You are on page 1of 17

Análise Psicológica (1996), 4 (XIV): 563-579

A co-construção da hipótese sistémica


em terapia familiar (*)

ANA PAULA RELVAS (**)

1. INTRODUÇÃO partindo da abordagem dos novos desenvolvi-


mentos em terapia familiar, redefinir-se-á a hi-
A hipótese sistémica em terapia familiar, co- pótese sistémica como co-construção do sistema
mo objecto de problematização e reconceptuali- terapêutico. Concluiremos, no terceiro ponto,
zação, é um dos elementos mais relevantes no com a integração dessa perspectiva no modelo
diálogo/debate actualmente em curso no seio de terapia familiar desenvolvido pela equipa do
deste movimento psicoterapêutico. O título dado Núcleo de Seguimento Infantil e Acção Familiar
a este artigo aponta implicitamente para o cerne (NUSIAF) da Faculdade de Psicologia e de
desse debate, não deixando de indicar, de algum Ciências da Educação da Universidade de Coim-
modo, qual o nosso posicionamento perante a bra.
questão.
Para introduzir e contextualizar o problema é Segundo Bénoit e col. (1988) a terapia fami-
pertinente, para além de definir terapia familiar, liar integra uma epistemologia, um corpo teórico
tecer algumas considerações necessariamente e uma abordagem terapêutica. «A epistemologia
sumárias e genéricas sobre a sua evolução, o é circular não causalista e sistémica. Estipula que
processo terapêutico, os modelos em que se di-
os problemas humanos não têm somente um
versifica e o modo como neles se enquadra a
sentido mas uma função no contexto mais lato
problemática da avaliação da(s) família(s).
em que aparecem. Este contexto é constituído
Num primeiro ponto será, então, desenvolvida
por elementos interdependentes uns dos outros
a noção de hipótese sistémica em diferentes
(sistemas); (...) uma vez que a família é um sis-
conceptualizações e o seu enquadramento no
tema entre sistemas (...) é o terapeuta ou obser-
processo terapêutico, sublinhando o seu valor,
potencialidades e limites. No segundo ponto, vador que pontua o sistema em que tem necessi-
dade de intervir, em função do contexto em que
o sintoma surgiu» (ob. cit., p. 514, sublinhados
(*) O presente artigo reproduz, com ligeiras altera- originais omitidos).
ções, a Lição-Síntese proferida em 95/10/14 na Sala Ao contrário dos textos clássicos, nos mais
dos Capelos da Universidade de Coimbra, no concurso actuais é raro surgir de forma explícita uma defi-
de provas públicas para obtenção do título de profes- nição de terapia familiar; contudo, a evolução
sor agregado.
(**) Terapeuta Familiar. Professora Associada com
sofrida ao longo das décadas por esta corrente
Agregação, Faculdade de Psicologia e de Ciências da psicoterapêutica é ampla e explicitamente trata-
Educação da Universidade de Coimbra. da. Tal ênfase não será alheia à grande diversida-

563
de de modelos e escolas, à confusão termino- principal utensílio terapêutico é a relação cliente-
lógica e epistemológica reinante entre os autores -terapeuta (Relvas & Keating, 1995).
deste campo (Fine e Turner, 1991) e, fundamen-
talmente, ao momento de re-criação que desde A já referida diversificação da terapia familiar
meados da década de 80 a terapia familiar vem em numerosos modelos e escolas exige o contra-
atravessando, na sequência da reconceptualiza- ponto da sua comparação e classificação já que,
ção impulsionada pela integração da perspectiva como é óbvio, o modelo1 interfere na prática do
construtivista (Relvas, in press b). terapeuta, «filtrando» o modo como interpreta e
Se o aparecimento da terapia familiar na déca- explica o contexto, o sintoma ou problema e,
da de 50 foi entusiasticamente saudado pelos ainda, como perspectiva a intervenção. No âm-
seus seguidores como expressão de um novo pa- bito desta reflexão, a classificação que conside-
radigma (sistémico-cibernético), na ciência em ramos mais útil tem como critério a evolução da
geral e na psicologia e psiquiatria em particular, terapia familiar anteriormente esquematizada;
a verdade é que na opinião de alguns autores o distingue terapias tradicionais ou de primeira
fascínio pelo novo modelo em breve se transfor- ordem e terapias de segunda ordem (Hoffman,
mou num «sistemismo redutor e mecanicista» 1985)2. Tal utilidade justifica-se pelo facto de se
(Onnis, 1991; Ugazzio, 1991). Surgiu então no centrar em diferenças epistemológicas relativas à
seu seio a necessidade muito profunda de re- noção de sistema, com implicações relevantes no
flectir sobre o que, no dizer de Igodt e Cauffman que diz respeito ao papel do terapeuta e à noção
(1987), subentende esta prática, iniciando-se a de mudança, aspectos fundamentais na concep-
actual «renovação epistemológica» da psicotera- tualização, elaboração e utilização da hipótese
pia sistémica, com óbvias repercussões na teoria sistémica.
e na prática. Onnis (1991) considera que essa As terapias de primeira ordem (em que se in-
evolução/renovação se enquadra numa «opera- cluem, por exemplo, os modelos estrutural e es-
ção reflexiva» sobre a psicoterapia em geral, em tratégico) baseiam-se no funcionamento dos sis-
busca das ligações entre as práticas terapêuticas temas abertos em equilíbrio, através de mecanis-
e as teorias que as informam. Na terapia sisté- mos de auto-regulação. Não dando relevo à di-
mica este auto-questionamento epistemológico mensão histórico-temporal, colocam a ênfase
assenta, em grande parte, no encontro entre os no «aqui e agora». Entende-se que o terapeuta
paradigmas evolutivos e da complexidade, com a pode influenciar o sistema assumindo uma po-
introdução da perspectiva construtivista.

«Uma terapia familiar é uma sucessão de 1


Quando nos referimos a o modelo queremos sig-
sessões que constituem de per si experiências nificar a escola ou corrente teórico-técnica privile-
emocionais para a família» (Gameiro e col., giada pelo terapeuta dentro da própria terapia familiar
1994, p. 26, sublinhado original omitido). Sem (por exemplo estrutural, estratégico, extensivo, etc.)
2
esquecer a primeira, mas partindo desta outra Neste enquadramento não faria sentido apresentar
as classificações que têm como critério a diferenciação
definição de uma terapia familiar, é possível tra- dos modelos tradicionais ou pioneiros em terapia fa-
çar as linhas gerais do processo terapêutico. A miliar (como, por exemplo, a distinção entre as esco-
base é a sessão, ou seja, a entrevista interpessoal las de terapia familiar estrutural, estratégica, transge-
conjunta (como é óbvio, não necessariamente racional, etc.), uma vez que a posição epistemológica
com «toda a família»). A metodologia é sistémi- destes modelos sobre a hipótese sistémica e respectivo
valor no processo terapêutico é idêntica. No entanto,
co-circular (recolha de informação que permita dentro do critério seguido, poderiamos ter optado por
gerar a diferença sobre o problema ou sintoma) e outra terminologia: terapias do modelo homeostático e
o objectivo é a mudança, visando o bem-estar do modelo evolutivo (Onnis, 1991) ou terapias do mo-
grupal e individual. Não é, pois, possível, isolar delo dos sistemas em equilíbrio e do modelo dos
recolha de informação (avaliação) e mudança sistemas afastados do equilíbrio (Elkaïm, referido em
Bénoit e col. 1984). A designação proposta por
(tratamento), quer em termos temporais quer Hoffman (1985, cit. in Golann, 1988) e quase con-
processuais. O processo evolui no seio do que se sensualmente retomada por inúmeros autores parece,
convencionou chamar sistema terapêutico (for- contudo, mais globalmente esclarecedora dos prin-
mado por cliente(s) e terapeuta(s)), pelo que o cípios contidos na distinção.

564
sição activa e de poder, hierarquicamente supe- blicação do artigo do grupo de Milão intitulado
rior. A intervenção privilegia uma vertente ins- Hipotetização, Circularidade e Neutralidade
trumental e pragmática. (Palazzoli e col, 1982)4. A referência à escola de
As terapias de segunda ordem, em que se Milão no tratamento deste tema é assim obriga-
incluem por exemplo os Associados de Milão3, tória; fá-lo-emos, começando por seguir esse
aceitam a premissa da auto-organização, auto- texto a par e passo.
nomia e fecho operacional dos sistemas. Os sis-
temas sociais são definidos como sistemas afas- 2.1. A conceptualização da Escola de Milão
tados do equilíbrio e sujeitos a permanentes flu-
tuações. Dão relevo à dimensão temporal e histó- Palazzoli e col. (1982) definem uma metodo-
rica do sistema. O terapeuta, observador-partici- logia de condução da entrevista familiar, na qual
pante, não tendo capacidade de controlo e previ- a hipotetização é apresentada como o primeiro
sibilidade, é visto como perturbador, como cata- de três princípios fundamentais.
lisador da mudança. A vertente estética e semân- «Por hipótese sistémica entendemos a formu-
tica é privilegiada na intervenção (multiversus, lação pelo terapeuta de uma hipótese baseada
significado, «talking-cure», diálogo terapêutico). nas informações que possui a propósito da
Esta distinção tem, como é óbvio, implicações família que está prestes a entrevistar. A hipótese
na avaliação da família. Nas terapias de primeira estabelece um ponto de partida para a sua inves-
ordem a família é avaliada em função duma teo- tigação, bem como a possibilidade de verificar a
ria explicativa do seu funcionamento e da pato- validade dessa mesma hipótese baseada em
logia; é em função dessa compreensão que a hi- métodos e técnicas específicas. Se a hipótese se
pótese sistémica é elaborada, procurando em revela falsa, o terapeuta deve formular uma se-
última análise equacionar a função do sintoma. gunda hipótese baseado na informação obtida
Nas terapias de segunda ordem não se valoriza a enquanto testa a primeira» (ob. cit., p. 118).
priori nenhuma teoria do funcionamento fami- Os autores esclarecem a definição de hipóte-
liar; a avaliação baseia-se na auto-reflexividade se: é uma suposição, sem valor de verdade ou
do sistema terapêutico e a hipótese é elaborada falsidade que se destina a ser comprovada ou
através da recursividade das perturbações clien- refutada, enquanto ponto de partida para uma in-
te-terapeuta. vestigação à qual serve de base. Deve ser defini-
Note-se, finalmente, que na nossa opinião es- da como uma actividade experimental que per-
ta classificação é adequada em termos da distin- mite uma organização/categorização das infor-
ção que opera, mas é extremista na caracteriza- mações. O seu valor está na sua maior ou menor
utilidade ou, seguindo a expressão de Monroy
ção e «isolamento» dos dois modelos terapêuti-
(1989), na sua fecundidade. Na entrevista fami-
cos, aspecto que pretendemos esclarecer mais
liar, especificamente, a necessária verificação re-
adiante.
pousa nas «retroacções imediatas (verbais e não-
verbais) às questões colocadas, bem como nas
não-imediatas resultantes das prescrições e
2. A HIPÓTESE SISTÉMICA
rituais dados à família no final da sessão.» (Pa-
lazzoli e col., 1982, p. 119). O seu valor funcio-
A hipótese sistémica sempre foi vista por
nal é, afinal, garantir que o terapeuta se compor-
grande número de terapeutas familiares como
ta mais como elemento motor da sessão do que
fulcral na condução e evolução da terapia. No
como observador, na medida em que introduz o
entanto, só saltou para a ribalta das grandes
inesperado e o improvável num texto que impe-
questões da terapia familiar em 1980, com a pu-
de que a família imponha o seu próprio texto li-

3
Designação que na literatura identifica parte da
4
equipa original da Escola de Milão (L. Boscolo e G. Apesar deste artigo ter sido publicado pela pri-
Cecchin) que a partir da cisão, em 1980, se dedica ba- meira vez em 1980 na revista Family Process, neste
sicamente à formação, tendo enveredado claramente trabalho utilizamos a reedição de 1982 na revista
por uma perspectiva construtivista. Thérapie Familiale.

565
near (a sua hipótese). Na elaboração deste texto Finalmente a terceira linha-guia, a neutralida-
«diferente» utilizam-se dois tipos de informação: de, prescreve que o terapeuta se abstenha de
a teoria sobre a família e a patologia familiar, apresentar à família qualquer tipo de juízo sobre
i.e., o modelo e a que diz respeito aos dados so- os indivíduos ou comportamentos, bem como de
bre a família em observação. manter alianças permanentes com qualquer dos
A hipótese respeita a epistemologia sistémico- membros da família. É definida como o «efeito
cibernética, (concretamente batesoniana) quando pragmático específico que o seu comportamento
(1) evita a desordem prejuducial ao sistema (en- total [do terapeuta] durante a sessão produz so-
tropia) e promove a neguentropia, através da or- bre a família (e não a sua disposição intra-psí-
ganização da informação em nova informação e quica)» (ob. cit., p. 130, sublinhado original
(2) respeita o princípio da totalidade atendendo à omitido).
imprescindibilidade de incluir «todos os compo-
nentes da família e de fornecer uma suposição Afastando-nos agora do citado artigo, é de
que diga respeito à função relacional total» (ob. sublinhar o papel da equipa terapêutica neste
cit., p. 122). Por isso é sistémica. contexto. O grupo de Milão desenvolveu desde
A coerência das metodologias empregues na cedo (1971) um modelo de funcionamento no
condução da sessão, enquanto condição de rigor qual a equipa se subdivide em duas: uma delas
terapêutico, obriga a que à hipótese se associem conduz a entrevista com a família em co-terapia,
duas outras linhas-guia: a circularidade e a neu- enquanto a outra se mantém na sala de observa-
tralidade. Elas são, de algum modo, os referidos ção atrás do espelho unidireccional. Trabalham,
«métodos e técnicas específicas» de verificação portanto, em supervisão contínua, respeitando
da hipótese. algumas condições básicas de que se destacam a
A circularidade concretiza-se no questiona- não-hierarquização das equipas, a possibilidade
mento circular, na sequência do qual surgem as que qualquer delas tem de interromper a entre-
«retroacções imediatas» que permitem enrique- vista quando entender que é necessário trocar
cer ou modificar a hipótese. Baseia-se na recolha impressões com os outros elementos e a discus-
de informação através de «modalidades triádicas são entre ambas no intervalo (Palazzoli e col.,
de investigação das relações» (traduzido na lín- 1978).
gua inglesa por «gossiping in presence»), em que Os supervisores atrás do espelho, numa posi-
cada membro da família é convidado a dizer co- ção exterior à interacção família-clientes, tal
mo vê a relação entre outros dois na sua presen- como os espectadores ou o treinador numa equi-
ça, i.e., um elemento é formalmente convidado a pa de futebol, observam o jogo e apercebem-se
meta-comunicar sobre a relação de outros dois. melhor dos erros ou das necessárias mudanças
Por exemplo, o terapeuta interroga o filho sobre de táctica ou estratégia. A sua meta-posição
«o que faz» a mãe quando se zanga com a irmã. permite-lhes elaborar hipóteses que se acres-
O questionamento circular baseia-se nas se- centam às dos terapeutas e que serão discutidas
guintes premissas batesonianas: é necessário entre toda a equipa, no sentido de elaborar a(s)
que o terapeuta se liberte do condicionalismo hipótese(s) sistémica(s) mais plausível(eis).
linguístico e cultural que o leva a acreditar que
pode pensar em termos de «coisas» quando só é 2.2. Referência noutros Modelos de Terapia
possível pensar em termos de relações; a infor- Familiar
mação é uma diferença que cria diferença; a di-
ferença é uma relação ou uma mudança na rela- Como afirmámos a hipótese sistémica foi cla-
ção. Assim se respeita a circularidade, definida ramente conceptualizada pelo grupo de Milão.
pelos autores como «a capacidade que o terapeu- Contudo, é possível detectar os seus princípios-
ta possui para conduzir a investigação baseando- -base em diversos modelos de terapia familiar.
-se nas retroacções da família em resposta às in- Vejamos brevemente como este aspecto é
formações que solicita sobre as relações e, por equacionado pelo modelo estrutural. Para Minu-
consequência, sobre a diferença e a mudança nas chin (1979) diagnóstico e hipótese são equiva-
próprias relações» (ob. cit., p. 124, sublinhado lentes. Afirma: «diagnóstico é uma hipótese de
original omitido). trabalho que o terapeuta retira das experiências e

566
observações que fez filiando-se à família» (ob. preensão da situação fora do quadro que ela pró-
cit., p. 146). É um mapa ou carta que alarga a pria construiu, a partir da seleção de outros pon-
«visão oficial» da família sobre o problema, tos nodais dessa mesma história. Consiste, tal
permitindo ver sob ângulos diferentes o mesmo como a hipótese, na apresentação de uma nova
fenómeno complexo e fornecendo as aberturas versão, alternativa e imprevisível, cujo objectivo
para as intervenções terapêuticas. primeiro é uma mudança de sentido ou de signi-
No entanto, a sua elaboração não se confina ficado e não a sua verificação em termos de
ao problema e à compreensão da função que este plausibilidade.
desempenha no sistema. Inclui mais cinco domí-
nios de observação, a saber, estrutura ou organi- 2.3. Hipótese Sistémica e Processo Terapêu-
zação dos padrões preferenciais da família, ma- tico
leabilidade do sistema, ressonância do sistema à
individualização, fontes de suporte e de stress e Usualmente, elabora-se uma hipótese mesmo
fase de desenvolvimento (ciclo vital) da família. antes do primeiro encontro com a família. Para
Por outro lado, a recolha de informação inclui além de guiar a entrevista, a hipótese induzirá a
todos os indíces verbais e não-verbais observa- instauração do processo terapêutico, através da
dos na interacção familiar e com o terapeuta. Isto continuidade exigida pelo seu aprofundamento,
é, reporta-se às interacções observadas no sis- enriquecimento e transformação. Contribuirá de-
tema terapêutico mas, note-se, ao longo de todo cisivamente para a manutenção e desenvolvi-
o processo. Diagnóstico e tratamento são insepa- mento do processo, sobretudo se partilhada pela
ráveis. família através de uma adesão implícita ou
Para Minuchin o diagnóstico é, em síntese, explícita e da participação activa na investiga-
uma hipótese estrutural, evolutiva, ligada ao ção. Resultante do jogo interactivo entre indíces
contexto que muda constantemente em função da e modelos, contém sempre a mensagem implícita
reestruturação da família e da sua «acomodação» de que a realidade familiar é inteligível, o que se
ao terapeuta. Só o joining com a família permite opõe à lógica do inelutável e do impasse. Só nes-
o conhecimentos das suas transacções: «o tera- tas condições se torna um verdadeiro «utensílio
peuta nunca pode esquecer que na recolha de terapêutico» (Monroy, 1989).
informação está dentro do sistema que estuda Quer seja prioritariamente entendida como
(...) e que a família nunca é uma entidade está- metodologia de condução da entrevista (modelo
tica» (Minuchin & Fishman, 1981, p. 63). de Milão) ou como compreensão da estrutura/or-
Para concluir a referência à conceptualização ganização da família (diagnóstico no modelo es-
e enquadramento original da hipótese sistémica, trutural) ou ainda quando se constitui intrinseca-
importa focar o conceito de reenquadramento tal mente intervenção (reenquadramento no modelo
como foi desenvolvido pelo modelo estratégico estratégico), é sempre premissa de mudança.
do Mental Research Institute (MRI). Este aspe- De tal modo que, no final do seu artigo, Palaz-
cto poderá parecer algo incorrecto, já que o re- zoli e col. se interrogam: «poderá a terapia fami-
enquadramento é aí considerado uma técnica de liar induzir uma mudança através do efeito ne-
mudança de segunda ordem. Contudo, a sua rela- guentrópico do nosso método actual de condução
ção com a hipótese vê-se de imediato quando é da entrevista [hipotetização, circularidade e neu-
definido como «a modificação do contexto con- tralidade] sem necessitar de uma intervenção
ceptual e/ou emocional de uma situação, ou do final?» (Palazzoli e col., 1982, p. 131)
ponto de vista segundo o qual é vivida, colocan-
do-a numa nova moldura que corresponde tão A conceptualização da hipótese sistémica, no
bem ou melhor aos factos da situação concreta quadro em que foi formulada pelo modelo de
cujo sentido, por consequência, muda completa- Milão em 1980, é um marco na transição das te-
mente» (Watzlawick & Weakland, 1975, p. 116). rapias de primeira para as de segunda ordem. Em
A «arte de encontrar um novo quadro» é um meados dos anos 70 observava-se já um afasta-
dos instrumentos conceptuais na base da cons- mento do grupo em relação ao modelo estratégi-
trução da hipótese. É uma «oferta» que o tera- co com o desenvolvimento da conotação positiva
peuta faz à família de uma perspectiva ou com- (Palazzoli e col., 1978). Tão plausível quanto a

567
negativa, exprime uma escolha mais útil que não No ponto anterior e seguindo os autores de
a mais ou menos verdadeira, dentro de uma vi- Milão, fizemos uma breve referência aos con-
são múltipla do problema. Esse artigo avança um ceitos batesonianos de circularidade, informação
pouco mais ao centrar-se no comportamento dos enquanto diferença que gera uma diferença e
terapeutas e não no da família e, principalmente, padrão/meta-padrão como possibilitadores do
quando não o faz em termos do controlo do pro- conhecimento. Vimos como o pensamento só
cesso de mudança como acontecia no modelo existe na relação e como história. A este propó-
estratégico. A definição do terapeuta-perito que sito Bateson conta a «história» do homem que
possui a capacidade para observar objectiva- perguntou ao computador se algum dia pensaria
mente a realidade e organização familiares, é já como um ser humano; este, depois de imensos
de algum modo transformada na do terapeuta cálculos, deu a seguinte resposta: «Isso lembra-
que pode catalizar a mudança, ao possibilitar vi- me uma história.» Diz o autor que o computador
sões múltiplas do problema. estava certo; «qualquer A é relevante para qual-
quer B, se ambos, A e B, forem partes ou com-
ponentes da mesma “história”...» (Bateson,
3. NOVOS DESENVOLVIMENTOS: 1987, p. 22). Neste contexto define comporta-
A CO-CONSTRUÇÃO DA HIPÓTESE mento como aquelas histórias que são projecta-
das para a acção. As palavras, as acções não têm
O desenvolvimento da conceptualização da significado se não se constituirem em histórias
hipótese enquadra-se na renovação epistemoló- que lhes atribuem um significado, isto é que li-
gica da terapia familiar e suas implicações. Dois gam os As e os Bs com sentido, por meio da
aspectos foram fundamentais nessa renovação: o
criação de um contexto, de um «padrão que liga
retorno às teses de Gregory Bateson e a introdu-
através do tempo». Assim são recuperadas a no-
ção da perspectiva construtivista (cf. Hoffman,
ção de sentido, de significado e a dimensão his-
Boscolo, Cecchin, Fontaine, Keeney, Onnis,
tórica e temporal do sistema.
Ugazzio, Tomm e Real, entre outros autores).
A dupla descrição é outra noção importante.
Reflecte a complementaridade viva expressa no
3.1. Reenquadramento Epistemológico e Im- caso da visão binocular (só com os dois olhos se
plicações Teórico-Clínicas obtém a noção de profundidade, uma qualidade
O entendimento redutor das teses batesonia- diferente da própria visão) que se traduz na vi-
nas teria originado um «mecanicismo sistémi- são/observação múltipla. Os vários pontos de
co», transformando o terapeuta num «engenheiro vista não se excluem necessariamente de manei-
da conduta» (Ugazzio, 1991). Bateson, no entan- ra objectiva (ou/ou) mas podem, numa investiga-
to, era muito céptico em relação à intencionali- ção intersubjectiva, entrar em diálogo (e/e; nem/
dade e controlo por parte do terapeuta que, na /nem) (Fontaine, 1993). É a dialógica, irmã da
sua opinião, negligenciam a «humildade sistémi- ética, (Von Foerster in Rey & Prieur, 1991) en-
ca». A capacidade adaptativa dos sistemas mere- tendida como esforço para aumentar as escolhas
ce a atenção e o respeito dos estudiosos e inter- possíveis, como motor de co-evolução e, em úl-
ventores, uma vez que as perturbações por eles tima análise, da mudança, numa «redefinição»
sofridas (por exemplo um sintoma) podem ser de entropia/neguentropia que se pode esclarecer
sinal de auto-ajustamento. As tentativas intencio- no meta-diálogo «Porque é que as coisas se de-
nais para controlar o sistema, que o dividem em sarrumam?» (Bateson, 1989).
variáveis isoladas, maximizando umas e minimi-
zando outras, são prejudiciais porque alteram o Entre as perspectivas batesoniana e construti-
seu equilíbrio ecológico e colidem com a sua ca- vista há de facto um «bom casamento»: «O
pacidade auto-correctiva (ou auto-curativa). O abandono da concepção metodológica de cariz
autor alerta para este risco quando afirma: «As comportamentalista da mente como caixa negra
ideias ecológicas contidas nos nossos planos e a recuperação do projecto batesoniano de con-
são mais importantes do que os planos em si siderar os processos mentais como fenómenos
mesmos.» (Bateson, cit. em Keeney, 1982, pp. 3-4) interindividuais manifesta-se, sobretudo, como

568
uma tentativa de integrar construtivismo e inter- que informam as chamadas terapias de segunda
accionismo» (Ugazzio, 1991, p. 27). ordem:
Na introdução da perspectiva construtivista a 1) A família é vista como um sistema auto-
cibernética, biologia e química influenciam a te- -organizado que não é possível instruir mas so-
rapia familiar, primeiro, através da cibernética mente perturbar. «Família e terapeuta formam o
de segunda ordem ou cibernética da cibernética sistema terapêutico numa acoplagem em que
e da teoria dos sistemas observantes (Von Foer- cada qual mantém intacta a sua organização e
ster) que postula que o observador tem que ser autonomia (...) Em rigor deve falar-se de terapia
incluído na descrição do sistema. A reflexivida- com a família e nunca de terapia da família»
de e auto-referência tornam-se noções-chave, (Relvas, in press a, pp. 11-12).
com a consequente colocação da «objectividade 2) Na prática clínica introduz-se a dimensão
entre parêntesis» e a passagem «do universo ao individual, pois entende-se que a transformação
multiverso» (Maturana) (Varela, 1989). Segundo, só é possível a partir da mudança dos membros
através da noção de auto-organização dos siste- individuais da família (Dell, 1982). Por outro
mas, vistos como entidades autónomas e opera- lado, assinala-se a importância do ponto de vista
cionalmente fechadas. Ultrapassava-se, assim, a estético, tanto na terapia como na mudança, en-
causalidade, tanto linear como circular (Dell, quanto «sensibilidade para o holismo e para a
1982), pois entende-se que o meio perturba o sis- complexidade» (Keeney, 1982, p. 2).
tema de forma aleatória, mas não pode interferir 3) O eixo do trabalho terapêutico é a mudança
directamente na sua estrutura. Como resposta a na percepção dos problemas, i.e., desloca-se o
essa perturbação, a organização do sistema alte- foco da terapia do sistema de comportamentos
rar-se-á por si própria, através de uma «acopla- para o sistema de significados (Boscolo e col.,
1993). Dito doutro modo: a ênfase coloca-se no
gem estrutural» sistema-meio (entre sistemas),
significado e não na patologia, no diálogo ou
na qual significado e acção são inseparáveis. Na
conversação e não na técnica pragmática. A tera-
história do sistema a mudança não é um processo
pia é encarada como processo de construção e
isolado: o sistema está sujeito a perturbações
desconstrução do problema e o terapeuta assu-
constantes, internas e externas, que ao ultrapas-
me-se como manager da conversação, numa po-
sarem determinado limiar ou bifurcação origi-
sição igualitária em relação aos restantes mem-
nam alterações na sua estrutura (sistemas afas-
bros do sistema terapêutico (Anderson & Gooli-
tados do equilíbrio, cf. Prigogine, 1980). O fac- shian, 1988).
tor acaso, a imprevisibilidade e a irreversibilida- 4) A premissa «o sistema cria o problema» é
de, são introduzidos no processo; «a flecha do substítuida pela que considera que «o problema
tempo indica a direcção evolutiva do sistema e cria o sistema» (terapêutico ou significante). O
determina a sua irreversibilidade» (Prigogine, conhecimento do sistema terapêutico torna-se re-
cit. in Onnis, 1991). levante por oposição ao do sistema familiar e o
O construcionismo social (Hoffman, 1990; terapeuta passa a ser preferencialmente designa-
Anderson & Goolishian, 1988) é outra influên- do por «consultor de sistemas».
cia, ao postular que a realidade é uma construção 5) A utilização do self do terapeuta é vista,
social, criada na intersubjectividade da lingua- sobretudo, como uma forma de instalar a relação
gem encarada como fenómeno comunicacional terapêutica, através da implicação dos seus re-
global, das palavras aos significados. Os «siste- cursos e personalidade baseada numa posição
mas humanos são vistos como existindo somente epistemológica pessoal (Real, 1990; Relvas &
no domínio do significado ou realidade linguís- Keating, 1995). A utilização do self é, em última
tica intersubjectiva» (Anderson & Goolishian, análise, o único instrumento verdadeiramente ao
1988, p. 377). Deste ponto de vista, redefinem-se dispor do terapeuta já que, directamente, ele só
como geradores de significados através de se pode controlar a si próprio.
acções comunicativas.
A posição não-hierarquizada e não-interven-
Podemos, agora, equacionar cinco das princi- cionista do terapeuta está no cerne das críticas
pais implicações desta renovação epistemológica dirigidas à terapia familiar de segunda ordem

569
(Golann, 1988; Atkinson & Heath 1990; Gold- peuta passar coerentemente da adopção do mo-
ner, 1993; Tjersland, 1990): humildade sistémica delo único aos modelos e trabalhar com qualquer
não pode ser confundida com passividade e a dos mapas que conhece. Estética e pragmática
postura simétrica cliente-terapeuta pode conduzir evoluem actualmente na terapia familiar num
à crença ingénua na não-intervenção. Por acção meta-diálogo, sendo inevitável que se observe
ou omissão intervém-se sempre e o terapeuta não uma mescla de conceitos e técnicas ditas de pri-
se pode desresponsabilizar em relação à sua meira e segunda ordem, mesmo nos teóricos e
própria actividade. A terapia de segunda ordem clínicos que declaram adoptar e praticar uma te-
criou em torno de si própria uma série de mitos rapia de segunda ordem e vice-versa. Por isso, na
(de que são exemplos o terapeuta teoricamente nossa opinião, todo este desenvolvimento cons-
agnóstico, a rejeição do pragmatismo em favor titui um reenquadramento da terapia familiar
da estética e da arte e a não-assumpção do poder ou, como refere Hoffman (1990), uma «arte de
do terapeuta enquanto agente de mudança) que lentes» no sentido de conjugação de visões múl-
impedem o auto-questionamento desses aspe- tiplas.
ctos. Estes terapeutas estão de tal modo «enamo-
rados pelo seu próprio modelo» (Tjersland, 3.2. Redefinição da Hipótese como Co-Cons-
1990, p. 394) que a crítica que dirigem aos tera- trução
peutas de primeira ordem no sentido de terem
perdido de vista o valor do modelo como modelo Retomando o tema da hipótese sistémica, de-
(ou lente), também lhes pode ser endereçada. bruçamo-nos sobre a evolução do modelo de Mi-
Ainda numa visão de segunda ordem, Keeney, lão, conduzida por Luigi Boscolo e Gianfranco
Atkinson e Heath pronunciam-se a favor da inte- Cecchin na sequência da cisão da equipa origi-
gração entre terapias de primeira e de segunda nal. Tendo presente a recursividade e indissocia-
ordem. Keeney (1982), considerando que se bilidade dos três princípios, Cecchin (1987) pro-
trata de uma questão de visões múltiplas, propõe cede ao que chama a sua «revisitação», fazendo
uma acoplagem entre sabedoria estética e estra- equivaler neutralidade a curiosidade, no sentido
tégia pragmática, de modo a que a primeira re- de uma postura assente na aceitação e interesse
contextualize a segunda. Isoladamente ambas por todas as descrições. A curiosidade evita tan-
conduzem a reducionismos: a pragmática sem a to a confusão utilidade/verdade, como a lineari-
estética é de facto perigosa e anti-ética, mas a es- dade que dá por findo o diálogo na qual não se
tética sem a pragmática torna-se banal e especu- aceitam, ou não se procuram, outras descrições
lativa. Situando-se em níveis lógicos distintos, da realidade. A curiosidade é uma «perspectiva
de tal modo que «as questões estéticas não po- que celebra a complexidade da interacção e con-
dem ser respondidas através da pragmática e vi- vida a uma orientação polifónica da descrição e
ce-versa» (ob. cit., p. 3), interligam-se recursiva- explicação da interacção» (ob. cit., p. 406).
mente numa verdadeira interacção entre os he- A hipotetização, associada ao questionamento
misférios esquerdo-direito (Watzlawick, 1980). circular, é a metodologia ideal para manter a
Atkinson e Heath (1990) afirmam que a impli- postura de curiosidade. As hipóteses constroem-
cação major da terapia de segunda ordem é a -se a partir da metáfora do contador de histórias,
mudança na epistemologia pessoal do terapeuta. num movimento co-evolutivo entre família e
«Como se vê a terapia familiar de segunda or- terapeuta, seguindo um processo centrífugo de
dem não requere a rejeição de qualquer dos mo- expansão de círculos que fazem parte do conjun-
delos existentes na terapia familiar de primeira to de informações e relações que compõem o
ordem, nem o desenvolvimento de uma nova ge- problema e a sua ecologia social. Esses círculos
ração de “técnicas de segunda ordem”. Qualquer constituem o sistema significante e desenham-se
dos modelos existentes na terapia familiar pode a vários níveis: dinâmica familiar, família exten-
ser aplicado de modo consistente, ou não consis- sa, contexto alargado, relação com o terapeuta,
tente, com as implicações da cibernética de se- relação do terapeuta com o supervisor... Especi-
gunda ordem» (ob. cit., p. 154). ficando: o processo de construção da hipótese
Essa epistemologia pessoal, informada por começa com o pedido de uma descrição do pro-
uma visão de segunda ordem, permite ao tera- blema e do modo como se liga às várias pessoas

570
da família. Progressivamente vai-se elaborando que informar o terapeuta, questionam o sistema
uma descrição interpessoal e relacional até se sobre si próprio, de modo a fazê-lo sair da his-
converter em algo que existe pelo menos entre tória saturada, criando as diferenças que fazem
duas pessoas. Em seguida, estabelecem-se diferença em relação à história original (Costa,
conexões alargando este contexto a outros 1994).
significativos, até se encontrar uma explicação Karl Tomm propõe um quarto princípio, a es-
que satisfaça. «Não se pode verdadeiramente trategização, que cria os mecanismos que pro-
limitar um sistema porque a decisão é arbitrária. movem a transformação da hipótese em inter-
Logo que se tenham formulado todas estas venção, desencadeando a mudança terapêutica
hipóteses a estes (...) níveis, estabelece-se uma (Sadler & Hulgus, 1989). É definida como a pos-
ligação entre eles por uma única explicação tura cognitiva do terapeuta para questionar e to-
sensata. É o que chamamos hipótese sistémica.» mar decisões «avaliando os efeitos de acções
(Boscolo e col., 1993, pp. 123-124). passadas, construindo novos planos de acção, an-
Na construção da hipótese sistémica as hipó- tecipando as eventuais consequências de várias
teses actuam de modo dialógico, desafiando alternativas e decidindo como proceder em qual-
constantemente as histórias ou hipóteses fami- quer momento particular, a fim de maximizar a
liares e as próprias hipóteses prévias do terapeu- utilidade terapêutica» (Tomm, 1987a, p. 6, subli-
ta. Estas histórias são guias no avanço do ques- nhados omitidos). Isto supõe que o terapeuta, se
tionamento circular, última premissa para a ma- não é o responsável pelo que ocorre no sistema,
nutenção da curiosidade. Não podem ter fim por- é responsável pela sua própria actividade e por
que não há uma definição de como é que a famí- isso se interroga, a todo o momento, sobre o que
lia «deve ser», já que a família «é o que é». está acontecendo no sistema terapêutico como
Deste modo o método inclui a orientação es- resultante das suas intervenções e/ou questões.
tética, na multiplicidade de padrões e histórias Neste contexto, o autor introduz as questões re-
possíveis a partir das quais se busca o padrão flexivas definidas como «... questões formuladas
que liga ou seja, a hipótese geral sistémica que com a intenção de facilitar a auto-cura do indi-
unifica as descrições dos diferentes membros do víduo ou da família, activando a reflexividade
sistema. Restaura-se o respeito pelo indivíduo e nos significados contidos no sistema de crenças
pela lógica do sistema, que não é boa nem má; é pré-existente ...» (Tomm, 1987b, p. 172). Estas
simplesmente a sua e é operativa. A hipótese sis- questões continuam a ser vistas como sondagens
témica é uma co-construção ao transformar os ou perturbações: a reflexividade tem que ver
dados em informação através do desenho de um com a intencionalidade do terapeuta. Por exem-
novo «mapa», traçado conjuntamente com a plo, se o terapeuta entende que explorar as ex-
família. Não sendo o mapa do terapeuta, nem o pectativas catastróficas da família facilita a cla-
da família, vai contudo permitir que os indiví- rificação de certos temas «escondidos», pode
duos da família possam alterar o modo como perguntar a uns pais superprotectores: «o que
constroem os seus próprios mapas. têm medo que aconteça à vossa filha se ficar fora
de casa até tão tarde?.... Qual é a coisa pior que
Esta conceptualização influencia o apareci- conseguem imaginar?»... O método é por isso
mento de novas metodologias, nas quais a hipó- denominado entrevista interventiva (interventive
tese sistémica ocupa lugar central. Peggy Penn interviewing).
desenvolve as potencialidades do questionamen- Tom Andersen propõe uma metodologia de
to circular introduzindo as «questões de futuro» entrevista que recorre a outro importante contri-
(Penn, 1985). Enfatiza a mudança co-evolutiva buto do modelo milanês de terapia familiar: a
(coevolutionary change) proporcionada pelo organização da equipa. Este aspecto sofrera já
método: as questões circulares conduzem o siste- uma evolução com os grupos de formação de
ma num movimento de ziguezague, desenhando Boscolo e Cecchin, mas é Andersen que lhe dá
um arco passado-presente relativo às experiên- características novas com a introdução do refle-
cias antes e depois do problema, até completar cting-team (Andersen, 1987). A equipa atrás do
os indíces que permitem a elaboração/afinação espelho unidireccional observa a entrevista com
da hipótese de trabalho (Penn, 1982). Mais do a família e, depois de invertido o sistema de luz

571
e som, é convidada a pronunciar-se sobre o que side na criação de um espaço de «brincar» ou de
viu e ouviu. Família e terapeuta observam a dis- criatividade no sentido winnicottiano, seme-
cussão da equipa reflectora e, depois de nova lhante ao que Caillé denomina intermediário
inversão do sistema, o terapeuta convida a famí- (Caillé, 1991; Caillé, in Rey & Prieur, 1991;
lia a comentar as ideias que acabaram de ouvir. Caillé & Rey, 1988). Numa conceptualização de
Isto pode acontecer uma ou várias vezes durante segunda ordem, este autor considera certas técni-
a entrevista. O objectivo é desenvolver «uma cas pragmáticas (como por exemplo a escultura,
compreensão da compreensão», aumentando o a metáfora, as tarefas, o conto sistémico) «ob-
leque das alternativas (hipóteses) possíveis. jectos flutuantes», provas da actividade co-cria-
dora resultante do processo que terapeuta e
Partilhamos a opinião de Keeney de que é ne- clientes percorrem juntos. Tais objectos perten-
cessário proceder à recontextualização ecológica cem simultaneamente à família que fornece os
da técnica, introduzindo a arte na terapia. Tal co- «materiais» que os constituem e ao terapeuta que
mo o autor referido, também pensamos que os os concebe e estrutura. Mantêm aberto um es-
grandes mestres das terapias tradicionais não paço intermediário «que não é pertença nem do
menosprezaram essa dimensão. Para nós, a gran- terapeuta, nem da família, tendo no entanto um
de implicação clínica da visão de segunda ordem laço de pertença a ambos» (Caillé & Rey, 1988,
é a ênfase na epistemologia pessoal do terapeuta. p. 24).
Cada terapeuta tem uma «representação pessoal» Esta concepção complementa o que pensamos
do modo como vai desempenhar o seu papel na sobre a questão. Habitualmente, o termo «técni-
terapia. Como afirmámos noutro local: «...a ca» aplica-se a um conjunto de procedimentos
relação terapêutica é moldada na interacção interventivos baseados na acção e que são pro-
cliente(s)-terapeuta (...) toma forma a partir da postos à família com objectivos operacionaliza-
leitura pessoal e criativa do modelo teórico-prá- dos de mudança de comportamentos (por exem-
tico, da história pessoal do terapeuta (afectiva e plo tarefas, rituais, etc.). Seriam as intervenções
profissional), das contingências actuais, das ca- pragmáticas, paralelas às intervenções semân-
racterísticas do cliente e da situação concreta que ticas centradas, por seu lado, na mudança de
permitiu o encontro terapêutico» (Relvas & significados e sem objectivos operacionalizados
Keating, 1995, p. 1). (Baños e col., s/d). Na nossa opinião, esta distin-
Cremos que os maiores contributos da terapia ção não faz sentido, uma vez que ambos os tipos
familiar construtivista derivam do questiona- de intervenção têm a intenção (por parte do tera-
mento dos conceitos verdade, objectividade e peuta) de perturbar o sistema. Ambos promovem
realidade. Em sequência, a terapia comporta contextos facilitadores, para que no tal espaço
três parâmetros fundamentais: (1) ético, em que intermediário sejam criados significados alter-
a responsabilidade derivada da análise das in- nativos que serão, ou não, projectados na acção.
tenções e modelos pessoais se substitui à objecti- Se o terapeuta prescreve uma tarefa, o seu obje-
vidade, no respeito pela lógica do sistema; (2) ctivo não é a mudança de comportamento da fa-
estético, através do qual se privilegia a multi- mília mas a mudança de sentido ou significado
plicidade de pontos de vista e se revalorizam os da situação. Por outro lado e como salientam
aspectos únicos e originais da experiência hu- Newmark e Beels (1994), as técnicas fazem par-
mana. Renova-se o interesse pelos processos te da atitude científica do terapeuta, que consiste
cognitivos e perceptuais e recupera-se o valor em «testar» num contexto vivo de colaboração
das produções internas como mitos, crenças, as alternativas co-construídas, i.e., as hipóteses.
sentimentos, fantasias (tentativa de compreensão É neste quadro que perspectivamos a co-cons-
da «caixa negra»); (3) pragmático ou interven- trução da hipótese, considerada sempre sistémica
tivo, numa ligação indissolúvel ideias-compor- a partir do momento em que na sua elaboração
tamentos. se respeite a ecologia do problema ou situação
Torna-se então importante esclarecer a ma- (inclusão centrífuga de contextos significantes).
neira como perspectivamos o valor e utilização Portanto preferimos falar de hipóteses clínicas,
da(s) técnica(s) e a sua relação com a hipótese. definidas como tentativas de compreensão, que
Para Penn e Frankfurt (1994) a sua utilidade re- permitem lidar com a complexidade da situação

572
terapêutica e que servem para orientar e nativas possíveis, conquanto não sejam rigida-
organizar o comportamento do terapeuta na ses- mente encarados como verdades mas como len-
são (momento a momento) e no processo (sessão tes que proporcionam uma visão útil na situação.
a sessão). Desenvolvem-se em termos de histó- Assumindo uma postura de curiosidade no
rias ou narrativas, com base em conexões tem- sentido indicado por Cecchin (1987), clientes e
porais de princípio, meio e fim. São co-construí- terapeutas acoplados vão progressivamente en-
das na recursividade da relação cliente-terapeuta, contrando novas descrições para o problema e
através do diálogo que se vai estabelecendo entre suas ligações a contextos cada vez mais vastos,
ambos. Organizando o desenvolvimento da en- através de perturbações mútuas e sucessivas.
trevista, orientam o comportamento e atribuição Esta progressão permite a co-construção da hi-
de significados da família e de cada um dos seus pótese e a mudança co-evolutiva no sistema tera-
elementos. Reencontra-se o valor da hipótese pêutico, através da «descoberta» conjunta de
como elemento de condução da sessão, embora novos significados que se projectarão em novas
numa perspectiva diferente da inicialmente acções.
apontada por Palazzoli e col. (1982). Quebrando-se o elo da hipotetização, quebra-
Como nota Andersen (1987), as hipóteses do se o dinamismo do processo terapêutico. É nossa
terapeuta não devem ser tão semelhantes às da convicção que se o terapeuta abdicar de co-ela-
família que não permitam a criação da diferença. borar «novas» histórias, não poderá ajudar a
Também não podem ser demasiado distantes ou família na tarefa de se questionar sobre si própria
dissonantes pois nesse caso, não sendo reconhe- em busca de pontos de vista alternativos. A fa-
cidas como suas, seriam rejeitadas como não mília deixará de sentir utilidade na terapia: o fio
pertinentes, entravariam o processo de co-cons- condutor do diálogo ter-se-á quebrado. Assim, é
trução e desorganizariam o sistema. Para que de sublinhar a ideia de Tomm (1987b) de que as
sejam úteis, é necessário que entre as histórias hipóteses parciais são muito importantes e de
do terapeuta, da família e de cada elemento da que a hipótese não precisa de ser compreensiva
família haja um «fitting» (ajustamento) nas expe- ou completa, no sentido de única e global, para
riências, percepções e sentimentos. Como con- ter impacto. As hipóteses parciais fazem funcio-
dutor da sessão, o terapeuta tem que se preocu- nar família e terapeuta «como uma equipa clíni-
par com esse aspecto (parâmetro ético). O ajusta- ca na co-criação de uma compreensão mais sisté-
mento é procurado pelo terapeuta, não através de mica da situação» (ob. cit., p. 180). Em última
uma qualquer forma de mimetismo, consenso ou análise, esta perspectiva é uma recuperação da
acordo mas através da variação e diversificação hipotetização como indutora de mudança. A
do seu comportamento e das suas histórias (pa- questão formulada por Palazzoli e col. (1982), se
râmetro estético). Dell (1982), retomando a me- o seu método seria por si próprio indutor de mu-
táfora de Von Foerster, clarifica a noção de dança, tem resposta positiva nesta perspectiva.
«fit»: a coerência ou organização individual é a Apesar de estar implícito no que acaba de ser
fechadura e as intervenções do terapeuta são as dito, note-se que o sentido em que entendemos
chaves; é a fechadura que determina as chaves co-construção não coloca a ênfase na questão do
que a abrem e por isso elas vão sendo progres- poder ou na igualdade cliente-terapeuta. Nem
sivamente ajustadas em busca da complementa- sequer nos parece que perturbação deva ser vista
ridade com a fechadura. A arte do terapeuta en- como não-intervenção, uma vez que intervenção
contra-se no processo de «afinação» ou de trans- é substancialmente diferente de instrução. Com
formação das «velhas» em «novas» histórias. efeito, pensamos que existe entre terapeuta e
Nessa afinação o terapeuta recorre a várias cliente uma assimetria baseada em diferentes
«ferramentas», entre as quais se destaca o mode- expectativas que não desrespeita a lógica e
lo e a técnica, optando pelo que melhor se ajusta ecologia do sistema, nem impede o processo de
à co-evolução do sistema, isto é, pelo que no co-influência na construção de hipóteses e na
momento lhe parece mais útil (parâmetro prag- própria terapia. Através da utilização do self na
mático). Os modelos teóricos são, então, fonte de terapia, o terapeuta torna-se co-construtor de
desenvolvimento das hipóteses a introduzir na realidades partilhadas por ele e pela família.
conversa terapêutica; expandem o leque de alter- Através do laço recursivo que os liga, surgem os

573
elementos do diálogo terapêutico com os quais, gem, que assenta na importância dos contextos
em conjunto, criam «mapas» ou realidades alter- por oposição aos comportamentos e, seguindo
nativas (Elkaïm, in Rey & Prieur, 1991), tornan- Minuchin, como «uma arte que imita a vida»
do-se co-responsáveis tanto pela definição da (Minuchin & Fishman, 1981, p. 27). Aceitando
doença (também ela uma construção da realida- como indica Bateson que o terapeuta tem que se
de) como pela evolução para as saídas do mal- posicionar entre o rigor e a imaginação, reconhe-
-estar. ce-se a influência dos modelos estrutural, estra-
Usando uma metáfora da literatura policial: de tégico e do grupo de Milão, este último particu-
um modelo de investigação à maneira de Sher- larmente em termos da metodologia e estratégia
lock Holmes, assente na organização exterior de da sessão. Obviamente, no modo de utilização
indíces e sinais que conduzem à descoberta da do self na terapia e na definição da epistemologia
verdade, passa-se a um modelo de investigação pessoal de cada terapeuta, reconhece-se a in-
à maneira de Miss Marple ou de Maigret, auto- fluência das histórias pessoais bem como de todo
-reflexivo, baseado na observação participante e o trajecto individual de formação clínica.
interventiva. Neste enquadramento global designámos este
modelo integrativo, mas poderíamos não lhe ter
atribuído qualquer denominação, nem sequer te-
4. A CO-CONSTRUÇÃO DA HIPÓTESE NUM riamos necessidade de o identificar como mo-
MODELO INTEGRATIVO DE TERAPIA delo... É, tão só, o modo como fazemos terapia
FAMILIAR com a família.

Desde o ano lectivo de 1984/85 que no NUSIAF Retornando ao «rigor», passamos à (tentativa)
funciona uma equipa de terapia familiar em que de descrição do processo terapêutico. As sessões
participamos desde a sua criação. A formação decorrem num setting habitual em terapia fami-
em terapia familiar iniciara-se alguns anos antes liar e a equipa funciona subdividida em co-tera-
com Eurico de Figueiredo, no então CEPD-Cen- peutas e observadores. O trabalho dos terapeutas
tro5, sob proposta do seu director à época, Ama- é, fundamentalmente, elaborar hipóteses, afiná-
ral Dias. A partir daí, noutros espaços de for- -las e intervir de modo a potencializar a mudança
do sistema (cf. Relvas, in press a).
mação e no contacto com outros terapeutas e
Formalmente o processo segue a estrutura
com as famílias-clientes, a equipa foi desenvol-
proposta por Palazzoli e col. (1978), reconcep-
vendo o seu próprio modelo, i.e., a sua maneira
tualizada numa perspectiva de segunda ordem.
de fazer e estar na terapia com a família, através
Inicia-se com o preenchimento de uma ficha te-
dum processo que confirma a tese de Bateson so-
lefónica (por um terapeuta com um elemento da
bre a recursividade teoria/prática: o saber de um
família) que segue o modelo de recolha de dados
terapeuta modifica a sua terapia e esta modifica,
proposto pela autora. Nessa primeira interacção
por sua vez, o seu saber sobre a terapia. Neste
criam-se expectativas mútuas: por parte do tera-
âmbito merece destaque o papel que a função de peuta relativamente à família e ao problema; por
docentes/formadores (particularmente de alunos parte da família, elas referem-se à pessoa do te-
finalistas estagiários no NUSIAF) desempenhou rapeuta, bem como às questões e tipo de aborda-
na evolução da equipa e do modelo de terapia, ao gem que fará. Estão construídos os mapas com
impedir a paralização do auto-questionamento que família e terapeutas se vão encontrar face a
do terapeuta que somos, através da curiosidade, face, pelo que o telefonema se considera o pri-
criticismo e reflexão dos alunos. meiro contacto com a família. O processo pros-
A equipa adopta uma visão de segunda or- segue por meio da sequência de sessões terapêu-
dem, tal como acabou de ser equacionada. A te- ticas.
rapia é concebida como uma deutero-aprendiza-
Antes de descrever a sessão, abriremos um
parêntesis para sublinhar um aspecto importante
5
Actualmente CAT (Centro de Apoio a Toxicode- no nosso modelo. Referimo-nos ao contrato te-
pendentes), Coimbra. rapêutico. Em norma, ao fim de uma ou duas

574
sessões, estabelece-se um contrato que inclui a mês, transmitindo a crença de que pode prosse-
definição dos objectivos, número e espaçamento guir com «o tratamento» sozinha.
das sessões, para além dos quantitativos e moda- Com este tipo de contrato redefine-se, ainda, a
lidades de pagamento. Aparentemente, só a últi- crença que considera o sintoma imutável ou
ma componente do contrato não colide com os pelo menos «muito resistente»: indirectamente
princípios da terapia familiar de segunda ordem: comunica-se à família que se acredita que o
se a terapia é um processo co-evolutivo e co- problema é solúvel a médio prazo, ao propor a
-construtivo como definir à partida metas e realização de um número de sessões relativa-
objectivos de mudança? Como determinar o mente reduzido (entre cinco e dez conforme a
tempo necessário para a potencialização das ca- avaliação do caso e com a ressalva que esse
pacidades auto-curativas da família? Como de- número não é rígido, pois se não for necessário
finir um espaçamento entre sessões se estas de- não se farão todas as sessões ou, no caso con-
vem seguir o fluxo da emergência das necessi- trário, far-se-á novo contrato).
dades do sistema terapêutico? Como aceitar um Finalmente o contrato dá resposta a uma ques-
contrato se damos razão a Keeney (1982) quando tão pragmática mas não menos importante: a fa-
diz que ao indicar à família que «tem x sessões mília é composta por vários elementos com
para mudar» o terapeuta está a ser manipulativo actividades, interesses e objectivos individuais
e impeditivo da própria mudança? que é preciso coordenar, a fim de conseguir dis-
Cremos que esta é, ainda, uma questão de vi- ponibilidade para o envolvimento num processo
sões múltiplas. A nossa experiência confirma conjunto. Definindo de forma relativamente pre-
que o contrato possui um valor terapêutico em si cisa os limites globais do processo terapêutico,
mesmo, no sentido da redefinição do contexto facilita-se esse esforço e imprescindível coorde-
em termos de co-participação e responsabiliza- nação.
ção, desde que não seja encarado rigidamente
como regra imutável. Por seu intermédio rede- Fundamentalmente, a actividade terapêutica
fine-se o acto terapêutico como um acto de cola- desenvolve-se através do jogo interactivo dos
boração, uma vez que a definição de objectivos é elementos que participam na sessão (família,
elaborada em conjunto, já dentro do próprio terapeutas e observadores). Esta é composta por
processo. Por outro lado, essa definição não é quatro partes:
feita necessariamente em termos de mudança de – Pré-sessão, em que participam terapeutas e
comportamentos, mas implica que se comunique observadores. No caso de uma primeira sessão,
explicitamente à família a posição epistemoló- organizam-se os dados da ficha telefónica, cons-
gica do terapeuta sobre o processo em que estão truindo uma ou mais hipóteses que inicialmente
envolvidos conjuntamente. Comunicando-lhe irão guiar os terapeutas na entrevista. Se for uma
que se acredita que só ela se pode mudar a si sessão de seguimento reveêm-se os dados do
própria, reenquadra-se a sua expectativa sobre o processo, afinam-se as hipóteses já elaboradas e
papel do terapeuta e sobre o seu próprio papel. retêm-se as que parecem mais úteis para condu-
Dir-se-á, por exemplo: «Tentaremos, todos jun- zir a entrevista que se segue e que é então estra-
tos, que o mal-estar que sentem perante o proble- tegizada (no sentido indicado por Tomm, 1987a).
ma possa ser mais bem gerido por todos e cada – Entrevista com a família, em que se envol-
um de vós; só vocês podem descobrir o modo de vem todos os participantes na sessão. Nesta par-
o fazer, mas nós estamos aqui para vos ajudar te diverge-se bastante do procedimento proposto
nessa descoberta. Vamos ver o que conseguimos por Palazzoli e col. (1978), porquanto os tera-
conversando e pensando em conjunto». O tera- peutas não se abstêm de intervir activamente.
peuta é apresentado como mais um elemento do Pelo contrário, considera-se a entrevista o prin-
processo, com competências que se vão associar cipal instrumento de perturbação do sistema e
às da família; nem maiores nem menores, apenas como tal de intervenção. Utilizando como meto-
diferentes e por isso facilitadoras do aparecimen- dologia base o questionamento circular, o tera-
to de «coisas» novas. Esta confiança nas poten- peuta mantém-se em estado de permanente cu-
cialidades da família é confirmada através do riosidade (no sentido apontado por Cecchin,
espaçamento das sessões de mais ou menos um 1987), bastante atento às «aberturas» da família

575
que podem conduzir a novos significados e his- balho é feito com a família, hipotetizando sobre
tórias. Por exemplo, se a um dado momento o fi- as conexões que as ligam; será que o distancia-
lho aproxima a sua cadeira da do pai, o terapeuta mento entre pai e filho tem alguma coisa a ver
interroga-se «o que pode significar isto, neste com a opinião da mãe de que são parecidos? e
momento?» Se entender que é oportuno, pode com a da filha de que assim disfarçam que são
questionar os elementos da família sobre os sen- muito próximos? o que pensa o pai? e a mãe?...
timentos, explicações e descrições relativos ao Assim entendemos a afirmação de Anderson e
novo dado, implementando o movimento de in- Goolishian (1988) de que o terapeuta é um
vestigação da família sobre si própria. Se o tera- «mestre na arte de conversar» (master conversa-
peuta «nota» essa aproximação é porque foi tional artist) e «um arquitecto do diálogo» (ob.
perturbado e se o facto for significativo na dinâ- cit., p. 384).
mica do sistema, o seu questionar perturbará os Nesta parte da sessão não se prescinde de uti-
elementos da família. Se dessa perturbação mú- lizar os «truques» que a técnica pragmática põe
tua surgir nova compreensão há co-evolução do ao nosso dispor. Continuando com o exemplo
sistema e co-construção de nova hipótese, que anterior: eventualmente uma escultura familiar
então será alargada a contextos mais vastos: isso ajudaria a clarificar a questão das distâncias e
também acontece em casa? em que situações? o proximidades, que parece ser algo importante
que é que a mãe sente quando isso acontece?... para o sistema. É óbvio que se trata de um mero
O terapeuta vai transformando as suas hipó- exemplo e que se poderia ter recorrido ao «jogo
teses, introduzindo a diferença sem se afastar de- das cadeiras à Minuchin» ou à prescrição de uma
masiado das hipóteses da família. Retomando o tarefa. É pela auto-referência e pela reflexivida-
exemplo anterior: todos se dão conta que o dis- de que o terapeuta decide o que proporá ou não
tanciamento pai-filho não parece tão constante proporá. Por outro lado, tal como o sistema no
quanto se pensava? quem acha que sim? quem momento foi perturbado por esse aspecto, noutro
acha que não? quem primeiro descobriu isso? momento a relação com a família extensa pode-
quando?... Note-se que o processo que aqui pon- ria ter sido fonte de perturbação e pista para
tuámos como iniciado pelo terapeuta, se desen- nova hipótese, caso em que talvez fosse útil re-
volve muitas vezes a partir de um elemento da correr ao genograma. A responsabilidade do te-
família; a mãe poderia dizer que acha que «os rapeuta recai, precisamente, sobre este tipo de
dois não são distantes, mas sim muito parecidos, decisões, sabendo que todas as teorias são «bo-
porque quando...», criando pistas para a constru- as» quando se revelam úteis porque se ajustam
ção de nova hipótese e novo mapa da realidade ao sistema.
através de uma história diferente. Atrás do espelho os observadores mantêm-se
Se o movimento de construção da hipótese zi- atentos, construindo as suas próprias hipóteses
guezagueia no tempo e entre os personagens, o não só sobre a família mas também sobre a in-
movimento de construção-desconstrução (uma teracção que estão observando.
nova hipótese repousa quase sempre na rejeição – Intervalo da sessão, no qual terapeutas e
de outra) não pode ser excessivamente saltitante. observadores discutem entre si, afinando a(s)
Actuando calmamente e sem pressa, o terapeuta hipótese(s) e avaliando as suas conexões; pla-
tentará chegar com a família ao fim de cada his- neiam conjuntamente a intervenção final, se en-
tória. Ainda no exemplo anterior, a oportunidade tenderem que é ela é útil.
de desenvolver a nova informação reside no – Conclusão da sessão, em que participam de
facto da hipótese anterior estar já bastante satu- novo todos os elementos. Também aqui há dife-
rada, pelo que a «abertura» da família deve ser renças significativas em relação ao método ori-
imediatamente utilizada. Se não for o caso, ginal de Palazzoli. Pode fazer-se um comentário
aguardar-se-á, sem esquecer as pistas que entre- final, retomar o diálogo, dar-se uma prescrição,
tanto foram surgindo. É da transformação de ou não se fazer nada disto e reafirmar a continui-
«velhas» em «novas» histórias, da organização dade do processo marcando somente nova ses-
da história, das várias histórias entre si que são. Enfim, a sessão será concluída em confor-
emergem novos significados nas relações, i.e., a midade com a avaliação feita por terapeutas e
mudança. Embora não exclusivamente, este tra- observadores em relação ao seu todo e enquadra-

576
mento no processo. Por vezes acontece que a in- BIBLIOGRAFIA
teracção ocorrida neste período altera o que foi
planeado no intervalo e que, por exemplo, se de- Andersen, T. (1987). The reflecting team: Dialogue and
sista de dar uma prescrição ou que se alterem os meta-dialogue in clinical work. Family Process,
26, 415-428.
pormenores da prescrição previamente planeada.
Anderson, H., & Goolishian, H. A. (1988). Human
Quer dizer, por um lado, que não se considera systems as linguistic systems: Preliminary and
esta a fase de intervenção major e, por outro, que evolving ideas about the implications for clinical
a sessão é co-orientada até ao seu final pela re- theory. Family Process, 27, 371-393.
cursividade da relação terapeuta-clientes. Andolfi, M., & Angelo, C. (1980). Le thérapeute com-
me metteur en scène du drame familiale. Cahiers
Critiques de Thérapie Familiale et des Pratiques
5. CONCLUSÃO de Réseaux, 3, 55-65.
Andolfi, M., & Angelo, C. (1989). Tempo e mito em
psicoterapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.
Na esteira das propostas de Keeney (1982),
Andolfi, M., & Ackermans, A. (org.) (1987). La créa-
Golann (1988) e Atkinson e Heath (1990) ou das tion du système thérapeutique, L’école de thérapie
reflexões de Costa (1994), o modelo apresentado de Rome. Paris: ESF.
propõe um dos meta-diálogos possíveis entre te- Atkinson, B., & Heath, A. (1990). Further thoughts on
rapia familiar de primeira e segunda ordem, second-order family therapy – This time is perso-
através do qual a técnica é informada pela arte, a nal. Family Process, 29 (2), 145-156.
pragmática pela estética. Ausloos, G. (1981). Systèmes, homeostase, et équili-
Através das «lentes» utilizadas para definir, bration (essai). Thérapie Familiale, 2 (3), 187-203.
Ausloos, G. (1983). Finalités individuelles, finalités
caracterizar e avaliar a hipótese, pode concluir-
familiales: Ouvrir des choix. Thérapie Familiale, 4
-se que a ênfase é colocada na atitude científica (2), 207-219.
do terapeuta como co-construtor de hipóteses Baños, F. et al (s/d). Os sistemas observantes: concei-
num processo em que ele próprio é consultante e tos, estratégias e treino em terapia familiar sis-
a família o principal investigador (Newmark & témica. Texto policopiado.
Beels, 1994). Da conceptualização original do Bateson, G. (1977; 1980). Vers une écologie de l’esprit.
grupo de Milão, recupera fundamentalmente o Vol. I, II. Paris: Ed. du Seuil.
valor funcional da hipótese e os métodos e técni- Bateson, G. (1987). Natureza e espírito. Lisboa: Publi-
cações D. Quixote.
cas da sua validação (questionamento circular);
Bateson, G. (1989). Metadiálogos. Lisboa: Gradiva.
de Minuchin, sublinha a importância da filiação Bénoit, J. C. et al (1988). Dictionnaire clinique des
à família e o carácter evolutivo; através do reen- thérapies familiales systémiques. Paris: ESF.
quadramento, retém do modelo estratégico o Boscolo, L. et al (1993). A terapia familiar sistémica de
objectivo de mudança de sentido, i.e., de signifi- Milão. Porto Alegre: Artes Médicas.
cado. Caillé, P. (1991). Familles et thérapeutes, lecture systé-
Encarada como co-construção, a hipotetização mique d’une interaction. Paris: ESF.
reflecte uma postura de respeito pela ecologia do Caillé, P., & Rey, Y. (1988). Il était une fois... du drame
familial au conte systémique. Paris: ESF.
sistema e revalorização da relação cliente/tera-
Cecchin, G. (1987). Hypothesizing, circularity and
peuta em terapia familiar. É simultaneamente neutrality revisited: An invitation to curiosity. Fa-
uma metodologia de mudança co-evolutiva, pois mily Process, 26 (4), 405-413.
não só sustenta a continuidade do processo te- Chubb, H. (1990). Looking at systems as process. Fa-
rapêutico, como facilita e promove a mudança mily Therapy, 29, 169-175.
do sistema de crenças dos seus principais prota- Costa, J. A. (1994). A realidade construída. In J.
gonistas (terapeuta e elementos da família), Gameiro et al., Quem sai aos seus... (pp. 189-122).
através da co-criação de histórias que reflectem e Porto: Afrontamento.
Dell, P. F. (1982). Beyond homeostasis: Toward a
(re)criam essas crenças.
concept of coherence. Family Process, 21, 21-41.
Entre o rigor e a imaginação... «O rigor é criar Elkaïm, M. (1980). A propos de thermodynamique des
hipóteses e verificá-las, a criatividade é não dei- processus irréversibles et de thérapie familiale.
xar que as nossas hipóteses nos aprisionem.» Cahiers Critiques de Thérapie Familiale et de
(Rey & Prieur, 1991, p. 194). Pratiques de Réseaux, 3, 6.

577
Elkaïm, M. et al (1980). Analyse des transitions de Palazzoli, M. S. et al. (1982). Hypothetisation – Cir-
comportements dans un système familiale en ter- cularité – Neutralité; Guides pour celui qui conduit
mes de bifurcations. Cahiers Critiques de Thérapie la séance. Thérapie Familiale, 3 (3), 117-132.
Familiale et de Pratiques de Réseaux, 3, 18-34. Penn, P. (1982). Circular questioning. Family Process,
Elkaïm, M. (1988). Formações e práticas em terapia 21 (3), 267-280.
familiar. Porto Alegre: Artes Médicas. Penn, P. (1985). Feed-forward: Future questions, future
Feixas, G. (1991). Del individuo al sistema: La pers- maps. Family Process, 24, 299-310.
pectiva constructivista como marco integrador. Penn, P., & Frankfurt, M. (1994). Creating a participant
Revista de Psicoterapia, 2 (6-7), 91-120. text: Writing, multiple voices, narrative multipli-
Fine, M., & Turner, J. (1991). Tyranny and freedom: city. Family Process, 33 (3), 217-232.
Looking at ideas in the practice of family therapy. Prigogine, I. et al. (1980). Ouvertures. Cahiers Criti-
Family Process, 30 (3), 307-320. ques de Thérapie Familiale et de Pratiques de Ré-
Fontaine, P. (1993). Recherche «et/et»? Cheminement seaux, 3, 7-18.
vers une vue binoculaire. Thérapie Familiale, 14 Real, T. (1990). The therapeutic use of self in constru-
(2), 107-121. ctionist systemic therapy. Family Process, 29 (3),
Gameiro, J. et al (1994). Quem sai aos seus... Porto: 255-272.
Afrontamento. Relvas, A. P. (in press a). Family therapy, foundations
Griffith, J. et al (1990). Mind-body problems in family and techniques. In Hawkins & Nestoros (Eds.),
therapy: Contrasting first and second-order cyber- New perspectives in psychotherapy.
netics approaches. Family Process, 29 (1), 13-28. Relvas, A. P. (in press b). A família. Desenvolvimento
Golann, S. (1988). On second-order therapy. Family numa perspectiva sistémica. Porto: Afrontamento.
Process, 27, 51-65. Relvas, A. P., & Keating, I. (1995). Around the corner:
Goldner, V. (1993). Power and hierarchy: Let’s talk Reflections on technical and personal apprentice-
about it!. Family Process, 32, 157-162. ship of psychotherapy. Comunicação apresentada
Haber, R. (1990). From handicap to handy capable: no IV Congresso Europeu de Psicologia, Atenas.
Training therapists in use of self. Family Process,
Rey, E., & Prieur, B. (org.) (1991). Systèmes, éthique,
29 (4), 375-384.
perspectives en thérapie familiale. Paris: ESF.
Hoffman, L. (1990). Constructing realities: An art of
Sadler, J., & Hulgus, Y. (1989). Hypothesizing and evi-
lenses. Family Process, 29 (1), 1-12.
dence-gathering: The nexus of understanding. Fa-
Igodt, P., & Cauffman, L. (1987). L’esthétique du
mily Process, 28 (3), 255-269.
changement. Application du modèle cybernétique à
Selvini, M. (1987). Mara Selvini Palazzoli, Histoire
la thérapie familiale. Thérapie Familiale, 7 (2),
d’une recherche. Paris: ESF.
127-139.
Sluzki, C. E. (1993). Transformations: Propositions
Keeney, B. (1982). Ecosystemic epistemology: Critical
implications for the aesthetics of family therapy. d’un schéma-type pour les changements dans les
Family Process, 21 (1), 1-19. récits en thérapie. Cahiers Critiques, 15, 232-252.
Minuchin, S. (1979). Familles en thérapie. Paris: Ed. Tjersland, O. A. (1990). From universe to multiverse -
Jean Pierre Delarge. and back again. Family Process, 29, 385-397.
Minuchin, S., & Fishman, C. H. (1981). Family therapy Tomm, K. (1986). On incorporating the therapist in a
techniques. Cambridge: Harvard University Press. scientific theory of family therapy. Journal of
Monroy, M. (1989). Scènes, mythes et logiques, vingt Marital and Family Therapy, 12 (4), 373-378.
exercices de lecture systémique en thérapie fami- Tomm, K. (1987a). Interventive interviewing: Part I.
liale. Paris: ESF. Strategizing as a fourth guide-line for the therapist.
Mook, B. (1992). Intersubjectividad y estructura narra- Family Process, 26, 3-13.
tiva en la terapia familiar. Revista de Psicoterapia, Tomm, K. (1987b). Interventive interviewing: Part II.
3 (10-11), 13-22. Reflexive questioning as a means to enable self-
Morin, E. (1988). Pour une réforme de la pensée. Ca- healing. Family Process, 26, 167-183.
hiers Pédagogiques, 268, 29-32. Ugazio, V. (1991). El modelo terapeutico sistemico:
Morin, E. (1992). Introduction à la pensée complexe. Una perspectiva construtivista. Revista de Psicote-
Paris: ESF. rapia, 2 (6-7), 17-40.
Newmark, M., & Beels, C. (1994). The misuse and use Varela, F. (1989). Reflections on the circulation of
of science in family therapy. Family Process, 33, concepts between a biology of cognition and sys-
3-17. temic family therapy. Family Process, 28 (1), 15-
Onnis, L. (1991). La renovacion epistemologica actual -24.
de la psicoterapia sistemica: repercusiones en la Watzlawick, P. (1980). La langage du changement.
teoria y en la practica. Revista de Psicoterapia, 2 Paris: Ed. du Seuil.
(6-7), 5-15. Watzlawick, P. (Ed.) (1984). The invented reality: How
Palazzoli, M. S. et al. (1978). Paradoxe et contre-para- do we know what we believe we know?. New
doxe. Paris: ESF. York: Norton.

578
Watzlawick, P., & Weakland, J. (1975). Changements, ABSTRACT
paradoxes et psychothérapie. Paris: Ed. du Seuil.
This article is about an important issue in Family
Therapy: the systemic hypothesis. In the first part, we
RESUMO describe the original conceptualisation made by the
Milan School, as well as the place that structural and
No presente artigo, a autora debruça-se sobre um
strategic approaches give to this therapeutic ins-
dos instrumentos conceptuais fundamentais na terapia
familiar sistémica, a saber, a hipótese sistémica. Apre- trument. We also emphasised the functional value of
senta numa primeira parte a conceptualização original the hypothesis in the therapeutic process.
de hipótese sistémica formulada pela Escola de Milão, In the second part, we try to show the epistemolo-
a forma como é concebida no modelo estrutural de gical change occurred in Family Therapy through the
Minuchin e como está implícita no modelo estratégico
integration of constructivism. In this context, the sys-
através da noção de reenquadramento. Refere-se,
ainda, ao papel e função da hipótese na condução do temic hypothesis is redefined as a co-construction
processo terapêutico. Na segunda parte, partindo da conjointly made by the therapist and the client family.
renovação epistemológica construtivista da terapia This way, the hypothesis acquires a new value, since
familiar (terapia familiar de segunda ordem), redefine- we consider it not only a methodology of change, but
-se a hipótese como co-construção desenvolvida a
partir da relação terapeuta-cliente, perspectiva em que also a process of change within the therapeutic system.
é claramente entendida como metodologia e motor de Finally, in the third part, we discuss how this con-
mudança. A concluir discute-se o modo como a recon- ceptualisation is applied to the therapeutic intervention
ceptualização da hipótese sistémica é operacionalizada developed by the therapists of the NUSIAF (Child
no modelo terapêutico seguido no NUSIAF, quer na Care and Family Intervention Centre) of Coimbra
própria sessão, quer ao longo de todo o processo
terapêutico. University.
Palavras-chave: Terapia familar, hipótese sistémi- Key words: Family therapy, systemic hypothesis,
ca, construtivismo, sistema terapêutico. construtivism, therapeutic system.

579

You might also like