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Resumo
O presente artigo é uma articulação de conceitos da psicanálise com a obra O fantasma da
ópera. Analisaremos a primeva relação de amor com a formação de desejos e fantasias. As
fantasias compensam uma realidade não favorável à satisfação e ao prazer almejado. Essas
fantasias fazem um rearranjo nos processos psíquicos promovendo uma homeostase interna
num sujeito em insatisfação e desamparo. A arte presente nessa obra será enlaçada com a
idealização decorrente das marcas infantis e do anseio pelo objeto perdido. Realidade e fanta-
sia se encontram num clima de mistério, sedução e terror, regidos pela música que embala os
protagonistas do início ao fim.
sias, para promover um rearranjo da realida- 1910 Freud escreveu A significação antitética
de e obter prazer dela (Freud, [1901-1905] das palavras primitivas, onde analisa:
1975). Quando um sujeito não consegue al-
cançar suas finalidades, seja por motivos cul- A relatividade essencial de todo conhecimen-
turais, seja por sua própria fraqueza, ele se to, pensamento ou consciência, não se pode
recolhe onde possa gozar, num mundo onde mostrar a não ser na linguagem. Se tudo que
as possibilidades são criadas de acordo com podemos conhecer é visto como transcri-
seus desejos (Freud, [1916-1917] 1975). ção de alguma outra coisa, toda experiência
O filme/arte em questão traz desde sua deve ter dois lados; e, ou cada nome deve ter
criação original uma fantasia repleta de uma significação dupla, ou então, para cada
simbologia que captura o expectador e, por significação deve haver dois nomes (Freud,
meio de identificações, o faz ir ao encontro [1910] 1975, p. 99).
das próprias fantasias. Nesta obra a música é
objeto de amor e idealização para o fantasma O fantasma-Erick subordinou Christine
na experiência de revivência do amor mater- ao seu desejo, que passou a ser sua própria
no. Sua mãe era uma cantora da ópera e can- fantasia. E o desejo dela, como um eco, co-
tava para ele enquanto o amamentava. E para loca-o no lugar do pai. A voz é a invocação
Christine a música a aproximava de seu pai, para musicar a vida. No estudo do objeto voz
que era violinista e sonhava em vê-la cantar da pulsão invocante numa estrutura entre
no teatro, prometendo que lhe enviaria um o real, simbólico e imaginário faz com que
anjo para guiá-la. O artista vai ao encontro aquilo que é escutado seja da ordem da invo-
da sua verdade psíquica resolvendo seus cação (Mattos, 2012).
conflitos em uma criação (Bacha, 1998). Para Quinet (2003) não existe uma repre-
Toda a fantasia que o fantasma construiu sentação própria do desejo: ele não tem subs-
é sustentada por uma verdade subjetiva. Na tância, é vazio de aspiração; caso contrário,
idealização do fantasma-Erick com a música, deixaria de ser desejo. A dimensão do desejo
Christine é a ponte entre a relação do eu e o é a realidade psíquica. O desejo está irreduti-
objeto de prazer, que remete às suas primei- velmente ligado ao processo pulsional.
ras experiências de amor. O desejo é a forma
de lidar com a falta, na busca do objeto per- O desejo manifesta-se sempre mascarado nas
dido. formações do inconsciente, assim também
A linguagem antecede o nascimento da toda formação do inconsciente aparece, por
criança e se apresenta através do discurso excelência, como o que testemunha o reco-
que circunda o sujeito desde mais tenra ida- nhecimento do desejo. Mas trata-se igual-
de. A voz é colocada em destaque por Freud mente de um desejo de reconhecimento sob
no papel que concede ao grito da criança. uma forma significante absolutamente in-
Inicialmente, é apenas descarga automática compreensível (Dor, 1992, p. 170).
do corpo, que reage ao estado de tensão. O
grito chama a atenção do adulto para o es- Erick, o fantasma, idealiza o canto de
tado de sofrimento da criança, e este vem Christine. Escondendo sua história e sua
ao encontro da criança com uma ação que face, mantém o mistério e a sedução da re-
minorize seu sofrer. Esse canal de descarga lação.
vai constituir a comunicação. O desampa-
ro inicial do ser humano é a fonte primária A arte constitui-se um meio caminho entre
dos motivos. A voz é o canal para o estabe- a realidade que frustra os desejos e o mundo
lecimento do primeiro laço social da criança dos desejos realizados da imaginação (Freud,
com o outro (Freud, [1893-1899] 1975). Em [1911-1913] 1975, p. 144).
do na obra pela vida fantasiosa de Erick. Ele de mim. Você pertence a este lugar [...] Ela
afirmava ser a própria escuridão por estar dá forma aos meus sonhos. De fato, é minha
condenado a viver no subterrâneo do teatro, terra dos sonhos. De todos os lugares do meu
mas com a chegada de Christine direcionou reino este é o lugar mais encantado (O fantas-
sua fantasia para o objeto da realidade na ân- ma da ópera, 1990).
sia de desfrutar de um amor: “O’ Christine,
esse tempo com você... Foi o mais perto que Se por alguns instantes desviarmos nossa
cheguei da felicidade. Estou satisfeito com atenção para Gaston Leroux o criador d’O
isso!” (O fantasma da ópera, 1990). fantasma da ópera, nos encontramos com
A função protetora da pessoa do amado Hanna Segal (1993). Para ela há uma ligação
é na verdade a função protetora da fantasia do impulso criador e os meios de evocação
do amado. A fantasia é protetora porque nos da emoção estética. Erick tem uma deforma-
preserva do perigo de uma turbulência des- ção em sua face que o faz usar uma máscara,
mesurada do desejo ou o seu equivalente, Segal analisa que o autor procura um equilí-
o caos pulsional. A dor só existe sobre um brio entre o que se considera ‘feio’ e ‘bonito’.
fundo de amor. A dor se forma no espaço de O feio é a fragmentação da própria forma,
um instante, provocada pela ruptura súbita e o belo, a reconstrução numa nova forma.
e contínua com a comoção psíquica que ela O fantasma, que se percebia feio, construiu
desencadeia e culmina com uma reação de- a expectativa de que o amor de Christine
fensiva do eu para se proteger. “A dor é um possibilitaria a reconstrução de si mesmo.
afeto que reflete na consciência as variações Assim, tirou a máscara para ela.
extremas das tensões inconscientes, varia- A realidade psíquica é uma fantasia for-
ções que escapam ao principio do prazer” jada no movimento de contornar e tratar
(Nasio, 2007, p. 213). o furo do real. E o modo segundo o qual o
Christine desmaia ao ver o rosto de Erick sujeito trata o real é um modo corporal. É
sem a máscara. Ele a retirou atendendo o no corpo que a fantasia se baseia e faz bar-
pedido dela e por acreditar que ela o ama- reira ao gozo. Para lidar com a angústia sus-
va. Diante da reação de seu objeto de amor, citada pelo desejo, o sujeito extrai o suporte
é tomado pela fúria e sofrimento destruin- imaginário para construir a fantasia, que é
do tudo que encontra pela frente. A fantasia a matriz de uma montagem. A fantasia se-
emoldura e enquadra a realidade (Freud, ria uma montagem sobre outra montagem,
[1916-1917] 1975). uma montagem imaginária construída sobre
Segundo Roudinesco (1998), a fanta- a montagem da pulsão. Assim, a fantasia é
sia designa a vida imaginária do sujeito e a uma ação que se organiza segundo os con-
maneira como ele representa para si mesmo tornos do objeto pulsional que arrasta e pre-
sua história ou a história de suas origens. O cipita o sujeito (Nasio, 2007).
fantasma, por meio de sua trajetória de dor, Ainda de acordo com esse autor, a fanta-
cria um reino que diz ser belo, onde a música sia é a liga que damos à sutura inconsciente
rege o lugar onde animais brincam em har- do sujeito com a pessoa viva do eleito, uma
monia. Na realidade o que existe é um lugar liga de imagens e de significantes vivificada
escuro com animais sem vida. O diálogo de pela força real do desejo que o amado suscita
Erick e Christine retrata seu mundo interno: em mim e que eu suscito nele, unindo-nos.
Mas essa fantasia do amado, mesmo sen-
Há aqui também esquilos, raposas e coelhos do levada pela pressão impulsiva do desejo,
que brincam em harmonia... Com essa mú- tem por função frear o desejo, impedindo-o
sica mágica. Você também é mágica. Eu sei. de chegar a uma satisfação absoluta, tornan-
A mágica é minha amiga. Ela não se esconde do-se uma realidade cotidiana onde o amado
é o ser que mais nos satisfaz, pois fica além tência escapa a qualquer conceitualização
de uma instância exterior – no interior. que possa ser estabelecida porque é anterior
Quando se perde o amado, a dor que se a todas elas. A essência e a natureza de seu
sente é a do desaparecimento do eleito fan- processo permitem apenas compreender sua
tasiado é a fratura do que nos ligava a esse dimensão complexa. O desejo move o sujeito
eleito. Assim não é a ausência do outro que impulsionando-o sempre a prosseguir bus-
dói, mas os efeitos dessa ausência em mim. cando para seu desamparo e sua falta uma
A perda do amado é uma ruptura dentro de completude e uma segurança inexistentes.
minha construção; é o desabamento de toda A idealização feita por Erick e suas fan-
a construção interna. Erick fica apático com tasias são o que lhe proporciona felicidade
o distanciamento de Christine. e o liberta momentaneamente de um mun-
Nos últimos momentos do filme Christine do solitário e escuro. Percebe em Christine
canta para tentar resgatá-lo do seu sofrer e a possibilidade do amor que iria salvá-lo
tentar recuperá-lo numa relação amorosa que desse mundo ao qual sentia estar condena-
ela mesma não compreende. Os dois cantan- do. A teia que envolve Christine nos lembra
do juntos é comovente. O fantasma sente que Pigmaleão e sua Galatea, Erick se apresenta
ela canta para ele e, ao ser perseguido pela Lei como o professor que poderá possibilitar o
(policiais, noivo de Christine, e seu pai), leva melhor desenvolvimento de sua voz e poten-
Christine consigo. Ao se sentir encurralado e cial. O sucesso no Bistrô confirma o projeto
sem saída, dirige um olhar de desalento a seu que os uniu: ele e ela são um só frente aos
pai solicitando o cumprimento da promessa aplausos! À sua maneira Christine o amou.
paterna de que ninguém veria sua deforma- E é esse afeto existente entre o criador e a
ção enquanto ele fosse vivo. Dessa forma, o criatura, o monstro e a bela que tornam as
fantasma, ao se confrontar com seu interior histórias de amor tão encantadoras.
transtornado, sente a dor do encontro brutal As diferenças e as impossibilidades enco-
do sujeito com seu desejo enlouquecido e o bertas por afetos e fantasias levam à sensação
preço das opções para ser o que se é. e percepção do reencontro do objeto. Limites
deixam de existir. O objetivo da paixão é di-
Conclusão minuir o recalque e transmitir a sensação de
O fantasma da ópera, de 1990, é a adapta- um estado maníaco de poder subjugar a rea-
ção da obra mais humanizada. O fantasma lidade.
se apresenta mais exposto e suscetível aos
sentimentos, trazendo seu lado de mistério, [...] Nasci para ela me salvar, só preciso dela.
medo e terror. Em contrapartida demonstra [...]
uma face generosa e entregue ao amor, que, Às vezes os sonhos se tornam reais [...].
pelas limitações de vida que possuía o prota-
gonista que dá nome à obra, seria impossível
de realizar.
A música que envolve toda a obra desperta
experiências enraizadas na infância, a versão
ideal da voz materna é a que está no cerne do
intenso júbilo que a música proporciona. A
voz é o meio de transmissão da linguagem e
da palavra, o início da comunicação com o
primeiro objeto de amor, a mãe.
O desejo, enquanto função que permite
localizar o sujeito e posicioná-lo em sua exis-
S OB R E AS AU TOR AS
Stetina Dacorso
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