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2.ª EDIÇÃO
EDITORA BRASILIENSE
SÃO PAULO
1967
Das abas do livro:
JOSUÉ DE CASTRO era o representante do Brasil na Conferência
do Desarmamento de Genebra quando foi surpreendido com o decreto
da cassação de seus direitos políticos. Não sendo um político de
grande projeção no Governo passado ou que nele tivesse exercido
Uma influência muito marcada, a sua cassação pareceu a muitos
incompreensível. Na realidade, era a sua obra que atraía sobre ele a ira
das forças que subiram ao poder com o movimento de Abril de 1964
— esta mesma obra que, traduzida em 19 idiomas e divulgada no
mundo inteiro numa tiragem que hoje alcança mais de um milhão de
exemplares, fez de Josué de Castro um vulto de imensa projeção
internacional. Os seus trabalhos foram considerados, no campo da
alimentação, tão revolucionários quanto os de Copérnico no domínio
da astronomia. Ele denunciou a fome universal como uma praga
fabricada pelo homem e não como um fenômeno natural, mostrando a
inconsistência e o falso das teorias neomalthusianas, que visam apenas
a defesa das minorias privilegiadas contra os interesses autênticos das
maiorias espoliadas, as grandes massas deserdadas do mundo
subdesenvolvido.
Escritor, cientista e professor universitário foi ele o pioneiro no
Brasil dos estudos científicos sobre alimentação, tendo realizado em
1933 o primeiro inquérito levado a efeito para apurar as condições de
vida de nosso povo. Natural de Recife, impressionou-se com a miséria
em que vivia a maioria de sua população, atormentada pela fome. A
princípio deu expansão à sua sensibilidade em obras de ficção, contos
hoje reunidos em seu livro "Documentários do Nordeste" nos quais
retratou com impressionante vigor literário a tragédia daquele povo.
A fome passou a ser o objetivo de seus estudos. Passou a estudá-la
cientificamente, tal como ela se manifesta em nosso país, publicando
sua conhecida obra "Geografia da Fome"; para, em seguida aplicando
o seu novo método de trabalho sociológico em escala universal,
apresentar o seu livro "Geopolítica da Fome", que teria imensa
repercussão internacional. Seu livro foi laureado pela Academia
Americana de Ciências Políticas com o prêmio Franklin D. Roosevelt
e ao mesmo tempo pelo Conselho Mundial da Paz com o prêmio
Internacional da Paz, evidenciando assim tratar-se de uma obra
profundamente humana elaborada acima das posições partidárias e das
intolerâncias políticas. A Associação Brasileira de Escritores e a
Academia Brasileira de Letras também laurearam a obra de Josué de
Castro com os prêmios Pandiá Calogeras e José Veríssimo.
Mas Josué de Castro não se limitou a publicar o seu grande livro
"Geopolítica da Fome". Dedicou toda sua vida ao estudo deste flagelo,
publicando os trabalhos nos seus outros volumes de ensaios — o de
Biologia Social e o de Geografia Humana, trabalhos que lhe valeram
ser eleito em 1951 para o alto cargo de Presidente da Organização de
Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (F.A.O.), e acaba de
publicar seu último ensaio sobre o Nordeste, "Sete Palmos de Terra e
um Caixão". É a lista de seus livros que vêm chamando a atenção de
nosso povo sobre um grave problema do nosso país que parece não
merecer a devida atenção dos nossos governantes, o da situação de
miséria e atraso em que vivem milhões de brasileiros, principalmente
no Nordeste do nosso país.
Os seres humanos são muito propensos a querer ignorar ou
considerar do domínio da utopia os problemas que não podem resolver
ou que lhes parecem de difícil solução. Afora o seu valor científico e
literário, aí reside o sentido prático da obra de Josué de Castro; o de
chamar a atenção de nosso povo para um problema cuja solução não
comporta mais delongas.
OBRAS COMPLETAS DE
Josué de Castro
A OBRA CULTURAL BRASILEIRA MAIS DIFUNDIDA E COMENTADA
NO MUNDO INTEIRO
EDITORA BRASILIENSE
EM TODAS AS LIVRARIAS OU PELO REEMBOLSO POSTAL
Rua Barão de Itapetininga, 93 - 12º andar . Caixa Postal 30.644 - São Paulo
Convém notar, de logo, que a ciência tem um ponto de partida e que
este ponto de partida é o senso comum.
JEAN WAHL
CAMILLO PELLIZI
DON FERNANDO DE OLIVEIRA:
Vous ovibliez que des milliers, des millions, d'Indiens brûleraient pour
l'éternité en enfer, si les Espagnols ne leur apportaient pas la foi.
Henry de Montherlant
dans la pièce "Le Maître de Santiago"
ÍNDICE
EXPLICAÇÕES .................................................................................. 11
INTRODUÇÃO ................................................................................... 13
CAPÍTULO I
A Reivindicação dos Mortos ........................................................... 23
CAPÍTULO II
Seiscentas Mil Milhas Quadradas de Sofrimento ........................... 37
CAPÍTULO III
A Primeira Descoberta:
O Feudalismo Português do Século XVI ........................................ 95
CAPÍTULO IV
O Brasil Colonial:
A Ausência do Povo ou a Luta Contra o Progresso ...................... 115
CAPÍTULO V
A Segunda Descoberta ou a Conscientização do Povo Nordestino 142
CAPÍTULO VI
O Nordeste e a América Latina ...................................................... 165
CAPÍTULO VII
Anos Decisivos .............................................................................. 183
J. C.
INTRODUÇÃO
O Nordeste do Brasil foi descoberto pelos portugueses no ano de
1500 e pelos norte-americanos no de 1960. As duas descobertas
foram feitas por engano. Em 1500 graças a um erro de navegação;
em 1960 graças a um erro de interpretação. Os aportugueses erraram
na geografia; os norte-americanos na história. Mas, nos dois casos,
os desvios de rota — a distorção da rota oceânica ou da rota
sociológica — contam decisivamente na História. Sobre o primeiro
engano — a descoberta casual feita por Pedro Álvares Cabral há
quase cinco séculos — existe hoje uma literatura abundante. Sobre a
segunda descoberta, ainda tão recente, a literatura é pobre.
Este livro pretende representar um documento desta segunda
descoberta: uma modesta contribuição à história da redescoberta do
Nordeste brasileiro. Uma espécie, mal comparando, de carta de Fero
Vaz Caminha (1) dos nossos dias, na qual as coisas sejam mostradas
como as coisas são, em sua dura e crua realidade. Mostrando-se
sempre as duas faces da medalha: a face boa e a face má. A que nos
enche de orgulho e a que nos mata de vergonha, Evitaremos desta
forma que aconteça com o Nordeste o que costuma acontecer em
seguida às grandes descobertas: a tendência à disseminação pelos
quatro cantos da Terra de um mundo de lendas, em lugar de fatos,
servindo à formação de uma falsa imagem da terra e do povo
descobertos. Isto é hoje tanto mais perigoso quando vivemos numa
era de slogans. Dos slogans jornalísticos, que tentam reduzir toda a
terra esquematicamente a um tabuleiro de xadrez, com os seus
quadrados exatos e com os exatos limites das suas diferentes
colorações.
Como todo livro significa, em última análise, uma explicação,
pretende começar por explicar este livro, por explicar o seu como e o
seu porquê. Como o autor o concebeu e porque assim o concebeu.
Talvez esta explicação preliminar, na qual o autor procura se
explicar como autor, facilite ao leitor a tarefa de aceitar as
explicações do livro. Isto seria uma grande coisa. Seria alcançar
praticamente todos os nossos objetivos que não são outros senão o de
obter aliados conscientes para defender certas idéias que, a nosso
ver, merecem ser ardorosamente defendidas. Uma das primeiras
coisas que me parece necessário explicar é que este livro foi
especialmente escrito a pedido de uma editora dos Estados Unidos da
América para o público norte-americano. E que desta forma não se
deve admirar o leitor brasileiro de nele encontrar muitas coisas que
lhe parecerão por demais sabidas, desde que ele as conhece como se
fossem traços da palma de sua mão, mas que, no entanto, são coisas
totalmente ignoradas pelo leitor médio dos Estados Unidos, como se
fossem traços da outra face da Lua. Escrevendo para um mundo tão
diferente do nosso, tão distante de nossa realidade social, era preciso
dar uma idéia precisa da região estudada, caracterizando-a com o
que ela tem de mais típico, e, portanto, de mais conhecido no seu
contexto social. Não podia, pois, fugir o autor a esta enumeração de
muita coisa que pode parecer demasiado terra a terra aos olhos dos
habitantes da Terra ou dos estudiosos e dos eruditos, dos seus hábitos
e costumes tradicionais.
Mas, desta tela de fundo bem conhecida em seu conjunto, o autor
procura destacar numa perspectiva, que ele julga até certo ponto
diferente, alguns traços fundamentais já conhecidos e outros, que até
hoje tinham passado desapercebidos da maioria, e desta forma, o
retrato que ele pretende traçar do Nordeste talvez apresente alguma
coisa do novo. Pelo menos naquilo que no próprio Nordeste também é
novo, como é o caso da revolução social que aí se processa em nossos
dias.
Arrisca-se deste modo o autor a ser julgado por uns como um
repetidor maçante de coisas já ditas e por outros como um grande
fantasista, que pinta uma realidade da qual os outros autores nunca
se tinham dado conta. Tínhamos consciência destes riscos, quando
empreendemos nosso projeto, e estamos preparados para correr estes
riscos. Eles constituem mesmo, a nosso ver, parte integrante da nossa
tarefa. É que não tencionamos escrever um livro neutro. Um livro
com pretensões a ser uma fria e rigorosa análise científica da
realidade social do Nordeste. Não. Não é este um ensaio de
sociologia clássica. De uma sociologia acadêmica, espartilhada na
camisa de força de uma metodologia que sempre tentou separar, no
sociólogo, o investigador do homem, c limitando sempre a função do
sociólogo, a de um simples inventariante de tudo aquilo que se
apresenta aos seus olhos, teleguiados por métodos de trabalho
consagrados. O nosso estudo sociológico é o oposto deste gênero de
ensaio. É um estudo de sociologia participante ou comprometida(2).
De uma sociologia que não teme interferir no processo da mudança
social com os seus achados e, por isto mesmo, não tem o menor
interesse em encobrir os traços de uma realidade social, cuja
revelação possa acarretar prejuízos a determinados grupos ou classes
dominantes. De uma sociologia que estudando cientificamente a
formação, a organização e a transformação de uma sociedade em
vias de desenvolvimento, compreende e admite que os valores mais
desejáveis por esta sociedade são os ligados à mudança e não à
estabilidade, e, por isto mesmo, se aplica em aprofundar ao máximo o
seu conhecimento científico do mecanismo destas mudanças. Digo o
conhecimento científico, porque, a meu ver, a sociologia
comprometida com o processo social não deixa de ser científica, por
este seu engajamento. Ao contrário, ela é bem mais cientifica do que a
antiga sociologia, que se presumia científica, mas não passava em seu
falso cientificismo de um instrumento de inconsciente mistificação da
realidade social, cujo contado direto ela sempre evitava, preocupada
pela fragilidade dos sistemas em vigor e pelo receio de que ao menor
contado tudo pudesse vir abaixo. No fundo, a antiga sociologia era
mais utópica do que científica, e a sua utopia consistia exatamente no
seu inconsciente desejo de que o processo social se imobilizasse, para
ser melhor fotografado. Desta forma, a antiga sociologia era bem
mais comprometida do que a sociologia nova, cuja validade científica
defendemos. Mas era comprometida com uma ideologia do
imobilismo, de uma imagem, estática da sociedade, considerada como
uma coisa já feita, definitiva e perfeita, enquanto a nova sociologia
considera a estrutura social como um processo em constante e rápida
transformação. Ademais, a verdadeira sociologia científica, como
qualquer outro ramo da ciência contemporânea, é bem menos
arrogante acerca de suas verdades do que a sociologia clássica,
desde que hoje se sabe muito bem como todas as verdades são
relativas. E que o que chamamos de realidades científicas, não só no
mundo da sociologia, mas mesmo no terreno mais sólido da natureza
física, são sempre produtos da interação entre os próprios fatos e o
ato de observar do pesquisador, e que na verdade não existem
realidades fora do campo de nossa observação. Há apenas
possibilidades. A transição do possível ao real tem lugar sempre
durante o ato de observar, como afirmou Heisenberg, pondo uma nota
de prudência na atitude um tanto imprudente de certos tipos de
cientistas intolerantes(3). As verdades científicas são, pois, sempre
relativas, desde que estão sempre na estrita dependência do momento
da observação e da perspectiva em que se coloca o observador. Não é
outro o sentido mais geral da teoria da relatividade de Einstein,
através da qual se chega à conclusão inapelável de que o que nós
descrevemos, em verdade, não é a Natureza tal qual ela é, mas tal
qual ela se mostra na perspectiva dos nossos métodos de observação.
É esta inserção inevitável do observador sociológico dentro do
processo social que, a nosso ver, torna impossível a sua não
participação nos fenômenos que ele observa, invalidando a sua
pretensão de obter uma imagem do real que não seja deformada, já
não digo por sua ideologia, mas por sua idealização, isto é, pelas
imagens preconcebidas do seu conhecimento existencial(4). Se a
reprodução das imagens do mundo natural é sempre eivada de certas
deformações, imagine-se como não crescem estas deformações,
quando se observa o mundo dos fenômenos sociais: da vida humana
associativa, à qual o observador está ligado por laços de
solidariedade ou de antagonismo, dos quais a própria estrutura do
seu pensamento lógico não poderá jamais se libertar inteiramente(5).
Aí estão as razões porque não acreditamos no que se chama de
sociologia independente, de sociologia neutra sem outras ligações
com os aspectos sociais que os de sua fria e distante observação. É
este o nosso conceito de sociologia, e é esta a perspectiva sociológica
em que levaremos a efeito este ensaio. Os fatos nele expostos deverão
ser tomados sempre como a cristalização do que se está passando no
Nordeste do Brasil, na perspectiva de um estudioso destes problemas,
mas que é ao mesmo tempo um habitante desta região, impregnado de
corpo e alma da vida desta terra e do sentimento de sua gente. Que
embora este estudioso tenha vivido em vários países do mundo, nunca
se libertou inteiramente da crosta telúrica que recobre até hoje a sua
pele e a sua alma, e que dele faz, um eterno regionalista, embora com
pretensões de ser um espírito universal, mas que põe sempre como
termo de comparação ao seu universalismo os valores regionais da
terra onde nasceu e onde formou a sua mentalidade. Na verdade o
que queremos impor ao mundo, com este livro, é um retrato do
Nordeste como o vê um homem desta região, embora extremamente
interessado pelo espetáculo do mundo. Retrato que, a nosso ver,
representa a realidade com menores deformações do que os retratos
do Nordeste, traçados com o maior rigor e probidade cientifica pela
maioria dos estudiosos dos problemas sociais, habitantes de outras
terras ou continentes. E isto porque as perspectivas desses estudiosos,
longe de ajudá-los, os conduzem Irremediavelmente às grandes
deformações. Deformações tanto maiores quanto mais eles tentam
penetrar nossa realidade, para superpô-la, através do método
comparativo, às realidades sociais com que estão familiarizados em
seus países, transformando-se perigosamente naquilo que um
sociólogo brasileiro chamou com muita propriedade de
"transferidores de cultura".
Na verdade, foi nesta direção que partimos. Na busca de um
retrato sociológico do Nordeste. Mas no caminho verificamos que o
retrato assim pintado arriscava a apresentar-se um tanto incompleto:
ser muito estilizado ou muito fotográfico. Duas deformações que
desejávamos evitar. Já demos a entender que o nosso objetivo
fundamental é o de mostrar o processo de transformação social
acelerado que o Nordeste está vivendo. E mostrá-lo, no contexto
integral de suas trágicas contradições e dos dilacerantes
antagonismos de suas forças sociais. São as mudanças, os traços
cambiantes de sua paisagem humana, que desejamos apreender e
retratar: o complexo problema do seu desenvolvimento econômico e
social. Processo de uma tal complexidade, pelo jogo dos múltiplos
fatores que deles participam, que torna difícil o seu approach através
de um ataque unilateral por meio das indagações válidas que lhe
possa fazer qualquer disciplina científica isolada, mesmo quando esta
disciplina é a sociologia habituada a lidar com sistemas complexos. A
verdade é que os especialistas, se sentem submersos diante do mundo
de variáveis que encobrem todo o seu horizonte de observação,
quando procuram analisar o processo de desenvolvimento. Como a
característica essencial da ciência sempre foi a da simplificação e da
eliminação das variáveis em busca de leis gerais, esta tentativa no
campo do desenvolvimento social jamais poderá ser levada a efeito
por um só setor de especialistas: sejam eles geógrafos ou
antropólogos, sociólogos ou economistas.
"Na prática, a complexidade do processo do desenvolvimento,
torna os especialistas ou o técnico auto-suficiente extremamente
perigosos, e isto porque nenhuma mentalidade isolada é capaz de
compreender, em sua totalidade, todas as nuances de uma sociedade
em transição", afirmou um editoria-lista do New Scientist(6). O
assunto realmente extrapola os limites de qualquer disciplina e este
tem sido um dos principais motivos dos seguidos fracassos dos planos
de desenvolvimento elaborados no papel, por economistas
renomados, que dispunham, entretanto, apenas de uma visão
puramente econômica do problema. Para evitar o fracasso
irremediável do retrato que tínhamos em. mente traçar do Nordeste,
fomos conduzidos à necessidade de não limitarmos o nosso ensaio às
fronteiras convencionais da sociologia, mesmo de uma sociologia
libertada das peias do convencionalismo clássico(7). Adiamos que,
para dar ao retrato um colorido que não se distancie muito das
nuances vivas de sua realidade, tínhamos que usar tintas de várias
origens, molhando aqui e acolá o nosso pincel no campo da
geografia, da economia, da antropologia, da etnografia e de várias
outras disciplinas, que tentam surpreender aspectos parciais da vida
coletiva. Foi desta forma que chegamos à conclusão que o nosso
ensaio não podia rigorosamente ser considerado como um ensaio
sociológico. É apenas um ensaio, tomando-se a palavra na acepção
de tentativa: tentativa de penetrar o por-dentro das coisas. É esta uma
tentativa de interpretação desta região, considerada uma das áreas
explosivas do mundo de nossos dias. Isto é, como uma área onde as
tensões sociais, estão alcançando os limites do tolerável — limite em
que os conflitos latentes entram em combustão violenta, provocando a
explosão social. É esta uma das poucas observações válidas no
contexto das lendas que hoje circulam no mundo sobre o Nordeste
brasileiro. O Nordeste é realmente uma área explosiva, como
procuraremos mostrar neste ensaio, com uma carga explosiva bem
maior do que as cargas existentes na maioria das supostas áreas
explosivas da África e do Oriente: no Congo, na África do Sul, na
Índia, no Vietnam. E se nessas zonas da África e da Ásia os sintomas
de explosão se tem manifestado com maior insistência, é que os
fatores capazes de detonar o processo têm sido aí bem mais ativo, e
continuamente postas em ação a propaganda ideológica e a liderança
revolucionária. Bem mais ativos do que no Nordeste do Brasil, onde a
tensão social explosiva nunca foi habilmente canalizada para o
caminho da revolução. Foi, quando muito, estimulada como
instrumento de demagogia política ou como arma de luta de um grupo
contra outro grupo de poderosos, nunca como autêntica força de
libertação através da explosão popular. Mas força explosiva não
falta. O que tem faltado é o estopim, ou quem acenda o estopim. A
análise elucidativa desta situação de suspense social, na qual poderá
de repente se cristalizar uma nova força detonante, capaz de se
propagar rapidamente por toda a. massa explosiva mantida até hoje
sob pressão, constitui um objetivo da mais alta importância para o
Nordeste e para o mundo. Para o Nordeste, porque o conhecimento
exato da situação poderá permitir que sejam essas forças ou tensões
sociais convenientemente dirigidas num sentido construtivo e criador.
E para o mundo, porque o problema das tensões sociais do Nordeste
é, com algumas nuances que o singulariza, o mesmo problema das
tensões sociais reinantes em todo o mundo subdesenvolvido, que
representa em seu conjunto um dos pólos explosivos do mundo atual.
É claro que no esquema geral de nossos objetivos, no que diz respeito
ao próprio Nordeste, não acreditamos que qualquer interpretação de
sua realidade, por mais lúcida que ela seja, possa ter a virtude
mágica de mudar a direção da História e de resolver da noite para o
dia os angustiantes problemas da região. Mas estamos certos de que a
análise acurada dos fatores subterrâneos desse drama sociológico e a
sua revelação à consciência coletiva ajudarão o processo de
conscientização(8) das massas nordestinas, que é o fenômeno mais
característico da dinâmica social desta área nos nossos dias, e
através da qual essas massas tomam hoje consciência de seus
angustiantes problemas e procuram acelerar por todos os meios as
reações sociais, necessárias à sua libertação do círculo angustiante
das privações que criaram a sua angústia ou neurose coletiva. A
psicanálise desta neurose, causada por inúmeros complexos de
frustração de um povo espoliado e oprimido há vários séculos, deve
ser levada a afeito com acuidade e com probidade. Não apenas para
resolver os conflitos psicológicos que geram a própria neurose e que,
desmontados, poderão curá-la, provocando no entanto com a cura o
esvaziamento de toda a energia criadora, indispensável à vida, tanto
dos indivíduos como da coletividade. Não apenas para realizar esta
espécie de castração, que c em certos casos o processo analítico
redutivo, quando em sua cura aparente extermina também a
vitalidade que dá sentido à própria vida, mas sim para revelar tanto a
natureza exata dos problemas, como os caminhos possíveis que
poderão ser encontrados, para se transpor os obstáculos
aparentemente intransponíveis. É dentro destes princípios da técnica
construtiva prescrita por Jung(9), que julgo útil levar a efeito uma
análise da alma coletiva do Nordeste, para que possa o seu povo
consumar o processo de sua revolução social, com o mínimo de
sofrimento e com o mínimo de violência. E para levá-la a efeito com a
necessária convicção que é este o único remédio para os seus males e
que este remédio está ao seu alcance. E, quanto ao mundo, qual a sua
atitude diante deste drama regional? Que interesse poderá ter para o
mundo a sorte destes nordestinos, devorados por seu complexo de
frustração e colocados à margem da História, da qual praticamente
nunca participaram? A nosso ver, o interesse do mundo por esta área
já hoje é bem grande c tende a crescer cada vez mais. E isto por
várias razões. As elites dirigentes dos países líderes começam hoje a
se aperceber que um grande número de seus erros de julgamento, de
desastrosas conseqüências para os seus interesses, foram produtos de
sua quase que total ignorância da carta do mundo (10). Da carta do
grande mundo e não do pequeno mundo das suas preocupações mais
imediatas, no qual se concentrara até a primeira guerra mundial todo
o interesse dos povos bem desenvolvidos: o chamado Mundo
Ocidental. Até então era como se só o Ocidente existisse (e o Ocidente
era apenas o conjunto dos países colocados dos dois lados do
Atlântico Norte), e como se o resto do mundo fosse apenas uma vaga
massa de terra sem maior interesse nem significação. Esta a imagem
que nos evoca Toynbee(11) quando nos fala do Mundo e do Ocidente:
o Ocidente sujeito fabricante da História, e o mundo, isto é, o resto,
apenas como objeto desta História. Esta é a história das agressões do
Ocidente contra o mundo, que Toynbee descreve com tanta lucidez.
Mas, do próprio encontro do Ocidente com o mundo, que o mesmo
Toynbee considera como o mais significativo acontecimento da
história moderna, nasceu uma nova consciência política mundial — a
consciência de que o mundo já não é apenas o Ocidente. Que não há
apenas um centro de gravitação no mundo, que, de acordo com os
historiadores do começo do nosso século, estava colocado no centro
da Europa, considerado como o coração da terra — the heartland —
sendo o resto uma espécie de ilha. A ilha do mundo, de que nos deixou
um mapa expressivo o criador desta teoria do heartland, Halford
Mackinder(12). Hoje, o centro do mundo está por toda parte e a ilha
do mundo passou a fazer parte do continente da História, porque por
toda parte hoje se faz história, e essa história repercute em toda parte
do mundo. Daí a preocupação mundial em nossos dias de conhecer
melhor terras como estas do Nordeste, que até ontem pareciam sem
qualquer significação para o mundo, mas que hoje se apresentam
como um foco de grande interesse internacional, pela carga de
explosão social que encerram, podendo se converter, de repente, no
cenário de profundas transformações históricas.
É constatando hoje a profunda verdade contida na frase de um
estadista do império britânico, quando diz que "o custo da ignorância
geográfica tem sido incomensurável", e não querendo ser tomado de
surpresa pelos fatos históricos em seu acelerado suceder que os
dirigentes do mundo de hoje estão tão interessados em atualizar a sua
carta do inundo e em precisar nela os traços mais significativos
destas áreas de maior tensão social onde as forças de transformação
ameaçam romper os diques das forças de contenção, alterando os
desenhos da carta atual. O Nordeste brasileiro, é sem nenhuma
dúvida, uma destas áreas. Daí o interesse do mundo em obter uma
imagem mais exata de sua realidade social, uma imagem isenta de
preconceitos e de falsas noções. Em obter, numa palavra, uma carta
atualizada da região.
Um dos objetivos deste livro ó o de fornecer elementos
informativos seguros para o levantamento desta carta. E de fornecê-
los principalmente aos Estados Unidos e a certos países da Europa
onde hoje tanto se fala do Nordeste, sem se dizer quase nada do
verdadeiro Nordeste e dos seus autênticos problemas humanos. Foi
esta a razão principal que nos levou a aceitar a proposta de uma
editora norte-americana para escrever este pequeno livro. Livro no
qual tentaremos dar uma imagem mais nítida da realidade social
dessa região onde vinte e três milhões de seres vivos lutam para abrir
o caminho de sua emancipação, através do denso cipoal trançado
pelas circunstâncias históricas adversas, produtos de erros e
omissões, tanto da política nacional como da política internacional. É
este o nosso principal objetivo, ao escrevermos este livro; o de fazer
penetrar um pouco de luz neste cipoal escuro, embora esteja o autor,
certo de que esta luz só chegará aos olhos daqueles que realmente
querem enxergá-la, porque os outros, aqueles que se negam a ver a
evidência, diante de livros como este, ficarão ainda mais cegos —
cegos de raiva ou cegos de medo.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
Introdução
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
Marchemos a encarar
Trinta mil epidemias
Frialdade, hidropisia,
Que ninguém pode escapar.
Os que para o brejo vão
Morrem de epidemia
Sofrem fome todo dia
Os que ficam no sertão (48).
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
A PRIMEIRA DESCOBERTA:
O FEUDALISMO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1 - LÉRY, JEAN DE, Viagem à Terra do Brasil, cd. de 1941, Rio de Janeiro.
2 — MEREA, PAULO, História da Colonização Portuguesa, vol. III, Lisboa.
3 - AZEVEDO, J. LÚCIO DE, Épocas de Portugal Econômico, Lisboa, 1947.
4 - SANCHEZ ALBORNOZ, CLÁUDIO, La Edad Media y Ia Empresa de
América, La Plata, 1934..5 - NORTHCOTE PARKINSON, C., East and West,
Londres, 1963.
6 — OLIVEIRA LIMA, Pernambuco e seu Desenvolvimento histórico, Leipzig,
1895.
7 - GUIMARÃES, A. PASSOS, Quatro Séculos de Latifúndio, S. Paulo, 1963.
8 - SIMONSEN, ROBERTO, História Econômica do Brasil, S. Paulo,
1937.
9 — ANTONIL, A. J., Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas,
ed. do 1923. 10 - KOSTER, HENRY, Traveis in Brazil, Londres, 1817.
CAPITULO IV
O BRASIL COLONIAL:
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
A SEGUNDA DESCOBERTA OU A
CONSCIENTIZAÇÃO DO POVO NORDESTINO
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
ANOS DECISIVOS
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
Josué DE CASTRO