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Polícia parou!
4ª Edição - Janeio de 2013
O Dia em que a
Polícia parou!
Agência: 1632-2
Conta Corrente: 12009-x
MG 040 KM 27,5
Bairro Quinta das Jangadas
Sarzedo - Minas Gerais
CEP.: 32400-000
www.blogdocabojulio.blogspot.com
jullioo@uol.com.br
Í NDICE
AGRADECIMENTOS ................................................................................................. 7
INTRODUÇÃO (CABO JÚLIO)......... .......................................................................................8
O SONHO E A PAIXÃO PELA FARDA .............................................................................. 9
A REALIDADE NOS QUARTÉIS .................................................................................. 11
FALTA DINHEIRO ................................................................................................. 12
CABO JÚLIO ....................................................................................................... 13
O COMANDO É ALERTADO ...................................................................................... 14
AUMENTO ÀS ESCONDIDAS ..................................................................................... 15
BOATOS ............................................................................................................ 16
SAI O REAJUSTE ................................................................................................... 16
CÃO BANGUELO .................................................................................................. 17
EXPLICAR O INEXPLICÁVEL ...................................................................................... 17
SUICÍDIO ........................................................................................................... 18
VIVENDO NO BANHEIRO ......................................................................................... 18
GOVERNO NÃO TEM DEFINIÇÃO SOBRE SALÁRIOS ........................................................... 19
ESTOPIM ........................................................................................................... 20
IOGURTE ............................................................................................................ 21
GUERRA DE NERVOS ............................................................................................. 21
COMEÇA A GREVE ................................................................................................ 24
FOGO ............................................................................................................... 25
DESPREZO E VAIAS ............................................................................................... 26
A GREVE SE ESPALHA ............................................................................................ 28
NASCE UM LÍDER ................................................................................................ 29
AH! EU TÔ É DURO! ............................................................................................. 29
APOIO DA POPULAÇÃO .......................................................................................... 33
COMISSÃO DEFINE REIVINDICAÇÕES ÀS PRESSAS ............................................................ 35
CANCELADA A ORDEM DE CONFRONTO ....................................................................... 36
PRIMEIRA REUNIÃO DE NEGOCIAÇÃO ......................................................................... 37
ABRAÇO DO PIRULITO ........................................................................................... 37
COMANDO-GERAL RECEBE OS PRAÇAS ........................................................................ 39
GOVERNO FAZ PRONUNCIAMENTO ............................................................................. 39
SARGENTO TENTA SUICÍDIO ..................................................................................... 43
PRIMEIRA ASSEMBLÉIA .......................................................................................... 44
INTERIOR ........................................................................................................... 45
TÁTICA DO SILÊNCIO ............................................................................................. 47
RECRUTAS DE PRONTIDÃO ....................................................................................... 47
AS NEGOCIAÇÕES ................................................................................................ 48
GUERRA SUJA ..................................................................................................... 49
O AMARELINHO .................................................................................................. 50
A AMEAÇA DO SECRETÁRIO .................................................................................... 51
A FORÇA LEGISTA (FORLEG) .................................................................................... 52
TROCA DE COMANDO NO BPCHOQUE ........................................................................ 53
MAIS GUERRA SUJA ............................................................................................. 54
AS AMEAÇAS ..................................................................................................... 55
A GRANDE ASSEMBLÉIA ......................................................................................... 55
PRISÃO POR TELEFONE ........................................................................................... 57
POLÍCIA UNIDA JAMAIS SERÁ VENCIDA ....................................................................... 58
POLÍCIA CONTRA POLÍCIA ....................................................................................... 60
TIROTEIO ........................................................................................................... 61
GOVERNO CHAMA EXÉRCITO ................................................................................... 65
BARRICADAS NO QUARTEL CENTRAL GERAL .................................................................. 68
REABERTAS AS NEGOCIAÇÕES .................................................................................. 69
ORDENS E CONTRA-ORDENS .................................................................................... 69
CABO VALÉRIO EM ESTADO CRÍTICO .......................................................................... 70
O DIA SEGUINTE .................................................................................................. 71
GOVERNADOR FAZ PRONUNCIAMENTO ........................................................................ 72
FALA O EXÉRCITO ................................................................................................ 73
OS LAUDOS CONTRADITÓRIOS .................................................................................. 74
SAI O ACORDO .................................................................................................... 75
NOVA ASSEMBLÉIA É CANCELADA ............................................................................. 77
TOLERÂNCIA ...................................................................................................... 79
SUSPEITO SE APRESENTA ......................................................................................... 80
VÍTIMA, HERÓI, OU MÁRTIR, O CABO VALÉRIO É ENTERRADO EM CLIMA DE EMOÇÃO .............. 81
INQUÉRITOS POLICIAIS MILITARES (IPMS) ................................................................. 82
PERÍCIAS E DEPOIMENTOS SE CONTRADIZEM ................................................................ 83
LAUDO DUVIDOSO INOCENTA CORONEL ...................................................................... 84
OFICIAIS INSATISFEITOS .......................................................................................... 85
MOVIMENTO ESTOURA NO PAÍS ............................................................................... 86
COMANDO AFASTA CABO JÚLIO PARA LONGE DA TROPA ................................................... 90
PARANÓIA - DE OLHO NA MARACUTAIA ..................................................................... 92
CONTINUAM OS IPMS .......................................................................................... 93
EXPULSOS .......................................................................................................... 94
JULGAMENTO ...................................................................................................... 95
DEPOIMENTO DO COMANDANTE GERAL DA POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS ...................... 97
CORONEL JOSÉ GUILHERME DO COUTO ...................................................................... 105
TRECHOS DE DEPOIMENTOS DE OFICIAIS NO CONSELHO DE DISCIPLINA DO CABO JULIO ............ 112
CONCLUSÃO ..................................................................................................... 114
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Agradecimentos
7
Introdução
8
O sonho e a paixão pela farda
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A realidade nos quartéis
11
Falta dinheiro
12
Cabo Júlio
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O comando é alertado
Suicida-se um soldado do
13° Batalhão, acusado de ter roubado
uma lata de leite em pó.
Ele é preso, levado sob escolta para casa para pegar o fardamento. O
suicídio acontece dentro do quarto dele, quando ele dá um tiro na cabeça na
frente da mulher e dos filhos. Segundo a assessoria do CPC (Comando de
Policiamento da Capital), o suicídio foi provocado por motivos pessoais.
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Aumento às escondidas
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O Coronel Herberth Magalhães não aceita a resposta do secretário: Não
posso esperar nem mais uma hora, secretário. É inaceitável que um coronel
ganhe menos que um delegado.
O governador Eduardo Azeredo consulta os coronéis: Seria possível dar
um aumento apenas para os oficiais sem provocar reações na tropa?
A resposta foi enfática:
Boatos
Sai o reajuste
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As entidades estudam a possibilidade de entrar com ação na Justiça
contra o aumento exclusivo para oficiais. Houve inversão de prioridades, dizem
os diretores das entidades.
O comandante de policiamento da Capital (CPC), Coronel José Guilherme
do Couto, declara aos integrantes das entidades que os praças também vão
receber aumento por gratificações de cursos e o Governo estaria estudando
uma maneira para que o aumento fosse estendido também aos policiais civis,
que não têm gratificações de cursos. Em entrevista, ele afirma:
“Entendo a insatisfação dos praças manifestada pelos seus representantes
das Entidades, mas espero que haja compreensão e um voto de confiança na
negociação do comandante-geral com o governador Eduardo Azeredo”.
Cão Banguelo
Na segunda semana de junho, quando das comemorações do aniversário
da 5a Cia. de Cães do BPChoque, o Coronel do CPC, José Guilherme do Couto,
fazendo uso da palavra em discurso para a tropa compara o adestramento de
um cão e o de um policial.
Explicar o inexplicável
Apesar do silêncio do Comando, vaza para a imprensa a informação de
que só os oficiais da PM receberiam o aumento exclusivo, mas as informações
eram contraditórias quanto aos valores. O que surpreende é a informação de
que o dinheiro já estava depositado. O comandante do CPC, Coronel José
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Guilherme do Couto, bastante constrangido, convoca os jornalistas no início
da noite ao Quartel Central Geral (QCG) para explicar o aumento, que seria na
verdade uma equiparação ao salário conquistado na Justiça pelos delegados e
contesta os índices que vinham sendo divulgados pela imprensa, de que o
aumento era superior a 30%. Segundo o comandante, o aumento era escalonado
e os oficiais subalternos e intermediários (tenentes e capitães) receberiam mais
(22%). Os oficiais superiores receberiam menos. O aumento variava entre 10 e
22% e seria pago em três parcelas. A primeira parcela já havia sido paga. O
coronel afirma ainda que o aumento para os praças dependeria da aprovação
do projeto de lei que o Governo enviaria para a Assembléia nos próximos dias.
Com o aumento, o salário inicial dos oficiais subalternos (2o tenente) passaria
para R$ 1.500,00. O soldo inicial de um soldado era de R$ 332,00.
Suicídio
O soldado Leonardo Paulo de Souza (20) comete suicídio com um tiro
na boca, no dia 5 de junho, dentro do alojamento do 22° Batalhão, no bairro
Santa Lúcia, zona sul de Belo Horizonte. Ele estava sendo acusado de furtar
um carro. A Assessoria de Comunicação do CPC informa que era o sexto
suicídio cometido por um PM na Grande BH no decorrer do ano.
Na avaliação da PM, de acordo com a Assessoria:
“Os suicídios estão dentro de um patamar normal e não significam
desespero com uma situação financeira difícil. A maioria dos suicídios é
devida à situação pessoal e emocional das vítimas.”
Vivendo no banheiro
Um flagrante é registrado pela imprensa devido ao inusitado. Três policiais
militares estão vivendo num banheiro do Fórum Laffayette, num espaço de
pouco mais de 4m2. Esta situação já durava dois anos, sem que ninguém
tomasse providências. Apenas funcionários do Fórum tinham conhecimento
da moradia dos três policiais. Os PMs dormem em pedaços de espuma no
chão. Suas mulheres e filhos moram no interior. O salário médio destes praças
é de R$ 250,00. Um deles busca marmita toda semana em Barbacena, onde vive
a mulher, e a comida, que dá para uma semana, é guardada no refrigerador da
copa do 2° Tribunal de Justiça.
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No dia 7 de junho, depois que a notícia sai nos jornais, os PMs são
transferidos para um quarto de despejo no próprio Fórum e ganham beliches
para dormir, abandonando os colchões de espuma. O Comando informa que
está estudando a situação deles.
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Estopim
“Com seis anos de PM, ele recebe R$ 340,00. Nós da família temos
que ajudá-lo a manter sua mulher e suas duas filhas. E o pior, é que
se ele tivesse matado o bandido, estaria hoje preso no quartel, sujeito
a cometer suicídio diante das pressões dos seus superiores, como vem
acontecendo na PM”.
Guerra de nervos
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Um PM à paisana comenta:
“Somos os PMs mais mal pagos do Brasil e não podemos falar porque o
regimento interno proíbe qualquer manifestação”.
O comandante-geral não está presente ao enterro. O clima é de tensão e
hostilidade contra os oficiais.
Durante o enterro, quinze praças presentes anunciam à imprensa que iria
acontecer uma revolta porque a morte do companheiro é a gota d’água na
insatisfação dos policiais com os baixos salários.
“A revolta é iminente. Não podemos nos expor muito porque há muitos
oficiais aqui, inclusive à paisana”.
Os praças dizem que o comandante-geral é diretamente responsável pela
negociação dos salários com o Governo e se consideram traídos pelo aumento
exclusivo. Eles falam em greve, mas ainda com receio de punição.
Colegas do cabo Glendyson dão entrevistas aos jornalistas depois do
enterro, sem dar nomes. Eles reclamam dos salários baixos, do não pagamento
da gratificação de risco de vida e comparam os salários dos praças da PM de
Minas Gerais aos de outros estados, como o Distrito Federal e o Espírito Santo,
onde o salário inicial de soldado é de R$ 1.000,00, segundo os praças.
Outras reclamações: os salários já baixos têm muitos descontos dos
empréstimos feitos por eles, os equipamentos de trabalho estão ultrapassados.
Um deles afirma:
“Enquanto os marginais usam pistolas semi-automáticas, como o
assassino do cabo Glendyson, nós temos que trabalhar com armas calibre 38,
com mais de dez anos de uso. Temos sorte quando elas funcionam”.
O CPC, Coronel José Guilherme do Couto, é pressionado pelos jornalistas
a comentar a insatisfação e a possibilidade de um movimento de praças na PM
e responde:
“Apoiamos qualquer luta pelos direitos dos policiais, desde que
ocorra dentro dos regulamentos e seja mantida a disciplina. Também
acho que um soldado deveria ganhar R$ 1.000,00, mas o Estado não
tem como pagar”.
O coronel comenta ainda a questão do armamento:
“É praxe que a Polícia de todo o País só use arma calibre 38 que
possibilita maior pontaria, mas os bandidos realmente têm armas mais
poderosas”.
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Começa a greve
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Fogo
Dentro do alojamento dos cabos e soldados, começa sair uma densa
fumaça, que chama a atenção de todos. O nervosismo entre os oficiais aumenta.
Alguns colchões são queimados no interior do alojamento. O major e alguns
capitães correm para todos os lados demonstrando desespero, o fogo aumenta,
começa o corre-corre, todos os oficiais se mobilizam com baldes na mão para
apagar o fogo. Os colchões são arrastados para fora do alojamento. Os oficiais
percebem que a tropa não está brincando e que pode surgir uma revolta.
Em uma tentativa de pressionar a tropa, em tom de desespero, o major
Renato diz para os oficiais:
“Não coloquem a mão em nada, vamos acionar a perícia para tirar as
impressões digitais e descobrir quem fez isso”. (Ele se esqueceu que está no
Brasil, e que isso só acontece nos filmes de TV).
Os PMs não se intimidam e afirmam:
“Essa ameaça não nos assusta. Já rompemos o elo principal: acabamos
de rasgar o RDPM”.
Do cemitério, os repórteres avistam a fumaça e correm para a porta do
Batalhão de Choque. A tropa, numa tentativa de demonstrar a situação de
revolta, cruza os braços no pátio, para alegria dos fotógrafos e cinegrafistas,
que já chegavam às dezenas ao Batalhão.
O comandante do Batalhão manda um assessor informar à imprensa que
tinha acontecido um curto-circuito na fiação elétrica. Ninguém acredita. Os
policiais riem. O comandante resolve fazer uma declaração à imprensa e acaba
por admitir um clima de insatisfação generalizada.
“Os baixos salários e a inadimplência com os compromissos financeiros
estão realmente deixando os policiais aloprados, mas a situação está sob
controle”.
O comandante admite então que a queima de colchões pode ter sido um
ato criminoso. “Pode ter sido ação de uma pessoa desajustada, em função
dos baixos salários e da morte de um colega”.
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Desprezo e vaias
O comandante do CPC, Coronel José Guilherme do Couto, chega
instantes depois com a fisionomia preocupada, e não fala com a imprensa. Ele
se reúne primeiro com os oficiais e depois chama a tropa para uma reunião no
auditório do batalhão. Ninguém vai para o auditório. Ele espera 20 minutos,
apenas na presença dos oficiais. O coronel deixa o auditório e segue para a
viatura que irá levá-lo de volta ao QCG. No caminho, a viatura passa pelo pátio
e cerca de cem praças vaiam. O coronel deixa o prédio e é cercado pelos
jornalistas, mas se recusa a dar entrevista. Ele apenas diz: Não tem mais jeito,
eu tentei.
A tarde toda permanece o impasse. Os policiais não saem e começam a
tomar coragem para declarar aos jornalistas que estão em greve. Alguns vão
até à esquina do quartel para gravar entrevistas numa rua erma atrás do
cemitério. Eles estão com os rostos cobertos por gorros, blusas e cachecóis,
emprestados pelos próprios jornalistas. Denunciam desmandos, regalias dos
oficiais, falam sobre a revolta com os baixos salários e o aumento exclusivo
que foi dado aos oficiais. Uma das denúncias mais graves feitas neste primeiro
dia da greve é a de que policiais militares estariam recebendo dinheiro de
traficantes para fazerem vista grossa no caso de batidas policiais nos morros.
Segundo a denúncia, os policiais que moravam em favelas, vizinhos aos
próprios marginais, aceitavam propina e recebiam mais de R$ 3.000,00 por mês
de traficantes. Um dos policiais diz que enquanto ele trabalha o mês inteiro
para ganhar pouco mais de R$ 300,00, um menino de 12 anos que vende crack
na favela Sumaré, ganha até R$ 150,00 por dia. Diz que a proximidade entre um
traficante e um policial é bem curta.
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A greve se espalha
AH! Eu tô é duro!
No outro dia, cheguei cedo ao BPChoque, por volta de 7hs. Soube que o
turno da noite fora normal. Dezenas de policiais de todas as companhias
estavam lá. Os policiais de folga ficaram sabendo do movimento e se dirigiram
espontaneamente ao quartel, inclusive os licenciados e os que estavam de
férias, que também foram para o quartel.
Não há ainda liderança e os policiais continuam reunidos no pátio, sem
saberem o que fazer. Não há chamada. Os oficiais não andam no pátio, só ficam
reunidos com o comandante, tenente-coronel Cançado. Eu fui trabalhar no
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computador na companhia ROTAM, numa sala que ficava de frente para o pátio.
Os PMs ligam para a imprensa e pedem apoio. De repente começa uma
gritaria, que vira um coro: Vamos para a rua!. Os praças de outras unidades
ligam para o BPChoque para confirmar as informações da paralisação que estão
sendo veiculadas pela imprensa e anunciam que vão aderir. Para espanto de
todos, o BPChoque vai para a rua. São 150 homens no início.
Acompanhei o movimento. A passeata não tinha direcionamento, era um
sentimento de cidadania, como se estivéssemos nos libertando de uma prisão,
de um regulamento arcaico. O grito de liberdade que estava preso há 222 anos
na garganta finalmente ecoara. Não tínhamos ainda nenhuma reivindicação,
mas estávamos nos sentindo livres.
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sargentos, que me perguntavam o que fazer, se deviam ou não tirar as
plaquetas de identificação e os bonés. Passamos pelo Departamento de
Investigações, da Polícia Civil, e chamamos os policiais civis para
participar. Alguns desceram. Incitei o pessoal a prosseguir para evitar
provocações em frente ao DI. Seguimos pela avenida.
Na altura do viaduto da Lagoinha, quase no centro, o tenente-coronel
Cançado se posta de braços abertos na frente da tropa. Ele afirma que o
comandante-geral ordenou que fosse dada voz de prisão a todos que estavam
na manifestação. Se prender um, isso vai virar uma guerra, respondem os
manifestantes. A passeata desvia-se dele e os PMs continuam a caminhar.
Outros comandantes de batalhão, o tenente-coronel Rúbio Paulino,
do 22° BPM e o tenente-coronel Severo, do Batalhão de Missões Especiais
acompanham o comandante do BPChoque, que segue o tempo todo ao
lado da passeata.
Eles acompanhavam a passeata, pela lateral, em solidariedade ao tenente-
coronel Cançado. Gritávamos: Polícia unida jamais será vencida!, ou então
o famoso Ah, eu tô é duro!
A passeata continua até a Praça Sete, sem incidentes. No caminho, uma
tropa da 6ª Companhia do 1° BPM, com cerca de 50 policiais, se junta ao
movimento, além de outros policiais que estavam de serviço nas ruas por onde
a passeata passava. Vinte policiais do BPTran e cinco batedores acompanham
a passeata, coordenando o trânsito. Os bombeiros também aderem à passeata.
Chegando à Praça Sete, os oficiais continuam a fazer apelos para que o pessoal
volte para os quartéis e não fizesse greve nas ruas. Eles diziam que isto iria
acabar com a Polícia Militar.
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Um integrante da CUT/MG, com uma bandeira vermelha, tenta participar
da passeata e é retirado pelos policiais. Ele insiste em ficar na avenida e os
policiais rasgam a bandeira. O sindicalista desiste, vendo que os policiais o
recebem com animosidade.
Policiais de outras unidades, como os de trânsito, são levados a participar
do movimento, com o chamado dos manifestantes, muitos até contra a vontade.
Não tínhamos rumo, nem reivindicações, nem programação, nada. A idéia
agora era seguir para a Praça da Liberdade, demonstrar para o governador que
a Polícia estava passando fome. Demonstrar como? Através de uma
concentração em frente ao Palácio da Liberdade. Iríamos ficar em silêncio, não
tínhamos idéia do que fazer.”
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Apoio da população
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Policiais sentam-se no chão em frente ao Palácio da Liberdade,
sede do governo mineiro
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Comissão define reivindicações
às pressas
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Primeira reunião de negociação
Abraço do Pirulito
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Comando-geral recebe os praças
Logo após o retorno dos policiais aos quartéis, a Comissão retorna para
uma nova reunião, desta vez no QCG com o Comando da Corporação. Além
do comandante-geral, Coronel Antônio Carlos dos Santos, participam o chefe
do Estado-Maior, Coronel Herberth Magalhães, o comandante de policiamento
da Capital, Coronel José Guilherme do Couto e o chefe da DPS – Diretoria de
Promoção Social, cel. Pedro Seixas. A reunião começa tensa. O comandante-
geral demonstra nervosismo.
O tempo todo ele tentava explicar o inexplicável. Culpava os oficiais de
unidades de não terem conseguido explicar para a tropa o aumento dos oficiais,
usando a expressão: a explicação não chegou à ponta da linha.
O comandante promete avaliar todas as reivindicações e garante que o
Governo já havia enviado à Assembléia Legislativa o pedido para
autorização de reajuste setorizado. Ele promete ainda conceder todas as
reivindicações que fossem da competência do Comando da Corporação.
O comandante diz ainda que reconhecia que o RDPM estava ultrapassado
e que já estava sendo feito um estudo, por um grupo de oficiais, para a revisão
do regulamento.
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Cabo Júlio discursa aos manifestantes na Praça Sete pouco antes do confronto na Pça da Liberdade
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Primeira assembléia
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casal de policiais, com o filho pequeno, exibe o contracheque com o salário
conjunto: pouco mais de R$ 800,00. Todos mostram os contracheques para
darem exemplos da situação salarial. Neste dia, os policiais já não tinham medo
de mostrarem a cara e dizerem o nome ao dar entrevistas.
O Coronel Pedro Seixas, morrendo de medo, diretor de Promoção Social,
em trajes civis e escondido em uma das salas do clube, acompanha a assembléia.
A Comissão sabe da presença dele no local, mas não tinha como impedir porque
o clube pertence à DPS.
Orientei a Comissão, e nos reunimos para discutir como seria o
encaminhamento da assembléia. A nossa missão foi a de apresentar as propostas
oferecidas pelo Governo e decidir um prazo para o atendimento das
reivindicações. Meia hora depois nos dirigimos ao palanque e pedimos a
presença de todos.
Começa a assembléia, tumultuada. Eu tive dificuldades de fazer os
encaminhamentos, pelo clima dos grevistas e pela inexperiência. Depois de duas
horas de debates, decidimos manter o piso de R$ 800,00 para os soldados, a
revisão do Estatuto e do Regulamento Disciplinar, a não-punição aos grevistas,
além da promoção por tempo de serviço e a criação de uma política habitacional
voltada para os praças. Mais difícil é definir o prazo para que o Governo dê
uma resposta. A Comissão propõe trinta dias, mas os participantes não aceitam.
Inicialmente, não queriam dar nenhum prazo, permanecendo em greve até o
atendimento das reivindicações. Depois, querem um prazo máximo de cinco
dias. Ao final, chegam a um consenso de dez dias. Outra assembléia é marcada
para o dia 24 de junho, no mesmo local. Os líderes pedem que todos voltem
aos quartéis, sem tumulto ou passeatas.
Interior
Em Montes Claros, no norte do Estado, PMs também fazem declarações
de protesto. Um policial sem se identificar diz:
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Tática do silêncio
Recrutas de prontidão
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“Estamos estudando este percentual de reajuste com base nas
repercussões que ocorrerão dentro da própria PM. Se dermos o aumento para
os soldados, isto vai influenciar os soldos de cabos, sargentos, subtenentes
2o tenentes, etc. Por causa disto não podemos divulgar um índice levianamente”.
Pela primeira vez, o comandante-geral admite que os participantes do
movimento podem ser punidos. O Coronel Antônio Carlos dos Santos disse
que:
“Todos os fatos serão apurados e o meio de investigação será através
de IPM (Inquérito Policial Militar). Os fatos são graves e tomaremos decisões
a respeito após as investigações”.
Guerra suja
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O amarelinho
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A ameaça do secretário
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A Força Legalista (Forleg)
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Troca de comando no BPChoque
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Mais guerra suja
A grande assembléia
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Prisão por telefone
Telefonei para o chefe do Estado-Maior, Coronel Miranda e comuniquei
a decisão da assembléia.
– Coronel, pelo amor de Deus, tente reabrir as negociações com o
Governo. Os praças não aceitam o abono e vão para as ruas.
Em desespero, o Coronel responde:
– Segure este pessoal aí, não brinque com a lei. Vocês não podem ir para
a rua de jeito nenhum.
–Nós já estamos indo, não há como segurar-nos.
–Então você está preso em flagrante!
–Tudo bem, mas isto não vai adiantar. Eles estão indo, e eu vou
junto.
Procurei não comunicar à assembléia que estava preso em flagrante por
telefone, temendo uma revolta generalizada. Eu me desloquei ao palanque e
consegui fazer os policiais retornarem ao clube.
Pedi calma e os informei dos perigos que poderiam acontecer a partir desta
segunda passeata, como perseguições, retaliações e prisões. Pedi ainda que
eles guardassem as armas dentro da farda e não as expusessem em momento
algum. Mas a decisão de sair para as ruas já estava tomada e os policiais
começaram a deixar o clube em passeata.
Em frente ao 5° Batalhão e ao Batalhão de Trânsito a passeata pára e os
policiais chamam os colegas para que aderissem ao movimento. Cerca de 3.500
policiais seguiam pela avenida Amazonas. Alguns policiais que sabem das
ameaças de morte insistem comigo para que coloque o colete à prova de balas,
esquecido dentro do meu carro, estacionado em frente ao clube. Um sargento
volta de moto ao clube para buscar o colete.
Toca o meu celular.
Era o Coronel me desprendendo. Desta vez, ele não ordenou, e sim, me
pediu, que a gente tentasse não deixar que a tropa seguisse até o Palácio
da Liberdade. A praça já estava cercada pela Forleg nessa hora, mas eu
ainda não sabia.
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Polícia unida jamais será
vencida
No cruzamento com a avenida Barbacena chegam os policiais civis, que
também tinham realizado assembléia no mesmo dia e decidido aderir à greve. O
encontro entre os policiais das duas Corporações acontece em tom de emoção,
com gritos de saudação, abraços, e até choro de alguns policiais. O grito de
Polícia unida jamais será vencida! ecoa pela avenida. Seis mil pessoas, entre
policiais, parentes, aposentados e simpatizantes se dirigem para a Praça Sete,
coração de Belo Horizonte.
Os policiais apitam e carregam faixas com os dizeres:
Greve! Greve!
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Na Praça Sete, acontece uma nova assembléia, tumultuadíssima. A maioria
dos policiais quer seguir para a Praça da Liberdade. Os líderes tentam encerrar
o protesto, mas não conseguem. Representantes dos policiais civis são
chamados para subirem e falarem, ajudando a conter os ânimos. Os líderes dos
praças também falam, mas os manifestantes querem seguir em frente. Os líderes
não têm outra opção senão acompanhar a passeata. Às pressas, o Sindicato
dos Trabalhadores da Construção Civil cede um carro de som para que as
lideranças possam coordenar o protesto. Este mesmo carro de som já foi
apreendido várias vezes por policiais militares durante as greves dos
operários.
Por volta de 14hs., os repórteres são informados pelas redações que a
Praça da Liberdade estava cercada por uma tropa também de PMs.
Alguns sindicalistas da CUT chegam com as bandeiras vermelhas, já na
subida da avenida João Pinheiro. Os policiais rasgam as bandeiras e só não
agridem os sindicalistas por minha interferência. Os policiais se recusam a dar
conotação ideológica ou política no movimento.
Na subida da avenida João Pinheiro, tomei conhecimento de que havia
uma tropa repressora cercando a Praça da Liberdade. Pedi a dois policiais da
manifestação que fossem rapidamente ao QCG e implorassem ao comandante
daquela tropa para retirá-la. Os policiais foram orientados a lembrar ao
comandante que na primeira passeata, no dia 13, não havia tropa repressora e
tudo correu tranqüilamente. Eu temia um confronto. Os policiais foram correndo
na frente e retornaram com a resposta: o Comando afirmara que todas as
medidas necessárias já tinham sido tomadas e que não retiraria a tropa.
Em frente ao Detran a passeata parou e chamamos os policiais civis para
engrossarem o movimento. Desta vez, dezenas de policiais deixam o prédio do
Detran e acompanham a passeata.
59
Polícia contra polícia
60
protestando. O tumulto aumenta e os policiais avançam sobre a Forleg, que
tem que recuar. Quando a situação se agrava, o comandante de policiamento
da Capital, Coronel Edgar Eleutério, que está no Comando da Forleg, em frente
ao Palácio da Liberdade, é puxado pelo braço pelo comandante do 1° BPM,
tenente-coronel Antônio Luiz, e sai do local.
Cadetes e oficiais arrancam os galões, que são jogados no chão. Eles se
misturam aos manifestantes. A Forleg recua correndo para a frente do QCG. O
tumulto aumenta. O jornalistas estão no meio da confusão. Algumas pessoas
conseguem atravessar a barricada para entrar no prédio, mas a maioria fica retida
nas escadas. Os oficiais estão à frente da Forleg, impassíveis. No Comando
da Forleg está o novo comandante de Policiamento da Capital, Edgar Eleutério
Cardoso, que se posta em frente à escada.
Alguns integrantes da Forleg arrancam as braçadeiras brancas de
identificação da tropa e, desesperados, passam para o lado dos manifestantes,
dizendo que estavam ali obrigados e não queriam o confronto. Dentro do prédio
do QCG, todos os andares estão ocupados por oficiais, portando armas de
grosso calibre (fuzis, escopetas e metralhadoras). No alto do prédio,
atiradores de elite estão em posição de tiro, com as armas apontadas para
os manifestantes.
Tiroteio
61
Estendi braços para a frente, sinalizando para conter a multidão, que quer
invadir o QCG. O cabo Valério vê as armas, vira-se para a fotógrafa Isa Nigri
e alerta: Cuidado, tem pessoas armadas aqui. Segundos depois, acontece o
primeiro tiro, e outro logo em seguida. Ele é atingido na cabeça pelo segundo
tiro e cai desfalecido. A fotógrafa registra a cena. Cinegrafistas também
conseguem captar o instante em que o militar foi atingido.
Acontecem outros disparos depois de 20 segundos, o que provoca
correria e debandada geral. Enquanto isto, o cabo Valério é socorrido por um
grupo de praças e oficiais, em meio à gritaria e confusão. Ele é levado para
dentro do prédio. Do lado de fora, policiais e jornalistas deitam-se no chão.
Novos disparos são ouvidos. No total, oito tiros são disparados.
63
Eu era o único dos seis mil policiais
que estava de coletes. Ele trocou de
lugar comigo cerca de cinco
segundos antes do tiro.
64
Governo chama exército
65
que a Comissão entra no auditório do Comando-Geral a reunião começa
em clima de troca de acusações. O Coronel Miranda grita:
“Viu o que vocês fizeram?”
Eu também gritei:
66
confronto. As emissoras de rádio também receberam assédio para que parassem
de transmitir ao vivo do local. Nenhuma emissora, é claro, atende ao pedido.
67
Barricadas no Quartel
Central Geral
68
Reabertas as negociações
Ordens e contra-ordens
70
O dia seguinte
71
Governador faz
pronunciamento
72
Fala o Exército
Sai o acordo
75
No dia seguinte, na sala de reuniões do Palácio dos Despachos, encontram-
se o vice-governador, o comandante-geral, o chefe do Estado Maior, o presidente
da Cohab, o secretário da Fazenda e outras autoridades. Assim que a reunião é
iniciada, por volta de 18hs., o governador Eduardo Azeredo entra na sala,
acompanhado do arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Dom Serafim
Fernandes de Araújo o Pastor Antônio Lúcio, representando uma Comissão de
cinqüenta pastores, que estavam na sala ao lado, orando para que o impasse
fosse resolvido. O governador faz um discurso pedindo que todos os esforços
fossem feitos para que houvesse uma solução na reunião.
Dom Serafim faz uma oração e é acompanhado por todos na sala. O Pastor
Antônio Lúcio também faz uma oração e, da mesma forma, é acompanhado por
todos. Depois que o governador e os religiosos saem da sala, a reunião fica
mais amena e começam as negociações salariais. O vice-governador mostra os
cálculos do Governo sobre o impacto de um aumento de R$ 10 milhões na folha
de pagamento do funcionalismo. Ele propõe a Comissão dos praças um salário
inicial de R$ 570,00 para os soldados, a partir de dezembro. O reajuste seria
escalonado, em três parcelas, nos meses de agosto, outubro e até chegar a
este valor, no mês de dezembro.
A Comissão argumenta que era uma proposta ridícula para ser levada à
tropa. O vice-governador insiste, alegando que o Governo não teria caixa para
honrar seus compromissos se o aumento fosse maior. A reunião adentra a noite.
O impasse continua, pois há necessidade de se chegar a um acordo definitivo
ainda naquela noite para que fosse desmobilizada a tropa e cancelada a próxima
assembléia, marcada para o dia seguinte, 27, às 10hs.
O vice-governador aumenta a proposta. Ele afirma que o Governo poderia
chegar a um valor máximo de R$ 600, também escalonado. A Comissão não
gosta. Cansado, eu digo que o Governo tem que ir além deste valor.
76
– Você me garante que se eu chegar a este valor, acaba tudo agora?
– Garanto.
O vice-governador diz que este valor extrapola o que ele, vice-governador,
poderia conceder. Ele pede 10 minutos para conversar por telefone com o
governador e dar uma resposta definitiva.
Depois de cinco minutos, o vice-governador retorna e pergunta
novamente:
– Você garante que consegue acabar com o movimento agora?.
– Sim, eu garanto.
– Então está resolvido. Agora vamos decidir como será incorporado este
aumento aos salários”.
Fica decidido que o salário anterior de R$ 415,00 seria acrescido de
R$ 115,00 de alimentação e R$ 85,00 de auxílio moradia, o que corresponderia
ao valor total de R$ 615,00, vigorando a partir de julho, pois não havia mais
tempo de lançar o aumento na folha do mês de junho. Em julho, os policiais
receberiam os R$ 517,00 proposto inicialmente pelo Governo e que já estava
nos contracheques.
77
“O atendimento da pauta de reivindicações possibilita a revisão imediata
do RDPM e do EPPM. As modificações serão efetivadas com a participação
de todos os segmentos da PMMG. A política habitacional para os policiais
militares passa efetivamente a considerar a capacidade de pagamento do
servidor e será gerenciada pela Cohab, com recursos da Caixa Econômica
Federal. O aumento real de R$ 200,00 para R$ 615,00 para os soldados sem
qüinqüênio, mostra a importância da mobilização dos PMs, que possibilitou a
reabertura das negociações”.
A nota ressalta ainda:
“[...] a importância da continuidade da discussão para negociar a política
salarial e a revisão do regulamento e do estatuto. É obrigação da Comissão
representativa e de todos os PMs envidar esforços para evitar situações como
a triste e lamentável ocorrência a que foi exposta o cabo Valério. A Comissão
pretende acompanhar a apuração do crime”.
Encerrando a nota, afirmei:
“O apoio da sociedade foi fundamental para legitimar as reivindicações e
encontrar soluções para os conflitos. Estamos convencidos que as portas
permanecerão abertas.”
O valor de R$ 615,00, proposto pela Comissão, foi obtido através de uma
pesquisa feita entre os praças, para que soubéssemos qual o mínimo necessário
que poderíamos negociar, saindo vitoriosos do movimento. Segundo a
pesquisa, feita boca-a-boca, o valor mínimo aceitável variava entre R$ 600,00 e
R$ 630,00. Chegamos a este limite para não sacrificar a população.
78
Tolerância
79
Suspeito se apresenta
80
Vítima, herói, ou mártir,
o Cabo Valério é enterrado
em clima de emoção
81
oficiais presentes.
O caixão é coberto com a bandeira nacional e um toque de silêncio
substitui a salva de tiros, a pedido dos familiares, que discursam emocionados.
A irmã, Fátima Marlene de Oliveira, faz uma declaração:
“Meu irmão morreu pedindo calma e foi um grande herói, uma cabeça de
ferro com um coração de ouro”.
Os amigos do cabo Valério discursam pedindo paz e perdão a quem atirou.
Os discursos são cobertos de emoção, muitos choram. Não há manifestações,
além das frases mais inflamadas pronunciadas pelos parentes e amigos, e o
corpo do cabo Valério é enterrado em silêncio e lágrimas.
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Perícias e depoimentos se
contradizem
No dia sete de julho, treze dias depois que o cabo Valério foi baleado,
peritos do Instituto de Criminalística fazem novas medições na fachada do QCG.
O objetivo é traçar a trajetória da bala. O perito Hamilton Chioddi faz parte da
equipe de cinco peritos que vai assinar o laudo. Ele declara: “Ainda estamos
no início dos trabalhos e não temos elementos conclusivos para definir de
onde partiu o tiro”.
O secretário de Segurança convoca uma coletiva no mesmo dia, ao
lado do chefe da Divisão de Homicídios e faz a seguinte declaração: Eu
mesmo chequei os exames dos peritos e posso garantir que o tiro partiu
da multidão. Esta declaração certamente tem a finalidade de inocentar o
Coronel Edgar Eleutério, apontado como um dos autores do tiro e que no
momento da multidão estaria no andar térreo, de frente para a multidão. A
assessoria da PM desmente a informação extra-oficial que teriam sido
encontrados resíduos de pólvora nas mãos do coronel.
83
Laudo duvidoso inocenta
Coronel
Oficiais insatisfeitos
O presidente do Clube dos Oficiais da PM, Coronel reformado Edvaldo
Piccinini, reivindica, em ofício, ao Comando-Geral, novo aumento de salários
para os oficiais, alegando que os 48% concedidos aos praças não estão de
acordo com a tabela de escalonamento salarial da PM.
Alguns oficiais querem a volta do escalonamento e conversam nos
bastidores. Eles estão insatisfeitos com o aumento dos praças. As outras
parcelas do reajuste para os oficiais foram canceladas pelo Governo em vista
do movimento.
Há uma grande pressão sobre os praças já indiciados para que eles
entreguem outros nomes de policiais que participaram do movimento e das
passeatas.
O deputado João Batista de Oliveira apresenta projeto na Assembléia
Legislativa propondo anistia plena para os praças que participaram das
manifestações.
85
Movimento estoura no País
86
mobilização. Uma carta aberta à população explica os motivos do protesto: os
baixos salários. Cerca de 300 policiais militares e bombeiros de cinco municípios
fazem passeata pelas ruas. Eles querem piso de R$ 750,00 para soldados e
R$ 937,00 para cabos. Oficiais também participam do movimento. Os policiais
cantam o hino da esquerda Prá não dizer que não falei das flores, de Geraldo
Vandré e o Hino Nacional. Em Campo Grande, Capital, o Governo se reúne
com a Comissão representativa de policiais civis e militares. Eles preparam
manifestação para o dia 18, quando pode ser marcado o início da greve da
categoria. Eles dão prazo até o dia 17, às 18hs. para que o Governo do Estado
atenda as reivindicações: soldo inicial de soldado de um salário-mínimo. O soldo
era de R$ 29,80.
Na Bahia, o governador Paulo Souto (PFL) encaminha à Assembléia
projeto de lei com reajuste de até 58% para policiais civis e militares. O piso de
soldado passaria a R$ 597,00.
Cinco mil praças no Piauí fazem assembléia fardados e desarmados e
decidem manter a greve. O Comando propõe aumento de R$ 215,00 para
R$ 318,00 no piso de soldado, o que é rejeitado pela categoria. Do total, 80%
dos praças aderem à greve. Eles ficam acampados na praça da Bandeira, onde
fazem um ato público. O governador Francisco Morais (Mão-Santa) determina
que sejam descontados os dias parados.
Em São Paulo, os policiais estão em estado de greve. O secretário de
Segurança José Afonso da Silva diz que é impossível o Governo atender às
reivindicações das entidades de classe dos policiais, que querem reajuste de
88,68% para a Polícia Civil e entre 25% e 77,24% para a PM. A Polícia Civil
mantém estado de greve e dá prazo para o Governo até o dia 15. São 78 mil
policiais militares e 40 mil civis no efetivo do Estado. O presidente da
Associação de Cabos e Soldados, Wilson de Oliveira Morais, diz que os
acontecimentos de Minas Gerais ajudaram a deflagrar um movimento que já
era latente em todo o País.
O Comando da PM do Piauí declara que a greve é considerada abandono
de posto, no dia 8 de julho. O comandante, Coronel Vaudílio Falcão, diz que
os grevistas podem ser expulsos. O presidente da Associação de Cabos e
Soldados, Antônio Santiago, diz que a paralisação continua e que a adesão é
de 90%. O Governo propõe gratificação de R$ 120,00, que é rejeitada.
Em Pernambuco, oficiais, cabos e soldados em campanha reivindicam
aumento salarial e enviam cartas aos comandos.
No Pará, os policiais entram em greve e a adesão é de 80% da PM e da
Polícia Civil, segundo o Comando de Greve. O Governo do Estado diz que a
paralisação é de 40%. O efetivo da Polícia Militar é de 13 mil homens e da
87
Polícia Civil, 2.900. Os PMs querem 70% de reajuste e os policiais civis 75%. O
Governo oferece abono de R$ 100,00.
No dia 4 de julho, depois de cinco horas de negociação com o secretário
da Indústria, Comércio e Mineração, Carlos Kayth, o Comando de Greve
consegue uma vitória. O Governo promete atender as reivindicações e a
paralisação é suspensa. Eles conseguem reajustes de até 108,33%. Os policiais
comemoram em uma passeata da vitória no centro de Belém.
Na Paraíba, uma assembléia reúne dois mil PMs, que reivindicam R$ 600,00
de piso. O salário é de R$ 160,00 com as gratificações. O soldo inicial é de
R$ 32,00. Eles marcam greve para o dia 14 de julho.
No dia 8, em São Paulo, policiais distribuem cartazes convocando para
uma assembléia geral.
Em Alagoas, no dia 9, 8.200 PMs decidem ficar aquartelados. 101
municípios do Estado, inclusive Maceió, ficam sem policiais nas ruas. Os
policiais civis fazem assembléia e aderem ao movimento. Os salários dos
militares estão atrasados há seis meses e os dos policiais civis há sete meses.
O 13º salário não foi pago.
Termina a greve no Piauí no dia 9 de julho. Depois de uma assembléia
que durou quatro horas, os policiais aceitaram o abono de R$ 120,00, desde
que fosse criada uma Comissão para elaborar a política salarial da Polícia.
Em Pernambuco o Comando da PM nega atender as reivindicações dos
policiais, que marcam assembléia para o dia 12. Eles reivindicam soldo de
R$ 130,00. O Governo oferece aumento de R$ 10,00 sobre o soldo de R$74,00.
O Comando da Polícia Militar de Alagoas admite que o Estado está sem
policiamento. Do total, 80% da tropa está em greve. Os 1.100 policiais civis
aderem à greve.
No dia 12, os policiais civis e militares de Pernambuco fazem assembléia,
reafirmando as reivindicações de 75% de aumento, pagamento de horas extras
e adicionais noturnos.
No dia 14, o clima é de tensão em Maceió, ocupada por tropas do Exército.
As tropas federais foram requisitadas pelo governador Divaldo Suruagy
(PMDB). O prédio do Tribunal de Justiça sofre um atentado. Três homens, num
gol branco, jogam duas bombas incendiárias e atiram na janela da sala da
Presidência. Os policiais continuam aquartelados e durante o final de semana não
foi registrada sequer uma prisão. O Instituto Médico Legal não recolhe corpos
e não faz necropsia. As delegacias estão de portas e celas abertas.
Em São Paulo, o governador Mário Covas anuncia o reajuste da Polícia:
entre 8,5% e 34% para militares e 34% para civis. Os policiais militares
88
reivindicam 77,24% e os civis 88,68%.
No segundo dia da greve dos policiais militares da Paraíba, os grevistas
fazem manifestação em frente ao Palácio do Governo. Centenas de policiais
ocupam a Praça João Pessoa. Tropas federais fazem a segurança dos prédios.
O clima é tenso, mas não há confronto.
No Rio Grande do Sul, 250 cabos e soldados, líderes de núcleos de 467
municípios gaúchos iniciam a mobilização e ameaçam convocar a categoria para
entrar em greve. Policiais fazem passeata no interior no dia 14. A assembléia
dos PMs é marcada para o dia 17 e dos civis para o dia 18, em Porto Alegre.
Os policiais não fazem greve, mas mantêm a mobilização reivindicando aumento
salarial.
Na Bahia, policiais estão em estado de greve. Eles reivindicam piso salarial
de R$ 483,00. O Governo oferece R$ 132,00.
No Amazonas começa a mobilização dos praças em defesa de melhores
salários.
No dia 15, o presidente Fernando Henrique Cardoso determina ao
ministro da Justiça que envie tropas a Alagoas. Em Maceió, 10 mil policiais
estão reunidos em manifestação em frente ao Palácio dos Martírios. Eles estão
fardados e armados.
Policiais Rodoviários Federais fazem greve branca em todo o País,
diminuindo o número de multas.
Os policiais civis do Ceará fazem assembléia e reivindicam abono entre
R$ 295,00 e R$ 500,00. Os dirigentes de associações aguardam resposta do
Governo até o dia 15 e marcam assembléia para o dia 18.
Os policiais de São Paulo continuam mobilizados. Rejeitam proposta do
Governo e ameaçam entrar em greve.
Em Recife, 2.000 PMs acampam, no dia 16, em frente ao Palácio das
Princesas. Eles garantem que só deixam o local depois da libertação de 15 cabos
e soldados presos. O clima fica mais tenso com a chegada do Exército. Os
policiais fazem barreira com os braços cruzados. No dia 20, o Exército assume
o policiamento do Estado. O anúncio foi feito pelo governador Miguel Arraes
(PSB). Estações de ônibus e metrôs são patrulhadas pelos soldados do Exército,
armados com fuzis. Tanques circulam em Recife e Olinda. O clima nas ruas é
de tensão. O governador Arraes afirma: Não queremos o confronto, mas a
ordem será mantida a qualquer preço. A crise se agrava com a exoneração
do comandante de policiamento metropolitano, cel. Roberto Carvalho, que se
recusou a colocar cadetes nas ruas e foi afastado pelo comandante-geral,
Coronel Antônio Menezes.
89
No dia 22 de julho, o movimento dos
policiais já atinge quinze estados
brasileiros, com paralisações, greve
ou cartas reivindicatórias.
90
Comando. Lembrei, que seis meses antes do movimento, havia solicitado uma
transferência, que me foi negada, mas agora era interesse do Comando afastar-
me da tropa.
À tarde, no mesmo dia, retornei ao batalhão para pegar alguns objetos
pessoais e fui recebido pelo oficial de dia, tenente Bráulio, que me diz: “O
que você está fazendo aqui?” Diante da resposta de que era para entregar
materiais daquela unidade, o oficial ordenou: “Pega logo suas coisas e some
daqui!” Na minha saída, ele disse: “Vai com Deus e não apareça nunca mais!”
O oficial que me expulsou Batalhão é sobrinho do tenente-coronel Lima,
ex-comandante do RCAT – Regimento de Cavalaria Alferes Tiradentes, que
foi acusado pelos praças de ter dito a um cabo:
91
Paranóia oficial de olho
na maracutaia
92
Continuam os IPMs
93
Expulsos
94
Oito foram abertos no interior, todos concluídos. Dos inquéritos abertos na
Capital, 27 foram remetidos à Justiça Militar e treze estavam em análise pelo
Estado-Maior. Um IPM e uma sindicância administrativa ainda estavam em
andamento.
Outras expulsões poderiam ocorrer, nos processos ainda em andamento.
O único PM preso, por ordem da Justiça, é o soldado Wedson Campos Gomes,
acusado do homicídio do cabo Valério.
Julgamento
95
E os outros disparos? Por que não
foram esclarecidos? Fica uma dúvida
se esses disparos incriminam
alguém, que teria sido encoberto
pela apuração da Polícia Militar.
Não há dúvida de que o
coronel atirou.
96
Depoimento do Comandante
Geral da Polícia Militar de
Minas Gerais
Equiparação
O Comando da PM sempre defendeu e pretende lutar por essa
equiparação com a Polícia Civil.
97
Depois do aumento dos detetives e praças, houve uma recomposição
até 97 também para os oficiais e não um aumento diferenciado. Os delegados
continuaram na Justiça para equiparar seus salários aos dos promotores,
mas não conseguiram. A Associação dos Delegados entrou então na
Justiça com uma ação para conseguir equiparação de um terço com os
salários dos procuradores, e venceu em todas as instâncias. O Governo foi
obrigado a dar este aumento.
Começou então a movimentação dos oficiais da PM. Os coronéis
conversavam entre si e comigo por um telefone direto – através da Datacom –
e a opinião geral era que o aumento dado aos delegados também atingisse a
PM. Logo depois do aumento dos delegados, no final de maio/97, houve uma
reunião do Comando e ficou claro que os oficiais aguardavam este aumento.
Numa audiência com o governador Eduardo Azeredo coloquei esta
posição e pleiteei um aumento geral para oficiais e praças. O governador
concordou e mandou que a Secretaria de Administração fizesse um estudo do
impacto do aumento na folha e a maneira que ele deveria ser concedido. O
governador pensava em enviar uma mensagem para a Assembléia, o que
significava demora. Propus então ao governador que ele desse o aumento
através da gratificação de curso, mas estendendo aos praças e detetives.
98
Pode dar o aumento, vamos conscientizar e
segurar a tropa.
Traição
Um dos diretores da Associação de Sargentos era candidato a deputado
e não se manifestou na reunião, mas depois falou aos praças que os oficiais
os tinham traído. Ele foi aos jornais e criou uma desconfiança generalizada. A
imprensa caiu sobre nós. Não dava para desfazer o que a imprensa publicava,
fomos atropelados. Não havia como divulgar informações corretas, mesmo
porque o processo do aumento estava em andamento e não podíamos dar
declarações.
Aí veio a morte do cabo Glendyson. Ele havia tirado o colete à prova de
balas para fazer um lanche quando houve o assalto e perseguiu os assaltantes
sendo baleado. A imprensa divulgou que ele não tinha colete para trabalhar,
que faltavam equipamentos na Polícia Militar. Reconheço que não há colete
para todo mundo, mas isso não era verdade no caso dele. A morte do cabo
Glendyson tumultuou o processo.
Houve manifestações de descontentamento. O comandante CPC, Coronel
José Guilherme, declarou nesta ocasião que o salário de um soldado deveria
ser de mil reais, de acordo com as tabelas de outros países. A imprensa explorou
a declaração.
Outra declaração polêmica, que foi desvirtuada, foi o caso do iogurte,
feita pelo cel. Eleutério. Ele me explicou essa declaração, dizendo que estava
se referindo à evolução salarial do profissional da PM. Era claro que o salário
não era uma miséria comparado a outras profissões. O que ele quis dizer era
que havia um ganho real, os praças estavam vivendo melhor, mesmo não
ganhando o ideal, mas comparando com o público civil estava em melhor
situação.
99
Outro episódio explorado foi o dos PMs vivendo no banheiro do Fórum.
É claro que eles não eram exemplo da situação de todos os praças, estavam
administrando mal o seu salário.
Clima hostil
100
RDPM
A greve na PM prejudicou a própria situação financeira da PM. Por
exemplo, já existia um projeto para recomposição da frota dos bombeiros. Com
a greve, tivemos que parar tudo. O anteprojeto de revisão do RDPM já estava
sendo preparado desde a gestão anterior, do Coronel Nelson Cordeiro, mas
tínhamos que aguardar as mudanças no País, a aprovação das reformas
administrativas e políticas. Estávamos esperando um momento adequado
quando a greve estourou.
Um dos pontos que os grevistas questionavam no RDPM é a pena
privativa de liberdade. Eu defendo a continuidade desta pena, porque o sistema
da PM não é o sistema comum da CLT. Não podemos demitir por justa causa.
A punição mexe com o comportamento do policial. Nosso sistema na verdade
é paternalista, adverte, transfere, pune, dá outras oportunidades ao policial,
ao contrário da empresa comum, civil, onde pode haver demissão, de forma
mais objetiva, mais rigorosa. Faltar ao serviço é uma transgressão grave, mas
o policial pode ser ouvido, pode se justificar. E só é preso atrás das grades em
casos mais graves.
Outro ponto questionado é a permissão para casar. Isto não é para aviltar
o praça. Reconheço que o texto do regulamento está forte, mal colocado ou
mal redigido, mas o objetivo é dar proteção ao praça, facilitar benefícios, dar
cursos, orientações, exames, o pré-natal.
A tropa de reação
Nem sei descrever a sensação que tive ao ouvir as vaias dirigidas aos
oficiais. Estar arrasado é pouco, depois de tanto tempo vivendo dentro de uma
Corporação disciplinada, que sempre manteve a ordem. Foi um mal-estar terrível.
Daria minha vida para não ter que passar por aquilo.
Quando decretei a ordem de prisão para os praças, que estavam em
passeata, tive o objetivo de caracterizar essa insubordinação através da
imprensa. Os jornais iriam relatar esta desobediência e depois poderíamos mover
ações sobre a insubordinação deles.
Depois do dia 13, pensávamos em tudo que poderia acontecer. O Governo
havia aberto negociações com os representantes dos praças e o Comando.
Houve a assembléia deles com prazo para que o Governo atendesse as
reivindicações. Começamos a fazer um planejamento intenso. Eu considerava
101
o número de amotinados pequeno comparado com o tamanho da Corporação.
Tínhamos que criar uma força, mas era algo inédito uma tropa criada para
combater outra tropa na PM. Foi muito complicado, mas conseguimos formar
uma tropa confiável. Ela foi preparada, trouxemos armas, armamos os policiais.
Depois disso, tentamos evitar que os praças realizassem a assembléia,
queríamos que a reunião fosse para desmobilização, que os líderes apenas
comunicassem o andamento das negociações com o Governo. Acho que os
líderes deveriam ter uma postura mais firme, mas eles não conseguiram evitar a
passeata do dia 19. Em parte eles tentaram.
Achamos que o processo iria parar lá no clube, mas os policiais ganharam
as ruas novamente. Nosso primeiro planejamento era cercar o clube. A tropa
de confiança seria deslocada para lá, mas o governador orientou para que não
houvesse confronto. Como poderíamos parar os grevistas na rua sem
confronto?
102
Eu posso garantir: se houvesse
invasão por parte dos grevistas, a
ordem era para confronto e haveria
muito sangue derramado.
Lições
Depois que tudo aconteceu, olho para trás, mas não me sinto magoado
com a Polícia Militar, com os praças, os líderes do movimento. Não persegui
ninguém, não cerceei, não tive idéias de revanche ou de culpar alguém por
tudo o que aconteceu. Meu único sentimento era que aquilo tudo não precisava
ter acontecido. Os IPMs foram realizados legalmente, determinei a apuração
dos fatos, com punição e exclusão se necessário, dentro da lei.
Entendi que precisava deixar a PM. Um novo Comando seria benéfico
para que a Corporação arrumasse a casa. Uma mudança traria novos alentos,
facilitaria a recomposição, a integração com o Governo. Esperei apenas que
passasse o momento crucial para não sair como se estivesse fugindo. Fiquei
numa situação difícil, com os burburinhos da imprensa, boatos internos, tinha
mesmo que sair. Mas nunca tive nenhum atrito com o governador.
Em julho, levei o pedido de exoneração ao governador. Eu expus a ele
que a minha saída seria benéfica para a PM, mas ele entendeu que aquele
momento não era adequado. O governador me disse: Não aceito sua demissão
103
agora. Entendo suas argumentações, mas é preciso mais tempo.
Algum tempo depois, o governador enviou à Assembléia a proposta para
a possibilidade de reconvocação de oficiais da reserva. Sou contrário a essa
proposta e achei que, por discordar do governador, não poderia mais ficar no
cargo. Se o projeto passasse, era como seu eu quisesse ser reconvocado. Tive
que me manifestar oficialmente contra, inclusive na imprensa. Disse que não
concordava, limpei minha mesa e voltei a pedir ao governador minha exoneração
em caráter irrevogável. Mas ele me ordenou que eu permanecesse no cargo
até a escolha do novo comandante. O que só aconteceu um mês depois,
quando a Assembléia já havia aprovado o projeto que possibilitava a
reconvocação de oficiais da reserva.
Antes de sair eu já havia pedido à Diretoria de Pessoal que agilizasse os
processos porque não queria deixar para o outro comandante assinar – era
uma banana que eu mesmo teria que descascar. Cobrei pressa. Só que não
houve tempo hábil para a conclusão de todos os IPMs. No dia 8 de dezembro,
feriado, os primeiros IPMs estavam prontos, li tudo e discordei da decisão final.
Foi feito um reestudo dos processos para refazer as conclusões e eu despachei
pela exclusão de alguns deles.
O pessoal do marketing me alertou para não divulgar o resultado antes
da passagem do Comando, o que desviaria toda a atenção da mídia para o
IPM e não para a troca de Comando. Eu assinei, mas a divulgação seria feita já
no novo Comando. Já o processo do cabo Júlio era só dele, julgado pelo
Conselho de Disciplina e ficou pronto um pouco antes. O Chefe do Estado
Maior, Coronel Osvaldo Miranda me avisou: Já li o processo e já decidi pela
exclusão do Júlio. Eu respondi: Segura para soltarmos todos juntos. Então
assinei as exclusões e as 538 punições.
Em minha avaliação, agi com correção, sem subterfúgios durante todo o
episódio. Considero que minha carreira de 32 anos na PM foi brilhante.
Acontecer tudo isto no meu Comando pesa muito para mim. A idéia de disciplina
me acompanhou toda a vida desde a infância e nunca imaginei dentro da PM
ver a disciplina aviltada. Hoje penso que abdicaria do aumento salarial para
que nunca tivesse acontecido o que aconteceu.
104
Coronel José Guilherme do
Couto
Feitas estas colocações, pode-se agora falar dos fatos. A crise da PMMG
não pode ser analisada sem que sejam considerados determinados fatores
externos a ela, mas que indubitavelmente propiciaram algumas condições para
ela fomentasse.
O primeiro deles diz respeito a auto-estima, atingida diretamente pelas
ações criminosas de alguns policiais militares, como o caso da Favela Naval
em Diadema, São Paulo, sensacionalisticamente explorado pela imprensa, que
cobriu de vergonha o policial fardado, jogando contra ele a opinião pública,
dentre outros.
O equipamento, viaturas, armamento e fardamento em estado precário e
sempre em falta, ultrapassado ou por demais regrado.
A degeneração da situação econômico-financeira do Estado, atingindo
direta e indiretamente o conceito de autoridade e a capacidade operacional da
Polícia Militar. A falta de investimentos suficientes na segurança pública, o
aumento da violência marginal e dos índices de criminalidade são dois opostos
que se somam, afetando a capacidade de resposta da Força Pública aos anseios
da comunidade e estressando cada vez mais nossos militares.
A generalização do segundo emprego, popularmente conhecido como
bico, vem corroendo a disciplina, o profissionalismo, a disponibilidade e o
descanso do Policial Militar. Isso ficou demonstrado através de um trabalho
monográfico de grande seriedade e alcance, da autoria do Coronel Oswaldo
Miranda da Silva, apresentado para a conclusão do Curso Superior de Polícia
em 1994. O chamado bico, devido as agruras financeiras dos PMs, passou a
ser tolerado e em muitos casos corre-se o risco dele assumir maior importância
que o trabalho na PM, passando este sim, a ser o bico.
Tenho a dizer que essas são as minhas impressões pessoais desse
chamado movimento – essa rebelião – que ocorreu na Polícia Militar e que
para mim foi uma grande bobagem. É preciso ficar claro que sou contra tudo
o que aconteceu e acho que os praças não tiveram ganho algum fazendo
essa rebelião. O aumento que foi dado pelo Governo depois do movimento,
iria para os contracheques de qualquer forma. O salário iria melhorar de
qualquer jeito.
106
Acho que o maior erro foi de comunicação. Foi uma grande falha. E o
segundo problema, a deslealdade de algumas pessoas, que deram entrevistas
mentirosas à imprensa. Não acho que foi o aumento salarial dos oficiais. Se
não fosse o reajuste de oficiais, o clima de insatisfação iria continuar da mesma
forma. Não sei se o governador foi mal informado, mas acho que ele agiu bem
em negociar.
Antes que tudo acontecesse eu já alertava para a situação financeira da
Polícia Militar, que vinha passando extremas dificuldades, assim como toda a
máquina do Estado. Viaturas velhas e quebradas, equipamento obsoleto, além
do salário dos policiais, que os obrigava a fazer o tal bico, prejudicando sua
situação na caserna. Essa segunda atividade, além de exaurir as forças do
policial para o trabalho de caserna, para alguns se torna mais importante que o
seu trabalho como militar. Então, o cara fica estressado, vivendo um dilema,
trabalhando num lugar que exige um comportamento disciplinado e depois
trabalha em outro lugar que ele deveria fiscalizar, como segurança de boates,
de bingos. Esse trabalho toma o seu horário de descanso e o deixa insone,
cansado. Eu mesmo disse várias vezes, na época, que o salário inicial de
um militar deveria ser de mil reais, mas que o Governo não tinha capacidade
de pagar isso.
Havia um clima de insatisfação muito grande e que vinha crescendo.
A moral da tropa estava baixa. E nós sinalizamos, avisamos sobre essa
situação. O CPC avisou, os comandantes de batalhões avisaram, várias
vezes ao chefe do Estado Maior, Coronel Herberth Magalhães, que por
sua vez, avisou ao comandante-geral.
Alguma coisa tinha que ser feita. Não sei se essa situação foi levada
ao governador. Isso deveria ser feito pelo comandante-geral, que, em última
análise, é responsável por tudo, ele é quem tem que tomar as decisões.
A questão do salário dos oficiais é bom que seja esclarecida. Os
delegados tiveram reajuste que lhes era devido por decisão judicial. Existe
um acordo entre as duas forças sobre a equiparação. Fui eu que fiquei
sabendo desse aumento, por acaso, e levei a situação para o chefe do Estado-
Maior. Essa equivalência variava de 10,6% para o salário do coronel até 24,5%
107
para o salário de 2º tenente. Isso seria passado para os praças, através dos
índices de gratificação de cursos, sem precisar passar pela Assembléia. O
governador iria dar isso, mas o raciocínio feito no Palácio foi de que o Governo
teria que dar reajuste para os policiais civis. Então, a proposta do Governo foi
reajustar o salário dos oficiais e para os praças procederia da mesma forma, só
que depois de enviar à Assembléia a solicitação para que pudesse dar o reajuste
diferenciado aos funcionários públicos.
Essa proposta foi levada à reunião do Alto Comando. Os coronéis
entenderam que a proposta deveria ser aceita, desde que a situação fosse
imediatamente explicada para os praças. Daria para segurar, para ser aceitável,
deglutido. Demorou oito dias do fato, com a imprensa, já então noticiando o
aumento em separado, para que o Comando avisasse os praças.
Foi feita uma nota do Comando, encaminhada aos batalhões, com a
recomendação de que se reunisse os praças e lhe fosse explicado o
procedimento. A imprensa continuava noticiando que havia um aumento em
separado, o que era uma mentira, o aumento seria repassado para os praças.
Houve uma reunião com os representantes das associações dos praças, que
foram esclarecidos sobre a situação.
Só que um dos diretores da Associação de Subtenentes e Sargentos
desceu e, ainda no hall de entrada do prédio do Comando, deu uma entrevista
falando que eles iriam entrar na Justiça. Foi uma picaretagem, uma deslealdade.
Ele sabia que o aumento seria repassado, como aconteceu em todos os
reajustes. Ele é um mentiroso e fez de maldade. Tinha objetivo de semear a
discórdia com objetivos políticos.
A Polícia Militar estava num momento muito difícil, depois do episódio
da Favela Naval, em São Paulo. A tropa estava de cabeça baixa, nós éramos
olhados na rua como aqueles bandidos da PM de São Paulo. Foi um período
realmente difícil. Então conversando com a tropa durante uma solenidade no
Canil da PM, fiz uma comparação: Já que estamos fazendo uma homenagem ao
Canil, no lugar onde está o melhor amigo do homem, o cachorro, não vamos
abaixar a cabeça por causa dessa história da Favela Naval não. Vamos continuar
de cabeça erguida, para enfrentarmos os problemas até com uso de violência,
se necessário. Vamos imaginar um cachorrão, fazendo uma comparação. Se a
gente pegar um cachorrão, arrancar-lhe os dentes e castrá-lo, esse cachorro
só vai servir para comer, não serve para mais nada. A Polícia, podemos dizer
que ela tem que ser como um cachorro grande, com dentes afiados e inteiro,
não pode ser castrado não, só que tem que ser adestrado para não avançar
em qualquer um. Ele tem que ter coragem para avançar e dentes para
morder. A comparação que eu fiz foi essa, mas minhas palavras foram
108
distorcidas por pessoas como essas, que fizeram a rebelião, que são
verdadeiras quinta-colunas dentro da Polícia.
109
do meu conhecimento e acho que o Comando não se prestaria a isso. Esses
telefonemas podem ter sido feitos por qualquer um, talvez alguém que
quisesse ver o circo pegar fogo.
A situação era de altíssimo risco. Estivemos muito perto de uma convulsão
social de grandes proporções. Houve um consenso no Estado-Maior de se
criar uma força, armada, capaz de evitar a invasão de prédios e outra força que
pudesse coordenar para que não houvesse uma baderna na cidade. Não
entreguei o Comando da Capital nessa época a pedido. Jamais faria isso. Foi
ordem do comandante-geral. Nunca entregaria o Comando numa crise daquela,
seria um ato de covardia.
110
tudo.
O que me deixou magoado foi que eu merecia uma satisfação do Comando
da Corporação, ou deveria ter sido punido pelo comandante, se ele julgasse
que trabalhei mal, ou me elogiado por meu esforço em conduzir o Comando da
Capital num bom termo. Não fui nem punido, nem elogiado. É como se eu não
tivesse existido. Essa mágoa carrego comigo, mas hora nenhuma me presto ou
me prestei a jogar pedras na Corporação.
Até hoje o clima é de uma ressaca violenta. Os coronéis acabaram como
culpados da situação. O Comando optou pela lei do silêncio, não desmentiu, o
que sou contra. Vários militares foram expulsos. A confiança ficou abalada.
Mas a Polícia é muito superior a isso e está se reestruturando.
A falta de investimentos em segurança pública continua até hoje. A
ousadia dos bandidos está aumentando e o Estado nacional está perdendo
a capacidade de reagir e coibir. Precisamos de mais investimentos e, por
que não, de melhores salários. Esse investimento é premente, mais que na
saúde ou na educação. Sem segurança, não temos saúde nem educação. Essa
é a maior lição.
111
Trechos de depoimentos de
oficiais no
Conselho de Disciplina do
Cabo Júlio
“[...] é importante verificar que toda a pauta da Polícia Militar foi feita
num momento de absoluta pressão, com os quartéis, principalmente os da
Capital, como se assentados num barril de pólvora, obrigando o comandante-
geral a ceder muitas vezes contra sua própria vontade”.
“[...] que finalmente na reunião de acordo salarial em que houve a
participação do vice-governador do Estado, o depoente foi afastado das
negociações, a pedido da Comissão, embora tenha acompanhado a conversa;
que é a primeira vez que acontece no Estado uma reunião de negociação salarial
com todos esses secretários, o da Administração, Fazenda, Casa Civil, vice-
governador, comandante-geral, chefe do EMPM; que a decisão deveria sair
naquela reunião sob pressão”
“[...] que em determinado instante o cabo Júlio falou com o vice-
governador, que se fosse abaixo de determinado valor, que ele estabeleceu, a
tropa pararia; que o vice-governador ligou para o governador e, face ao
momento dramático que vive o Estado, foi atendido; que gostaria de colocar
um fato da mais alta relevância, quando o vice-governador deu o sinal positivo,
o cabo Júlio pegou um telefone celular e, em dez minutos, o movimento cessou.
Os quartéis voltaram ao normal, o que a nítida impressão ao depoente de
controle absoluto sobre a tropa envolvida”.
“[...] que o acusado expôs ao ridículo a administração da Polícia Militar
de Minas Gerais perante a nação”.
Tenente-coronel Carlos Roberto Lopes Cançado, ex-comandante do
Batalhão de Choque, atual cel. do QOR – Quadro de Oficiais da Reserva, em
27 de outubro de 1997:
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“[...] que a liderança não feriu frontalmente a ética e os preceitos
regulamentares que regem a carreira policial militar, pois essas foram feridas
quando a tropa saiu do Batalhão de Choque em passeata; e que, percebeu o
cabo Júlio procurando serenar os ânimos, organizar o movimento e tentar
estabelecer junto aos presentes uma pauta de reivindicações para ser levada
ao Comando e ao Governo do Estado”.
“[...] que não presenciou, em nenhum momento, o cabo Júlio incitando a
tropa para indisciplina”.
“[...] que expressou, ao ver o acusado na Comissão, a satisfação por tê-
lo lá, por considerá-lo um militar tranqüilo”.
“[...] que para o bem ou para o mal, ele (cabo Júlio) já fazia parte da história
da Polícia Militar”.
“[...] que como comandante do Batalhão de Choque conhece a sua tropa
e que acredita que os manifestantes consideraram a tropa postada na Praça da
Liberdade como um desafio a ser superado pela multidão que manifestava,
policiais civis, militares e agentes penitenciários”.
Coronel reformado Edgar Soares, em 3 de novembro de 1997:
“[...] que o Comando não tem autoridade moral para prender o depoente
ou qualquer um que lute por melhoria salarial”.
“[...] que o comandante-geral, o chefe do Estado-Maior, e o chefe do
Gabinete Militar não têm mais qualificação que lhes tinham sido confiada”.
“[...] que entende que o Comando conduziu o relacionamento com a
Comissão de uma maneira durante a crise, permitindo o diálogo com o próprio
vice-governador e secretariado e, após o encerramento, a trata de maneira em
que se percebe principalmente retaliação”.
“[...] que no dia 24, ao passar pela Praça da Liberdade, as 14hs., percebeu
o movimento de tropas naquele local e ligou para um coronel do Alto Comando
e solicitou que não colocasse tropa da PM contra a própria PM e que a resposta
foi de que o Comando tinha o controle da situação. E que tentou pedir o mesmo
a outras autoridades”.
“[...] que como oficial, tem vasto conhecimento de policiamento de choque,
sabendo que o bloqueio se faz ostensivamente com cassetete, escudo e
capacete, o que não ocorreu.; que aquele bloqueio foi feito com corda, cadetes
e policiais femininas desarmadas, que quem estuda psicologia de massa
entende que a tropa não iria invadir o prédio do QCG, e sim, nesses momentos,
o perseguidor corre atrás do perseguido, independente de direção”.
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Conclusão
Nos sentimos como se toda uma família estivesse com fome e pai
colocasse comida somente para ele deixando os filhos com fome.
O tempo passou e demos a volta por cima. Em 1998, quase um ano depois,
fui eleito o Deputado Federal mais votado de Minas Gerais, com 217.088 votos.
O primeiro e único Praça eleito Deputado Federal em toda a história de todas
as Polícias Militares do Brasil.
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Consegui após uma negociação política com o Governador de Minas
Gerais Itamar Franco, em 1999, o retorno de quase todos os policias militares
que foram expulsos da corporação em virtude do movimento.
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