensuráveis.
A condição social do concessionário era, em última instância, o
fator decisivo no regime das doações. Deve-se exclusivamente a isso,
como já vimos, a desigualdade com que os pretendentes eram
contemplados; aqui e ali, os grandes e pequenos sesmeiros, se é que a
estes, favorecidos pelo mínimo legal de três ou quatro léguas de terras,
cabe aquela denominação. Esclareça-se que as menores sesmarias
eram, contudo, domínios imensos comparados com a capacidade de
utilização de cada colonizador ou de cada família, e longe se acham
daquilo que razoavelmente estava ao alcance de um homem de
medianas posses cultivar.
A desigualdade na distribuição não iria, como nunca foi, ao ponto
de extremar, de um lado, imensos senhorios e, de outro lado, pequenos
lotes, concedidos a pessoas de pequenos recursos, a homens do povo.
Não chegaria a distribuição das sesmarias, por mais desigual e injusta
que fosse, a se afastar dos limites da classe dos senhores. Apenas a
injustiça consistia, para a época, em criar a desigualdade dentro da
classe dominante, composta de nobres e plebeus ricos ou remediados,
os "homens bons" de qualidades ou de posses, únicos, por sua
condição, a merecerem o dignificante título de senhores da terra.
Não nos parece que tenha jamais passado pela mente da Corte
portuguesa colocar a terra nas mãos dos homens do povo, o que
sempre foi desaconselhado pelo espírito da época, além de se ter por
antieconômico, no melhor conceito wakefieldiano corporificado em
doutrina, tempos depois.
Afora os senhores de terra e os homens de posse, nada mais havia
nesta sociedade nascente a ser tomado em consideração. A massa
popular, integrada pelas camadas despossuídas, não participava da
vida do país senão como uma força primitiva de produção. Como uma
força animal de produção, como os bois dos engenhos, passivamente
encangados no carro da economia feudal. Sem vivência, sem sentido
humano, marginalizados da sociedade dominante e sem nenhuma
porta de acesso aos direitos e vantagens que a mesma desfrutava.
As leis, baixadas com o propósito de restringir as proporções dos
territórios concedidos, responderiam apenas, e vagamente, aos
insistentes abusos e às repetidas demandas, nas quais levavam sempre
a melhor os senhores mais poderosos, com prejuízo da marcha da
colonização que se desejava acelerar.
Numa tentativa para pôr termo aos excessos, várias cartas regias se
expediam, regulando o tamanho das sesmarias, entre as quais a de 27
de dezembro de 1695, que recomendava não se concedessem a cada
morador mais de quatro léguas de comprimento e uma de largo, "que é
o que comodamente pode povoar cada morador", segundo consta de
um manuscrito atribuído ao Marquês de Aguiar(7).
Bem se pode imaginar quão dificilmente eram aplicadas as
restrições, que as leis sucessivamente impunham à esterilidade do
sistema imperante, visando, como é natural, ao acréscimo da produção
e, conseqüentemente, dos tributos à metrópole.
Lembremo-nos de que o sistema mercantil, tentando suceder a
economia natural, impulsionava a divisão social do trabalho. Ao
mesmo tempo, os senhores da terra, que se afastavam da produção,
subdividiam a exploração de seus domínios em parcelas, entregando-
as aos lavradores, destes usufruindo a renda agrária.
Desse modo se golpeava o conteúdo por assim dizer metafísico da
legislação sesmeira, a qual impunha, em tese, aos beneficiários, a
obrigação de cultivar, por seus próprios recursos, as terras doadas.
Acreditamos que, particularmente, em virtude do número crescente
dos arrendamentos, viria a Real Ordem de 27 de dezembro de 1695
inaugurar a cobrança de um tributo até então inexistente. Instituía-se,
assim, "além da obrigação de pagar dízimo à Ordem de Cristo, e às
mais costumadas, a de um foro, segundo a grandeza e a bondade da
terra". Não se conhecem, entretanto, provas de que tal determinação
fosse cumprida antes do ano de 1777, quando Manoel da Cunha e
Menezes, governador da Bahia, começou a cobrar foro de cada nova
sesmaria concedida.
O século XVIII assinalaria a estratificação da propriedade
sesmeira. Dentro do crescimento generalizado das atividades
econômicas rurais e urbanas, fortalece-se ainda mais o monopólio da
terra, reforça-se o poder absoluto dos grandes senhores, ao mesmo
tempo em que as camadas menos providas da população se encontram
em dificuldades cada vez maiores. Já havia a Coroa percebido a
necessidade de distinguir em sua desordem administrativa, de que
Caio Prado nos dá uma excelente descrição(8), os dois campos
fundamentais em que se separavam as forças econômicas da colônia.
Consultaria melhor os interesses da metrópole colocar-se ao lado dos
senhores mais poderosos, respeitar-lhes os privilégios antes que
contrariá-los. Nem se compreenderia que fosse de outro modo,
conhecidas as condições econômicas e políticas do Reino. À medida
em que se agravava o processo de desagregação da sociedade
portuguesa, desenvolviam-se, igualmente, no Brasil colonial, os
antagonismos de classe.
De um lado, brasileiros proprietários, que se consideram a nobreza
da terra, educados num regime de vida larga e de grandes gastos,
desprezando o trabalho e a economia; doutro, o mascate, o imigrante
enriquecido, formado numa rude escola de trabalho e parcimônia e
que vem fazer sombra com seu dinheiro à posição social daqueles. A
oposição ao negociante português — mascate, marinheiro, pé-de-
chumbo, o epíteto com que o tratam varia — se generaliza, porque
este, empolgando o comércio da colônia, o grosso como o de retalho,
exclui dele o brasileiro, que vê cercearem-se-lhe os meios de
subsistência. O conflito assim se aprofunda e se estende.
O que se passava no Brasil nada mais seria do que um aspecto
particular da expansão mundial da economia burguesa,
necessariamente oposta aos interesses da economia feudal. Aqui, o
caráter contraditório do desenvolvimento burguês exprimia-se pelas
relações de devedor e credor entre proprietários agrários e
comerciantes, aqueles, já no correr do século XVIII, seriamente
endividados em conseqüência dos efeitos de uma crise que atingia
nossos principais produtos de exportação.
A esse tempo, acentuava-se a avidez tributária da Coroa que aqui
vinha buscar, a todo transe, através do dízimo e dos subsídios de
várias espécies, os meios para cobrir os extraordinários gastos a que
levavam seus desmandos. Mas, nesse empenho de oprimir e espoliar a
colônia, seriam de certo modo poupados os senhores poderosos,
também menos atingidos pela crise, em prejuízo da desabrida corrida
aos tributos.
A aristocracia rural constituía, com poucas exceções, os pontos de
apoio da metrópole em sua política de drásticas restrições ao
progresso das manufaturas, na supressão dos ofícios, na destruição das
fontes de riqueza que pudessem concorrer com a propriedade
burguesa da metrópole. Acentuava-se o monopólio reinol ao mesmo
tempo em que aqui aumentava a concentração dos bens de produção
nas mãos de uma casta privilegiada. E aí está porque o relativo
progresso da economia mercantil, em Portugal, refletia-se no Brasil,
contraditòriamente, pelo fortalecimento da propriedade agrária feudal.
A caça ao ouro, o desenfreado ciclo de mineração que foi a
atividade dominante no terceiro século e que produzira conseqüências
desastrosas para a nossa lavoura, causa de tantos conflitos entre os
interesses econômicos nacionais e os dos colonizadores, não fora
capaz de afetar a marcha avassaladora da grande propriedade
latifundiária. Pelo contrário, enquanto as atividades agrícolas em geral
declinavam, enquanto empobrecia a lavoura e os campos ficavam
abandonados, uma minoria de poderosos resistia às dificuldades e
tirava partido desta anômala situação, enriquecendo ainda mais.
Passadas as ilusões, esgotados os veios auríferos, desbaratadas as
atividades mineradoras, a colônia apresentava um quadro desolador,
um incrível contraste que só o monopólio da terra poderia explicar.
Terras abandonadas por toda a parte e uma enorme massa humana
privada de trabalho em face dos tremendos empecilhos legais que se
antepunham à pequena e média propriedades.
A legislação de Sesmarias, traída em suas origens pelo monopólio
feudal, revelava-se incapaz de servir às finalidades expressamente
declinadas em seus textos: a disseminação das culturas e o
povoamento da terra.
De acordo com os preceitos que regulavam a concessão de
sesmarias, estas eram concedidas sempre a título precário e sob três
condições: medição, confirmação e cultura. A primeira dessas
condições — a medição — era raramente observada, o que se explica
pelo elevado custo dessa operação, assim como pela escassez de
técnicos capazes de levá-la à prática; quanto às outras duas, e
principalmente à última, não havia como justificar o seu
descumprimento.
As cartas de sesmarias eram dadas com base em informações
imprecisas e às vezes falsas dos pretendentes, sucedendo até que, por
falta das necessárias referências, as mesmas terras se concediam a
duas ou mais pessoas. Isto facilitou enormemente a absorção das
terras de pequenos e indefesos proprietários por poderosos
latifundiários. Tinha assim origem a mais deslavada grilagem (termo
de gíria, para denominar a apropriação indébita de terras) das terras no
Nordeste, de que até agora não nos livramos totalmente, responsável
pelo desencadeamento de terríveis choques armados e lutas de
famílias.
Pelo seu pitoresco e para ilustrar o exposto, vale referir o que se
conta a respeito dos vagos limites de um vasto latifúndio da região.
Em quadro pendurado na parede, o seu proprietário assim definia os
confrontantes de sua fazenda: "Ao norte limitada pelo rio Taquari,
embora longe; ao sul, enxergando a serra; ao nascente por uma lagoa
que às vezes seca; ao poente só Deus é quem sabe".
A exigência de cultivar terras doadas era inerente ao próprio
instituto sesmeiro, que para tal fora criado, pois, como já tivemos
ocasião de dizer, ele representa uma restrição ao direito de
propriedade, ao considerar reversível ao patrimônio público, a terra
que não fosse utilizada.
A partir de 1780, as cartas de sesmaria exigiam que nunca se
dividissem as terras, o que obviamente veio impedir, ou pelo menos
dificultar o parcelamento dos extensos latifúndios. Tal imposição, que
atrasou por muitos anos o aparecimento da pequena propriedade
territorial, atendia às necessidades e aos imperativos da economia
agrícola nordestina, baseada nas lavouras de cana, nos engenhos de
açúcar e na pecuária, atividades estas tradicionalmente famintas de
terras.
Consolidava-se, cada vez mais, o tripé em que se apoiou quase
toda a economia nordestina até o fim do século passado: o latifúndio,
a monocultura e o braço escravo. Nem mesmo foi capaz de abalá-lo a
luta que Maurício de Nassau, durante a ocupação holandesa no
Nordeste do Brasil, moveu contra a monocultura, ao obrigar os
senhores de engenho a cultivar mandioca e ao distribuir terras aos
colonos pobres, garantindo-lhes a compra de toda a produção.
A pequena propriedade, convém notar, não podia medrar na
economia colonial do Nordeste, posto que o trabalho livre de
pequenos lavradores se mostrava incapaz de desbravar uma vasta terra
ainda virgem. Além disso, a grande propriedade em culturas tropicais,
mesma com técnica primitiva, era ainda a mais rendosa.
No Nordeste, havia ainda outras razões poderosas para galvanizar
a grande propriedade. A instalação de um engenho de açúcar —
principal riqueza da colônia —demandava, no mínimo, uns trezentos
mil cruzeiros e de 150 a 200 trabalhadores. Não havia mercado interno
para a pequena lavoura independente, tanto mais quanto as grandes
propriedades rurais produziam quase todo o necessário para o seu
consumo interno. Só as grandes propriedades rurais tinham meios para
defender-se da agressividade dos índios. E, finalmente, a própria
legislação protegia os latifundiários, ao proibir a produção de
aguardente em pequenas engenhocas e de algodão em reduzidas
glebas.
A Resolução de 17 de julho de 1822, extinguindo o regime de
sesmarias no Brasil foi o reconhecimento tácito de uma situação
insustentável, cujas conseqüências poderiam de tal modo agravar-se,
constituindo uma verdadeira ameaça à propriedade latifundiária.
Referimo-nos a um acontecimento da maior significação para a
história do monopólio da terra no Brasil: a ocupação, em escala cada
vez maior, das terras não cultivadas ou devolutas, por grandes
contingentes da população rural.
Foram esses contingentes de posseiros ou intrusos, como
passavam a ser chamados, que apressaram a decadência da instituição
das sesmarias, obrigando as autoridades do Brasil colonial a tomarem
outro caminho para acautelar e defender os privilégios da propriedade
latifundiária.
Com eles surge nova fase da vida agrária brasileira, pois sua luta
por novas formas de apropriação da terra foi que tornou possível, mais
tarde, o desenvolvimento de dois novos tipos menores de propriedade
rural: a propriedade capitalista e a propriedade camponesa. Inicia-se,
com a pecuária, um período em que a sesmaria gera um novo tipo de
domínio territorial: a fazenda.
As primeiras doações da terra visando à penetração no interior da
Bahia, em direção à bacia dos seus mais importantes rios, tiveram
lugar na segunda metade do século XVI, após o estabelecimento ali,
do governo geral. "Deitar gado dentro de seis meses", ou, no mesmo
prazo, "deitar fazenda" — eram exigências que figuravam em quase
todas as datas.
Revelava a metrópole a intenção de ampliar os seus objetivos
colonizadores, reservando a faixa litorânea para fincar, principalmente
nas melhores e mais próximas terras, a exploração açucareira e
fazendo da pecuária o seu segundo grande instrumento de ocupação,
sem dúvida o mais indicado para o alargamento da fronteira
econômica.
Surgia a fazenda como o segundo tipo de domínio latifundiário
que, de início, ligava o seu nome unicamente à pecuária e, depois,
serviria para designar quaisquer outras grandes propriedades
destinadas à agricultura.
Tivessem, embora, engenho e fazenda a mesma origem, frutos
como eram da mesma política colonizadora do Reino, que pretendia,
acima de tudo, imprimir um sentido de casta à distribuição das
sesmarias, não tardou que acontecimentos imprevistos impusessem
caminhos diferentes àqueles dois tipos fundamentais de propriedade
latifundiária.
Fixar-se-iam nos engenhos todos os desígnios da nobreza
territorial, neles ,se concentraria toda a força do monopólio da terra,
toda a resistência contra a infiltração das formas "plebéias" de
propriedade. Ali, a metrópole haveria de encontrar, por muito tempo,
principalmente entre os grandes senhores, os seus pontos de apoio e a
mais completa colaboração para a empresa colonial.
As atenções e esperanças dos mercadores, dos usurários,
convergiam também preferentemente para os engenhos. Eram estes o
grande mercado para a escravaria e para a usura. Eram os centros de
consumo realmente importantes, para os objetos de luxo e as
bugigangas européias.
Entretanto, desde seus primeiros instantes e pelo menos até o
século XIX, a fazenda provocaria um rompimento parcial das
heranças medievais e escravistas incorporadas nos senhorios
açucareiros.
O engenho havia de ser, muito mais que a fazenda, uma unidade
produtora autônoma e forte. Sua força residia menos na sua riqueza
econômica do que nos privilégios que lhe eram conferidos: as torres,
as armas, o monopólio feudal da terra, o domínio sobre as coisas e
sobre os homens.
Era o engenho uma organização híbrida porque representava a
conjugação de sistemas econômicos historicamente distanciados.
Erguia-se sobre uma base orgânica feudal, caracterizada pelo regime
de propriedade e de administração: verdadeiro senhorio regido pelos
códigos da nobreza territorial, com seu proprietário à frente da
produção. O ser senhor de engenho "he título que muitos aspiram,
porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos",
segundo Antonil. Dentro desta estrutura feudalizada, predominava o
trabalho escravo, elemento componente de um regime de produção
anacrônico, tomado da antigüidade clássica e já largamente utilizado
por Portugal em outros domínios.
A este misto de senhorio feudal e patriciado rural, numa
combinação de atividades agrícolas e manufatureiras, vinham juntar-
se formas assalariadas de trabalho, oficiais recebendo soldadas,
antecipando-se em tímidos e raros esboços ao regime da produção
capitalista — tal era a economia açucareira. Todavia, esse conjunto
prenhe de antagonismos formava uma amálgama, uma unidade de
forças contrárias, em que se fundiam, num extremo, as mais rudes
relações de domínio e, noutro extremo, a pior e mais vil subordinação
do ente humano. Estranha unidade de produção, em que os homens
livres regrediam à condição de servos, os servos à condição de
escravos, ao mesmo tempo que mercadores se convertiam em nobres,
e os nobres saídos do feudalismo se transformavam em senhores de
escravos.
Essa unidade produtora — o engenho — foi a célula da sociedade
colonial, tornando-se por muito tempo, a base econômica e social da
vida brasileira. Era, como a sociedade que dele nascera, medularmente
feudal. E se se quer dar uma designação mais precisa, tendo em conta
os aspectos fundamentais de seu modo de produção, como feudal--
escravista é que se deve definir tanto o engenho, como todo o período
colonial da sociedade brasileira.
No engenho atuava sempre, imprescindivelmente, como agente
direto da produção, como homem de "cabedal e governo", o seu
proprietário e senhor. Aliás, senhor único e absoluto, pois nunca ou
quase nunca existiram, durante toda a história dos engenhos,
propriedades que não fossem de um homem ou de sua família,
ausentes em nosso meio rural também esses traços associativos tão
evidentes já na economia mercantil seiscentista. A esse respeito note-
se que o engenho era um senhorio familiar, que não poderia ser
compatível com a importuna presença de sócios endinheirados,
intrusos não consangüíneos que disputassem o governo do clã e da
propriedade. O poder feudal do senhor à frente de seus negócios, sua
fixação na propriedade, são características que devem ser guardadas
como distinção das mais importantes entre o engenho, como
propriedade territorial latifundiária, e a fazenda que, com a pecuária a
princípio, e mais tarde com outras formas de exploração, condiciona a
divisão social do trabalho, separando o proprietário da produção.
Lavradores e rendeiros, nos engenhos estão longe ainda de representar
o desenvolvimento ulterior da renda agrária, sua evolução para renda-
dinheiro ou sua aproximação da renda tipicamente capitalista. As
contribuições que lhes impunham os senhores não passavam de
tributos feudais, de formas pré-capitalistas de renda.
Por muitas razões, a economia açucareira circunscrevia,
obstinadamente, a vida social aos esparsos núcleos rurais, nada ou só
indiretamente influenciando o crescimento das atividades urbanas.
Como nos tempos medievais, dos senhorios açucaceiras emanava o
poder exercido pelo campo sobre a cidade, até que esta se
transformasse, de simples refúgio da parte mais pobre da população,
em centros de comércio e de usura, capazes de atender às solicitações
angustiadas dos senhores de terras, vítimas de aperturas financeiras. À
medida que as cidades se desenvolvem, cresce o antagonismo com o
poderio rural, e o conteúdo material desse antagonismo é a hipoteca, o
endividamento dos senhores de terra aos negociantes das cidades,
tornando aqueles cada vez mais dependentes destes. Essa situação
explica a origem de vários movimentos políticos e insurrecionais de
que está cheia nossa história, em que se colocam, de um lado, os
senhores de terras endividados, as camadas populares descontentes e,
de outro lado, os comerciantes e usurários reinóis, apoiados pela
Coroa e ligados por muitos interesses comuns às oligarquias locais,
constituídas pelos latifundiários de grandes recursos.
Conta o senhorio açucareiro com uma tradição de lutas constantes,
quase contínuas, por sua conservação, pela defesa de suas
prerrogativas econômicas, sociais e políticas, pela integridade do
monopólio da terra. Organizara-se o engenho, desde sua formação,
como praça d'armas, como autêntica fortaleza feudal, capacitada para
repelir os ataques do gentio que tentasse recuperar as terras que lhe
pertenceram. Depois, as incursões dos quilombolas e as invasões
estrangeiras forneceriam aos senhores de engenho outras tantas
oportunidades de se exercitarem como homens de combate. Algumas
vezes suas lutas coincidem com os legítimos interesses nacionais, com
os anseios populares. Eis-nos diante de um dos aspectos contraditórios
do latifúndio açucareiro: seu esforço pela perpetuação — que obedece
a um impulso conservador, contrário à evolução da sociedade —
combina-se com a defesa de postulados sagrados nitidamente
patrióticos e progressistas. Mas é a ordem rural, a ordem feudal, que
acima de tudo defendem contra invasores de tendência
acentuadamente burguesa, urbana, como os holandeses, ou contra
negociantes e usurários impertinentes, que monopolizam o comércio
das cidades a serviço dos interesses colonizadores dos mercantilistas
da metrópole portuguesa. É a ordem contra o progresso.
Ao tempo da Revolução Praieira, a unidade do latifúndio
açucareiro aparenta cindir-se. Haviam surgido oligarquias poderosas,
como a dos Cavalcanti, senhores de imensas propriedades,
diferenciando-se dos demais engenhos, presos estes por dívidas e
compromissos à bolsa dos negociantes portugueses de Recife.
Explode o movimento, e o povo, mais do que a classe senhorial
endividada e oprimida, empresta-lhe caráter de um protesto libertário,
nacionalista e anticolonial.
Os currais eram, inicialmente, uma simples dependência dos
engenhos, destinada a supri-los do gado necessário a todos, para os
serviços de transporte em "carros com dobradas esquipações de bois",
ou para o acionamento dos trapiches, engenhos cujas moendas
precisavam de pelo menos sessenta animais, empregados
revesadamente em grupo de mais ou menos doze de cada vez. O gado,
então, utilizava-se quase exclusivamente como fonte de energia, como
animal de trabalho. Tornara-se um escravo tão disputado quanto o
negro e cujas reservas deveriam ser tão abundantes quanto as dos
produtores humanos. Pelos depoimentos de bom número de cronistas,
pode-se concluir que, nos engenhos de regular importância, o número
de bois deveria igualar ao número de escravos, sendo que o desgaste
daqueles era de tal ordem que exigia sua renovação ao cabo de três
anos. Os escravos duravam um pouco mais. E por ser cada vez mais
intensa a procura de animais de trabalho, determinada pelo
crescimento da produção açucareira, os currais dos engenhos já não
bastavam para abastecer de gado o mercado que a partir daí se
alargava.
Esse teria sido o principal estímulo à separação entre o curral e o
eito, entre o engenho e a fazenda, que teve de afastar-se sertão a
dentro, em busca de espaço por onde expandir-se. Não ,se deu tal
penetração sem antes haver provocado repetidos conflitos entre
criadores e lavradores. Estes, pela necessidade de defender suas
plantações, nunca cessaram seus esforços no sentido de empurrar para
longe do litoral os rebanhos em proliferação, até que uma Carta Regia,
no começo do século XVI fixou a área de criação a mais de dez léguas
da costa.
Quando, porém, a Carta Regia de 1701 veio delimitar legalmente
as fronteiras da grande criação, a intensa demanda de animais de
trabalho, o paulatino aumento do consumo da carne e, principalmente,
o aparecimento de novas e largas aplicações do couro vacum já teriam
impulsionado definitivamente a expansão da pecuária, sua separação
da agricultura, seu afastamento cada vez maior da faixa litorânea.
Passam então os currais a ter enorme importância na formação
econômica da sociedade brasileira, não só como força de penetração
mais impetuosa como, de fato, mais positiva, por seus elementos de
fixação, do que o teriam sido a caça ao índio e as aventuras dos metais
preciosos.
No século XVII, quando a pecuária toma o seu primeiro grande
impulso, tem início também a cultura do fumo e com ela se abre um
vasto campo para o emprego do couro, como envoltório dos rolos de
tabaco. Só a Bahia, no século seguinte, exportaria 25.000 rolos
encourados num ano, informa Antonil.
Para Lisboa eram exportados também meios de sola, preparados
com o couro vindo dos currais, mas curtidos nas cidades. A pecuária,
assim, distinguia-se da economia açucareira ao produzir a separação
entre a fazenda e a manufatura, entre a criação e o curtimento, entre a
cidade e o campo. Note-se que o desenvolvimento da pecuária
correspondia plenamente aos interesses de Portugal, integrando-se em
nossa economia de exportação. A influência do mercado interno de
carnes nesse desenvolvimento parece--nos de importância secundária.
Antonil atribui ao couro em cabelo o valor de 2.000 réis, quando uma
rês valia 4.000 réis. Isso mostra o pouco valor que se dava à carne e
revela igualmente sua menor procura. As crônicas referem, tempos
depois, que o gado somente serviria para fornecer couro, desprezando-
se, praticamente, o resto.
De um modo geral, as tradições ruralistas pertencem mais ao
engenho cio que à fazenda. É de notar — e não há nisso nenhum
paradoxo — que a penetração dos currais nos sertões coincide com a
formação das cidades na orla marítima. E que as atividades urbanas
muito pouco deveriam contar com o concurso dos engenhos, aos quais
se opunham por definição histórica. Entretanto, os interesses
econômicos da fazenda (da pecuária principalmente) convergem para
as cidades, ligam-se aos mercados urbanos, centralizam-se nas feiras,
centros de propulsão das cidades.
Entre os fazendeiros de gado, desde os primeiros tempos,
predominavam os proprietários de extensões intermináveis de terras,
que eles mesmos não poderiam controlar. A propriedade pecuária,
deste modo, seria forçada a subdividir sua exploração, dando lugar,
antes de qualquer outro tipo de latifúndio, ao aparecimento do
arrendatário.
Apesar de manter muitos pontos de contacto com o engenho,
guardando dele grande parte das heranças feudais, a fazenda adotava
um sistema de arrendamento mais próximo da renda, agrária
capitalista. Com isso, e inevitavelmente, o modo de produção da
pecuária permitia o acesso à exploração e mais tarde o acesso à
propriedade, de homens de menores posses. Nesse sentido, a fazenda
se opunha ao engenho como força desagregadora dos privilégios
absolutos da nobreza territorial.
.JÁ natureza do trabalho nos currais, a ausência do proprietário, a
impossibilidade mesma de uma vigilância contínua direta, o número
reduzido de braços necessários, enfim, o sistema de produção da
pecuária não exigiria o trabalho escravo, adaptando-se melhor às
formas de servidão — cronologicamente mais adiantadas — e ao
próprio salariado. O índio é aí mais amplamente utilizado, num
desmentido à sua "incapacidade" ao trabalho, tese que ainda se
encontra em certos historiadores oficiais.
Por todo esse conjunto de circunstâncias, a fazenda, no período
que analisamos, representava, em relação ao engenho, um passo à
frente. Caracterizava um tipo de latifúndio na maioria dos casos não
escravocrata, embora um latifúndio, por outro aspecto, mais
tipicamente feudal, da fase em que o proprietário territorial se
distanciava da produção e passava a embolsar a renda agrária. Por isso
a fazenda é, de certo modo, mais vulnerável à fragmentação. Os
vaqueiros e as fábricas são trabalhadores socialmente mais
independentes, economicamente melhor retribuídos, em comparação
com a extrema miséria dos demais trabalhadores "livres" e escravos
dos engenhos.
A importância da pecuária para o crescimento econômico de nosso
país, geralmente subestimada por muitos historiadores atentos a outros
acontecimentos e por eles injustamente relegada a plano secundário, é
destacada por Roberto Simonsen, que lhe empresta "feição
caracteristicamente local, formadora de gente livre e com capitais
próprios".
Parece-nos correta a observação do autor da História Econômica,
ao distinguir a pecuária da economia açucareira que, segundo ele,
"funcionava, em grande parte, com capitais da metrópole, aos quais
eram atribuídos os seus maiores proventos". Entretanto, não podemos
concordar inteiramente com sua afirmação de que "a produção da
pecuária e o seu rendimento ficavam incorporados ao país".
Já vimos que, começando como fornecedora de fontes de energia,
como supridora de animais de trabalho (portanto, como atividade
complementar da economia açucareira) e, logo depois, passando a
.servir como supridora da matéria-prima necessária aos envoltórios do
fumo exportado, as atividades pecuárias funcionaram por longo tempo
como um apêndice da economia de exportação, constituindo-se
também num manancial de dízimos e de fartos tributos coloniais
impostos pela metrópole.
Não é possível, porém, negar que a criação de gado possibilitou
aquilo que os senhores do açúcar nunca poderiam permitir: o acesso à
terra de uma parte da população mais pobre. Desta forma se
estabeleceu um certo antagonismo econômico entre os senhores de
engenho e os criado-rs, de menores posses, espalhados pelo sertão.
Esse antagonismo representou a primeira brecha no monopólio
absoluto da terra, abrindo uma promessa para uma mais justa
distribuição da propriedade territorial.
A conversão da sesmaria em fazenda apresenta, pois, um conteúdo
diferente, menos retrógrado do que a ocupação da terra pelos
engenhos, nesse sentido restrito aqui examinado. Três foram os
principais meios de acesso à fazenda:
1) o arrendamento, cujas origens representavam um procedimento
ilegal, dado que aos donatários não cabia o direito de subdividir suas
concessões;
2) a aquisição por compra, condicionada pela abastança do
pretendente e restrita, geralmente, à minoria amoedada;
3) e a sesmaria que, parecia como uma distinção aos nobres e
favoritos da Coroa e, nesse caso, envolvia enormes territórios, ou
surgia como prêmio aos preadores de índios, aos autores de façanhas
militares, leais nos serviços à metrópole.
Somente mais tarde, extinto o regime sesmeiro, iria desenvolver-se
com um pouco mais de liberdade a ocupação das terras,
acontecimento em que as camadas mais modestas da população
tiveram ampla participação. Mas, ao menos nos primeiros momentos,
esses posseiros ou intrusos não chegaram a fazer fazendas, não indo
suas posses além da categoria dos sítios, precursores, que foram, de
uma nova forma de repartição da terra — a pequena propriedade.
Vale a pena relembrar aqui — e isto tem uma importância
predominante na formação econômica brasileira — a diversificação
que se estabeleceu na marcha da colonização no norte e no sul do país,
resultante da já referida desigualdade social dos colonizadores, os
mais modestos se tendo estabelecido em São Vicente e suas
adjacências e os mais abastados convergindo para Bahia e
Pernambuco, onde lhes parecia acharem-se os melhores terrenos para
a exploração que tinham em mente. A supremacia social, de casta ou
de classe, explica melhor do que as influências climáticas, físicas,
étnicas ou geográficas, a supremacia econômica do Nordeste nos
primeiros séculos, quando as forças de produção ainda não se
chocavam com a propriedade latifundiária; e, explica, ainda, sua
posterior decadência econômica, quando o monopólio da terra
redobrava sua resistência ao progresso, à penetração capitalista, ao
povoamento, à expansão do mercado.
No Sul, onde, em geral, o monopólio da terra era menos despótico,
onde o proprietário não se separara ainda da produção para viver
parasitariamente da renda agrária, onde, portanto, o proprietário
menos vinculado à aristocracia rural, quase sempre fora um agente
direto da produção - mais cedo surgiram condições para a
fragmentação da propriedade, para uma melhor utilização do solo,
para a localização de correntes migratórias e para a formação de um
mercado mais amplo. Estas as circunstâncias preliminares e
imprescindíveis que no Centro-Sul possibilitaram o desenvolvimento
da economia industrial.
Já no século XIX as fazendas de gado de Minas Gerais, São Paulo,
Mato Grosso, Goiás e as estâncias do Rio Grande do Sul haviam
arrebatado aos sertões do Norte e Nordeste a antiga hegemonia na
produção pecuária. A inferioridade dos currais nas regiões do Norte é
indiscutível. Se o criador era arrendatário, estava sujeito ao pesado
ônus da renda agrária que lhe tirava o estímulo e lhe desfalcava os
rendimentos. Se era senhor de muitas fazendas, a falta de vigilância
direta de sua exploração e a impossibilidade de administrá-las com
eficiência seriam fatores de insucesso. Também a distância dos
mercados e a pobreza dos centros urbanos sujeitavam ali as boiadas a
preços menos compensadores. Por sua vez, o sistema de criação no
Norte fora, desde o início, mais atrasado do que aquele que os
proprietários, à frente do trabalho, imporiam no Centro--Sul. O leite,
os subprodutos, eram desprezados naquela região, que também não
contava com terras apropriadas para a agricultura de subsistência.
Esta, de certo modo, aliviava as despesas da fazenda e servia para
melhorar, com a cultura do milho e das forragens, o teor alimentício
do gado. Tudo isto existia, ao lado dos currais no Centro-Sul.
Mas o fator decisivo da superioridade desta região fora o
deslocamento dos mercados ou mais propriamente, o nascimento de
um incipiente mercado interno nas vizinhanças da criação, dando
ensejo ao aproveitamento dos subprodutos do gado, inclusive da
carne. Primeiro, o surto da mineração, e, depois, uma melhor
disseminação da propriedade rural garantiriam aos criadores de Minas,
São Paulo e Rio Grande do Sul, vantagens com que os demais não
contavam. No Norte e Nordeste, os únicos mercados para outros
produtos que não o couro exportável eram constituídos pelos
engenhos, os quais dispunham, eles também, de currais próprios. O
latifúndio açucareiro, com seu poder absorvente, mostrava-se sempre
pernicioso às atividades que o cercavam.
Essa diversificação econômica e social, estabelecida desde os
primeiros instantes do povoamento de nosso território, expressa com
bastante nitidez o processo contraditório da evolução da sociedade
brasileira, mediante o qual os fatores de desenvolvimento de uma
época se transformaram em negação desse desenvolvimento mais
tarde e, vice-versa, os elementos negativos de um período se
converteram depois em fatores positivos.
Levando em conta as peculiaridades desse processo, não teremos
dificuldades em compreender como e porque o latifúndio açucareiro,
fruto da conjugação de interesses de senhores de escravos, da nobreza
e dos mercadores metropolitanos, respondeu durante os três séculos de
dominação colonial pela hegemonia econômica do Brasil Norte,
passando depois a transformar-se num entrave ao progresso dessa
região, quando começava a despontar a nossa independência nacional.
Na verdade, analisando mais a fundo o processo social do
Nordeste, à base dos elementos expostos, chega-se à conclusão que o
sistema da economia feudal, foi sempre, e em todas as etapas da
exploração colonial, um inimigo do progresso real: uma força de
contenção do desenvolvimento econômico-social da colônia, como
ocorreu, na realidade, com todos os países da América Latina. O
chamado esplendor econômico e mesmo cultural do Nordeste do
século XVII e parte do século XVIII não passa de um esplendor de
fachada de uma oligarquia restrita e poderosa, inteiramente
desvinculada da grande massa humana, marginalizada pela economia
agrária de tipo feudal.
No fundo, o chamado progresso econômico aí registrado se
limitava à estabilização e ampliação dos lucros dos senhores da terra,
donos de quase toda a riqueza do país. Portugal, como toda potência
colonialista, utilizara esta oligarquia para seus fins coloniais,
associando-a às vantagens da Coroa. O economista Gunnar Myrdal
acentua bem, em um dos seus trabalhos (9), a diferença fundamental
do verdadeiro desenvolvimento econômico, que integra em seus
benefícios largas parcelas da coletividade, e o falso desenvolvimento
econômico, de tipo colonial, de cujas vantagens a massa não participa
e não tem mesmo possibilidade de acesso. '/Na economia do Nordeste
colonial só a minoria dominante prosperava e progredia, enquanto a
massa era deixada sempre à margem, como um simples reservatório
de mão-de-obra. E a distância entre os dois grupos — a elite
dominante e a massa oprimida — fazia-se mais evidente e
intransponível, dada a inexistência de uma classe média, por falta da
mobilidade social que o colonialismo não propiciava, y'
Desta maneira, nunca se formou nesta área, pela sedimentação
sociológica, a entidade povo, como expressão das aspirações e
reivindicações de várias classes ou grupos sociais, e como força viva
de orientação política do processo nacional. E foi esta ausência do
povo, como entidade sociológica organicamente configurada, que
explica a quase que ausência da revolução, no sentido clássico do
termo, que deveria ter constituído o remate natural do episódio
colonial.
Os ressentimentos, as humilhações, a revolta contra a opressão não
encontram meios de passar do nível do antagonismo surdo ao do
conflito social aberto, que conduz à explosão coletiva. E esta
impotência coletiva cria e alimenta o conformismo, a apatia, o torpor
social em que as populações nordestinas pareciam anestesiadas e
alienadas da sua própria miséria. Sociólogos e antropólogos mal
informados se apressaram em atribuir estas características
psicológicas a uma ação depressora ou desagregante do clima tropical
sobre a vontade individual ou coletiva. Nada mais longe da verdade. O
clima natural nada tem a ver com este comportamento, produto
exclusivo do condicionamento social a uma estrutura que não permitiu
aos elementos servis de se organizarem como povo e vir a ter uma voz
ativa no debate público dos destinos da Nação.
O regime feudal latifundiário fornece, também, a chave explicativa
de outro fenômeno social do Nordeste, mal compreendido e mal
interpretado pela maioria dos sociólogos: o fenômeno do misticismo e
do banditismo que até 1930 dominaram o sombrio cenário do sertão
nordestino.
Os episódios de Canudos, Juazeiro, Caldeirão, Pedra Bonita e
várias outras rebeliões locais, intempestivas e esporádicas, não são
como muitos pensam, fenômenos extra--históricos, mas expressão
bem significativa da história do colonialismo feudal. O cangaceirismo,
que grassou como um terror endêmico na região, e estas epidemias de
delírio místico e de ódio destrutivo não passam de expressões
desordenadas e descoordenadas do sentimento latente de revolta de
populações encurraladas como um gado dentro de um cercado sem
pasto: o regime latifundiário feudal. Estas manifestações de revolta,
que explodem no fanatismo e no banditismo, são tentativas ingênuas
de derrubar a cerca, de partir o círculo de ferro da miséria em que os
indivíduos se sentem encarcerados. Roger Bastide(10), num
penetrante estudo, acentua o fato de que o fanatismo messiânico nada
mais é, em certos casos, do que a busca de uma solução milagrosa
para a frustração que não encontra uma solução política. Em livro
póstumo, o saudoso jornalista Rui Facó(11) analisa com mais
amplitude o fenômeno, mostrando que estas explosões primitivas são
geradas em grande parte pelo monopólio da terra, que gangrenou a
sociedade nordestina: "A situação dos pobres do campo no fim do
século XIX e mesmo em pleno século XX não se diferenciava daquela
de 1856. Era mais do que natural. Era legítimo que esses homens sem
terra, sem bens, sem direitos, sem garantias, buscassem uma saída, nos
grupos de cangaceiros, nas seitas dos fanáticos, em torno dos beatos e
conselheiros, sonhando a conquista de uma vida melhor".
Também na estrutura agrária feudal se encontra a explicação para
a alienação social e o inconscientismo crítico total das elites dirigentes
do Nordeste, praticamente até os nossos dias. Tendo ascendido ao
controle absoluto do poder sem qualquer mobilidade ou trânsito nas
estruturas sociais, estas elites dominantes perderam a capacidade
criadora, desvinculando-se da História em seu sentido mais profundo.
A sua representação, mais ornamental do que funcional da vida, lhes
proporcionou um tipo de cultura e de comportamento social de um
egoísmo cego e mesquinho e de uma total incompreensão da alma e
dos sentimentos populares. Esta tentativa de explicação da ausência de
ação social do povo, como entidade definida, da desvinculação e
alienação das elites dominantes, da exaltação fanática e violenta de
certos elementos marginalizados e do mimetismo da cultura regional,
poderá ajudar de muito a formulação de uma interpretação válida do
Nordeste atual, do Nordeste na hora de sua segunda descoberta.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - FLEIUSS, MAX, História Administrativa do Brasil.


2 - DUSSEN, ADNER VAN DEN, Relatório sobre as Capitanias Conquistadas
no Brasil pelos Holandeses, 1639.
3 - Idem.
4 - BRITO, RODRIGUES DE, A Economia Brasileira no Alvorecer do Século
XIX.
5 - FREIRE, FELISBERTO, História Territorial do Brasil, Rio de Janeiro,
1906.
6 - LIMA, R. CIRNE, Terras Devolutas.
7 - VASCONCELLOS, J. M. F., Livro das Terras, 1860
8 - PRADO JR. CAIO, Formação do Brasil Contemporâneo, S. Paulo, 1953.
9 - MYRDAL, GUNNAR, Une Economie Internationale, Paris, 1958.
10 - BASTIDE, ROGER, O Messianismo e a Fome, in "O Drama Universal da
Fome", Rio de Janeiro, 1958.
11 - FACÓ, RUI, Cangaceiros e Fanáticos, Rio de Janeiro, 1963. ,
CAPÍTULO V

A SEGUNDA DESCOBERTA OU A
CONSCIENTIZAÇÃO DO POVO NORDESTINO

SE NOS quatro séculos do feudalismo agrário — séculos de muito


sofrimento e bem pouco progresso — que se seguiram à primeira
descoberta do Brasil, quase nada mudara nessa terra do Nordeste, não
se pode negar, a bem da verdade, que a segunda descoberta dessa
região brasileira, por parte dos norte-americanos em 1960, fora bem
diferente da descoberta de 1500 pelos portugueses. E essas diferenças
resultam principalmente, de dois fatos históricos fundamentais: do
fato de ter o mundo mudado bastante neste período de tempo e do fato
de que, no intervalo destas duas descobertas realizadas por dois povos
estrangeiros da terra do Brasil, o povo brasileiro havia descoberto a si
mesmo. E que esta autodescoberta, da qual pouco falam os
historiadores oficiais, fora mais importante historicamente do que as
duas outras descobertas. Mas, voltemos às diferenças fundamentais
entre as duas descobertas consideradas históricas. Se, em 1500, o
episódio ocorreu sem grande alarido, a descoberta de 1960 teve uma
repercussão retumbante. É que, se D. Manoel, Rei de Portugal,
manteve em discreto silêncio o seu contentamento pela feliz
descoberta de Pedro Álvares Cabral, os norte-americanos bradaram
em altas vozes, pondo suas mil bocas no mundo para poderem
exprimir pelo rádio, pela televisão, revistas e jornais, o seu
descontentamento e a sua preocupação pela inquietante descoberta
desse novo foco de agitação social, colocado quase que na retaguarda
das linhas de defesa do continente.
Nesta hora dramática da redescoberta do Brasil e durante alguns
meses, conforme relata-nos o escritor norte--americano Stefan
Robock, "O Nordeste novamente se projetou como um foguete, da
obscuridade à fama internacional"(l). Sinal dos novos tempos: da era
da grande publicidade e da rápida circulação dos meios de
comunicação e de informação bem diferentes dos do tempo de Cabral.
Mas se foram diferentes as atitudes dos dois povos descobridores,
também se distanciaram de muito os comportamentos dos nordestinos
descobertos no século XVI e no século XX. Se os primitivos
habitantes do Nordeste receberam gentilmente os ousados marinheiros
portugueses e documente iniciaram com eles o escambo dos seus
produtos por ninharias, o que tanta satisfação e vantagem trouxe aos
lusitanos, os habitantes do Brasil atual, menos primitivos e já bem
mais sofridos e experimentados no contacto com representantes de
outras grandes potências, não se mostraram muito entusiastas com a
aproximação destes seus novos descobridores, representantes da maior
potência do Ocidente. Mostraram-se antes desconfiados, ou mesmo
hostis às relações comerciais por eles usadas com povos atrasados
como o nosso, e que lhes parecera apenas uma forma mais evoluída e
mais sutil do escambo dos primeiros anos da colonização européia.
Desconfiados do seu paternalístico desejo de ajudar e de proteger e
hostis ao seu transbordante interesse de bons vizinhos e de velhos
aliados, que se haviam batido no mesmo front para livrar o mundo da
tirania nazista. Esta reserva, esta surda hostilidade dos primos pobres
do Nordeste para com os primos ricos, filhos do tio Sam, parecia sem
explicação. E a partir deste momento toda a descoberta se fez como
um fato incompreensível. Basta consultar os documentos deste recente
episódio de nossa história: os anais da segunda descoberta registrados
em reportagens e artigos pela imprensa norte-americana, para sentir-se
como ela se fez mais sob o signo da desconfiança e da incompreensão
do que do entendimento e da identificação.
Muitos foram os registros da imprensa norte-americana e, na
impossibilidade de citar a todos, resolvemos escolher um, que por suas
origens, pela respeitabilidade de sua fonte de informação e mesmo
pelo sincero esforço de compreensão de nossa realidade social que ele
evidencia, poderá ser tomado como um documento modelo desta
revelação histórica. Escolhendo o documento que o jornalista Tad
Szulc publicou no Neto York Times sobre o Nordeste, nos dias 31 de
outubro e 1 de novembro de 1960. Como este artigo teve uma grande
repercussão, sendo lido e comentado pelo próprio Presidente dos
Estados Unidos da América, ganhou ele uma dimensão histórica
idêntica à da carta de Pero Vaz de Caminha contando a primeira
descoberta, com a vantagem não desprezível de ter tido em dois dias,
vários milhões de leitores, o que não teve, nem de longe, a carta do
escriba português em seus quatro séculos de existência. Que
revelações encerrava este artigo de Tad Szulc? Revelava, de logo, que
as perspectivas de uma situação revolucionária estavam aumentando
naquele área do Nordeste brasileiro, sob a pressão do pauperismo
generalizado e agravado pela calamidade das secas periódicas. E
revelava a seguir que a miséria é explorada pela crescente influência
esquerdista nas cidades superpovoadas. As Ligas Camponesas,
infiltradas pelos comunistas, organizando e doutrinando, tornaram-se
um fator político importante nesta área. O título da segunda parte do
artigo "Os marxistas estão organizando os camponeses no Brasil",
exprime bem a preocupação da influência comunista. O primeiro
ministro de Cuba, Fidel Castro e o Presidente do Partido Comunista da
China, Mao Tsé-tung, estão sendo apontados como heróis a serem
imitados pelos camponeses nordestinos, trabalhadores e estudantes.
Fala o jornalista a seguir do clima humano da cidade do Recife,
capital do Nordeste, de onde fora enviada a sua reportagem: "A cidade
do Recife é o suporte básico para o manejo das estações de mísseis
teleguiados do Atlântico Sul, da Força Aérea dos Estados Unidos. Ela
se serve da estação de Fernando de Noronha, uma ilha brasileira,
vizinha à costa e da Ilha da Ascenção, e está engajada em ajudar as
novas estações da costa da África no teste de novos mísseis de maior
raio de ação, incluindo o Polaris. Navios de apoio e cargueiros
Globemasters são empregados em Recife e servem também como
centro de comunicação para a seção sul do sistema de Cabo
Canaveral. Não há sentimentos antiamericanistas em Recife. Na
segunda guerra mundial dezenas de milhares de homens dos Serviços
dos Estados Unidos estacionaram aqui ou passaram por Recife. Mas
há um ressentimento baseado no sentimento de que, depois de usar o
Nordeste como base durante a guerra, os Estados Unidos fizeram
pouquíssimo para ajudá-lo a desenvolver-se na paz".
O autor da reportagem associa esta situação explosiva com o
sistema econômico imperante, principalmente com o regime agrário:
"Há áreas na região do Nordeste seco onde a renda anual é cerca de 50
dólares per capita. Cerca de 75% da população é de analfabetos. O
consumo médio diário de calorias é de 1644. A expectativa da vida é
de 28 anos para os homens e de 82 para a.s mulheres. Metade da
população morre antes de 30 anos.
A taxa de nascimento é de 2,5% anualmente. As doenças
gastrintestinais incidem tremendamente em crianças menores de um
ano. Em duas cidades do Estado do Piauí, tomadas como exemplo,
nenhuma criança viveu além de um ano.
Os proprietários de fazenda, trabalhando pequenas parcelas de
terra, algumas vezes forçam os agricultores a trabalhar três ou quarto
dias na semana sem pagamento. A grande massa dos residentes do
Nordeste não são nem consumidores nem produtores em seu sentido
econômico. Sobreviver fisicamente é a sua única preocupação e ficam
desesperados quando as secas periódicas aparecem. Enquanto a
miséria do Nordeste sempre existiu em vários graus, surgiram em anos
recentes novos fatos humanos, econômicos, sociais e políticos, que
tornaram esta região ameaçada de uma explosão revolucionária".
Como testemunhos do clima de revolta reinante, o jornalista cita
conceitos difundidos na região tais como este de que, a menos que
alguma coisa seja feita no Nordeste com urgência, situações
revolucionárias de maiores dimensões serão inevitáveis, ou mesmo
que "o Nordeste se tornaria comunista e teremos aí uma situação dez
vezes pior do que em Cuba, se alguma coisa não for feita". Acrescenta
Tad Szulc: "Os homens das Ligas dizem aos camponeses que a
miséria não é necessária. Eles o impulsionam a de fenderem os seus
interesses locais, que invariavelmente, necessitam verdadeiramente de
serem defendidos. Vem então a doutrinação política e a preparação
revolucionária. Em Recife as pressões se estão elevando. Dentre 800
mil pessoas cerca de 400 mil estão desempregadas, ou apenas
parcialmente empregadas, e milhares mais chegam diariamente das
zonas rurais. Moram em mocambos, crateras e buracos no solo ou em
casebres precariamente assentados em regiões fétidas e nas margens
baixas dos rios.
Quando as marés baixam, nos três rios que cortam esta cidade, ao
lado do cais, as águas sujas e escuras das terras mais altas ficam
imediatamente cheias de milhares de homens, mulheres e crianças
com água até a cintura. Pescam caranguejos, um insignificante
crustáceo que é a sua principal fonte de nutrição.
Eles comem o que conseguem capturar e vendem o restante. Josué
de Castro, técnico brasileiro de nutrição, do Recife, Ex-presidente da
Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO),
chamou a isso o ciclo do caranguejo."
E na parte final do seu artigo o jornalista do New York Times
sublinhou que "ninguém poderá, conseqüentemente, ficar surpreso que
Recife seja há muito tempo o mais forte centro comunista no Brasil".
Analisando-se objetivamente este documento do qual
transcrevemos alguns trechos mais significativos, verifica--se que o
Nordeste socialmente tenso causou profundo impacto no espírito do
seu autor e que este impacto ele o transmitiu com todo seu conteúdo
explosivo ao povo norte--americano. Sua análise da situação sócio-
econômica é justa, mas sua interpretação se afasta do real, quando ele
liga este fenômeno social mais às influências ideológicas vindas de
fora do que à marcha do próprio processo cultural brasileiro. Erra o
jornalista em supor que a explosividade do Nordeste se alimentou,
principalmente dos mitos de Mao Tsé-tung e Fidel Castro e dos
exemplo da Revolução Chinesa e da Cubana. Aí é que não lhe ajudou
a decifrar o enigma do Nordeste a falta de um conhecimento mais
profundo da história da região, dos seus antecedentes remotos e da
transformação mais recente processada na consciência do povo
brasileiro a partir do começo deste século. Transformação que acabou
por conduzir este episódio a que já me referi, como de capital
importância na nossa evolução histórica: a autodescoberta do país, ou
a conscientização de nossa realidade social. Se ele tivesse travado um
contacto mais profundo com este fenômeno e compreendido a sua
eclosão, veria logo que a explosividade do Nordeste tomara forma
mesmo antes da vitória da Revolução de Mao Tsé-tung, em 1949, e da
Revolução Cubana de 1959. Na verdade a tensa explosividade do
Nordeste é um produto da evolução natural de sua estrutura sócio-
econômica superada e inadequada para dar atendimento aos desejos e
aspirações de um povo que, tendo finalmente tomado consciência de
sua existência como entidade política, procura dar expressão a seus
anseios de reforma e de melhorias de suas desumanas condições de
vida.
É esta tomada de consciência do povo o fenômeno mais recente da
história do Nordeste, que precedeu, contudo, de alguns anos, a
descoberta desta região pela imprensa estrangeira, principalmente a
norte-americana em 1960.
Como afirmamos em capítulo anterior, o que caracterizara a
estrutura social do colonialismo agrário entre nós fora a inexistência
do povo como entidade política, como força participante nos destinos
da nação.
Durante quatro séculos a nossa organização social singular,
refletindo a própria rudimentaridade do seu sistema de produção, se
limitava à contraposição de uma pequena minoria despòticamente
dominante e do resto da coletividade, politicamente apática ou
passiva, sem consciência de seus direitos e sem meios de expressão
dos seus anseios. Mas, já a partir dos meados do século passado, esta
massa amorfa começava a dar sinais de sua existência ao balbuciar
seus primeiros diálogos com a classe dominante. Com a
Independência do Brasil em 1822, se extingue o sistema das sesmarias
ou doação de terras, substituído pelo sistema da aquisição da
propriedade territorial, o regime jurídico das posses.
Foi o primeiro golpe dado no sistema feudal da terra, compensado
entretanto pela rápida associação que se estabeleceu entre os senhores
feudais e a alta burguesia financeira, permitindo a compra pelo grupo,
de mais terras e a formação de enormes fazendas latifundiárias. A lei
chamada "Lei de Terras", de 1850, ao disciplinar a aquisição das terras
procurou evitar estes abusos que tendiam a alargar ainda mais e a
eternizar o sistema dos latifúndios. A seguir, a libertação dos escravos
promulgada em 13 de maio de 1888. veio dar um golpe mais fundo na
renitente estrutura feudal, abalando-lhe os alicerces. Entretanto, ainda
desta vez o latifúndio sobreviveria. Arruinou-se a classe dos senhores
de engenhos — classe essencialmente escravista, cujo esplendor
correspondera ao segundo reinado — mas substituiu-a uma nova
classe, a dos usineiros. Com a ajuda de capitais estrangeiros, desde
1870 que se haviam instalado na região as modernas fábricas de
açúcar — as grandes usinas — com um apetite insaciável de moerem
mais cana, com uma fome de terras sem limites. Essa nova classe é ao
mesmo tempo latifundiária e capitalista. Reforma, revoluciona mesmo
os processos industriais de fabricação do açúcar, mas mantêm intacto
o arcabouço arcaico do latifúndio. Intensificava-se, assim, no
Nordeste o processo de monopolização da terra. Mas no Sul a situação
começava a mudar. A importação de trabalhadores livres da Europa,
numa escala média de cem mil por ano, a partir da libertação dos
escravos até o fim do século, e que vão, em sua grande maioria,
localizar-se em São Paulo, transformou este Estado no grande centro
produtor de café, deslocou totalmente o eixo econômico do país e
abriu novas perspectivas sociais ao Brasil. O açúcar entra em relativa
crise, mas se intensifica a prosperidade do café. A partir deste
momento cresce rapidamente a acumulação da riqueza nacional — o
país se aburguesa e se capitaliza. Com a penetração do capitalismo no
campo, aparecem os embriões de uma classe camponesa, e com o
crescimento das cidades e sua incipiente industrialização, os germes
de um proletariado ativo. É o povo que surge como entidade orgânica,
como centro diferenciado das reivindicações e dos antagonismos das
várias classes que o compõem.
Premido pelas circunstâncias, o sistema latifundiário, antes unido
sòlidamente pelas mesmas concepções e os mesmos objetivos, não
pôde escapar a uma primeira diferenciação, fendendo-se em duas
correntes principais: a dos que persistiam impermeáveis ao progresso,
encastelados nos processos de produção os mais conservadores e
retrógrados e a dos que percebem a inevitabilidade do processo
evolutivo e se deixam penetrar pelos métodos renovadores. A primeira
corrente predominou no latifúndio açucareiro do Nordeste, enquanto o
Sul se deixou permeabilizar pelos processos renovadores da
economia. Assim se criaram os dois Brasis: o do Norte, praticamente
feudal, e o do Sul capitalista, marchando para a fase da
industrialização. Com a Proclamação da República no fim do século
passado o contraste se acentua e a participação da burguesia nascente
no Sul, na máquina governamental, arrebata também ao Nordeste o
seu poder político, que no Império se exercera através dos barões do
açúcar.
Com a relativa decadência da economia açucareira do Nordeste,
agrava-se a miséria reinante na região, cuja pressão social só se alivia
um pouco através da imigração em massa dos seus habitantes para
outras áreas do país. No fim do século passado, para o Acre, para a
terrível epopéia da borracha de tão triste memória nos anais de nossa
história e, depois da primeira guerra mundial, para São Paulo, que,
com sua indústria em expansão acelerada e sua agricultura próspera,
absorvia mais de cem mil nordestinos por ano. Esta dispersão do.s
homens do Nordeste por outras zonas do país, suas idas e vindas e os
contactos daí advindos, fizeram compreender melhor a esta gente a
sua verdadeira situação de párias, de abandonados a uma condição
social degradante. A fome e a miséria que sempre sofreram e que para
a maioria parecia natural, inevitável como o correr dos dias, como o
sono, como a morte, começou a parecer como algo estranho, desde
que neste mesmo país, conforme tomavam agora conhecimento, havia
gente de outras regiões que vivia livre da miséria e da fome. Então a
coisa não era tão natural, não era uma lei de Deus, à qual o fatalismo
teria que se curvar. E, foi assim, que, ajudado pelos novos meios de
comunicação, as novas estradas abertas na região e os caminhões de
carga que começaram a penetrar na outrora ilha perdida do sertão
nordestino, o progresso começou a se desenhar, embora com bem
vagos contornos na consciência coletiva ainda um tanto confusa desta
pobre gente. Desta fraca gente do Nordeste que começou a vislumbrar
no progresso uma idéia-força capaz de emancipá-la da miséria e da
fome, que nem a Independência, nem a Proclamação da República
tinham-lhe propiciado. É que com a Independência e a República a
classe dominante permanecera a mesma no Nordeste e o povo
permanecera sempre marginalizado de todos os benefícios que estes
atos políticos introduziram no país. A classe latifundiária, como uma
barreira inexpugnável, continha toda e qualquer aspiração do povo de
se exprimir como povo e de participar da vida econômica e dos
benefícios sociais da riqueza. O poder econômico e o extra-econômico
do feudalismo varara assim o século XX, com a mesma desenvoltura
com que haviam exercido nos séculos anteriores sua opressão
irresistível. Mas já não encontrava a mesma docilidade e o mesmo
conformismo por parte das classes servis. Na Independência e na
Proclamação da República, o povo praticamente não participara do
drama. Ficara fora da cena, como simples espectador, mas aproveitara
como espectador para aprender muita coisa com os personagens do
drama. E agora se sentia este povo já com algumas passibilidades para
entrar em cena e mesmo disputar certos papéis mais importantes na
cena de nossa história. Em seguida à primeira guerra mundial, com a
maior difusão das idéias e dos meios de divulgação cultural, a
realidade do Nordeste se fez mais nítida na consciência do povo
nordestino. Muito influiu neste sentido o esforço de democratização
da cultura que se iniciara na própria capital do Nordeste, levada a
efeito por jovens intelectuais decepcionados com o tipo de cultura que
o Brasil até então venerava — uma cultura de formação bacharelesca,
desvinculada por completo da realidade social vigente> Cultura quase
toda de importação, feita mais para brilhar do que para atuar. Cultura
de salão: vazia, passiva, estéril, feita de encomenda pelos senhores
feudais e seus representantes no poder, para conservar o status quo.
Cultura, numa palavra, eminentemente antidemocrática. A verdade é
que este abismo cavado entre os dois Brasis a que já fizemos alusão, o
Brasil pobre e o Brasil rico, o Brasil do Norte e o Brasil do Sul, o
Brasil feudal e o Brasil industrial — em nenhum setor é mais
profundo do que na vala que separa o Brasil letrado do outro
imensamente mais vasto, o Brasil analfabeto. Essa é uma das
expressões mais terrivelmente marcantes do complexo do
subdesenvolvimento do país. E ninguém pode negar que o
analfabetismo e a ignorância foram em grande parte mantidos como
um cimento para conservar de pé o desconjuntado edifício da estrutura
feudal, cujas pedras ameaçavam desabar ao menor choque, já não digo
das forças políticas em jogo, mas ao menor choque das idéias. Daí o
pavor dos donos do poder, das próprias idéias e dos seus
propagadores. Daí a suspeição com que sempre olhavam os estudiosos
mais ousados, que lutavam por uma tomada de consciência
educacional, por uma educação que não fosse apenas um privilégio,
com o qual se dominam os espíritos de toda a coletividade, como se
domina a sua massa, com o privilégio ou o monopólio da terra. Para
que o latifúndio pudesse sobreviver não bastava que a terra
permanecesse em sua maior parte inculta, era também necessário que
os homens continuassem em sua maioria incultos. Mas nesta muralha
cultural foi aberta uma primeira brecha. A partir da segunda década de
nosso século apareceu no Brasil, e não por simples coincidência, no
próprio Nordeste, uma nova forma ou expressão de literatura de tipo
popular, no sentido de se preocupar pelos problemas do povo, pela
tragédia da vida deste povo. Foi do meio da planície parada do
Nordeste contemplativo e fatalista, economicamente decadente, que
irrompeu o grito de protesto da inteligência brasileira contra este
estado de coisas. Do meio desta gente formada de cordatos e
conformados que sempre se manifestava de acordo com os donos do
Brasil, em matéria de idéias, de política e de estética, foi que saiu a
primeira leva de escritores rebelados — os grandes romancistas do
Nordeste. Foi no clima humano desta região, sob a pressão
contraditória do feudalismo culturalmente superado e das aspirações
das liberdades contidas nas promessas da Democracia, que
amadureceu e explodiu esta nova vaga dos romancistas brasileiros,
chamados de proletários porque se metiam por lugares escusos, onde
só os pobres penetram e de lá saíam com um cheiro forte de vida.
Cheiro que tonteia e provoca náusea nos meios mais limpos, da gente
bem. Foi esta a primeira experiência cultural autóctone, através da
qual o Nordeste revelou a sua tragédia(2). Os romances de um
Graciliano Ramos, de Jorge Amado, de um José Lins do Rego e de
vários outros formam os primeiros documentos da autodescoberta do
Nordeste, de sua realidade social, de sua humanidade singular. Neles
se cristalizava o sentimento difuso do povo revoltado contra a
opressão econômica que mantinha esmagado e faminto um país de
imensas riquezas potenciais.
Este mesmo sentimento expresso em forma mais tosca começou a
ser difundido através da poesia popular, através da abundante
literatura dos folhetos, impressos em papel ordinário e vendidos nas
feiras do Nordeste. Sente-se na lira popular do Nordeste a partir desta
época uma nítida consciência do desumano sofrer do nordestino, do
inferno que é a sua vida esmagada pelas forças opressivas. Ainda
tímida em suas expressões, por falta de outros meios de cultura mais
elevados e por receio das punições que o latifúndio impõe aos que se
mostram mais rebelados com a situação vigente, o poeta camponês
fala mais numa linguagem comparativa, em parábolas que
evidenciam, no entanto, uma admirável riqueza de imaginação
poética. Os poucos que sabem ler e a maioria dos analfabetos tomam
contacto com esta poesia revolucionária, seja através dos folhetos
mesmo, seja através dos violeiros e cantadores que repentem os versos
nas feiras e nas festas do interior, transmitindo de geração em geração
o rico acervo do folclore nordestino. O número de folhetins tratando
dos problemas da terra, da fome, da miséria, da opressão dos senhores
latifundiários, é abundante. Mais de duas dezenas de pequenos
editores disseminados pelas pequenas cidades do Nordeste se ocupam
de imprimir estes folhetins que, guardados em caixões de querosene,
vão formar o único tipo de biblioteca existente nas casas dos
camponeses da região. Muitos destes folhetos são documentos da mais
alta expressão e validade deste processo de autodescoberta do Brasil
no que ele tem de mais autêntico, de mais profundamente brasileiro.
Tomemos como exemplo um destes documentos da época: um
folheto intitulado a "Chegada da Lampião no Inferno". É um exemplo
típico desta literatura popular participante do processo de
conscientização das massas nordestinas. Lampião é o grande
cangaceiro que nesta época põe em polvorosa todo o sertão, fazendo
justiça à sua maneira, "roubando dos ricos para alimentar os pobres".
É o sentimento de revolta, apoiado no cano do fuzil e tendo na alça da
mira a lei e a ordem consideradas como uma iniqüidade a serem
combatidas. Fazendo lembrar, até certo ponto, aquela ordem de que
nos fala Sartre, em carta que dirigiu a Camus, na qual dizia que "por
enquanto a ordem humana não passa da desordem que é injusta e
precária, pois nela se mata e ,se morre de fome".
O inferno descoberto pelo poeta camponês é uma evolução da casa
do senhor das terras, que ele visualiza como o próprio Satanás em
carne e osso. Assim, o inferno do poema popular tem cerca, tem
portão, tem vigia, tem depósito de algodão, tem tudo da casa do
patrão. Tem tudo aquilo que simboliza a prepotência satânica do
poder, contra a qual Lampião, que no fundo é o próprio camponês,
luta e termina por vencer. Vitorioso, o camponês afirma no seu verso
que:

"Houve grande prejuízo


No inferno, nesse dia;
Queimou-se todo o dinheiro
Que Satanás possuía.
Queimou-se o livro de ponto
E mais de seiscentos contos
Somente em mercadoria."

Mas não é só no campo literário que o Brasil se revela aos olhos


dos brasileiros. Em todos os setores da vida nacional, nos quais os
seus componentes haviam vivido até então, ou voltados para dentro de
si mesmos, ensimesmados em sua solidão social, exilados, portanto,
na sua própria terra, ou debruçados no parapeito do oceano,
suspirando pela Europa distante e, portanto, alienados, também, da sua
realidade circundante, quase que bruscamente aparecem homens
visceralmente interessados em conhecer a fundo os problemas da
terra, em conhecer suas origens, suas necessidades funcionais e em
buscar soluções autóctones para os problemas desta terra. Nasce,
assim, uma cultura brasileira original e atuante, que brota como uma
planta tenra sobre os detritos da cultura falsa e postiça, conservadora e
formal, que fora o apanágio de uma pequena minoria alienada da
realidade do país. Identificando a miséria nacional com o estágio de
subdesenvolvimento, os homens desta nova cultura brasileira se
puseram a lutar contra este agente obstinado da desumanização,
considerando que, como muito bem exprimiu Eduardo Portela, "ser
subdesenvolvido é habitar perifèricamente a condição humana, sem
possuir, em nenhum instante os meios de acesso a ela. O prisioneiro
do subdesenvolvimento não vive, sobrevive" (3). A luta popular pela
libertação desta prisão do subdesenvolvimento se intensifica a partir
de 1930 no país.
"O desenvolvimento capitalista, cuja demonstração mais evidente
se encontra na forma e na rapidez como reagiu a economia nacional
aos efeitos da crise de 1929, teve profundos reflexos na estrutura
social do país e em sua vida política. À proporção que as relações
capitalistas se ampliam, a burguesia brasileira cresce e se organiza,
definindo as suas reivindicações políticas; e, paralelamente, crescem o
proletariado e o semiproletariado, que se organizam, definindo aquele
as suas reivindicações políticas. Por força dos mesmos efeitos, reduz-
se o poder da classe dos latifundiários e no campo fermentam
inquietações. Aumenta a pequena burguesia, que se multiplica em
atividades em disputa de melhores oportunidades. Está presente nos
grandes episódios políticos: as campanhas de Rui Barbosa, o
tenentismo, a revolução de 1930. No vasto mundo rural, o
campesinato começa a acordar do sono secular: aparecem as
revoluções camponesas, transvestidas de fanatismo religioso; primeiro
Canudos, depois o Contestado, e prossegue na luta dos posseiros e nas
organizações atuais, as Ligas Camponesas, que tanto surpreendem e
assustam os que acreditam piamente na eternidade do conformismo"
(4).
Foi nesta fase de nossa história, de tomada de consciência com a
história, que tomei consciência individualmente com a realidade social
da região onde nasci. Foi por este tempo que vi com os olhos
indagadores de adolescente o espetáculo da miséria circundante nas
áreas mais pobres da cidade do Recife, onde travei contacto direto
com o drama da fome. Foi por esta época e nesta paisagem humana
que me impressionaram certas imagens negras daquilo que eu depois
chamaria a Geografia da Fome. Naquele momento resumi minhas
impressões destas imagens numa simples crônica, a qual fez referência
o jornalista Tad Szulc em seu documento que publicou no New York
Times e intitulei esta crônica de Ciclo do Caranguejo. Nesta seqüência
de documentos que estou apresentando neste ensaio — documentos
das mais variadas origens e mais variadas formas de expressão —
talvez não seja de todo descabido acrescentar mais este. Não só pelo
fato de ter sido referido no artigo que desencadeou o interesse da
imprensa norte-americana pelo Nordeste, como pelo fato de que foi
este documento a primeira tentativa de romper violentamente contra
um tabu — o de ocultar a existência da fome, o de negar a realidade
de um tremendo estado de miséria, o de tomar a vida de um grupo de
habitantes dos mangues da cidade do Recife, marginalizados pela
miséria, como símbolo da vida da maioria dos homens do Nordeste.
Em 1933 publicávamos o Ciclo do Caranguejo, cujo texto é o
seguinte:
"A família Silva mora nos mangues da cidade do Recife, num
mocambo que o chefe da família fez quando chegou de cima.
A família é originária do sertão. Desceu do Cariri, na seca,
perseguida pela fome. Fez uma paradinha no brejo, para tentar o
trabalho das usinas, mas não se pôde agüentar com os salários dessa
zona, sem ter direito a plantar senão cana. Sem ter, nem ao menos o
recurso de xiquexique e da macambira, como no sertão, para quando a
fome apertasse.
Nesse tempo espalharam pelo interior o boato que o governo tinha
criado um ministério para defender os interesses do trabalhador e que,
com os fiscais da lei, a vida na cidade estava uma beleza, trabalhador
ganhando tanto que dava para comer até matar a fome. A família Silva
ouviu esta história, acreditou piamente e resolveu descer para a
cidade, para gozar das vantagens que o governo bom oferecia aos
pobres.
Logo de chegada, a família viu que a coisa era outra. Não havia
dúvida que a cidade era bonita, com tanto palácio e as ruas
fervilhando de automóvel. Mas a vida do operário, apertada como
sempre. Muita coisa p'ros olhos, pouca coisa p'ra barriga.
O cabloco Zé Luís da Silva não quis desanimar. Adaptou-se :
"Quem não tem remédio remediado está". Entrou na luta da cidade
com todas as forças de que dispunha, mas as forças dele não rendiam
que desse para a família viver com casa, roupa e comida. Casa só de
80 mil réis para cima, para comida uns 150 por mês, e os salários sem
passarem de 5 mil réis por dia.
Começou o arrocho. Só havia uma maneira de desapertar: era cair
no mangue. No mangue não se paga casa, come-se caranguejo e anda-
se quase nu. O mangue é um paraíso. Sem o cor-de-rosa e o azul do
paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso dos
caranguejos.
No mangue o terreno não é de ninguém. É da maré. Quando ela
enche, se avoluma e se estira, alaga a terra toda, mas quando ela baixa
e se encolhe, deixa descobertos os calombos mais altos. Num deles, o
caboclo Zé Luís levantou o seu mocambo. As paredes feitas de varas
de mangue e de lama amassada. A cobertura de palha, de capim, seco
e de outros materiais que o monturo fornece. Tudo de graça,
encontrado ali mesmo numa bruta camaradagem com a natureza. O
mangue é um camaradão: dá tudo. Casa e comida: mocambo e
caranguejo.
Agora, quando Zé Luís saiu de manhã para o trabalho, já o resto da
família caiu no mundo. Os meninos vão pulando do jirau, abrindo a
porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a água
barrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os braços
de lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braços
atolados na lama, a família Silva está com a vida garantida. Zé Luís
vai para o trabalho conformado, porque deixa a família dentro da
própria comida: atolada na lama fervilhante de caranguejos e siris.
Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra
foi feita p'ro homem, com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito
especialmente p'ro caranguejo. Tudo aí é, foi, ou está para ser
caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama
misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz,
quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive
dela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela,
fazendo com a lama a caminha branca de suas patas e a geléia
esverdeada de suas víceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive
de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus
cascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita
de lama fazem a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos.
São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de carne de
caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito, para a lama
do mangue para virar caranguejo outra vez .
Nesta placidez de charco, identificada, unificada no ciclo do
caranguejo, a família Silva vai vivendo, com a sua vida "solucionada",
como uma da,s etapas do ciclo maravilhoso. Cada elemento da família
marcha dentro desse ciclo da miséria até o fim, até o dia de sua morte.
Nesse dia os vizinhos levarão aquela lama que deixou de viver dentro
dum caixão p'ro cemitério de Santo Amaro, onde ela seguirá as etapas
do verme e da flor. Etapas demasiado poéticas, cheias duma poesia
que o mangue não comportaria. Parte-se, aparentemente, nesse dia, o
ciclo do caranguejo, mas os parentes e os descendentes do morto
derramam caridosos as suas lágrimas no mangue, para alimentar a
lama que alimenta o ciclo do caranguejo."
Este e outros documentos-revelação das condições de vida no
Nordeste levaram os homens de ciência e os homens públicos do
Brasil a procurar compreender melhor esta realidade social e buscar-
lhes soluções válidas, tudo dentro do processo normal de
diferenciação da economia brasileira.
Se durante mais de quatro séculos o Brasil viveu um tipo de
economia colonial que se manteve quase que intacta até 150 anos
depois de nossa independência política, através do Império e da Velha
República que perdurou até 1930, nesta data, com a Revolução de
Getúlio Vargas, surgiram no campo político os primeiros impulsos
nítidos de emancipação econômica. E, a partir deste momento, com a
diversificação de nossa economia, esses impulsos se foram
multiplicando em manifestações populares de toda a ordem (5).
Esse desenvolvimento econômico, à medida que se torna
autônomo e tecnicamente diferenciado, vai às populações brasileiras
uma consciência cada vez mais nítida de sua situação social, fazendo
aumentar o seu desejo de participação no sistema político da nação.
Com a industrialização nasceu um proletariado urbano que, desejando
participar da vida política, começou a interferir na distribuição do
poder político. Até 1930 os grupos oligárquicos manipulavam
tranqüilamente o seu eleitorado de cabresto graças a um sistema
organizado de clientelas, e o poder era assim exercido por meia dúzia
de privilegiados escolhidos pelas elites e completamente
desvinculados dos interesses da coletividade. O eleitorado
representava, ademais, uma fração mínima da população brasileira, o
que fazia do voto uma simples aparência democrática. Basta lembrar
que, em todas as eleições à Presidência da República anteriores a
1930, o número da população do país. Era esta maioria insignificante
que decidia dos direitos políticos do povo. A partir de 1930 as coisas
começaram a mudar. Não fora, apenas, por causa do triunfo da
revolução de Vargas, que, no fundo, não tinha sido senão a tomada do
poder por um grupo às custas de outros grupos, sem uma real
participação do povo, e sem verdadeira significação popular, mas
sobrtudo porque a crise mundial, que tinha começado em 1929, havia
fortemente influenciado o país, obrigando a produzir internamente
tudo aquilo que não era possível importar por falta das necessárias
divisas, decorrente da crise dos nossos produtos de exportações.
Pouco a pouco o povo cessava de ser uma simples ficção jurídica para
ter uma participação ativa na escolha dos seus representantes. E, como
Vargas se tinha identificado completamente com este processo
econômico-social, sua eleição em 1950 como candidato da oposição
foi a primeira demonstração eleitoral de uma vontade popular
independente. Nesta ocasião, cerca de 20% da população votava e esta
participação não tem feito, senão, aumentar até os nossos dias. No
fundo, o grande drama político do Brasil atual é a participação intensa,
na vida política, de grandes massas que não tiveram até hoje acesso à
vida econômica nacional e que, em conseqüência disto, se revoltam. A
atual vida política brasileira, na verdade, já não é uma luta entre clãs
eleitorais, mas entre classes e grupos sociais de interesse
profundamente divergentes, e foi a evolução econômica destes últimos
tempos que determinou esta polarização sistemática(6). É esta
radicalização que caracteriza mesmo a situação política atual, pondo o
país diante de uma encruzilhada. De um lado a direita, que luta
desesperadamente para conservar, através do poder econômico, o
poder político que lhe ameaça escapar das mãos. E, de outro lado, a
esquerda, mal organizada ainda, sem possibilidades financeiras, mas
que se apóia sobre a energia elementar das massas excitadas pelo
desejo obcecante de se emancipar de qualquer forma da tutela
estrangeira. Entre estas duas forças exaltadas subsiste um centro
democrático amolecido, que não sobrevive senão por sua inércia e
porque faz concessões de toda espécie aos dois extremos. Desta
forma, se consolida a consciência democrática do país. O começo
deste processo radicalizante foi marcado, sem nenhuma dúvida, pela
queda do governo de Vargas em 1954 e pela intensa campanha através
da qual se desenrolou este drama político e humano. É surpreendente
constatar que os historiadores e os analistas de nossa realidade têm
uma certa tendência a negligenciar este ponto de partida significativo
de nossa tomada de consciência política. É a partir desta época que as
forças políticas se dividem e que a polarização se produz. A campanha
intensiva contra o Presidente Vargas foi o primeiro golpe das forças
de extrema direita para tomar o poder pela violência e para instalar um
governo de força no Brasil. O suicídio do Presidente e a sua carta de
acusação provocaram um choque nas massas atordoadas e, pela
primeira vez, orientaram os debates políticos do Brasil para um mais
alto nível, no sentido dos problemas econômicos e do conhecimento
do conjunto da realidade nacional. Pela primeira vez parecia claro que
o dilema político brasileiro era conseqüência de um choque de
interesses inerentes aos processos de emancipação econômica (o
nascimento da indústria de bens de equipamento, da siderurgia e da
indústria de petróleo) e que a sorte do país se jogava na defesa das
relações das trocas comerciais e na expansão do nosso comércio
exterior, na luta para disciplinar os capitais estrangeiros e para
controlar a sua ação na política interna do país(7).
O suicídio de Vargas foi, assim, uma experiência de angústia
coletiva que orientou o povo brasileiro para a sua própria descoberta.
Resultou dele um brusco amadurecimento da consciência política
nacional e uma elevação geral do nível dos debates públicos. A
exploração do moralismo como tema de análise da realidade nacional
começou a ser denunciada como uma simples tática diversionista.
Tornou-se cada vez menos viável apontar os sintomas em lugar das
causas e as conseqüências em lugar dos fatores determinantes do
subdesenvolvimento. Mais ainda, uma tão fácil interpretação da
realidade nacional caracteriza agora um grupo determinado cuja
ideologia antidemocrática e abertamente golpista tornou-se a da direita
no Brasil. Em resposta, se afirma a consciência democrática das
massas e a defesa popular dos direitos políticos e das conquistas
sociais.
A mudança do centro dinâmico de nossa economia teve, assim,
efeitos políticos significativos. A antiga classe dirigente começou a
perder sua influência eleitoral. Os antigos chefes políticos foram
perdendo substância sob a pressão de novos interesses, principalmente
dos interesses industriais. Elevar o nível das massas é garantir o
consumo dos produtos industriais. A partir de 1955 assiste-se a
formação de grupos de pressão poderosos em favor da indústria
nacional. Se em certos casos inevitavelmente a defesa dos interesses
da indústria manifesta o antagonismo capital-trabalho, os esquemas de
ação dos grupos industriais brasileiros não têm no conjuto este
conteúdo.
Sua contradição principal, a mais importante, é aquela que opõe a
nova classe burguesa em formação aos sobreviventes do antigo
capitalismo de tipo colonial, voltados para o mercado externo,
defensores dos mecanismos de transferência de rendas para o setor
exportador de nossa economia e ideologicamente desvinculados dos
interesses das massas brasileiras.
Esta consciência política nacional, que se formou inicialmente nos
grandes centros industriais do Sul, onde se processou uma maior e
mais rápida diferenciação de nossa economia, foi também aos poucos
tomando consistência na área do Nordeste.
A princípio, o que chocara as populações subdesenvolvidas desta
área, fora a revelação do grau de miséria em que viviam em
comparação com os níveis de vida bem mais elevados do Sul do Brasil
e de outros países do mundo. O contraste que a comparação
evidenciava era realmente alarmante. Se o Brasil é um país
subdesenvolvido, o Nordeste dentro do conjunto nacional é o ponto
máximo no qual transparece o subdesenvolvimento. A distância social
que separa em certos aspectos o Nordeste do Sul do país é maior do
que a que separa os países adiantados da Europa de algumas de suas
antigas colônias da África ou da Ásia. Entre o Estado de São Paulo,
por exemplo, e o Estado do Piauí, no Nordeste, a distância econômica
é tão grande quanto a que separa os E.U.A., do Congo ou do Laos, por
exemplo. A que atribuir este contraste tão impressionante? A princípio
e por influência de certos julgamentos apressados e superficiais e,
possivelmente, com intenções políticas ocultas, o atraso do Nordeste
foi atribuído a uma base física desfavorável e a uma condição racial
também desfavorável. A sua pobreza, o seu atraso, a sua fome não
eram senão o produto de condições naturais adversas: do clima desta
terra e da raça desta gente. Do seu clima incerto, com as catástrofes
das secas periódicas e da mestiçagem da raça, bem mais caldeada no
Nordeste do que no Sul, com o elemento negro, considerado
rebaixador do padrão eugênico e cultural deste grupo ético. Assim,
certos sociólogos de gabinete, engajados em explicar esta negra
realidade que o inconformismo da inteligência brasileira pusera a
descoberto, se apressaram a decretar a condenação do Nordeste,
considerado irrecuperável, diante destes dois males terríveis: o seu
clima e a sua raça. E durante certo tempo esse tabu pegou e o
Nordeste era chamado de uma área-problema. Uma área sem solução
à vista, pesando negativamente, sombriamente, nas perspectivas de
progresso no país.
Só com a evolução dos estudos sociológicos, que desmoralizaram
a teoria climática e a teoria da pureza racial, caíram estas falsas
doutrinas, que tudo justificavam como males de raça e males de clima.
Mas com a queda dos preconceitos contra o clima tropical maléfico e
contra a mestiçagem dissolvente, ficara contudo de pé o problema das
secas. Das secas que, de tempos em tempos, se mostravam com sua
terrível agressividade, aniquilando a economia da região e expulsando
as populações pela porta da morte ou da emigração forçada. E a seca
se impôs como o grande vilão do filme do drama nordestino.
A miséria e o atraso do Nordeste eram produtos de suas secas
periódicas. E de tal forma isto tomou ares verdade inabalável que o
Nordeste passou a ser identificado como a área das secas. Como uma
terra estorricada, amaldiçoada, esquecida de Deus. E o homem do
Nordeste, o cabeça-chata nordestino passou a ser retratado como um
judeu-errante brasileiro, o eterno emigrante, que está sempre
estendendo a mão no ar para ver se está chovendo, e sempre que a
chuva não está caindo, dispara ele aterrorizado pelo campo afora,
fugindo da terra amaldiçoada e virando a mão estendida, com a sua
palma para cima, no gesto tradicional de quem pede uma esmola, de
quem implora a caridade pública.
Foi diante desta falsa imagem de uma realidade social, que os
interesses investidos queriam dissimular, que se fez da seca o cavalo-
de-batalha do Nordeste. A verdade é que nem todo o Nordeste é seco,
nem a seca é tudo, mesmo na área do sertão. Mas, foi preciso tempo
para provar, para convencer a opinião pública dos habitantes de outras
áreas do país, que o subdesenvolvimento e a fome do Nordeste eram
mais um fenômeno de ordem social do que natural e de que suas
causas estavam muito mais ligadas à estrutura econômica da região do
que aos episódios das secas intermitentes(8).
No ano de 1956, quando o Nordeste se encontrava a braços com as
conseqüências de uma grande seca, num discurso que pronunciei na
Câmara Federal do Brasil, procurei mostrar que o problema era mais
complexo: que não bastava lutar contra os efeitos das secas para salvar
o Nordeste. Ainda nesta época, este discurso recebeu uma cerrada
oposição e, o que parecerá mais estranho ainda, oposição por parte dos
representantes do próprio Nordeste.
Transcrevo alguns trechos deste discurso, como um novo
documento desta progressiva tomada de consciência nacional:
"Não nego a existência da seca. Nego seja ela a causa do fenômeno
da fome no Nordeste; porque a seca é uma causa secundária,
subsidiária, que apenas agrava o estado de coisas reinante,
determinado por outras causas, mais sociais do que naturais... Quero
deixar bem claro este ponto de vista, a fim de não ser mal interpretado
porque, como nordestino, como homem da região das secas, como
filho de homem do sertão e como neto de retirante da seca de 1877,
não nego a existência do fenômeno. É mister, entretanto, que não se
explore a questão, dizendo que a culpa de tudo é a seca, quando há
outros culpados e mais do que ela. Meu objetivo é esclarecer — e
tenho a coragem de dizer que não é a seca que determina a fome; mas
outras causas determinantes que necessitam ser removidas; e desejo
sugerir um plano que anule essas causas, a fim de evitar a persistência
do fenômeno da miséria e da fome que assolam grande área do
território nacional... A meu ver, a fome que o Nordeste está
atravessando, a miséria aguda, que se exterioriza mais gritante, mais
negra e mais trágica nesta época de calamidade, é mais um fenômeno
de ordem social do que natural. Mais do que a seca, o que acarreta
esse estado de coisas é o pauperismo generalizado, a proletarização do
sertanejo, sua produtividade mínima, insuficiente, que não lhe permite
possuir nenhuma reserva para enfrentar as épocas difíceis, as épocas
das vacas magras, porque já não há lá, nunca, épocas de vacas gordas.
Mesmo quando chove, sua produtividade é miserável, sua renda é
mínima, de maneira que ele está sujeito a viver na miséria absoluta,
segundo haja ou não inverno na região do sertão. E que causas
determinam esse estado social, esse estado de estagnação econômica e
de proletarização progressiva da região do sertão? A meu ver, a causa
essencial, central, contra a qual temos de lutar todos, é o regime
inadequado da estrutura agrária da região, o regime impróprio da
propriedade territorial com o grande latifundiarismo, ao lado do
minifundiarismo, reinantes no Nordeste do Brasil. Sendo esta uma
região por excelência agrícola, desde que 75 % das populações do
Nordeste vivem de atividades rurais, 50% da renda sendo retirada da
agricultura, ela só poderia sobreviver e desenvolver-se, se a
agricultura fosse compensadora, fosse produtiva. Infelizmente, não o
é. E por que não o é? Porque o latifúndio é o irmão siamês do
arcaísmo técnico. Nessas áreas latifundiárias se pratica uma
agricultura primária, uma proto-agricultura, sem assistência técnica,
sem adubação, sem seleção, sem mecanização, e pelos processos mais
rudimentares, exaurindo a força do pobre sertanejo para produzir
menos do que o suficiente para matar sua fome.
O latifúndio nessa região é representado pelo fato estatístico
significativo de que, de 1940 a 1950, de acordo com o recenseamento
demográfico e agrícola, longe de diminuir o tamanho médio da
propriedade agrícola, no Nordeste, este tamanho aumentou e vem
aumentando de tal forma que, hoje, no Nordeste, apenas 20'/o dos
habitantes das regiões rurais possuem terra; 80% trabalham como
arrendatários, como parceiros ou como colonos, porque a terra é
monopolizada por pequeno grupo. Para mostrar a que extremo chega
esse monopólio, basta referir o fato de que 50 °/o da área total do
Nordeste é açambarcada por 3% dos proprietários rurais. Por outro
lado, encontramos mais de 50/í das propriedades contendo mais de
500 hectares. Há centenas de propriedades de mais de 10.000
hectares... Não me parece justo, portanto, que se dê tanta ênfase a este
fenômeno da seca, porque há coisas muito piores do que a seca no
Nordeste: o latifundiarismo e o feudalismo agrário, por exemplo. A
seca é um fenômeno transitório. mas o pauperismo do Nordeste é
permanente. Não bastam, portanto, medidas transitórias de
emergência, contra a suposta seca: são necessárias medidas de
profundidade, reformas estruturais que modifiquem realmente o
arcabouço econômico da região nordestina".
Hoje estas idéias que tanto alarido levantaram por sua heterodoxia,
pelo ar de verdadeira heresia diante do coro das idéias consagradas,
fazem parte do repertório ortodoxo da consciência nacional. Hoje todo
mundo está de acordo, a exceção, apenas, da oligarquia feudal, que os
males do Nordeste derivam da exploração econômica aí implantada,
que fez desta área uma colônia de outra colônia. A princípio uma
colônia de Portugal, explorado colonialmente por outras potências
européias mais fortes e, depois, colônia do Sul do Brasil, explorado
colonialmente por várias potências de economia dominante. Isto, hoje,
todo mundo sabe e é contra isto que todo mundo protesta.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - ROBOCK, S. II., Northeast Brazil: a Developing Area, Washington, 1963.


2- CASTRO, JOSUÉ DE, Documentário do Nordeste, Rio de Janeiro, 1935.
3 - PORTELA, EDUARDO, Literatura e Realidade Social, Rio de Janeiro,
1963.
4 - SODRÉ, NELSON WERNECK, Quem é o Povo do Brasil, Rio de Janeiro,
1962.
5 - QUINTAS, AMARO, Vocação Política e Tendências Ideológicas do
Nordeste, in "Síntese Política, Econômica, Social", n.° 17, Janeiro de 1963.
6 - RAMOS, GUERREIRO, A Crise do Poder no Brasil, Rio de Janeiro, 1961.
7 - MENDES, CÂNDIDO, Nacionalismo e Desenvolvimento, Rio de Janeiro,
1961.
8 - BARROS, SOUZA, O Nordeste, Rio de janeiro, 1957.
CAPITULO VI

O NORDESTE E A AMÉRICA LATINA

NA TOMADA de consciência de sua realidade social, o povo do


Nordeste não se limitou a travar conhecimento com os seus problemas
regionais, mas, também, em enquadrá-los dentro da realidade de todo
o continente americano. E este enquadramento serviu para evidenciar
que os problemas do Nordeste são os mesmos problemas de toda a
América Latina. Problemas de expressão continental que, em alguns
de seus aspectos particulares, ganha maior intensidade nesta área do
Nordeste, que pode, desta forma, ser considerada como uma área
significativa — como um exemplo típico da geografia econômica do
continente latino-americano.
Para que os habitantes de outros continentes possam admitir sem
relutância que este exemplo do Nordeste é realmente válido e
significativo para exprimir o que há de mais característico no
subdesenvolvimento latino-americano, resolvemos inserir neste nosso
trabalho um capítulo apresentando uma síntese das condições
econômico-sociais do continente. Julgamos que este estudo
comparativo entre o Nordeste e o continente inteiro permitirá,
ademais, um melhor julgamento da posição que ocupa esta região no
panorama continental e o grau de tensão de sua capacidade explosiva
local. Poderá, ainda, a nosso ver, esta síntese ajudar a corrigir uma
impressão errônea provocada pelo documento de Tad Szulc, quando
afirmou no New York Time que não existe um sentimento
antiamericano no Nordeste do Brasil. Que os nordestinos têm apenas
um certo ressentimento por não serem suficientemente ajudados nos
anos de paz, como aparentemente o foram durante os anos de guerra.
A verdade é bem diferente. A verdade é que há, por parte do povo
nordestino, um forte sentimento antiamericano e que este sentimento
tem suas raízes em fatos bem mais graves, em motivos bem mais
profundos. Resulta este confuso sentimento de animosidade de uma
certa falta de compreensão e de sutil distinção a fazer por parte do
povo do Nordeste, da estrutura político-social dos E.U.A. Conhecendo
o tipo de política econômica que executam no continente os grupos
financeiros norte-americanos, quase sempre apoiados pelo
Departamento de Estado
— política que conduziu a América Latina à trágica e crítica
situação em que se encontra no momento — o povo do Nordeste
condena com veemência esta política. Mas confunde, nesta
condenação, todo o povo norte-americano com estes grupos
financeiros e manifesta seu desagrado contra o país inteiro, atribuindo
todos os seus males locais ao simples fato de coexistirem no
continente com os E.U.A. É neste ponto que esclarecimentos mais
precisos poderão ser de mútua utilidade, servindo para desfazer as
falsas interpretações dos dois lados. Nem o Nordeste é apenas um
bando de agitadores e de comunistas, nem os E.U.A. são apenas um
bando de sanguessugas chupando impiedosamente todo o sangue —
todo o trabalho e toda a riqueza
— dos latino-americanos. Vamos tentar pôr as coisas nos seus
devidos termos.
A América Latina desperta para a vida moderna e se interroga
acerca de suas possibilidades de desenvolvimento. Toma consciência
das formas arcaicas de suas estruturas políticas e sociais e dos
paradoxos de sua organização econômica na qual coexistem lado a
lado a extrema miséria e a fome e uma opulência quase que insolente.
"Depois de séculos de estratificação e de estagnação impostas por uma
ordem feudal rigorosa, herdada dos conquistadores ibéricos e mantida
pela cumplicidade dos grandes proprietários agrários, do exército e do
clero, o mundo dos camponeses e dos peões, do proletariado urbano,
dos negociantes pequeno-burgueses e dos intelectuais universitários,
se agita e aspira um futuro diferente. Pode-se pensar o que quiser de
Cuba, mas não resta dúvida que a revolução de Fidel foi um sintoma
evidente da degenerescência que atingiu a antiga ordem e da
formidável vontade de mudança que é o fato mais marcante da
América Latina contemporânea." Assim se exprime sobre este
continente o economista suíço Pierre Goetschin(l).
"A estrutura social e econômica da América Latina é decadente,
corrupta, imoral e geralmente insolvável. Que uma mudança está para
vir é óbvio. Que ela se processará através de uma revolução é certo.
Que esta revolução implica na possibilidade da violência é inevitável.
O que permanece como um enigma é: quem liderará esta revolução?"
São palavras do jornalista norte-americano John Gerassi(2), que viveu
em vários países da região. Tais afirmações com tom de profecias
apocalípticas traduzem apenas a observação acurada de uma realidade
social em marcha.
Sente-se por toda a América Latina uma grande inquietação e uma
ávida busca dos caminhos que possam conduzir os seus povos à
libertação de todas as formas de servidão. Assim se explica o
profundo sentido de autocrítica da atual literatura latino-americana e a
objetividade com a qual os modernos sociólogos e economistas desta
área analisam a realidade político-social do continente, preconizando
uma revisão total do conceito de pan-americanismo, cujo conteúdo
ideológico e político já não atende aos interesses autênticos desses
povos, cujo obstinado desejo se concentra numa vontade de
emancipação total, tanto econômica como social. Desejo de sair deste
estado de subdesenvolvimento, no qual as circunstâncias políticas e as
forças econômicas internacionais os mantiveram relegados.
A carta atual da América Latina apresenta os seguintes traças
predominantes: seu território cobre uma superfície de 23 milhões de
quilômetros quadrados (16% das terras habitadas) para uma população
de 220 milhões de habitantes (7% da população mundial). Vinte
estados soberanos e alguns territórios coloniais formam o mosaico
político desta vasta região que se estende da fronteira sul dos E.U.A.
até a vizinhança da Antártida. No interior de suas fronteiras
encontramos imensas reservas de petróleo e de minerais de todas as
espécies. Seu potencial de solos cultiváveis é enorme e, em grande
parte, inexplorado. Assim, a América Latina é uma região bem mais
vasta e bem mais rica do que a América do Norte, mas suas
populações, sob o ponto de vista econômico-social, vivem no maior
atraso. No conjunto constitui a América Latina uma das grandes áreas
subdesenvolvidas do mundo, marcada em sua conjuntura social por
todos os estigmas do complexo do subdesenvolvimento. Baixa renda
média individual, péssima distribuição das riquezas, elevados
coeficientes de natalidade e de mortalidade. Índices alarmantes de
analfabetismo, de doenças endêmicas e de fome generalizada, etc. O
rendimento bruto por pessoa se mantém em torno de 350 dólares, três
vezes menor do que o da Europa Ocidental e oito vezes menor do que
o dos E.U.A. Os desníveis de suas riquezas são alarmantes, não
somente entre diferentes regiões de um mesmo país, mas entre as
diferentes classes sociais. Dois terços de sua população aperta o cinto
sobre um ventre vazio. A metade está atacada de doenças infectuosas
e parasitárias. Mais da metade assina em cruz. Um terço pelo menos
leva uma existência puramente vegetativa, fora dos circuitos
econômico e cultural. O sistema agrário feudal entretém este
desequilíbrio, pois uma minoria insignificante é proprietária de quase
todas as terras do continente, vivendo a grande maioria como servos
dos grandes senhores feudais. Na Venezuela 3% da população é
proprietária de 90% das terras. Os países da América Latina
continuam a obter seus recursos fundamentais no setor da economia
primária (agricultura e exploração mineira) e, principalmente, da
exploração por métodos arcaicos de uma agricultura de produtos de
exportação tais como o café, o açúcar, o cacau e o tabaco, que
constituem a maior parte das rendas da exportação da América Latina.
Sua população, como em todas as áreas de miséria do mundo, cresce
em ritmo acelerado. Sua taxa de crescimento demográfico é a mais
alta do mundo, com 2,6%, enquanto que a da Europa é de 0,8% e a
média mundial de 1,8%.
Como o crescimento da renda bruta na América Latina não
ultrapassa de 4% por ano, apenas 1% pode ser considerado como
progresso, desde que o resto é consumido pelo simples crescimento
vegetativo da população. Para onde será conduzida a América Latina,
através desta tomada de consciência de suas extraordinárias
potencialidades e de suas alarmantes deficiências? Embora não
tenhamos grande confiança nas previsões históricas, tomadas como
fórmulas mágicas para adivinhar o futuro, é possível, à luz de certos
fatores de semiologia econômica, prever as possíveis diretrizes do
processo político e econômico da América Latina. Em face da
realidade atual e pela projeção das tendências econômicas até hoje
manifestadas na região, quase nada se pode esperar para os próximos
anos que possa realmente modificar a fisionomia desta região. Só
através de um esforço novo, diferente de tudo o que tem sido usado
até agora, será possível emancipar-se da fome e da miséria o antigo
"continente da abundância" dos tempos dos colonizadores ibéricos.
Ora, este esforço necessário, muitas vezes evocado em documentos
líricos ou platônicos, resta no domínio das boas intenções. E "de boas
intenções o inferno está cheio", como diz um adágio do Nordeste. E é
por isto que a América Latina continua a viver o seu inferno
econômico, com suas almas danadas consumidas pelo fogo da fome e
das doenças em massa. E os planos de emancipação do continente
permanecem letra morta, porque "o interesse privado se sobrepõe ao
interesse público e o interesse estrangeiro domina o interesse nacional.
As vinte repúblicas poderão gozar da independência política desde
que dela se envaideçam e não façam uso. Dependem quase todas de
um só comprador-fornecedor. Vendem a preços baixos e compram
caro. Dependem dos monopólios que, como tumores cancerosos,
proliferando, as asfixiam sob a exuberância de sua vida anárquica.
Sobre a estrutura feudal se sobrepôs uma estrutura capitalista. Os
dirigentes das duas ordens contraíram uma frutuosa aliança. Visando à
manutenção e à ampliação dos privilégios, os feudais cederam ao
capitalismo estrangeiro o direito de cortar a carne à vontade, de
espremer o suco e de empobrecer irremediavelmente estas nações. Tal
situação semicolonial desperta um amargo ressentimento e prepara o
caldo de cultura de grandes desordens políticas.
A história que hoje se aprende da América Latina não é mais a da
epopéia dos descobridores, trazendo a estas terras a luz e a fé,
salvando as almas, cultivando o espírito e amparando o corpo das
primitivas populações que viviam atoladas na ignorância e no atraso.
É muito mais a história da dilapidação de suas riquezas por sucessivos
grupos de exploradores colonialistas que buscavam muito mais salvar
a sua economia metropolitana do que a alma dos habitantes de suas
colônias. É verdade que, com os primeiros descobridores que aí
aportaram trazendo numa mão a espada e noutra mão a cruz,
introduziu-se entre os seus bárbaros habitantes o espírito do
cristianismo. E é por isto que ainda hoje se afirma na Europa e nos
E.U.A. que a América Latina é a única região do terceiro mundo
oriunda da cultura e do cristianismo ocidentais. Infelizmente, os
conquistadores usaram melhor a espada do que a cruz. Ao
conquistarem as novas terras trataram de maneira tão desumana as
suas populações que um missionário do século XVI — este verdadeiro
cristão — perguntava indignado aos grandes senhores do tempo se
aquela cruz que eles traziam numa das mãos seria mesmo a cruz de
Cristo ou a cruz de um dos dois ladrões crucificados ao lado de
Cristo(3)!
Durante o século XIX, a revolução política levada a efeito pela
burguesia crioula contra o despotismo metropolitano terminou. Mas a
independência política assim obtida não se acompanha de nenhuma
revolução econômica e as taras coloniais permanecem. Durante três
séculos a América Latina é despojada de suas riquezas em proveito da
Espanha e de Portugal. Estas duas nações entrando em deliqüescência,
a América Latina continuará o seu papel de grande abastecedora, mas,
desta vez, no interesse quase que exclusivo dos E.U.A. É que na época
da independência política das antigas colônias latino-americanas, os
E.U.A. borbulham de energia criadora. Dispõem de enormes capitais e
de técnicas, que poderão ser implantados na imensidade latino-
americana, onde existem uma mão-de-obra dócil e abundantes e
inesgotáveis recursos naturais. São os E.U.A. os mais fortes, os
melhores armados, os mais empreendedores. Dispõem da Doutrina de
Monroe que se transformou na carta da intervenção permanente.
Acreditam os norte-americanos, ardentemente, na virtude do
liberalismo e estão persuadidos de sua missão civilizadora.
A eles compete, pois, difundir a eficácia, a exploração da riqueza
pela empresa privada e a implantação da democracia, e se lançam
nesta tarefa com o mesmo ardor com que os povos ibéricos se
lançaram na difusão da fé cristã. Acreditam estes novos pioneiros no
interesse evidente da divisão internacional do trabalho, na existência
simultânea e complementar de territórios fornecedores de matérias-
primas e de territórios que as refinem e as industrializem, nascendo
desta partilha das responsabilidades a prosperidade total. Não
devemos subestimar a sinceridade destas convicções, embora delas
tenham decorrido terríveis aberrações econômicas e trágicas
mutilações humanas.
Para realizar esta utopia da democracia econômica no continente,
desejavam os E.U.A. que não lhes opusesse a América Latina
qualquer resistência. Sua classe dirigente se compunha dos grandes
proprietários agrários cuja importância social e política se mede pela
extensão dos seus domínios e não por sua rentabilidade, dos
comerciantes e dos financistas. Esta classe reverencia os nomes de
Montesquieu, Jean Jacques Rousseau, Auguste Comte e o liberalismo,
o que lhe permitirá redigir soberbas constituições, enfeitadas com
peremptórias declarações dos direitos do Homem, e edificar uma
fachada democrática, ao abrigo da qual todas as forças
antidemocráticas terão livre trânsito.
A América Latina sofre de falta de capitais e de uma armadura
técnica, pois o seu ensino acadêmico dá as costas ao mundo moderno.
À epopéia dos Morgan, dos Ford, ela prefere a Ilíada de Homero.
Recusa-se a ler os balanços dos lucros das empresas em favor da
leitura dos poemas parnasianos. Faltando-lhe o espírito empresarial, a
América Latina tudo espera das democracias ocidentais e nas suas
mãos depõe os seus interesses e o seu futuro.
O capitalismo liberal, que devia modificar a condição humana
nesta área, conduziu todo o sistema a uma verdadeira desumanidade:
não destruiu o feudalismo opressor, mas apenas criou uma minoria
urbana muito bem provida e uma maioria de subproletários e de
camponeses subnutridos, analfabetos e desprovidos. Os produtos
manufaturados a serem importados custam cada vez mais caros em
relação aos preços das matérias-primas exportadas, e a América
Latina, enquadrada em seu absurdo arcabouço feudal e capitalista, não
progride senão na aparência, como só de aparência é também a sua
estrutura democrática. Alguns exemplos desta associação espúria entre
o capitalismo e o feudalismo, usando o cenário latino-americano para
a apresentação dos seus dramas, não deixa de ter a sua utilidade para
mostrar que os fatos que relatamos não são produtos de nenhuma
especulação teórica, mas o retrato fiel de uma realidade vigente.
A Venezuela sua petróleo por todos os seus poros. Cuba, como
uma ilha diabética, urina açúcar de maneira ininterrupta. A Bolívia se
recobre de estanho e o Chile de cobre. O Brasil e a Colômbia
transformam o húmus do seu solo e o suor do seu povo em grãos de
café. Os monopólios importadores dos E.U.A. desembaraçam a
América Latina de suas matérias-primas, amontoam os benefícios e
fazem crescer a miséria no continente.
Desde 1945 que a Venezuela é o segundo produtor mundial de
petróleo. Produziu 185 milhões de toneladas em 1962. Há trinta anos
contava três milhões de habitantes, hoje dispõe de oito milhões. Os
operários do petróleo não passam fome. Têm um salário elevado e
dispõem de serviços sociais, médicos e culturais. É que o petróleo
fornece 3/4 partes da renda nacional de cinco bilhões de dólares, por
ano. A renda média per capita do país é de 700 dó'ares. Mas a
realidade não se apresenta sob a forma de médias aritméticas. A
realidade é que os operários do petróleo são uma ínfima parcela da
população nacional, cuja massa vive até hoje na mais negra miséria.
Os 700 dólares da média per capita são a média entre a renda de
milhões de dólares de uns poucos e a renda de uns poucos dólares de
milhões de indivíduos.
A Standard Oil produz metade do ouro negro, a Shell a quarta
parte, a Gulf um sétimo, a Socony, a Sinclair e a Phillips produzem o
resto. Estas companhias pagam liberalmente os royalties e as taxas ao
Estado, o que não impede que a filial da Standard no país, chamada a
Creoula, tenha obtido em 1950 benefícios calculados em 167 milhões
de dólares. Possuem estas companhias seis milhões de hectares de
terra a título de concessões privadas.
A segunda riqueza nacional, o ferro, pertence à Iron Mining, filial
da United States Steel e à Orinoco, filial da Bethlem Steel. Estas
companhias fornecem atualmente 15 milhões de toneladas de
minérios. O grupo Hawkin se assegurou da petroquímica e o grupo
Cooper da siderurgia. Os palácios paradisíacos, as estradas imperiais e
os insolentes buildings de Caracas são um testemunho da opulência
reinante — suntuosa fachada por trás da qual fervilha a miséria
amontoada nos cortiços e nas favelas. Quatrocentas mil famílias
camponesas cultivam a terra que não lhes pertence, e o país não
produz hoje senão a metade do milho, da carne e do leite, e apenas um
terço dos legumes e dos cereais que consome. Decorre desta estrutura
que, conforme afirmou Harwey O'Connor "tudo na Venezuela, exceto
as matérias-primas, custa de 50 a 100% mais caro do que nos Estados
Unidos". E é através deste alto custo de vida que se esvai toda a
aparente ilusão dos altos salários.
No Peru, a Anderson Clayton controla o algodão e a lã. A Grace
Company, o Chase Manhattan Bank, o National City Bank of New
York, a Northern Peru Mines, a Marconia Mines, a Good Year, fixam
os preços agrícolas e controlam 80% das matérias-primas. Uma só
companhia, filiada à Standard Oil, controla 80 % da produção
nacional de petróleo. Duas companhias proprietárias de 13 milhões de
hectares de terras reinam soberanamente no campo da exploração do
cobre e de outros produtos minerais. Os monopólios se beneficiam de
vantajosos privilégios fiscais, havendo mesmo um decreto — o de 11
de outubro de 1945 — que declara ser o cálculo dos benefícios uma
informação "estritamente confidencial". O segredo legal cobre, desta
forma, o retorno dos capitais para os Estados Unidos.
Diante desta situação, o atual Presidente da República, Belaunde
Terry, para evitar uma revolução violenta, tenta realizar reformas
urgentes, contra as quais ,se levanta o poder de contenção da
oligarquia econômica.
Na América Central, a United Fruit controla, praticamente, toda a
economia da Guatemala, da Nicarágua e de grande parte de Honduras.
As estradas de ferro, as instalações portuárias, os navios, as estações
de rádio, os jornais, tudo lhe pertence. E são suas filiais que dirigem a
importação dos produtos industriais. No Chile, a Kennecott Co. e a
Anaconda Copper Co. controlam a quase totalidade das minas de
cobre e dos altos fornos do país. No México, toda a extração e a
indústria dos metais não-ferrosos, exceto a prata, dependem da
American Smelting and Refining Co. A Westinghouse domina o
mercado dos aparelhos elétricos. A Ford e a General Motors, a
indústria de automóveis, a Pan American World Airways, a navegação
aérea e a American Tobacco Co., a indústria de cigarros. E nas outras
diversas regiões ou países do continente fenômenos idênticos se
repetem. Os monopólios norte-americanos controlam sempre a quase
totalidade das operações econômicas. Em 1959 os monopólios
reconheciam ter realizado na América Latina lucros correspondentes a
774 milhões de dólares. Os cálculos indiretos afirmam que a verdade
se satisfaria com um lucro de 1.250 milhões. Segundo o economista
Johann Lorenz Schmidt, os lucros realizados na América Latina são,
conforme os casos, de 50 a 200% mais elevados do que os realizados
nos E.U.A.
De 1920 a 1953 a American Foreign Co., na Guatemala,
reembolsou seus acionistas em mais de 12 vezes o capital investido. O
economista chileno Alberto Baltra calculou que os monopólios
americanos, controlando a produção de cobre em seu país, auferiram
durante os últimos trinta anos um lucro líquido de dois bilhões de
dólares, o que representa, aproximadamente, 40 % do valor total do
cobre exportado durante este período e o triplo dos investimentos
efetuados neste país.
O total dos empréstimos concedidos à América Latina é, em geral
publicado, mas raramente o são as condições em que o empréstimo é
realizado. Na verdade, os juros são, via de regra, módicos ou liberais,
o que é escorchante é a imposição de que estes países se abasteçam
dos produtos industriais de origem norte-americana.
Depois da crise de 1929, vários países da América Latina se
esforçaram por criar uma indústria nacional e para isto se proveram de
uma barreira protecionista. Na impossibilidade de saltar com seus
produtos esta barreira alfandegária, os monopólios julgaram mais
vantajoso instalar suas usinas nestes países. Tendo em suas mãos as
indústrias extrativas e grande parte da produção agrícola, passaram,
também a controlar a maior parte da indústria de transformação, quase
sempre maquiladas com nomes indígenas. Os consumidores ignoram,
assim, que estão sempre na dependência de um traste norte-americano.
Quando no México, por exemplo, os mexicanos adquirem os seus
aparelhos elétricos à Indústria Elétrica Mexicana, o fazem, na verdade,
a Westinghouse Electric Co. Tiveram ainda os países da América
Latina de participar à força da política do embargo, produto da guerra
fria. Tentaram vender certas matérias-primas aos países socialistas,
mas esta atitude levantou um clamor geral em nome da defesa contra o
comunismo. Quando o Presidente Jânio Quadros, do Brasil, ensaiou os
primeiros passos na direção desta política, começou a baixar o seu
cartaz na imprensa norte--americana. E até à sua renúncia, sua má
reputação só fez aumentar. Como cada país da América Latina tem
seu balanço de pagamentos baseado na exportação de um ou dois
produtos apenas, a sua economia extremamente vulnerável deixa-se
facilmente controlar pelo jogo das pressões econômicas que se
exteriorizam, principalmente, pelas flutuações dos preços das
matérias-primas. Algumas cifras ilustram bem este mecanismo: a
Venezuela tem no petróleo 92% do volume total de suas exportações,
a Colômbia 74% no café, a Guatemala 72% na banana, o Chile 67%
no cobre e a Bolívia 62% no estanho. Nos últimos dez anos os
produtos de exportação da América Latina registraram as baixas
seguintes: a lei 46%, o zinco 28%, o algodão 23%, o estanho 20%, o
cacau 52%, o café 33% e assim por diante. A maior queixa dos países
latino-americanos repousa no fato sabido que 75% destas importações
são feitas pelos E.U.A. A monocultura, a monoprodução, a
dependência sem defesas de um só comprador-fornecedor privilegiado
amarram, irremediavelmente, a economia da América Latina. Ao
tomar conhecimento desta conjuntura opressora da economia mundial
sobre a economia do conjunto dos povos latino-americanos, estes
povos chegaram à conclusão que o processo de evolução rotineira de
sua economia, retardado por um conjunto de obstáculos de toda a
ordem, dificilmente lhes permitiria alcançar a emancipação econômica
que eles tanto aspiram, quebrando o círculo de ferro do
subdesenvolvimento. E chegaram mesmo à evidência que só através
de profundas modificações estruturais, que dificilmente serão
alcançadas sem violência, poderão estes povos se libertar de sua
miséria. A impressão geral é que nem a aspirina da ajuda
internacional, nem as injeções intermitentes de dólares poderão
impedir a explosão continental (4).
Dentro deste panorama geral da América Latina, o Nordeste se
ajusta como se fosse uma reprodução em pequena escala, ou seja, uma
miniatura do grande afresco geral.
Uma análise, feita com mais profundidade do problema da terra no
Nordeste, evidencia até que ponto a estrutura latifundiária, semifeudal
e semicolonial se mantém viva e prepotente nesta área. Mesmo
desfalcada de sua antiga força e de seu prestígio coloniais, mesmo
abalada pelas interferências de outros poderes econômicos, o
monopólio feudal da terra é ainda o pivô da vida econômica, política e
social do Nordeste.
Embora a indústria ensaie passos tímidos aqui e ali, a economia do
Nordeste é agrária no que ela tem de fundamental, e as trocas
monetárias processam-se ainda em escala reduzida. Mesmo nas
grandes propriedades pouco penetrou o salariado. Se este é encontrado
com freqüência nas zonas açucareiras de Pernambuco e Alagoas, está
quase ausente das outras lavouras da região. Os assalariados não
atingem um milhão sequer numa população de 20 milhões e nem
todos percebem salário a seco, remuneração por excelência do regime
capitalista(5).
A extirpação dessas raízes feudais encontra seu maior obstáculo na
elevada concentração da propriedade em poucas mãos. De fato, quem
se aprofundar no exame das causas que têm contribuído para o
subdesenvolvimento do Nordeste verá que ele deriva
fundamentalmente dessa inadequada infra-estrutura assente no
latifundismo. Desta decorrem, num encadeamento inexorável, todos
os fatores de atraso e de pobreza. E é fácil compreender por quê. O
latifundismo engendra uma estrutura de produção que se caracteriza
pela escassez de capital. Esta, por sua vez, faz com que seja pequeno o
excedente da produção destinado a inversões, dando lugar a uma
exígua taxa de formação de capital, que impossibilita a ampliação das
empresas agrícolas e a criação de indústrias rurais e de transformação.
Simultaneamente vão se agravando as desigualdades econômicas. No
alto da pirâmide social uma pequena minoria controla grande
proporção dos recursos agrícolas, ao passo que a maior parte da
população somente dispõe de sua força de trabalho ou de um
minifúndio incapaz de prover o sustento da família e cuja propriedade
lhe escapa quase sempre através do mecanismo das dívidas
hipotecárias insolváveis. Sem oportunidades econômicas e
educacionais, mantém-se baixa a produtividade de enormes setores da
população e torna-se, por isso, difícil, senão impossível, elevar a renda
regional.
Não havendo dentro desse defeituoso regime de terras imperativos
econômicos imediatos que determinem maior soma de investimentos
por unidade de capital e por unidade de área, o pequeno grupo
beneficiário dessa situação entrega-se às inversões especulativas,
quando não ao consumo suntuário. Os próprios investimentos
governamentais — e eles têm sido consideráveis na região — não se
mostram capazes de modificar fundamentalmente a economia do
Nordeste, pois, via de regra, favorecem sobretudo aquela minoria a
que nos referimos. Vejamos a razão.
Os açudes públicos, criados para combater os efeitos das secas,
como se sabe, fertilizam as terras adjacentes, valorizando-as
comercialmente. Quem ganha com isso? Os grandes proprietários das
terras em que estão encravadas essas obras. O mesmo sucede com a
construção dos canais de irrigação. E os açudes por cooperação e os
poços tubulares, largamente difundidos na região, quase sempre só
estão ao alcance dos médios e grandes proprietários, pois o pequeno
agricultor não dispõe de recursos financeiros, nem de influência e
acesso às autoridades, para requerer e obter a colaboração técnica e
financeira dos organismos públicos encarregados dessa tarefa.
A ênfase aqui dada ao problema da terra justifica-se. Muitos
programas de investimentos na área do Nordeste são elaborados sem
que se procure dinamizar o fator de produção que ali é primordial — a
terra, — estando por isso condenados a uma rentabilidade insuficiente.
O desenvolvimento econômico do Nordeste e o êxito do programa
oficial de combate aos efeitos das secas dependem estreitamente de
uma reforma agrária que mereça de fato esse nome. Não a reforma
agrária baseada em mera colonização de terras devolutas, a qual não
passaria de um conjunto de medidas inócuas, deixando intocado o
deplorável regime de terras imperante na região. Não a reforma
agrária desejada por certos líderes ruralistas, que consistiria em
desapropriar terras mediante a indenização prévia em dinheiro pelo
seu valor venal no mercado imobiliário; mas sim a reforma agrária
apoiada na desapropriação por interesse social, que retalhe os
latifúndios improdutivos; que dê terra a quem dela necessite para viver
com decência; que estipule novas e mais humanas bases de
arrendamento ; que regule os contratos de trabalho, fixando níveis
salariais adequados; que cuide da assistência técnica e financeira aos
pequenos produtores; que, em suma, liquide definitivamente os
odiosos privilégios que ainda hoje enfeudam a propriedade da terra no
Nordeste.
Sem essa reforma agrária, o Nordeste continuará a desenvolver-se,
como até agora, lentamente, a um ritmo bem inferior ao do conjunto
do país, sujeito aos tremendos colapsos econômicos que o
desencadeamento das secas provoca. Sem a reforma agrária, o
Nordeste continuará com seu comércio à base da exportação de
produtos primários e da importação de artigos manufaturados, o qual
sabidamente cria uma relação de trocas desfavorável e que tende a
deteriorar-se mais ainda em face da atual conjuntura internacional,
extremamente adversa aos produtos primários em geral e aos do
Nordeste em particular.
Não se trata de uma tese calcada num retrato impressionista da
paisagem agrária do Nordeste, mas em conclusão que emerge de uma
análise aprofundada de sua estrutura agrária, conforme a seguir se
verá. Preliminarmente examinemos, à luz das estatísticas censitárias, o
modo de ocupação e de utilização da terra e a maneira pela qual se
distribui a propriedade fundiária, bem como todos os demais aspectos
da economia agrária da região. A julgar pelos resultados do censo
agrícola de 1950, somente 49% do território nordestino estaria
ocupado por estabelecimentos agrícolas, o que nos parece altamente
subestimado, pois, mesmo descontando as áreas urbanas, e outras,
como rios, lagos e serras inacessíveis, teríamos de admitir elevada
proporção de terras devolutas, cuja área total é sabidamente de pouca
expressão. Responde por essa flagrante incompatibilidade do
recenseamento com a realidade agrária nordestina a inexistência de
cadastro das propriedades rurais, o que leva o dono de
estabelecimento a declarar a área por ele ocupada com base em
presunções ou estimativas não testadas por levantamentos
topográficos, quando não a reduz intencionalmente com receio da
ação fiscal do governo. Dos 49 milhões de hectares que, em 1950,
constituíram a área total dos estabelecimentos agrícolas, apenas 10$
estavam ocupados com lavouras (permanentes e temporárias). Essa
irrisória taxa de aproveitamento e o fato de que 76% das propriedades
agrícolas têm menos de 5 hectares de área de colheita caracterizam a
estrutura tipicamente latifundiária da região. Não obstante a
precariedade dos dados censitários, servem eles para compor um
retrato tosco, mas não de todo infiel, do agro nordestino, que alcança
contornos mais nítidos quando se examina a propriedade da terra.
Inicialmente releva salientar o grande número de lavradores que,
no Nordeste, não possuem a propriedade de qualquer trato de terra,
por menor que seja. De um total de 4.697 mil pessoas que, em 1950,
exerciam atividades agrícolas, somente 749 mil eram responsáveis
pela exploração de estabelecimentos, sendo que 261 mil dispunham de
área inferior a cinco hectares. Como se vê, quase 4 milhões de
nordestinos viam-se forçados, para viver, a lavrar a terra alheia, sem
garantias de qualquer espécie, auferindo os parcos rendimentos que a
meação, o arrendamento a curto prazo, ou o salariado lhes
proporcionam. Nesta primeira característica da economia do Nordeste
reside a principal causa da baixa produtividade e da insignificante
propensão a investir. Mesmo entre os que possuem glebas para
explorar, há disparidades gritantes. Assim, 15.458 grandes
proprietários de área superior a 500 hectares, isto é, 2% do número
total de responsáveis por estabelecimentos agrícolas, são donos de
48% da área total destes últimos. Em troca, os pequenos proprietários,
como tal conceituadas os que dispõem de área inferior a 50 hectares,
conquanto representem 76% do total de proprietários, só controlam
14% da área total dos estabelecimentos agrícolas. Por outro lado,
verifica-se sua pauperização gradativa pela tendência à pulverização
da propriedade. Basta dizer que, se em 1949 o número de
estabelecimentos com área inferior a 5 hectares era de 28% do total,
em 1950 este número ascendia a 35%. Esses donos de minifúndios
que mal dão para o sustento da família, não passam de legítimos
proletários do campo.
Nestas simples cifras está patente o elevado grau da concentração
da propriedade rural que caracteriza o regime latifundiário do
Nordeste. Ao contrário do que vem ocorrendo em outras regiões do
país, tanto a razão de concentração como a área média dos
estabelecimentos agrícolas aumentaram no Nordeste no decênio entre
os dois censos, o de 1940 e o de 1950. Por outras palavras, agrava-se
no Nordeste a monopolização da terra, à despeito da tendência à sua
divisão que deveria propiciar o direito sucessório brasileiro. O fato se
confirma também pelo ocorrido com as propriedades de área superior
a 500 hectares. Estas cresceram, não somente em número absoluto,
como também na extensão da área possuída.
Sobre esta infra-estrutura agrária feudal se assentam relações de
trabalho ou sejam características sócio-ocupacionais também
tipicamente feudais. Se na indústria açucareira, onde foi maior a
penetração do capitalismo no campo, o trabalho se faz num regime de
salário, nos outros setores agrícolas perdura o regime do
arrendamento, da parceria e da meação, expressões típicas da
exploração servil. Em qualquer das modalidades aí utilizadas o
latifundiário exige sempre que os contratos sejam de curta duração,
para poder renová-los em bases cada vez mais vantajosas, dada a
tendência de valorização das terras.
Em certos tipos de cultura o camponês é explorado ostensivamente
pelo proprietário agrário e pelo truste beneficia-dor e exportador do
produto. É o caso da cultura do algodão, de relativa importância na
economia do sertão nordestino. Nesta cultura, ao contrário da usina de
açúcar que se fez um só complexo agroindustrial, há uma separação
completa entre a indústria de beneficiamento do produto e a sua
exploração agrícola. A primeira, juntamente com a indústria dos
subprodutos, é dominada pelas poderosas firmas norte-americanas, a
Anderson Clayton e a SANBRA, que são donas das usinas de
beneficiamento, que controlam todo o capital comercial, que
monopolizam os produtos industriais destinados à lavoura e que
adquirem aos preços por elas fixados toda a matéria-prima disponível.
A segunda, a exploração agrícola propriamente dita, permanece nas
mãos do latifundiário que é o senhor das terras, mas o vassalo do
truste.
Na pecuária nordestina durante muito tempo prevaleceu o regime
da parceria, segundo o qual de cada quatro bezerros nascidos, tocava
um ao vaqueiro. Era a época do gado criado à solta, não raro em
campos sem dono, cujos pastos naturais eram uma espécie de
propriedade coletiva. Com a enorme valorização do boi, resultante da
sua maior procura nos mercados consumidores e da própria melhoria
da raça, passou a ser mais interessante, para o dono das boiadas, pagar
salário em dinheiro ao vaqueiro, ou, então, obrigá-lo a vender-lhe o
bezerro a que teria direito pelo preço vil por aquele estipulado.
Outro esforço do latifundiário no Nordeste foi a expansão do
plantio do agave. O preço era bem maior que o de outras culturas e
dispensava mão-de-obra em grande escala. As pequenas propriedades
revelavam-se inaptas para o fornecimento do sisal às máquinas
desfibradoras. Abandonavam-se, por isso, não só as culturas
temporárias (feijão, milho), mas também as permanentes, tudo com o
objetivo exclusivo de plantar mais agave. Novas terras se compraram
e novos latifúndios surgiram na região. A zona de Brejo, na Paraíba,
outrora dividida em pequenas propriedades cultivadas intensivamente,
produzindo gêneros alimentícios, que em épocas normais abasteciam a
cidade de Campina Grande e, nos períodos de seca, as populações
fronteiriças do Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco, foi
altamente prejudicada com a invasão do agave em bases latifundiárias.
Esta estrutura agrária do Nordeste, pintada em seus traços
fundamentais, é a grande responsável pelo fato de que nesta região a
renda média per capita seja de 2,6 vezes menor do que a renda média
brasileira. Que a população desta área apresente um índice de
analfabetismo de 74%, enquanto a taxa nacional de analfabetos é de
42%. Nesta conjuntura econômica defeituosa repousa, também, a
existência do desemprego ou do subemprego crônico que é uma forma
disfarçada do desemprego, muito comum nesta região, principalmente
na área do açúcar onde se observa "o nomadismo da mão-de-obra nos
períodos de corte da cana, grupos numerosos que se deslocam do
sertão e do agreste para a mata canavieira e depois retornam para
renovar cada ano este vaivém sem esperança"(6).
Hoje o camponês do Nordeste conhece todos os segredos desta
organização, bem melhor do que era de esperar por parte de uma
população em sua maioria analfabeta. E compreendeu, também, que o
monopólio da terra, associado ao monopólio das exportações,
transfere sempre para as costas do povo as sobrecargas do processo
espoliativo, resultante das pressões baixistas sobre os preços dos
produtos primários exercidas pelos trustes estrangeiros, e conclui que
os senhores da terra, intermediários e cúmplices desse processo, são os
grandes responsáveis pelo retardado desenvolvimento econômico
regional, pelo irrisório poder aquisitivo do homem do campo, pela
fome e pela miséria reinantes em toda a região.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 — GOETSCHIN, PIERRE, Situation économique de l’Amérique Latine, in


"Revue économique et sociale", Lausanne, fevereiro de 1962,
2 - GERASSI, JOHN, The Great Fear, Nova Iorque, 1963
3 — HANKE, LEWIS, Colonisation et Conscience chrétienne au XVI" siècle,
Paris, 1948.
4 - SWEEZY, P. M. e HUBERMAN, L., Latin America?, Nova Iorque, 1963.
5 — BARRETO, LEDA, Julião, Nordeste, Revolução, Rio de Janeiro, 1963.
6 - MORAES, MANOEL H. A., O Nordeste, o Meio e o Homem, in "Síntese
Política, Econômica, Social", n.° 17, Rio de Janeiro, 1963.
CAPITULO VII

ANOS DECISIVOS

POR OCASIÃO da sensacional descoberta levada a efeito em 1960


pelos serviços de imprensa e de informação dos E.U.A. desta
desconcertante terra do Nordeste, a tensão social aí reinante já tinha
atingido os limites do tolerável. Esta tensão vinha crescendo
paralelamente à tomada de consciência política — a conscientização
das massas — a que já fizemos alusão em capítulos anteriores. Na
realidade esta conscientização não representa um problema específico,
exclusivo desta região brasileira, ela é antes a expressão regional de
um fenômeno hoje universal: a tomada de consciência por parte dos
países periféricos, das origens, das causas e da significação dos seus
trágicos problemas político-sociais. O Nordeste, como uma área
tipicamente subdesenvolvida, em permanente e desesperada luta por
se emancipar econômica e socialmente, não podia escapar das malhas
envolventes desta trama, desta espécie de tecido espiritual, ao qual já
fazia alusão o Padre Teilhard de Chardin, e que hoje recobre
praticamente o mundo inteiro: o complexo tecido da consciência
coletiva. Nesta região do Nordeste, o fato de que poderosas forças de
contenção social tenham tentado impedir por todos os meios a
formação desta consciência coletiva e conter as suas variadas formas
de expressão além dos limites do tolerável provocara, num
determinado momento, o rompimento brusco desta barragem social, e
a consciência coletiva jorrou com uma tal violência que hoje se
apresenta não como um fenômeno evolutivo, mas como uma espécie
de transmutação social. Como uma espécie de fato imprevisível para
todos aqueles que não tenham acompanhado sua surda incubação no
subsolo das lutas de grupos que a História praticamente não registra.
Daí o desconcertante do atual momento histórico-social brasileiro.
Uma das impressões mais correntes que forma o estrangeiro da
realidade do Brasil, em seus primeiros contatos com esta terra, é o da
nitidez, do forte relevo de certas personalidades individuais, de
extraordinária riqueza interior, em contraste com a fragilidade do
sistema social, com o caos desencorajador desta sociedade, que se
apresenta como um conglomerado informe de arcaísmos e de
modernismos, de fatalidades e de veleidades. "É o Brasil um mundo
coletivamente imprevisível e sob certos aspectos desconcertante mas
no qual a mistura de raças, a hostilidade e a fecundidade da Natureza
engendraram uma individualidade excepcionalmente rica. Expansivo
como um meridional, melancólico como um índio e carregado de
ternura como um negro, o homem brasileiro se interroga por que será
ele tão pobre num continente que deveria ser tão rico. E, assim, ele se
conscientiza, o que quer dizer, se politiza", afirmou com lucidez
André Dumas, após uma viagem de estudos ao Nordeste do Brasil. E
concluiu que este país se mantém até hoje como uma gigantesca força
social que ainda não cristalizou suas potencialidades. Mas que se
aproxima do ponto da cristalização.
Neste impulso avassalante das forças de criação, contidas durante
séculos pelas barragens do feudalismo, se refaz a olhos vistos todo o
relevo da paisagem social da região, como se refaz o relevo de uma
paisagem natural, quando grandes torrentes procuram nela abrir
caminhos até então inexistentes. Se a Amazônia é fisicamente um
mundo ainda em formação, com o intrincado sistema dos seus rios
ainda modelando a fisionomia do seu solo incerto, o Nordeste é,
socialmente, também um mundo em formação, com o seu povo em
sôfrega busca de seus destinos históricos. A cada avanço desta
torrente social, hoje praticamente incontrolável, tem correspondido o
aparecimento de certas instituições criadas com o objetivo de mudar a
paisagem social da região. De ajustá-la melhor ao quadro atual das
necessidades vitais e das aspirações incontidas de um povo que
decidiu viver e não apenas sobreviver.
Infelizmente, como veremos a seguir, este objetivo ainda não foi
alcançado, tendo a maior parte das instituições criadas cedo
enveredado pelo caminho das falsas soluções, produtos, até certo
ponto, de uma consciência ainda um tanto nebulosa dos nossos
problemas, mas, principalmente, produtos das influências negativas de
poderosas forças interessadas na manutenção da "paisagem defunta",
na sobrevivência de uma estrutura morta, expressão típica do
feudalismo decadente.
Durante séculos, todos os problemas do Nordeste tinham sido
reduzidos a um só grande problema: o das secas. O problema das
secas considerado como um fatalismo climático, contra o qual nada ou
quase nada poderia fazer o homem. Daí o conformismo, a inércia, a
ausência de quaisquer medidas tendentes a melhorar a situação das
populações expostas ao flagelo. Só depois da ,sêca de 1877, que
segundo os anais da História matou de fome, de sede e de outros
males epidêmicos, metade da população do Nordeste, é que o governo
brasileiro tomou a iniciativa de realizar um plano, não de luta contra o
flagelo da seca, mas de ajuda e de amparo aos flagelados da sêca(l).
Assim, foi criada a primeira Comissão Nacional de Estudo dos
Problemas da Seca, que durante anos, de forma intermitente e bem
pouco ordenada, dispensava uma vaga ajuda nas épocas de
calamidade. Só em 1909, em face das constantes reclamações contra a
inoperância desta ação do Governo Federal, foi criado um organismo
com a missão específica de estabelecer e superintender um plano
sistemático de combate às secas: a Inspetoria Federal de Obras Contra
as Secas. Influíram muito na criação deste organismo, de um lado a
cega confiança que se votava no começo do século à ciência e à
técnica, como soluções válidas a todos os problemas, e de outro lado,
o exemplo a imitar, da criação nos E.U.A., em 1902, do U.S. Bureau
of Reclamation, que iniciara com sucesso a irrigação em larga escala
da região árida do sudoeste dos Estados Unidos(2). Inspirada em tais
princípios, a Inspetoria ,se constituiu como um órgão de engenharia, e
foi nomeado para seu primeiro diretor um engenheiro de minas,
Arrojado Lisboa, que a dirigiu durante três anos. Desde seu início,
com esta visão limitada do problema, considerando toda a miséria do
Nordeste como um problema de falta d'água e depondo toda a
confiança em resolver o problema através das soluções hidráulicas, o
novo organismo fracassou redondamente. Empenhou--se quase que
exclusivamente na construção de grandes barragens — os açudes,
mares interiores nesta terra de desolação. Mas, como nem ao menos se
preocupou o novo organismo em utilizar a água assim represada na
irrigação destas terras, os açudes tinham os seus objetivos limitados
apenas em refletir nas suas águas a beleza do azul do céu e em
concentrar nas suas margens, como pontos de resistência, as negras
massas de retirantes das épocas de calamidade. Mais grave ainda do
que a miopia técnica fora a mistificação política em que caíra este
organismo ao qual competia, também, a distribuição e a aplicação das
polpudas verbas para ajuda aos flagelados das secas. Nenhum outro
organismo técnico fora tão desvirtuado em seus objetivos do que este
que canalizava para os bolsos dos senhores das terras e dos seus
apaniguados quase todos os recursos que deviam ser destinados a
alimentar, a educar, a ajudar a viver aos camponeses da região. A ação
deste organismo se fazia sempre ao sabor das influências e do
prestígio político. Assim o seu esplendor financeiro correspondeu aos
anos de 1919 a 1922, durante os quais encontrava-se à frente da
Presidência da República, pela primeira vez na história do Brasil, um
homem do Nordeste, Epitácio Pessoa. Neste período, avultados
recursos foram consagrados às obras contra as secas, mas
infelizmente, dentro de uma estreita visão técnica e de uma conduta
política sempre lamentável. Com a eleição do novo presidente, um
homem do Brasil Central, o mineiro Artur Bernardes, foram cortados
quase que todos os créditos da Inspetoria, paralisadas as obras em
construção, e os grandes capitais investidos em máquinas importadas
dos E.U.A. pelo governo anterior ficaram enferrujando no campo, ao
lado das ossadas do gado morto de fome e de sede. E, mais uma vez,
se frustravam as esperanças do povo do Nordeste. Em 1950 a
Inspetoria mudou de nome, passando a chamar-se Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas, não mudou no entanto sua visão
política que continuou alienada dos interesses reais do povo da região.
Mas, se não realizou este organismo uma política eficaz na terra,
estimulou no papel a realização de trabalhos e estudos sobre o
Nordeste, que foram pouco a pouco revelando a sua realidade
econômico-social. A contribuição científica da Inspetoria Contra as
Secas desempenhou, pois, um papel inestimável na formação da
consciência regional e na preparação de uma política mais realista
para a solução dos seus problemas (3).
A partir do governo de Vargas se acentuou esta consciência de que
as soluções até então apresentadas não atendiam nem de longe aos
objetivos colimados. Na grande seca que assolou o Nordeste durante
os anos de 1931 e 1932, o Governo Federal liberou verbas
excepcionais para dar assistência a 220 mil flagelados que foram
empregados nos serviços públicos da área das secas. Estas despesas
atingiram a 10% da renda federal e representavam a mais alta
contribuição financeira ao Nordeste depois do período de Epitácio
Pessoa, quando esta quota fora de 15%. Ora, os resultados obtidos no
governo Vargas foram tão pouco brilhantes quanto os dos governos
anteriores. A percepção de que o Nordeste não era apenas um
problema de engenharia, mas de economia política, conduziu à criação
de dois novos organismos: em 1948, a instalação da Companhia do
Vale do São Francisco, encarregada do desenvolvimento da região e
da utilização do potencial hidrelétrico deste rio, e, em 1952, da criação
do Banco de Desenvolvimento do Nordeste. A partir deste momento
se formava uma mentalidade desenvolvimentista na região, em luta
aberta com a política que até então tinha sido imposta ao Nordeste
pelos homens do Sul. Política de tipo paternalista, limitada aos apelos
de "ajuda ao teu irmão" nas épocas calamitosas da seca. Ajuda que
mesmo como procedimento assistencial beneficiava mais a certos
grupos apaniguados — os industriais da seca — do que propriamente
às vitimas desse flagelo.
Na década dos cinqüenta, a economia brasileira tomara um grande
impulso, crescendo numa taxa média de 7% por ano, uma das mais
altas do mundo ocidental. A produção industrial aumenta neste
período numa média de 10% por ano. Com a diferenciação
tecnológica de nossa economia que se processa em ritmo acelerado, a
consciência democrática do país se fortifica, dando às populações um
maior desejo de participar dos destinos da nação. Tais modificações
desarticulam a antiga estrutura feudal e ameaçam seus velhos
interesses, despertando uma violenta reação. E é no Nordeste que se
acentua esta radicalização das forças antagônicas. Tudo aí passa a ter
uma certa conotação ideológica. Tudo é direita ou esquerda. Tudo é
revolução ou reação.
Todo um conjunto de fatores sócio-econômicos, agindo em
processo convergente, determinou esta cristalização em formas mais
precisas das antigas e informes contradições da estrutura sociológica
do país. Assim, se aprofundaram de forma impressionante as brechas
ou hiatos — aquilo que o sociólogo W. Ogburn chamou os cultural
lags — da sociedade vigente. O mais importante destes fatores de
aceleração do processo de conscientização das massas e de fissura na
estrutura social contraditória foi o próprio processo de
desenvolvimento econômico do país acelerado a partir de 1950.
O Presidente Juscelino Kubitschek, eleito em 1955 e empolgado
pela ideologia desenvolvimentista, concentrou todos os esforços do
Governo Federal na tarefa do desenvolvimento visando à emancipação
nacional. Mas confiou esta tarefa a colaboradores altamente
comprometidos com a estrutura agrário-feudal amparada no capital
estrangeiro. O desenvolvimento, que se processou, se fez, desta forma,
de maneira unilateral, limitado regionalmente ao Sul do país e
setorialmente a um só grupo de atividades: a indústria. Esta política da
industrialização intensiva concentrada na região do Sul acentuou ainda
mais os desníveis nacionais. O desnível regional entre o Sul e o
Nordeste e o desnível setorial entre a agricultura e a indústria,
agravando ainda mais a fome no país. Não foi casual nem
politicamente desinteressada esta opção por uma política de
desenvolvimento, preocupada em desenvolver as áreas já
desenvolvidas e em enriquecer mais os grupos já enriquecidos. O
marginalismo em que foram deixados a agricultura e o Nordeste —
região essencialmente agrícola — tinha suas origens nas imposições
de certos grupos de que não se tocasse nas estruturas agrárias. Que se
fizessem todas as revoluções industriais, mas não se pensasse na mais
discreta reforma nos problemas da terra. Os resultados deste
desenvolvimento capenga, feito numa perna só, agravou o
descontentamento das massas populares do Nordeste e impediu a
industrialização autêntica do país no ritmo desejado. Concentrando
todas as atenções do governo e todas as disponibilidades da nação
numa ,só região do país — o Centro-Sul — e imolando a este novo
Moloque todas as forças de produção nacional, o governo de
Kubitschek distorceu e desajustou ao extremo o sistema econômico
nacional. Diante do dilema do pão ou do aço, ou seja, da agricultura
ou da indústria, ele investiu tudo na indústria, esqueceu a agricultura e
acabou fazendo esta indústria estagnar por falta de matérias-primas,
por falta de meios de subsistência nos parques industriais e por falta
de mercado interno para os produtos desta indústria(4). Acredito que
sua intenção fosse boa, fosse a de emancipar o Brasil, através de uma
economia industrial e, portanto, com possibilidades de independência.
Mas a realização ficou bem aquém das intenções. O arcaísmo agrário
acabou peiando o crescimento industrial, e nos anos de 1955 em
diante, apesar deste apregoado esforço de industrialização, o seu ritmo
de crescimento começou a decair, passando o aumento do seu produto
real a ser apenas de cerca de 5% por ano, quando, no período de 1950
a 1954, fora de cerca de 11%.
Outro fator de agravação das tensões sociais no Nordeste tem sido
a sua crescente pressão demográfica. É esta uma área de alto
coeficiente de fertilidade e, se seu crescimento demográfico, no
período de 1950 a 1960, fora de 2,8%, enquanto o do país inteiro é de
3,5%- (o mais alto do mundo), o fenômeno se explica pela imigração
interna, pelo espraiamento das grandes massas nordestinas para todos
os quadrantes do país. A Amazônia no começo do século, São Paulo
nos anos mais recentes, absorveram grandes volumes destes
excedentes funcionais de população — os desocupados da economia
primária nordestina.
Com o craque da borracha e com o relativo recesso da indústria
paulista ameaçando o aparecimento do desemprego, a pressão
demográfica do Nordeste tinha que aumentar. É verdade que neste
período surgiu a construção de Brasília, mas sua capacidade de
absorção da mão-de-obra era bem mais limitada. E já neste momento
o Nordeste ameaçava saturar o Brasil, infiltrando-o com suas massas
humanas, exportando por toda aparte, com a sua miséria, a expressão
da sua angústia e a formulação de sua política de revolta e de
inconformismo. Salienta muito bem André Dumas que, se em Nova
Iorque se distingue um proletariado porto-riquenho bem definido e em
Paris um proletariado norte-americano, no Brasil o proletariado de
tipo nordestino está hoje universalmente presente. Em todas as
cidades, desde Porto Alegre, no extremo Sul, a Brasília no Centro, o
Nordeste acampa nas portas dos luxuosas buildings urbanos, exibindo
o seu rebotalho humano que o vento das secas e o chicote da fome
tangeram das terras do Nordeste para as outras áreas do país. E este
contraste alarma.
O Nordeste fez-se, assim, presente em todo o território brasileiro
como o maior problema nacional. Esta conotação sociológica reforça
o drama da luta ideológica do país e insufla novas táticas aos grupos
em conflito. A direita e a esquerda, ou as confusas forças que julgam
exprimir tais posições ou contradições, se apresentam agressivas no
cenário político nacional. A principal característica da esquerda
brasileira é de se apresentar conservadora em política e revolucionária
em economia. Por sua intransigente defesa dos princípios da
democracia representativa, ela sustenta o ponto de vista de que através
do jogo democrático os grupos de pressão popular acabarão por
conquistar o poder. Daí a sua tática de lutar pela conquista de um
parlamento que exprima autenticamente a realidade nacional e
defenda autenticamente os interesses do povo, e de um executivo
capaz de propor medidas dinâmicas, apoiado na vontade popular. No
sistema ideológico da esquerda destaca-se a consciência nítida dos
fatores condicionantes do subdesenvolvimento nacional e da nítida
influência dos capitais estrangeiros nos destinos do país — influência
exercida sobre variadas formas, principalmente através da propaganda
bem remunerada, que louva e exalta a política de certas potências
estrangeiras e que combate e avilta todas as iniciativas de renovação
política e de emancipação econômica do país. Esforça-se ainda a
esquerda por obter em apoio de sua causa as Forças Armadas hoje
divididas. Forças Armadas que em sua esmagadora maioria é
patriòticamente nacionalista, mas se apresentam, em parte por sua
obsessão anticomunista, capaz de defender um status quo superado e
opressivo. Contra esta infiltração da esquerda que ganha terreno a
olhos vistos e que ameaça mesmo ganhar o poder democraticamente
pela força do voto, principalmente se este voto for estendido às massas
analfabetas, hoje politicamente conscientizadas, rebela-se
violentamente a direita. A direita, que deseja antes de tudo a
manutenção da atual estrutura onde, no fundo, ela exerce ainda todo o
poder econômico e, por seu intermédio, a maior parcela do poder
político. A direita no Brasil não é uma classe historicamente
ultrapassada que sonhe voltar ao poder. Mas uma classe politicamente
ativa que participa do poder e, para nele eternizar-se, preconiza
mesmo os métodos da ação subversiva. É por isto que a direita
economicamente conservadora em extremo, é politicamente
revolucionária, neste sentido de que a ordem democrática,
estabelecida em bases verdadeiras, representa para ela, o maior perigo
aos seus privilégios abusivos, em face de uma possível tomada do
poder pela esquerda eleitoralmente bem mais forte.
Praticamente já não existe centro ou política de centro, no país.
Como nunca existiu classe média na sociedade de tipo feudal, a
inexistência deste tecido intersticial de ajustamento político não
propiciou a criação de uma posição de centro politicamente forte. O
centro se acomoda tímido e apagado às pressões dos dois lados. Do
arsenal ideológico da direita faz parte ainda uma submissão total aos
interesses das potências estrangeiras sob o pretexto já surrado do
perigo comunista. Tal perigo a direita exagera em altos brados,
escondendo a realidade de que o Partido Comunista Brasileiro, que
nunca foi estruturalmente forte, atravessa no momento uma das mais
graves crises internas, — crise de divisionismo em face da luta de
princípios ideológicos que travam a URSS e a China. Em sua análise
superficial do problema do subdesenvolvimento, a direita defende a
tese falsa de que a pobreza nacional se deve, antes de tudo, à falta de
elementos capazes e válidos para impulsionarem os empreendimentos
econômicos do país.': Alguns dos seus porta-vozes dão grande ênfase
aos problemas da educação e da saúde, considerados como causa e
não como efeito do subdesenvolvimento. Toda a direita, sem exceção,
omite intencionalmente de sua problemática os problemas estruturais
de base da nação. Com um programa deste tipo, é fácil compreender-
se que a direita se encontra ideologicamente desmunicionada para
enfrentar os problemas do subdesenvolvimento brasileiro
democraticamente e, por isso, a sua tática é a da violência. Daí os seus
processos de intimidação de todas as vozes que se levantam, pregando
a urgência das reformas que o Brasil necessita. Daí o terrorismo em
que ela descamba, criando um clima de pânico e de incerteza para o
país. A direita brasileira sabe que sua última chance reside na guerra
civil onde ela poderia contar, sem dúvida, com um auxílio estrangeiro
substancial, justificado pelo pretexto de afastar os perigos de uma
ditadura comunista. Claro que esta é uma solução precária, de sucesso
curto, pois a direita diante da extrema ineficácia de suas respostas ao
problema do subdesenvolvimento está de antemão condenada ao
fracasso político, à perda do poder, que lhe escapa de maneira
irremediável. Esperemos que esta conscientização ou lucidez política
nacional encontre sua contrapartida nos responsáveis pela segurança
do hemisfério americano, os quais, compreendendo a precariedade do
esquema político da extrema direita que conduzirá fatalmente o Brasil
à convulsão improdutiva, prefiram o desenvolvimento democrático,
apoiando as reivindicações das massas conscientes ou pelo menos
contendo seus impulsos de intervenção.
É preciso que se reconheça que esta complexa estrutura política do
país, tão contraditória em sua aparência, facilita as interpretações
inexatas e conduz a uma visão deformadora da realidade política
brasileira. Daí os graves erros manifestados pelos cronistas da recente
descoberta do Nordeste.
O maior destes erros dos observadores estrangeiros do Nordeste de
1960 foi o de transpor da sociedade que lhes parecia confusamente
incompreensível, para certas individualidades que se apresentavam
como nitidamente definidas, toda a responsabilidade do drama
histórico que aí se representava. Enorme foi este erro de pensar que
eram estas personalidades os verdadeiros heróis do drama, quando não
passavam elas de simples comparsas de uma história, cujo
personagem central era mesmo o povo nordestino: a massa humana
indistinta, informe, agitada e sofredora do Nordeste. Olhando a
paisagem humana encandescida pela tensão social, os observadores
apressados apontaram como incendiárias, certas personalidades e
instituições, que longe de estarem jogando lenha na fogueira, o que
estavam na verdade era procurando evitar que o fogo se alastrasse.
Diante da tremenda confusão do incêndio, os observadores
inexperientes tomaram como seus autores os próprios bombeiros que
se agitavam socialmente, lutando contra a explosão. Vejamos alguns
exemplos: Miguel Arraes, Francisco Julião e as Ligas Camponesas, os
padres da Reforma Agrária, Celso Furtado e os técnicos da SUDENE
são alguns exemplos de nomes invocados como instigadores da
revolução social do Nordeste, quando na verdade eles apenas
personificam, em determinados aspectos ou setores de atividades, o
impulso natural do movimento de emancipação de um povo,
desencadeado de início, à revelia destes homens. É ingênuo pensar
que foi Julião quem inventou o problema agrário no Nordeste, que foi
Arraes o autor da escravidão branca e das aspirações de justiça social,
que foi Celso Furtado o revelador da economia dependente ou que fui
eu quem inventou a fome. Não inventamos nada. Todas estas coisas já
tinham brotado naturalmente da estrutura social da região e crescido
emocionalmente no seu clima humano de desespero e apenas
aguardavam serem um dia reveladas em termos mais ou menos
racionais por alguns homens ou instituições da terra. Homens e
instituições realmente identificados com os problemas dessa terra.
Mais ainda uma vez por ignorância ou má fé são os efeitos tomados
como causas. Para desfazer este erro de interpretação, que poderá ser
de graves conseqüências para o futuro político do continente inteiro,
pelas distorções que ele acarreta na formulação dos tipos de política
preconizados para evitar a exploração violenta do Nordeste, basta que
se analise com serenidade e com objetividade o que vem ocorrendo
nestes anos decisivos que precederam e que se seguiram à data
simbólica de 1960. E que nesta análise sociológica se coloque nos
devidos lugares, sem prevenções ideológicas, estas e outras
personalidades que se vêm destacando por sua participação mais ativa
no processo da revolução social do Nordeste. Miguel Arraes, Prefeito
do Recife na data da descoberta e Pelópidas Silveira, então Vice-
Governador do Estado, são nominalmente citados no documento de
Tad Szulc: " O Prefeito Miguel Arraes de Alencar é geralmente citado
como comunista, embora ele o negue. A administração da cidade
inclui comunistas notórios em altos postos... O Vice-Governador do
Estado Pelópidas Silveira, pertence ao Partido Socialista Brasileiro
que em Pernambuco trabalha em íntimas relações com os comunistas,
especialmente nas Ligas Camponesas". Até onde vai o "comunismo"
de Miguel Arraes? A evidência dos fatos tem mostrado que se trata de
um homem público, simples e probo, de formação cultural
relativamente limitada e sem grandes rasgos de imaginação. Mais um
realista e um realizador do que um intelectual ou ideólogo. Como
político se voltou Arraes com sincero devotamento aos problemas do
povo e à busca de soluções democráticas para estes problemas.
Cercou-se, em sua administração na Prefeitura do Recife e depois no
Governo do Estado, de uma equipe de homens conhecedores destes
problemas que o orientam tecnicamente no complexo labirinto das
decisões a serem tomadas. Sempre participaram desta equipe, é
verdade, comunistas, como também, socialistas e católicos ferventes e
praticantes e economistas e técnicos muitos deles com um santo horror
às lutas ideológicas, mas todos irmanados e galvanizados por um só
ideal comum: a urgente transformação sócio-econômica do Estado
chave do Nordeste — Pernambuco.
Em reportagem publicada por Antônio Callado(5) no órgão
conservador Jornal do Brasil em dezembro de 1963 lê-se o seguinte:
"Pernambuco é, neste momento, o maior laboratório de experiências
sociais e o maior produtor de idéias do Brasil. É o Estado mais
democrático da Federação. Lá a gente repara, mesmo, que a
democracia não tem nada de habitual no Brasil. Dois fatores principais
se terão combinado para favorecer o aparecimento desse clima
pernambucano de liberdade: um movimento de agitação das massas
que preencheu, em poucos anos, o papel da educação que essas
massas nunca tinham tido, e a eleição para o Governo do Estado, de
um homem do povo. Miguel Arraes é o primeiro homem do povo a
dirigir uma das unidades de maior atraso mental e mais arraigadas
pretensões aristocráticas do Brasil... Duas coisas dificultam em
Pernambuco qualquer opinião definitiva sobre o que se passa e o que
virá a acontecer: tudo lá é novo, fluido, acelerado, e, em segundo
lugar, tudo é empírico. A questão social em Pernambuco era, em
rigorosos termos de República Velha, um caso de polícia. E era a
polícia que resolvia o caso. Isto se vê claramente no próprio memorial
que as classes produtoras de Pernambuco entregaram, em outubro, ao
Presidente da República e aos Presidentes da Câmara dos Deputados,
do Senado e do Supremo Tribunal, denunciando o clima de terror e
insegurança, criado pelo Governo Arraes. Dizia o memorial: "Dentro
da mesma técnica de desmoralização do princípio da autoridade, a
polícia muitas vezes participa passivamente das invasões.
Acompanha, como testemunha impassível, aparentemente sem
objetivo, o desenrolar dos acontecimentos. Com isto serve, no entanto,
aos propósitos do governo, fazendo sentir ao camponês, outrora
respeitador da lei e da autoridade, que pode seguir sem risco os
agitadores, na desordem e no crime, sem temer a Força Policial
considerada antes, por eles mesmos, garantidora da ordem pública"...
Apesar da tentação dei o trecho todo sem grifos ou aspas, na sua
prístina pureza. A polícia de Pernambuco é hoje uma polícia de
verdade, uma polícia de vigilância e não de repressão. Não baixa o
pau, quando o usineiro chama, e é isso que dá uma nostalgia de tango
aos que contavam com a polícia como um dócil leão-de-chácara.
Participa passivamente. Testemunha impassível. Em novembro
passado, essa polícia impassível fez com que transcorresse na maior
ordem a greve geral que paralisou totalmente, durante dois dias, toda a
indústria canavieira de Pernambuco. E não houve atentados à
propriedade, depredações ou mortes. Qualquer carnaval do Rio de
Janeiro resulta em muito mais acidentes e tropelias do que foi o caso
nessa reivindicação salarial de 200.000 homens que até há pouco
tempo mal sabiam o que era salário, quanto mais reivindicação... Tudo
é novo e tudo empírico. Pernambuco nem se parece com Cuba nem
com URSS Por outro lado já não parece muito com o resto do Brasil.
Sua pobreza continua enorme, mas ,sua atividade revolucionária, sua
busca de soluções em todos os terrenos, dão-lhe uma vitalidade maior
que a de qualquer outro Estado. As franquias democráticas são totais,
a grande imprensa e a sofisticada televisão locais são conservadoras, o
contrabando de uísque e cigarros americanos é risonho e franco, mas,
ao mesmo tempo, lá estão os padres que não vêem nada demais no
trabalho que fazem os comunistas entre os homens do campo, lá estão
as Ligas Camponesas pregando guerrilhas sob a invocação do Padre
Cícero de Juazeiro e lá está uma nova geração que trabalha até de
graça para a Assessoria Sindical".
Esta reportagem revela com cristalina clareza que Miguel Arraes
se inseriu no sistema histórico, como uma peça do sistema.
Obedecendo mais à sua força de expansão natural do que tentando
pela força dirigir pessoalmente o sistema. Esta a verdade dos fatos.
Pelópidas Silveira sempre foi, antes de tudo, um administrador
progressista e não um agitador social. Sempre foi um bom gerente que
não batia nem prendia os seus operários. Que os respeita como
homens e os estima como irmãos e que, por isto, a massa proletária do
Recife já o elegeu por duas vezes para Prefeito do Recife. Seu suposto
extremismo se funda exclusivamente em sua extremada resistência em
cooperar com a reação cegamente anticomunista.
Mas há Julião. Julião o anticristo, o fariseu, o espantalho máximo
da região com suas temerárias Ligas Camponesas. E neste caso é ele
mesmo quem se acusa apresentando-se em cena para recitar com élan
o seu perigoso papel: "Fazemos questão de deixar bem claro que tendo
inciado, faz alguns anos, um trabalho de agitação nos campos de
Pernambuco que se alastrou tempos depois pelo resto do país e fora
mesmo de nossas fronteiras, o único título que desejamos alcançar no
fim desta jornada, se o merecermos, é o de simples agitador social, no
sentido patriótico de colocar diante do povo, o problema fundamental
para debate franco e o encontro da solução justa"(6).
Que problema agitou este agitador de profissão? O problema do
feudalismo agrário do Nordeste com os seus horrores e as suas
injustiças sociais. Onde formou o agitador a sua técnica de agitação?
Na própria agitação social da massa nordestina. Na verdade o agitador
autodidata vinha agitar a própria agitação já reinante na região.
Agitação levantada pela abusiva permanência de um sistema que
ofende a dignidade humana, sistema que mantém todos os poderes nas
mãos de uns poucos privilegiados. Foi vendo este espetáculo que
Julião apareceu e lhe deu expressão, como há vários séculos Frei
Bartolomeu de Las Casas, assistindo à hecatombe dos índios,
dizimados pelos colonizadores espanhóis, passou a agitar o problema
da escravidão dos índios. Como Joaquim Nabuco, diante da
escravidão do negro, se fez em agitador da abolição. Como Antônio
Silvino e Lampião, diante do desrespeito aos direitos do homem
imposto pela prepotência dos latifundiários do sertão, se fizeram
agitadores do cangaço. Sempre o mesmo processo: a agitação latente
se exprimindo pela força consciente de uma forte personalidade
humana. Joaquim Nabuco riscando a história com os traços de sua
pena e Lampião com os traços de suas balas. Mas para que a História
não seja falsificada é preciso colocar bem esses traços dentro das
linhas daquele tecido a que já fizemos referência: o tecido espiritual
da consciência coletiva. Já bem antes de Julião, o Nordeste estava
tomando consciência do que significa o regime latifundiário: o regime
do foro e do cambão. "Na verdade, o camponês vive submetido ao
regime do cambão e do foro, palavras que constituem as correntes de
uma escravidão branca. Para ter direito de usar a terra, o camponês é
obrigado a pagar ao proprietário uma taxa anual (foro), que vai de Cr$
... 10.000 a Cr$ 40.000. O foro é seguido do cambão, ou sejam, 99
dias de trabalho por ano, sendo 90 ao preço diário (em vários casos
que examinamos) de Cr$ 4 a Cr$ 5, e os 9 dias restantes sem
pagamento algum. Durante o trabalho do cambão, o camponês não
recebe qualquer comida: é o que eles chamam de cambão a seca, sem
mesmo um copo com água. No caso de o camponês não poder — por
doença ou qualquer motivo — dar os dias de cambão, é obrigado a
pagar o dia ao preço do momento. Por um trabalho que recebe em
pagamento Cr$ 5, quando trabalha, é obrigado a pagar de Cr| 80 a Cr$
100. É comum ainda os patrões exigirem, além do foro e do cambão,
que o camponês se encarregue das contas da terra, ou seja, a lavra de
trechos. Se o camponês, como no caso do cambão, não pode trabalhar
na conta, tem de pagar a trabalhadores para que o façam naquele
sistema de preço. Encontramos ainda agravantes odiosos. Como este:
além de tais condições, o foreiro, só pode vender o produto de suas
roças a dono da terra. Pelo preço que convenha a este e nem sempre a
dinheiro vivo: em troca de fornecimentos ou de cachaça. Este sistema
vigora, nesses termos, na região em que os engenhos não são
necessariamente de cana. Isto é: o proprietário destina uma parte à
cana e outra aos foreiros. Na região dos engenhos de cana, o sistema é
ainda mais terrível. O canavial começa onde acaba a casa do
camponês e seu trabalho é no eito, na capina, plantio, corte, amarração
e cambitagem da cana. Vigora o regime do barracão da usina para
fornecer alimentos em troca de trabalho, num regime de preços
ditados pelo dono do barracão. Nem sempre circula dinheiro e alguns
donos de engenho chegam a dar ao trabalhador a ilusão de ganharem
mais do que em outros engenhos: aumentam o salário e retiram a
diferença majorando também o preço dos mantimentos e utilidades
oferecidas pelo barracão. É esse o clima em que se desenvolvem as
Ligas e as suas idéias". É esta a descrição que nos faz na primeira de
uma série de reportagens publicadas em 1961, na revista 0 Cruzeiro, o
jornalista Mauritônio Meira(7). São estas condições mantidas pela
oligarquia feudal que aí tenta resistir à ação transformadora do tempo.
Em meados do século passado dominavam toda a terra do Nordeste
algumas poucas famílias. Houve mesmo um tempo, onde uma só
família dominava praticamente um Estado inteiro. "Dominavam na
terra pernambucana os três irmãos Cavalcanti: o Visconde de
Camaragibe, o Visconde Suassuma e o Visconde de Albuquerque. O
primeiro chefiava praticamente o partido conservador, o segundo
deste fazia parte e o último era o líder inconteste do partido liberal.
Qualquer mutação na política imperial nenhuma repercussão
apresentava em Pernambuco. Continuava a mesma situação a imperar,
isto é, o domínio dos Cavalcanti. Daí a quadra, segundo se afirma, de
autoria do Professor Jerônimo Vilela de Castro Tavares, da Faculdade
de Direito, então em Olinda, ao afirmar:

"Quem viver em Pernambuco


Deve estar desenganado.
Ou há de ser Cavalcanti
Ou há de ser cavalgado".

Esta oligarquia representava a dominação da aristocracia rural


controladora da vida agrícola, possuidora dos inúmeros latifúndios
existentes na Província".
Um século depois, a oligarquia continua cavalgando o Nordeste.
Se passou a dinastia dos Cavalcanti, lá está montada a dos Ribeiro e
dos Lundgren: "A Paraíba é um Estado que fica dentro do latifúndio
dos Ribeiro, é o que pela Paraíba se diz, acrescentando: o pedaço da
Paraíba que não é dos Ribeiro é dos Lundgren, sim senhor. Os Ribeiro
têm toda a várzea da Paraíba do Norte, com suas cidades, vilas,
canaviais, gente e a consciência de representantes paraibanos no
Congresso Nacional. Os Lundgren têm, além de um pedaço da
Paraíba, o litoral de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, fábrica de
pólvora, Casas Pernambucanas. Nestes incultos ducados nordestinos
crescem a cana e o algodão que assalariados e foreiros plantam, mas
estão também crescendo plantas daninhas aos latifúndios, como as
Ligas Camponesas". É o que nos conta Antônio Callado na série de
suas reportagens publicadas em 1963.
Nestas condições, tratar de um assunto tão emocional-mente
carregado de tensão política é provocar inevitavelmente a agitação.
Com sua mentalidade de poeta lírico, Julião começou a agitar falando
numa linguagem colorida e popular, de fácil percepção pela massa.
Ele costuma dizer coisas como estas: "Não pode haver felicidade de
estômago vazio", "A fome é inadiável e não se transfere: ou se mata a
fome ou se morre dela", "Temos de acabar com a sociedade dos
sabidos", 'Não queremos saber de ideologia ou religião de ninguém:
que venham todos libertar o camponês da opressão", "Não vemos
inimigo no soldado, no padre, no estudante, no industrial, no
comunista; o inimigo é o latifundiário", "A Liga vai tirar o soldado de
polícia da porta da casa do lavrador", "Só a Liga conseguiu até hoje
fazer com que um latifundiário comparecesse a Juízo na condição de
réu", "A Liga é como uma mão fechada. Precisamos da mão fechada
para empunhar o facão. Unam-se como uma mão fechada", "Esta luta
é mais bela do que a abolição da escravatura", "Ou faremos a reforma
agrária, ou a reforma agrária fará a revolução", "Faremos a reforma
agrária pela lei ou na marra (isto é, na luta)" "O papa João XXIII foi o
primeiro Papa a vir de origem camponesa. A encíclica que ele acaba
de fazer é uma prova de que o Papa veio apoiar as Ligas
Camponesas", "A Liga é como a cheia do rio: começa pequena e vai
crescendo e levando tudo pela frente", "Usamos nessa pregação as
palavras da Bíblia. Sim, porque a Bíblia é um livro revolucionário".
Com frases como estas, dos mais variados matizes ideológicos,
procurou Julião canalizar para um mesmo rio, todas as águas correntes
oriundas das fontes emocionais do caboclo do Nordeste: a sua
consciência da injustiça social, a sua combatividade nas horas
decisivas. O tenaz esforço de Julião tem sido o de dar uma voz ao
enigmático mutismo do camponês, com ele dialogando e ensinando-o
a dialogar. Para mostrar o grau de politização que alcança hoje o
diálogo entre os camponeses e os seus senhores, basta referir à
saborosa conversa ocorrida entre um coronel do latifúndio e o seu
morador: — "Seu coronel o que é mesmo este tal de comunismo?" —
"Comunismo é um regime que toma tudo o que é dos outros, que faz
mal às filhas dos outros e que empata a religião dos outros", responde
seguro de si o coronel. — "Mas se é assim, seu coronel, já estamos
neste regime", responde ainda mais seguro o camponês.
A que perigos poderá ser arrastado o Nordeste por este diálogo
aberto com a massa hoje despertada do seu .sono fatalista? "O perigo
não está propriamente em Julião, o homem que lê Júlio Verne às
escondidas, mas nas massas que ele vem açulando, dopando com as
suas palavras de açoite. Elementos responsáveis da melhor elite
intelectual do Nordeste defendem convencidos a tese de que Julião
tem sido o freio da revolução armada da região. Para esses
intelectuais, as coisas felizmente ainda estão nas mãos de Julião, que
se conduz como um São Francisco de Assis, fazendo da Bíblia a sua
cartilha. A catástrofe virá se o feiticeiro não conseguir dominar as
águas que está levantando. Não é fora de cogitação a possibilidade de
Julião vir a ser empurrado em termos de violência pela própria massa
que ele hoje atiça. Poderá ser até esmagado por ela" (8). Não foi
esmagado, mas foi deixado para trás. A corrente passou adiante e ele
ficou aquém do ímpeto da grande onda em cuja crista hoje aparecem
outras figuras carismáticas. Isto ocorreu porque faltou-lhe capacidade
de direção, de formulação de uma ideologia clara, de soluções práticas
ao problema. E toda aquela sua força verbal, toda a sua capacidade de
agitação se volatilizou numa vaga forma de romantismo político.
Outras lideranças surgiram dentro do mesmo processo. O clero
nordestino, conhecedor das misérias da região, da revolta do seu povo
e temeroso em face, de um lado do desprestígio político da Igreja
junto às massas e, de outro lado, que essas massas debandassem para
rumos perigosos, começou a organizar uma ação social de mais
profundidade do que a da caridade de tipo paternalista. Guiada por
alguns dos seus líderes católicos mais progressistas, resolveu a Igreja
utilizar a religiosidade dessa gente como uma força de criação social".
É muito grande a religiosidade daquela gente, e, com o declínio do
prestígio da Igreja, ficou como os açudes do Departamento de Obras
Contra as Secas: inúteis, porque não completados pelos canais de
irrigação. A religiosidade do caboclo está trancada. Deus virou um
poço inútil dentro de cada camponês. Quem soubesse, não importa
com que finalidade, liberar aquelas águas vivas, ficaria dono de um rio
caudaloso"(9).
Foi neste sentido de liberação dessas águas vivas que a Igreja
entrou em cena no drama da liberação do Nordeste. É bom frizar que a
Igreja no Brasil é exteriormente muito poderosa e interiormente bem
pouco municionada de sentido religioso. O poder exterior da Igreja,
deriva, antes de mais nada, do fato de ser a alma do brasileiro
naturalmente tão afastada do fanatismo como do anticlericalismo.
Todo o mundo admite sem dificuldade que o Evangelho do amor, da
não-violência e da esperança, é uma semente de salvação para o
Homem. Embora de um catolicismo mais formal do que substancial,
as grandes massas humanas se alimentam do grande exemplo de
Cristo. Os fenômenos de sincretismo religioso das macumbas e dos
candomblés dos mocambos do Nordeste e das favelas do Rio .são a
prova de que o homem do povo, mesmo desobediente ou indiferente
às palavras da Igreja oficial, procura estabelecer espontaneamente esta
comunhão entre a sua vida e o espírito de divindade. Como tudo no
Brasil no momento, a Igreja também está dividida. Uma parte — a
maior — alimentada pelo conservadorismo, se mantém indiferente ao
social como um aliado potente das forças de opressão popular, outra
parte é representada por uma minoria mais esclarecida, a chamada
esquerda católica que tem o seu grande centro de ação e de irradiação
exatamente no Nordeste. A atitude desta ala dirigida pela maioria dos
Bispos da região pode ser definida com precisão através de uma frase
do atual Arcebispo do Recife, D. Helder Câmara, de que "o escândalo
não está na infiltração comunista, mas na falta de infiltração cristã".
Esta tentativa de infiltração tem sido feita nos últimos anos no
Nordeste através da tentativa de organização dos sindicatos rurais em
que se lançaram vários padres, em aberta concorrência com as Ligas
Camponesas. Esta política de estimular as associações de classes e a
criação de sindicatos rurais, até pouco tempo combatida pela própria
Igreja sob o pretexto de que facilitaria a ação comunista no meio rural
brasileiro, vem mostrar a que ponto atingiram as preocupações do
clero, disposto a preferir os candidatos com todos os seus riscos à
revolta desordenada diante da opressão desumana. Nesta ação social e
socializante da Igreja em luta aberta contra o latifúndio, destacam-se
figuras como a de Monsenhor Negreiros, da zona do Seridó, no sertão
do Nordeste, e como a do Padre Melo na zona do latifúndio
açucareiro. São figuras marcadas de suspeição pelos grupos
conservadores que chegam a pôr em dúvida os sentimentos cristãos
desses padres. No caso de Monsenhor Negreiros, quando as acusações
foram crescendo, ele reagiu a advertiu da praça pública que: "Se
continuarem a me chamar de comunista, compro um lenço vermelho e
ponho no pescoço". Na sua opinião os senhores feudais já não contam
com o apoio passivo da Igreja: "Eles se limitam a dar esmolas à Igreja
e eu sou contra a mera assistência, porque caridade cristã sem justiça
social é um tóxico", acrescenta o padre de Seridó.
Outro padre famoso na região é o padre Melo, que, em certas
ocasiões, fez causa comum com Julião e que, ao lado dos camponeses,
travou luta política contra o Governador de Pernambuco Cid Sampaio,
pelo fato deste ter ordenado a expulsão de camponeses de certas áreas
do Estado. Quando alguns lavradores mais timoratos lhe disseram: —
"Seu Padre, a gente tem mesmo de ir embora, senão a polícia vem
aqui e vai baixando o pau", ele animou-os: — "Não se importem. Eu
excomungo a polícia". Na opinião do Padre Melo, o camponês não
tem nada com as brigas ideológicas. "Ele tem é que reclamar o seu
direito e cumprir os seus deveres". "A revolução agrária — disse ele a
Mauritônio Meira — não tem de ser feita pacificamente, como dizem
os capitalistas; ou na briga, como querem os comunistas. A forma da
revolução são as circunstâncias históricas que vão dizer. Se ela não
puder ser feita pacificamente, então teremos de enfrentar a realidade
da luta". E explica valendo-se de uma imagem: "Quando botamos um
carro para correr na estrada, não podemos dizer, por antecipação, qual
a marcha que vamos usar. A estrada é que escolhe a marcha, como a
reforma agrária vai escolher seus meios" (10).
Quando sacerdotes, tocados pelo drama pungente dos lavradores
sem terra do Nordeste, chegam a usar uma linguagem como essa,
quase de pregação revolucionária, é porque realmente as coisas
atingiram um ponto intolerável. E nenhuma outra providência, senão a
reforma agrária, será capaz de aliviar as dolorosas tensões sociais
geradas naquele sofrido Nordeste, na medida em que lograr o seu
tríplice objetivo: maior justiça social, maior produtividade agrícola e
maior participação das massas rurais no poder político. Eis porque o
clero do Nordeste se afiliou a este movimento das forças de
emancipação através da reforma agrária. É fácil de se entender esta
posição da Igreja no Nordeste. "O clero do Nordeste é o mais
avançado do Brasil — a maior nação católica do mundo — como se
sabe. E o novo clero do Nordeste é o mais avançado da região. A
explicação mais racional é a que os próprios padres do novo clero do
Nordeste oferecem: eles são filhos da região e se acostumam, desde a
infância, a tomar conhecimento dos problemas, como filhos de
camponeses ou de senhores de terra, de pequenos proprietários ou de
classe média. A presença dos problemas e o trato com as coisas de
Cristo aguçam-lhe a sensibilidade e os levam a examinar a região à luz
dos ensinamentos da Igreja. Daí se explicar a facilidade — a enorme
facilidade — com que se pode encontrar padres, monsenhores e bispos
nordestinos com declarações e atos que parecem revolucionários e até
mesmo esquerdistas extremados, se os examinarmos com rigor
demasiado conservador. Sobretudo, essa facilidade se tornou tanto
maior, depois da Conferência dos Bispos do Nordeste, quando os
assuntos da região foram tratados em termos objetivos. Em termos de
solução cristã, e não meramente assistenciais; em termos de previsão e
não de pronto-socorro. Firmam-se, para isso, não somente nos
ensinamentos da Bíblia — já por si indicativos dos caminhos da
realidade social em todos os tempos — mas, sobretudo, nas últimas
encíclicas, como a Rerum Novarum e a recentíssima e realística Mater
et Magistra. Um repórter que vá ao Nordeste poderá, sem esforço,
obter opiniões avançadas de bispos como o de Petrolina, como o de
Garanhuns, como o de Natal, de São Luís, de Sergipe; e de padres,
como os de Caruaru, os dois de Campina Grande e muitos do Recife...
É que eles estão resolvendo problemas, estão dentro de problemas
reais, debatendo-se com obstáculos e levantando a voz e a ação em
favor de uma legião imensa de desamparados" (11).
Neste clima de intensa agitação social, de vez em quando surgem
pequenas explosões. Explodem os ódios represados, os sentimentos de
vingança contra as humilhações e o sentimento de pavor contra as
ameaças revolucionárias. Já em 1956 um grupo de camponeses do
município de Goiana, em Pernambuco, repelia à bala a polícia que
tentara dissolver sua Liga, fazendo algumas vítimas. Sobre este
episódio simbólico escreveu o escritor e ex-deputado por Pernambuco
Amaury Pedrosa uma crônica que merece ser estampada neste livro,
como um documento expressivo desta luta: "Como nas crônicas
sociais pode-se começar dizendo que acontecera, em Goiana.
Seguramente faz mais de um ano. Telegramas publicados pela
imprensa do Rio deram a notícia magra e sem comentário. Porque
talvez não fosse necessário acrescentar mais nada. O nosso
Conselheiro diria que os fatos falavam por si. No Engenho
Marambaia, localidade de Tabatinga, soldados de polícia trocaram
tiros com esses que costumamos chamar de moradores, e os
comunistas um tanto afetadamente de camponeses. Eis em resumo o
que houve. Nunca mais ouvi falar de João Thomaz, o conterrâneo
João Thomaz que imagino velho e pitoresco, até pelo nome lembrando
Pai Thomaz. Homem símbolo, definindo um tempo que acaba. Onde
estás, onde estás, João Thomaz? Lavrador bem curtido, com
espichados anos de vida, entregues ao chamado maneio da terra, viu-
se de dia para a noite intimado a deixar o seu sítio, onde plantou com
grandes esperanças as suas mangueiras, as suas jaqueiras e laranjas,
sem falar no bananal, na roça, na criação miúda. E nos arranjos da
casa, no terreiro limpo, na cacimba de água leve. O vigia armado de
rifle (esse policial privado, que o constituinte pernambucano de 1947
quis acabar com uma declaração ressonante e, até hoje, vazia de
sentido) botou--se para o lavrador com ordem de despejo. Recusa e
espancamento foram obra de minutos. Mais vigias, mais soldados de
polícia (esses velhos vigias da propriedade) foram aparecendo. De
tudo resultou um melancólico escore de dois a zero. Pois em número
de dois foram os milicianos que ficaram deitados no chão, sem o
sopro da vida. Não sei se o meu bravo conterrâneo João Thomaz se
pôs à frente de um grupo de lavradores, defendendo-se no melhor
estilo dos quilombos de antigamente. Ou se foi tudo apenas tropelia,
alteração de rotina sem maior repercussão. Mal informados somos,
todos nós, do que se passa na Província distante; e perto apenas, tão
somente, pelo constante afeto. Desejo justificar, perante os que me
estão lendo, a teimosia de João Thomaz. Na cidade que por acaso
ancorasse, Recife, Rio, São Paulo, ele teria uma espécie de
propriedade no emprego (estabilidade), férias, aposentadoria, médico,
escola, cinema, festa de Natal para os filhos nos portões dos palácios
governamentais, com senhoras dos governantes à frente, trabalho de
oito horas, direitos sindicais e cívicos; e até mesmo depois de morto,
auxílio funeral e pensão para a família. Pois o imprudente João
Thomaz deixou tudo de lado. O teimoso João Thomaz!... Cravou os
dentes no pequeno sítio, com esse absurdo, esse exagerado amor que
só um proprietário poderia ter pelo solo que lhe pertencesse. E mais:
enfrentou pelotões, com real perigo de vida, para amparar e resguardar
— o quê? Para somente defender (oh, incrédulos da bondade humana)
a sua vocação de bem servir, de ser útil; para continuar a ser
agricultor, no apaixonado e mal remunerado amanho da terra. Para
permanecer de enxada na mão de sol a sol. Para se dar a essa tarefa
essencial de produzir alimentos. Destinados a quem, estes produtos
arrancados da terra? Esses milhos, esses feijões?! A nós, miserere. A
nós, os citadinos. O nosso João-teimoso, João-cabeça-dura, viveu toda
uma existência inglória, rejeitando ofertas de ricos Paranás, fiel a
Pernambuco. Não havia sedução de riqueza, lá fora, que lhe
arrancasse o apego à terra — terra malvada, para sempre querida. Se
tantos fossem assim como ele, obstinados, sem arredar pé, se muitos
se conservassem assim resolutamente infensos ao fascínio do Sul,
falaríamos menos em fixação do homem ao solo, em êxodo rural, e
outros temas igualmente especulativos. Esta foi a sua glória. E a sua
desventura. O erro imperdoável de João Thomaz, contra ele próprio,
consistiu apenas nisso: em recusar o eficaz remédio do pau-de-arara.
Errou porque pretendeu contrariar o ímpeto crescente desse
irreprimível despovoamento dos campos, decorrente de razões muito
mais profundas e imperativas. Razões que um pobre João Thomaz não
pode compreender, nem saberá enfrentar. E afinal saiu-se com aquele
rompante desassombrado e inútil, arremetendo à feição de um Dom
Quixote caipira, enfrentando com afoiteza, irresistíveis causas além
das suas forças. Como um símbolo vivo, João Thomaz (que muitos há,
por esse espalhado Brasil) sempre estará de espreita, incompreendido
e ronhento, de carabina em punho e dedo no gatilho. Muitos, ao léu,
nos campos, atirando em caça — como um derivativo. João Thomaz,
João Thomaz — João Sem Terra"(12).
Em 1963 apareceram outros João Thomaz, mas desta vez, em
lugar de matarem, foram mortos pelos capangas do latifúndio. No
pátio da Usina Estreliana, de propriedade de outro ex-deputado federal
por Pernambuco, ficaram estendidos os corpos de cinco camponeses
que tinham resolvido enfrentar as forças da reação.
Neste vaivém das lutas de classe, de quando em vez desaba no
sertão um novo episódio de seca, agravando de forma negra a
situação. Foi o que ocorreu em 1958 quando uma das secas mais
severas veio desafiar com seus problemas de emergência o governo do
Presidente Juscelino Kubitschek. Governo que até então se tinha
praticamente esquecido da existência do Nordeste, preocupado
exclusivamente com suas duas paixões realizadoras: a construção de
Brasília e a instalação de uma indústria revolucionária no Sul do país.
O desafio da seca obrigou o governo a desviar para o Nordeste uma
boa parcela dos créditos nacionais a fim de salvar da fome alguns
milhões de retirantes desta malsinada região. Só o Departamento de
Secas teve que dar emprego a meio milhão de pessoas. E isto custou
muito dinheiro e, também, muito dinheiro escorregou discretamente
para os bolsos dos industriais da seca. Armou-se um novo escândalo
nacional e o Presidente enviou à região um membro de sua Casa
Militar em missão confidencial para verificar o que está ocorrendo. O
relatório desta missão revelou que a situação do Nordeste era
economicamente alarmante, socialmente trágica, politicamente
explosiva e administrativamente em completa desintegração. E que
sem efetivas medidas urgentes só havia dois caminhos à vista: o do
separatismo regional ou o da revolução. Foi sob o duplo impacto da
calamidade natural e da calamidade política que Kubitschek criou em
1959 a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste — a
SUDENE — que breve seria considerada também como um centro
institucional de agitação social. De agitação econômica planejada
cientificamente por economistas e técnicos.
Nesta altura dos acontecimentos estava provado que o problema do
Nordeste era realmente um problema de economia, mas não bastava
estimular esta economia ao arbitrário sabor das iniciativas privadas.
Era preciso disciplinar o desenvolvimento, ou, mesmo mais: planificá-
lo na perspectiva dos interesses das populações regionais e integrá-lo
dentro do sistema da economia nacional. E disto ninguém se tinha
ocupado até então. A verdade é que os nordestinos há muito que não
encontravam condições políticas para tomar e para aplicar decisões
fundamentais ao seu desenvolvimento econômico. Estavam sempre na
dependência de decisões tomadas por homens de outras áreas. Os seus
mercados eram controlados ou por estrangeiros, ou pelos comerciantes
do triângulo político Rio Grande-Rio de Janeiro-Minas Gerais. Esta
impossibilidade de determinar sua própria economia e de se defender
das agressões econômicas de outros estados da federação traumatizara
profundamente o Nordeste. A SUDENE fora concebida para curar os
males deste traumatismo, reformulando em novos termos a política
econômica do Nordeste. Foi esta tarefa confiada ao economista Celso
Furtado que em relatório-programa mostrava como a política
tradicional do Governo Federal para com o Nordeste era uma política
de total esterilidade. A princípio influenciado pelo exagerado
tecnicismo dos seus colaboradores diretos, Celso Furtado não chegou
a discernir bem toda a trama de forças de contenção que impediam o
progresso regional e no seu primeiro documento, chamado Uma
Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste, atribui em
grande parte a pobreza do Nordeste ao que ele chama "a pobreza da
base física do seu solo" e preconiza como solução real a
industrialização planificada da região. Não fala da estrutura agrária.
Não fala em mudar esta estrutura. É como se o problema não existisse.
Só ao travar conhecimento mais direto com os problemas da terra na
sua condição de Superintendente da SUDENE é que o problema se lhe
revelou na sua totalidade e a nova organização passou a cuidar não só
dos problemas da indústria, mas dos problemas bem mais graves da
agricultura regional. Rapidamente, os técnicos da SUDENE, que
tinham por função atacar no campo as contradições econômicas que
extenuam o corpo social, tomaram conhecimento do limite dos seus
esforços diante das barreiras de uma legislação levantada e apoiada
pelos grandes interesses de uma minoria. Da mesma forma que os
homens da Igreja desejavam encarnar a sua fé em realizações capazes
de salvar esta coletividade, também os homens de ciência puseram
toda a sua fé nesta ciência, para construir uma nova economia
libertada de todas as formas de servilismo e escravidão. Cedo se
fizeram, assim, reformistas e vieram engrossar as águas da revolução
social do Nordeste. Mas as águas continuaram a correr pelos declives
mais fáceis, sem conseguir derrubar as barragens principais, as
espessas muralhas, levantadas pelo feudalismo agrário. E a pressão
social continuou a subir.
Este era o clima humano do Nordeste no ano de sua segunda
descoberta. Até que ponto o conhecimento desta realidade social por
parte dos E.U.A. — mesmo com as enormes lacunas e distorções que
as crônicas da época continham — viera influenciar as decisões da
política norte--americana em face da América Latina é assunto que
merece algumas reflexões de nossa parte. O conhecimento dessa
atmosfera explosiva do Nordeste, que não era muito diferente da que
respiram os outros povos subdesenvolvidos do continente, e o receio
que sobre eles viessem cair, provocando a explosão continental, as
fagulhas incendiadas do vulcão cubano, levou o Presidente Kennedy a
conceber, como uma espécie de apara~chuva anti-revolucionário, a
operação chamada "Aliança para o Progresso". Como Cuba, insistia
em exportar a Revolução, os E.U.A. resolviam exportar a contra-
revolução. É verdade que as coisas não foram assim tão às claras na
conferência instalada em Punta del Este a 5 de outubro de 1961. Nesta
ocasião o Secretário do Tesouro, Sr. Douglas Dillon, fizera mesmo
referência ao fato de que há duzentos anos os Estados Unidos tinham
feito a sua revolução e estavam hoje dispostos a ajudar de maneira
decisiva a revolução econômica de todo o continente. E antes mesmo
da reunião, em discurso pronunciado perante o Corpo Diplomático
Latino-Americano, o Presidente Kennedy afirmava que seria esta
aliança um esforço de cooperação, sem precedente por sua amplitude
e nobreza dos seus fins à serviço das Américas. A serviço do
desenvolvimento econômico e social de todo o continente. Mas um
mês antes da inauguração da Conferência de Punta dei Este o
Presidente Kennedy enviava ao Congresso mensagem solicitando
recursos, conforme transcrevera o New York Time para "um programa
militar especial destinado a garantir a segurança interna da América
Latina, contra a subversão" (13). Acrescenta este jornal que o novo
programa representa uma modificação total na estrutura dos
programas militares do hemisfério ocidental desde 1952 e que seu
objetivo principal não era equipar e treinar homens para a defesa
conjunta do hemisfério contra um ataque exterior, mas o de promover
a defesa interna contra a subversão. Apesar disto tudo, diante das
bandeiras desfraldadas de todas as nações livres do continente um
vento de esperanças sopra em Punta dei Este, pois os E.U.A. vão
conceder um auxílio desinteressado aos demais países do continente,
tornando desnecessária a revolução e evitando que toda a cordilheira
dos Andes com suas ramificações viesse a se transformar um dia
numa gigantesca Sierra Maestra sob a inspiração de Fidel Castro.
A que se propunham os Estados Unidos? A conceder uma ajuda de
20 bilhões de dólares num período de dez anos sob a forma de
empréstimos e de investimentos privados. Deviam, em contrapartida,
os países da América Latina empreender profundas reformas
institucionais sobretudo no domínio fiscal e agrário. Como se
desenvolveram as decorrências dessa promessa? Do lado norte-
americano, já a 22 de agosto, o Secretário Dillon precisava que os 20
bilhões de dólares prometidos incluíam no seu total tanto a ajuda
pública como a ajuda privada dos Estados Unidos, dos países
europeus, do Japão e de todas as instituições internacionais. Que cada
ano entrariam os Estados Unidos com uma quota à parte de 1.100
milhões de dólares cabendo o resto aos grupos acima referidos. A
América Latina não entendeu bem como podia o governo norte-
americano tomar compromissos em nome de potências estrangeiras e
de organismos internacionais.
Quanto à aplicação destes créditos, o que os fatos vêm mostrando
é que ela tem sido morosa e distorcida dos seus objetivos
fundamentais (14). Como este é um livro sobre os problemas do
Nordeste brasileiro, tomamos o exemplo de sua aplicação nesta área
em relação às suas necessidades reais. Ninguém ignora que é esta a
região do Brasil mais necessitada de promover o seu desenvolvimento,
mas a Aliança para o Progresso concedeu ao Governo do Estado da
Guanabara, que contém 4 milhões de habitantes apenas, o dobro da
ajuda dada ao Nordeste inteiro com seus 25 milhões de habitantes.
Afirma-se no Nordeste à boca pequena que esta discriminação se
fundamenta no fato de que a Guanabara tem um Governador a serviço
incondicional dos interesses dos Estados Unidos, enquanto os
Governadores do Nordeste estão a serviço do povo desta região.
Por parte dos governos latino-americanos, até hoje nenhuma
reforma substancial foi arrancada. Os arremedos de reforma agrária
ensaiada não passam de simples programas de colonização, enquanto
2% dos proprietários agrários continuam a açambarcar 60% de todas
as terras cultivadas. O latifúndio continua a reinar e com ele a miséria
e a fome. Todas as tentativas feitas por vários países para reformar o
seu sistema agrário se têm chocado contra as resistências internas das
minorias prepotentes e as resistências do governo norte-americano que
preconizou estas reformas na Conferência de Punta dei Este, mas as
desautorizam sempre que elas ameaçam se processar. É que o governo
liberal dos Estados Unidos, na sua desesperada defesa da democracia
contra os perigos do comunismo, aceita todas as espécies de aliança,
inclusive das oligarquias feudais que impedem a realização de toda e
qualquer espécie de reforma no continente latino-americano. São do
jornalista John Gerassi em seu livro The Great Fear, as seguintes
expressivas palavras: "Today the oligarchies control most of the
armies, police forces, banks, congresses and, in general, the state
machinery. And those who denounce this control — smeared as
Fascists not long ago — are branded Communists by Latin America's
press as well as our own. Corruption is common in every Latin
American country. Courts never condemn the rich. Union Leaders
who complain of wage and living conditions are traitors, while those
who make deals with management and government are the so called
democrats or Free unionists".
Que resta, então, de todas as esperanças insufladas como velas
abertas para o futuro no barco lançado com tanto alarido de Punta dei
Este? Só a nostalgia de todos os sonhos de que pudessem ser
atenuadas a miséria e a violência no continente latino-americano. De
fato, nos anos que se seguiram, os Estados Unidos prosseguiram no
seu ritmo normal de ajuda e de investimentos, enquanto que os
capitais privados começaram a evitar a América Latina. Calcula-se em
18 milhões de dólares o desinvestimento de capitais no ano de 1962.
A Aliança para o Progresso é hoje uma das instituições mais
impopulares em todo o continente latino-americano e, por motivos
óbvios, no Nordeste do Brasil. Os espíritos mais esclarecidos do
Nordeste compreendem a situação difícil em que se encontram os
E.U.A. em escolher seus partners ou aliados na luta pela democracia.
Compreendem que, se os Estados Unidos ajudam os grupos
oligárquicos é porque eles se apresentam como os porta-estandartes do
anticomunismo, mas que assim agindo, os Estados Unidos agravam a
tensão social no continente e, em lugar de diminuir, aumentam os
perigos do comunismo que eles tanto temem. Compreendem, também,
os homens do Nordeste que não é fácil aos Estados Unidos
entabularem uma cooperação efetiva com os grupos que combatem
estas oligarquias, para instalação de uma verdadeira democracia na
América Latina, porque estes democratas progressistas são
considerados antiamericanos. Ora, se a situação é difícil, a opção
devia ser clara. Mesmo porque estes grupos democráticos não são
visceralmente antiamericanos, não são adversários do povo dos
Estados Unidos. São apenas adversários intransigentes de uma política
de opressão exercida pelas minorias privilegiadas dos seus países, mas
que se dizem apoiadas pela maioria da nação norte-americana,
representada por seu governo. É sobre isto — sobre a dramática
situação de populações como esta do Nordeste brasileiro, que é um
símbolo da vida dos homens do continente inteiro — que devem
meditar os homens públicos, detentores do poder nos E.U.A. Nos dias
de hoje, onde o isolacionismo significa suicídio e a solidariedade entre
as nações se impõe como nunca, não poderão os países deste
continente conviver com tamanhas distâncias econômicas e
ideológicas, a dividi-los na mais completa incompreensão. Se desejam
realmente os países do continente americano defender e reforçar a
democracia é preciso que eles se compenetrem urgentemente do fato
de que esta defesa não reside, apenas, na preservação de princípios
jurídicos abstratos, manipuladores de palavras-^símbolos como
liberdade e riqueza. Que se compenetrem que a sobrevivência da
democracia no mundo moderno depende muito mais de nossa
capacidade de estender ao povo, de forma efetiva e não apenas
potencial, os benefícios da liberdade e da riqueza que são hoje
reservados exclusivamente a uma classe dominante.
No caso do Nordeste e do Brasil inteiro, toda a possível ajuda da
Aliança para o Progresso e todos os planos de cooperação
internacional em favor do desenvolvimento autêntico e equilibrado
conduzirão irremediavelmente ao fracasso, sem as reformas de base
que são um imperativo histórico da hora presente. Sem estas reformas,
a começa por aquela que maior pavor provoca na oligarquia feudal —
a reforma agrária — a Aliança para o Progresso em lugar de ajudar o
povo brasileiro a lutar contra o subdesenvolvimento, a fome e a
doença em massa, ajudará os inimigos do povo a fortalecerem suas
lideranças ilegítimas e a engordarem a custa da miséria popular. Neste
caso, a Aliança para o Progresso só ajudará uma coisa: a explosão da
revolta popular.
É preciso, pois. que se compreenda que a explosiva situação do
Nordeste — em diferentes graus de intensidade, de toda a América
Latina — não é uma armadilha maquiavélica da "hidra comunista",
monstro gerado no próprio ventre da oligarquia feudal. "Hidra" criada
pela fértil imaginação de uma classe — a classe dos industriais do
anticomunismo que farejaram na Aliança para o Progresso uma boa
pista para alcançar seus ambiciosos objetivos: para encher os bolsos,
fortalecer suas bases políticas e asfixiar definitivamente o povo
revoltado desta terra tão miseravelmente explorada. Mas a luta por tais
reformas não é uma luta fácil. É a luta de um povo contra um sistema,
na verdade decadente, mas possuindo aliados extremamente fortes e
poderosos. É este sistema de forças que vêm impedindo a adoção de
quaisquer reformas que toquem mesmo de leve nesta estrutura social
periclitante, extremamente frágil em seus esteios político-sociais, mas
extremamente forte nos seus instrumentos de escamoteação e de
repressão da vontade popular. O dramático suicídio de Getúlio
Vargas, a espetacular renúncia do Presidente Jânio Quadros e a
pressão que hoje se levanta esmagadora contra os desígnios do
governo do Presidente João Goulart de realizar algumas destas
reformas, são expressões nítidas e incontestáveis da obstinação das
forças mais retrógradas da sociedade brasileira, na defesa de uma
estrutura econômico-social insustentável, sob a falsa alegação de que
estão defendendo a civilização cristã e a democracia contra os perigos
do comunismo. Como se fosse cristão e democrata matar o povo de
fome para manter intocáveis os privilégios abusivos da oligarquia
feudal.
Como a tensão reinante aumenta cada vez mais, as forças de
reação se sentem também cada vez mais em perigo e se apressam em
gritar em altas vozes que o que está em perigo é a própria democracia.
E que, na defesa da democracia contra os perigos do comunismo, é
preciso usar métodos de contenção e de repressão cada vez mais
violentos e, portanto, cada vez mais antidemocráticos. É bem possível
que, nesta extremada defesa da democracia a todo o custo e por todos
os meios, acabem provocando a explosão social da região. A explosão
pela esquerda ou a explosão pela direita. O estouro da democracia
comprimida por este excesso de zelo posto a serviço dos interesses de
uma classe contra os interesses do povo. É esta a lição que poderá tirar
todo o continente da realidade social reinante nesta região explosiva: o
Nordeste brasileiro.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - TEÓPHILO, RODOLPHO, História da Seca do Ceará, Rio de Janeiro,


1922.
2 - HIRSCHMANN, A. O., Journey Toward Progress, Nova Iorque, 1963.
3 - POMPEO SOBRINHO, T., História das Secas, Fortaleza, 1958.
4 - CASTRO, JOSUÉ DE, Le Dilemme brésilien: Pain ou Acier, Paris, 1963.
5 - CALLADO, ANTÔNIO, Revolução Piloto em Pernambuco, in "Jornal do
Brasil", 22 de dezembro de 1963.
6 - JULIÃO, FRANCISCO, Que são as Ligas Camponesas?, Rio de Janeiro,
1962.
7 - MEIRA, MAURITÔNIO, Nordeste, as Sementes da Subversão, in "O
Cruzeiro", 11 de novembro de 1961.
8 - MEIRA, MAURITÔNIO, Idem.
9 - CALLADO, ANTÔNIO, Revolução Piloto em Pernambuco, in "Jornal do
Brasil", 29 de dezembro de 1963.
10 - MEIRA, MAURITÔNIO, Nordeste, a Revolução de Cristo, in "O
Cruzeiro", 2 de dezembro de 1961.
11 - MEIRA, MAURITÔNIO, Idem.
12 - PEDROSA, AMAURY, João Thomaz, in "Jornal do Comércio", Recife,
junho de 1957.
13 - New York, 4 de julho de 1961.
14 - LLERAS CAMARGO, A., The Alliance for Progress, in "Foreign Affairs",
outubro de 1963.
BIOGRAFIA DO AUTOR

Josué DE CASTRO

Nascido em Recife em 1908, formou-se em medicina em 1929 pela


Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil. Doutor em
Filosofia pela mesma Universidade em 1938. Escritor, Cientista e Professor
Universitário, foi o pioneiro no Brasil dos estudos sobre os problemas de
alimentação e nutrição, tendo realizado em 1932 o primeiro inquérito social
levado a efeito no País para apurar as condições de vida do nosso povo.
Realizou uma série de originais pesquisas experimentais que, divulgadas
em publicações científicas e em vários livros, lhe deram projeção mundial, a
qual culminou com a sua eleição em 1951 para o alto cargo de Presidente do
Conselho da Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas
a F. A. O., e sua reeleição para o mesmo cargo em 1953.
Já exerceu no Brasil, entre outros os seguintes cargos: Fundador e Vice-
Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife; Professor de
Antropologia da Universidade do Distrito Federal; Fundador e primeiro
Diretor do Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS); Diretor do
Serviço de Alimentação da Coordenação da Mobilização Econômica durante
o período da guerra. Professor de Geografia Humana da Faculdade Nacional
de Filosofia; Diretor do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil;
Presidente da Comissão Nacional da Alimentação; Vice-Presidente da
Comissão Nacional de Bem-Estar Social.
Foi Delegado do Brasil em várias Conferências e Congressos
Internacionais, sendo eleito Vice-Presidente da l.a Conferência Latino-
Americana de Nutrição e Presidente da 2.a Conferência Latino-Americana de
Nutrição. Realizou, a convite oficial, cursos de conferências em
universidades de vários países do mundo, tais como a Sorbona, em Paris, as
universidades de Roma, Nápoles, México, Buenos Aires, Montevidéu, San
Domingo, Lima, Havana, Caracas, Pequim, Moscou, Praga, Varsóvia e
várias universidades norte-americanas.
É Professor Honorário de várias Universidades estrangeiras e Membro
Honorário de inúmeras associações cientificas em vários países. É detentor
dos seguintes Prêmios: Grande Medalha da Cidade de Paris; Prêmio Franklin
D. Roosevelt, da Associação Americana de Ciências Políticas por seu livro
Geopolítica da Fome; Prêmio Internacional da Paz, do Conselho Mundial da
Paz; Prêmio Pandiá Calógeras da Associação Brasileira de Escritores e
Prêmio José Veríssimo, da Academia Brasileira de Letras, por seu livro
Geografia da Fome.

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