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Universidade Estadual de Santa Cruz

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação


Programa Institucional de Iniciação Científica

RELATÓRIO FINAL

TÍTULO DO PROJETO DE PESQUISA DO ORIENTADOR


TOMÁS ELOY MARTÍNEZ EM PRODUÇÃO BIOGRAFEMÁTICA

TÍTULO DO PLANO DE TRABALHO DO ALUNO


A CRÍTICA BIOGRAFEMÁTICA DE TOMÁS ELOY MARTÍNEZ NO
ROMANCE PURGATÓRIO

Bolsista: Tiago Calazans Simões


Orientador(a): André Luis Mitidieri Pereira
Programa: PROIC/CNPq
Vigência da bolsa: ago. 2014/jul. 2015
Ilhéus, 15/08/2015

1. Resumo

Este plano de pesquisa, denominado “A crítica biografemática de Tomás Eloy Martínez no


romance Purgatório”, tem como objetivo geral ler, estudar e analisar o romance Purgatório,
de Tomás Eloy Martínez (2009), destacando a abordagem biografemática do autor, a partir
dos conceitos de “biografema” (BARTHES, 1990) e “hibridação cultural” (CANCLINI,
2003). Verificando a composição hibrida do texto analisado e seu contexto de representação,
parto de uma compreensão acerca do “espaço biográfico”, dos limites entre a história e a
ficção literária, pensada como um terreno para narrativas híbridas, onde se discute o eu, o
outro, modos de narrar e processos políticos. A forma escolhida para tratar do fazer
biográficos no interior do romance é a crítica biografemática, surgida da discussão sobre a
impossibilidade de se narrar a completude de uma vida e sua unidade, bem como os processos
de subjetivação implicados pelo biógrafo no personagem biografado. Com base nesse suporte
teórico, cumpri os objetivos específicos da investigação: a) conhecer e divulgar parcela
significativa da obra de Tomás Eloy Martínez, buscando compreendê-la como capaz de
oferecer visibilidade a histórias, sujeitos e temas situados à margem do discurso oficial latino-
americano; b) estudar possíveis relações entre crítica cultural, crítica literária, espaço
biográfico e narrativa, através do corpus selecionado; c) aprofundar estudos sobre história e
literatura, por meio do autor em questão e dos contextos enfocados em sua crítica
biografemática; d) imprimir dinamicidade e produtividade no trabalho em equipe,

promovendo o interesse pela temática em foco.

2. Introdução
No período em que estou ligado ao projeto de pesquisa “Tomás Eloy Martínez em produção
biografemática” e ao grupo de pesquisa (CNPQ) “O espaço biográfico no horizonte da
literatura”, participei de discussões sobre crítica literária, crítica cultural, em uma de suas
vertentes das vertentes - a crítica biográfica - que discuto ao longo deste trabalho através do
conceito de Roland Barthes (1990), o “biografema”, e do “espaço biográfico” de Leonor
Arfuch (2010). O plano de pesquisa envolve a obra literária de Tomás Eloy Martínez,

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Purgatório, livro publicado originalmente em 2004, focado em uma argentina residente nos
Estados Unidos que, ao perder seu marido para a ditadura militar, conviveu com
proximidade de corpo presente (por ser filha de um general de influência no regime), mas
que em mente esteve distante, pois não sabia (ou fingia não saber) dos desaparecimentos,
das torturas e da violência, que atingiram o marido, Simón Cardoso.
O que interessa aos estudos ligados ao grupo é não apenas o tratamento autoral
martinieziano, a composição hibrida de seu texto, o imaginário social argentino, mas
também o contexto narrado na obra literária referida, o de uma ditadura militar, que, na
Argentina, ocupa lugar importante dentro de um cânone político-histórico, ao qual Tomás
Eloy Martínez está dialogicamente conectado, mas representando certa ruptura e
distanciamento. Conforme Cristine Matos (2010), a obra de Martínez realiza “outra virada”
com relação a esse cânone dos relatos político-históricos, pois embora atualize uma tradição
literária que vincula violência política e ficção, supera o tom da polêmica, respondendo a ela
com o questionamento dos modos de narrar tradicionais tanto na historiografia como nas
ficções que originou.
Desse modo, parto de uma compreensão acerca do “espaço biográfico”, um terreno híbrido,
movediço, sem fronteiras, composto pela hibridez de gêneros, que se mesclam dentro de um
território antagônico – ou seria amigável? – entre a história, entendida enquanto campo do
conhecimento humano que se baseia em indícios da passagem de uma presença humana ou
social, e a ficção literária, pensada não como simples efabulação, mas como um terreno para
narrativas híbridas, onde se discute o eu, o outro, as formas de se narrar, os processos
políticos que marcaram suas histórias, os juízos de valor exprimidos no discurso narrado,
tanto as conformações de uma época quanto as transformações, as expectativas.
A hibridez se dá em diversas formas e compreensões de história e ficção. O local
privilegiado que permite essa conformação de gêneros é o do romance que,
contemporaneamente, permeia as fronteiras do testemunho, da memória, do ensaio, do
(auto)biográfico, da reportagem, da notícia etc. A forma escolhida para tratar do fazer
biográfico no interior do romance em análise é a crítica biografemática, surgida de uma
grande discussão sobre a impossibilidade de se narrar a completude de uma vida e sua
suposta unidade, assim como os processos de subjetivação de si implicados pelo biógrafo no
personagem biografado.
A biografia foi por muito tempo deixada de lado na academia e pela crítica literária,
justamente por essa incapacidade de se narrar por inteiro e de forma linear – há linearidade

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em uma vida? – a existência de alguém. Como alternativa às ideias de totalidade e
objetividade, algumas vezes, atribuídas ao gênero biográfico, o conceito de biografema,
elaborado por Roland Barthes (1990), propõe uma “volta amigável do autor”, ressalta a
importância da subjetividade daquele que escreve, do seu “corpo” presente na estrutura
textual, contrasta com as antigas perspectivas acerca do gênero, pois nem o concebe como
espaço para as grandes vidas, para a canonização de narrativas nem para a ilusão biográfica,
mas também não o estigmatiza, não exclui sua importância da literatura e da crítica literária.
Com base nesse suporte teórico, cumpri o objetivo geral do plano de trabalho desta
pesquisa, que consistiu em ler, estudar e analisar o romance Purgatório, de Tomás Eloy
Martínez (2009), destacando a abordagem biografemática do autor, a partir dos conceitos
biografema (BARTHES, 1990), espaço biográfico (ARFUCH, 2010) e hibridação cultural
(CANCLINI, 2003). Também estou ciente de ter atingido os objetivos específicos da
presente investigação: a) conhecer e divulgar uma parcela significativa da obra de Tomás
Eloy Martínez, buscando compreendê-la como capaz de oferecer visibilidade a histórias,
sujeitos e temas situados à margem do discurso oficial latino-americano; b) estudar as
possíveis relações entre crítica cultural, crítica literária, espaço biográfico e narrativa, por
intermédio do corpus privilegiado na presente investigação; c) aprofundar estudos sobre
história e literatura, por meio do autor em questão e dos contextos enfocados em sua crítica
biografemática; d) imprimir dinamicidade e produtividade no trabalho em equipe,
promovendo o interesse pela temática em foco.

3. Material e Métodos (ou Procedimentos Metodológicos)


O suporte analítico ao presente trabalho orienta-se por investigação qualitativa de cunho
bibliográfico, envolvendo leitura e fichamento do corpus, de textos teóricos e históricos.
Situados prioritariamente nas intersecções entre crítica cultural, crítica literária, espaço
biográfico e narrativa, os aportes teóricos aqui privilegiados, conforme indicados no item
correspondente, oferecem destaque às noções de biografema (BARTHES, 1990), espaço
biográfico (ARFUCH, 2010) e “hibridação cultural” (CANCLINI, 2003). A partir desse
ferramental teórico, analiso a noção de crítica biografemática no corpus escolhido. Em
estágio posterior aos resultados alcançados pela pesquisa e ao cruzamento dos dados por
ela oferecidos, cheguei a uma produção científica compatível com o nível no qual me
encontro, divulgada em eventos científicos e em seus correspondentes anais.

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4. 5. Resultados e Discussão

Ao discorrer sobre a “volta amigável do autor”, Roland Barthes (1990) considera: “O autor
que volta não é por certo aquele que foi identificado pelas nossas instituições (história e
ensino de literatura, da filosofia, discurso da Igreja); nem mesmo o herói de uma biografia
ele é” (p. 11). Ao decompor quem é esse autor amigável que está de volta, o autor apresenta
conceito de biografema:

O autor que vem do seus texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é
um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte,
entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades,
em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopeia de
um destino; não é uma pessoa (civil ou moral), é um corpo (BARTHES, 1990, p.
11),

O autor faz questão de salientar a não unidade do autor no texto (auto)biográfico, não apenas
tomando por biográfica a escrita de outra vida ou da própria, mas também o que há de
biográfico numa narrativa qualquer ainda que essa não esteja pretensamente se dedicando a
narrar uma vida. Sobre esse autor presente no texto, o autor de Sade, Fourier, Loyola afirma:

Porque, se é necessário que, por uma retórica arrevesada, haja no texto destruidor
de todo sujeito, um sujeito para se amar, tal sujeito é disperso, um pouco como as
cinzas que se atiram ao vento após a morte [...] se eu fosse escritor, já morto, como
gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e
desenvolto, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, cuja
distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à
maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão
(BARTHES, 2007, p. 12).

Outra obra lida no decorrer destaa pesquisa foi O desafio biográfico: escrever uma vida” de
François Dosse (2009), no qual o autor trata das várias formas do fazer biográfico no curso
da história, além do seu caráter híbrido. Dosse (2009) dedica um capítulo aos biografemas,
em que define o trabalho de Roland Barthes como uma forma de revisitar o sujeito. Assim, o
biografema consiste em pequenos detalhes que podem dizer tudo a respeito de um indivíduo,
pois o sujeito que está de volta para Barthes é esboroado, em pedaços e disperso, uma forma
não clássica, não canônica de se olhar para as biografias e o que há de verídico e factual
sobre o sujeito disperso e jogado como cinzas pelas páginas de um livro (p. 306).
Um outro conceito aqui trabalhado é o de espaço biográfico (ARFUCH, 2010), zona de

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confluência que carrega em si uma grande heterogeneidade de gêneros, dentre eles, os
gêneros fronteiriços, nos quais vemos um apagamento de fronteiras epistemológicas. Espaço
para a manifestação da subjetividade contemporânea, o espaço biográfico permite constatar a
hibridez, os biografemas, a fuga das versões autoritárias da história, a descentralização dos
discursos oficiais. Arfuch (2010, p. 48) nos dá uma definição sobre o assunto: “um espaço
biográfico, onde, um tanto mais livremente, o leitor poderá integrar as diversas focalizações
provenientes de um ou outro registro, o ‘verídico’ e o ficcional, num sistema compatível de
crenças”.
O espaço biográfico conforma, dessa maneira, os gêneros impuros, híbridos, as narrativas
que apresentam um apagamento de limites que não se tornam tão claros, jogando-nos num
terreno movediço entre a história e a ficção. Néstor Garcia Canclini (2003) assim define a
hibridização cultural, ao introduzir a edição de 2001 de Culturas híbridas: estratégias para
entrar e sair da Modernidade:

Entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas


discretas que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,
objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram
resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras
(p. XIX).

Segundo Canclini (2003), hibridizar culturalmente não significaria uma mistura de aspectos e
peculiaridades culturais que não carrega contradições, mas surge da discussão modernidade
vs pós-modernidade, como uma noção que diz respeito às fusões culturais, resultado da
convivência (violenta ou pacífica) de diferentes povos e suas respectivas práticas culturais.
Assim, poderia ajudar a entender as formas particulares de conflito geradas na
interculturalidade recente em meio à decadência de projetos nacionais de modernização na
América Latina.
Esses foram os conceitos teóricos trabalhados no nosso grupo de estudo, no qual fizemos a
leitura de François Dosse para embasar os conceitos apreendidos durante o desenvolvimento
das discussões do grupo, pois é importante a contribuição do autor ao discorrer sobre os
vários olhares para com a escrita biográfica em diferentes períodos históricos, desde a
biografia clássica, gênero sobre o qual se acreditava ter capacidade de narrar com
propriedade uma vida através de uma boa pesquisa histórica e o mínimo de ficcionalização.
O que foi aprendido através da discussão dessa bibliografia teórica, somada às leituras de
narrativas de Tomaz Eloy Martínez, a fim de discutirmos a ideia de corpo fragmentado por

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meio da caracterização dos biografemas martinezianos, foi bastante enriquecedor.
Além disso, o debate sobre modernidade e pós-modernidade, presente nos textos de Canclini
lidos pelo grupo, propiciou o entendimento das contradições e aspectos complexos e
heterogêneos dos textos híbridos contemporâneos, aqueles que comportam diversos gêneros
textuais em seu interior. A discussão desses conceitos nos permite olhar para as narrativas
literárias que dialogam com o fim de regimes autoritários na América Latina e o início da
abertura democrática, vislumbrando neles a inserção de gêneros e formas do espaço
biográfico que, nesse diálogo entre áreas do saber, promovem a quebra dos referenciais
autoritários de versão única da história, a do grupo político opressor. Para Ernesto Laclau
(2010), algo requer ser narrado na medida em que sua especificidade escapa a uma
determinação teórica direta, a um complexo institucional autorreferencial. A hibridização
seria um espaço para “conformação de novas áreas de indecidibilidade no conjunto
social/institucional e serviria como base para o desdobramento de jogos de linguagem mais
radicais que colocam em questão os pontos de referência da certeza.” (p. 9).
Compreendo a importância do ato de narrar no romance hibrido como capaz de oferecer
vozes a discursos silenciados, assassinados e excluídos dos projetos de nação
antidemocráticos que estavam em curso. Dentro do estatuto do texto, a hibridização traz ao
fazer meta-textual e meta-(auto)biográfico um questionamento de posturas narrativas,
inserindo inovações estilísticas no romance de Tomás Eloy Martínez cuja obra, segundo
Christine Mattos (2003), autoproblematiza sua escrita sem deixar de lado o contexto histórico
ao qual se refere, embora ficcionalmente:

Tematizar o ato de narrar em si faz com que a obra de Martínez se volte mais para
seu estatuto textual que para a sua relação com o histórico-social, embora não a
rechace ou desconsidere. É como se, usando a terminologia linguística, a obra se
voltasse antes para uma problematização de suas funções poéticas (e de seus papéis
metalinguísticos), que para um questionamento de suas funções referenciais, sem
contudo poder deixar de abordá-las. Trata-se de contextualizar as relações do texto
com o real histórico-político e, num gesto simultâneo, tematizar os significados de
como fazer e ser literatura através desse contexto histórico/político/romanesco
particular (p. 2).

O texto literário híbrido que estudo, Purgatório (MARTÍNEZ, 2009), situa-se no terreno
fronteiriço da narrativa histórica, do testemunho e do ensaio, sendo que o último desses
gêneros traz juízo de valor, reflexão, opinião pessoal do autor, a própria versão, sua intuição e
conclusões sobre os fatos. Dessa forma, o autor demonstra no texto uma capacidade de
problematizar a história, traz expectativas dos testemunhos de outros e de si mesmo, que
vivenciou muitos dos acontecimentos tomados como contexto para a sua narrativa ficcional

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híbrida. Tomás Eloy Martínez nos traz em sua reflexão seus juízos de valor, inscreve-se na
história dos fatos trazendo uma ruptura a uma versão única da história, compete com sua voz
testemunhal contra a voz autoritária do discurso oficial. Assim, ele se reinscreve através da
narrativa em uma nova possibilidade de interpretar o passado, refratando as várias
possibilidades do prisma do discurso. É esse valor ensaístico que lhe permite alterar a
linearidade autoritária, centralizadora e positivista da história dos vencedores. Para Adriana
Ortega Clímaco (2014):

Neste processo de reflexão ressalta-se ainda o leitor, que se faz necessário ao ensaio
para sua completude. Diferentemente do texto que tenta passar conteúdos, no
ensaio o leitor tem papel ativo ao entrar na imaginação do autor, realizando junto a
este a reflexão proposta (p. 153).

Como importa, no decorrer da pesquisa o contexto histórico do romance Purgatório


(MARTÍNEZ, 2009), estudei o livro do historiador argentino Luís Alberto Romero (2006),
História contemporânea da Argentina, já que analisa documentos históricos que antes não
eram autorizados pelos governos ditatoriais e que não estavam em condições democráticas de
serem produzidos ou utilizados. Esses arquivos que desmascaram e denunciam a ação
criminosa do governo terrorista da ditadura militar nos são importantes como fonte de
valorização da leitura histórica no texto híbrido martineziano, a qual se dá via fontes
primárias e secundárias e discursos testemunhais. Preocupamo-nos em destacar, na obra
literária de Martínez (2009), o que diz respeito ao contexto histórico, à ilegitimidade e à
violência silenciadora do estado militarizado:

O planejamento geral e a supervisão tática ficaram nas mãos dos níveis mais altos
do comando castrense, e os oficiais superiores não deixaram de participar
pessoalmente nas tarefas de execução, destacando o caráter institucional da ação e o
compromisso coletivo. A as ordens desciam pela cadeia de comando até chegar aos
encarregados da execução, as Forças-Tarefas – formadas principalmente por jovens
oficiais e alguns suboficiais, policiais e civis -, que também tinham uma
organização específica. A execução também exigiu um complexo aparato
administrativo, pois devia acompanhar o movimento – entradas, translados e saídas
– de um número muito grande de pessoas. Cada preso, desde o momento em que
era considerado suspeito, era registrado em uma ficha e em um prontuário. Em
seguida, era feito um acompanhamento e uma valiação de sua situação, e tomava-se
uma decisão final que sempre provinha do mais alto nível militar. A repressão foi,
em suma, uma ação sistemática realizada pelo Estado (ROMERO, 2006, p. 197).

Não se pode esquecer também que a violência era multidirecional, importava suprimir,
silenciar e fazer desaparecer qualquer expressão de discordância com o regime, não apenas as

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organizações de esquerda que contavam com grupos revolucionários que se armaram após
serem afastados do processo político e terem seus partidos e organizações colocados na
ilegalidade. O historiador destaca esse processo de violência sistemática e discriminada a
qualquer voz que defendesse a democracia, os direitos humanos, sindicatos e expressões
populares:

Com o argumento de enfrentar e destruir as organizações armadas em seu próprio


território, a operação procurava eliminar todo ativismo, todo protesto social – até
uma pequena reclamação sobre passes de ônibus para estudantes -, toda expressão
de pensamento crítico, toda direção política possível do o movimento popular que
tinha se desenvolvido desde meados da década anterior e que estava sendo
aniquilado. Nesse sentido, alcançaram exatamente os resultados almejados
(ROMERO, 2006, p. 199).

O historiador faz presente, na sua obra, o imaginário social do povo argentino à época dos
desaparecimentos, e nisso, não está tão distante do ficcionalista Tomaz Eloy Martínez. O
autor apresenta certo comprometimento com os fatos, uma função social desse autor com a
história, entendendo-a como composta por testemunhos e documentos, de modo semelhante
ao que afirma Roland Barthes (1990), no seu prefácio a obra Sade, Fourier, Loyola, sobre
uma responsabilidade social do autor e sobre sua relação com o discurso e o contexto
histórico:

Seria o autor, a inserção desse autor em seu tempo, sua história, sua classe.
Entretanto, outro lugar permanece enigmático, escapa, por ora, a qualquer
esclarecimento: o ugar da leitura. Esse escurecimento se dá justamente no momento
em que mais se vitupera a ideologia burguesa sem nunca perguntar de que lugar se
fala dela ou contra ela: seria o espaço do não-discurso (‘não falemos, não
escrevamos; militemos’)? Seria o de um contradiscurso (‘discursemos contra a
cultura de classe’), mas constituídos então de que traços, de que figuras, de que
argumentações, de que resíduos culturais? Fazer como se um discurso inocente
pudesse ser mantido contra a ideologia equivale a continuar acreditando que a
linguagem pode não ser mais do que o instrumento neutro de um conteúdo
triunfante (p. 13).

No trecho citado, Barthes (1990) nos dá sua visão de responsabilidade social, criticando o
que para ele seria um apego muito grande e determinista do texto militante a uma “falsa
eflorescência sociológica histórica ou subjetiva das determinações, visões, projeções”. O
autor prescreve:

A intervenção social de um texto (que não se realiza necessariamente no tempo em


que se publica esse texto) não se mede nem pela popularidade da sua audiência,
nem pela fidelidade do reflexo econômico-social que nele se inscreve ou que
projeta para alguns sociólogos ávidos de recolhê-lo, antes pela violência que lhe
permite exceder as leis que uma sociedade, uma ideologia, uma filosofia se dão
para por-se de acordo consigo mesmas num belo movimento de inteligência

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histórica (BARTHES, 1990, p. 13).

Para Barthes (1990), esse excesso tem nome: é a escritura. Não trabalho diretamente com o
conceito de “escritura”, porém não poderia me furtar de tamanha contribuição de Barthes
que, mesmo se declarando avesso a determinado discurso militante, aponta para a
importância do texto e sua capacidade de diálogo com o mundo social, independentemente da
época em que é escrito, da capacidade de transgredir a ideologia do status quo de um texto. É
importante a sua visão de escritura, pois nega no discurso uma versão determinista que se
tinha do marxismo na literatura e do texto pelo texto. Interessa-nos em Barthes o gosto pelo
texto, a escritura, o corpo físico que se apresenta no texto e o seu conceito de biografema.
Num contexto em que inúmeros corpos de opositores ao regime ditatorial foram varridos do
mapa político-social, Martínez escreve a partir da “abertura democrática” que, segundo
Leonor Arfuch (2010), em meados dos anos 1980, propicia debates acerca do “fim” da
modernidade, do fracasso dos ideias da Ilustração, das utopias do universalismo, da razão, do
saber e da igualdade. Surgia um conceito aparentemente superador:

A ‘pós-modernidade’, vinha sintetizar o estado de coisas: a crise dos grandes relatos


legitimadores, a perda de certezas e fundamentos (da ciência, da filosofia, da arte,
da política), o decisivo descentramento do sujeito e, coextensivamente, a
valorização dos ‘microrrelatos’, o deslocamento do ponto de mira onisciente e
ordenador em benefício da pluralidade de vozes, da hibridização, da mistura
irreverente de cânones, retóricas, paradigmas e estilos (p. 16).

Saindo do contexto histórico-cultural em direção à literatura como uma grande textualidade,


o romance híbrido que analiso também faz alusão, desde o seu título, à obra poética de Dante
Alighieri; Divina comédia. Todos os capítulos do livro remetem a versos dos cantos do livro
“Purgatório” desse poema épico. São eles: Capítulo 1 – “tratando sombra como coisa firme”:
Canto XXI, verso 136; Capítulo 2 – “Uma jovem sozinha que seguia, cantando” Canto
XXVIII, verso 40; Capítulo 3 – “Nas chamas vi os espíritos andando”: Canto XXV, verso
124; Capítulo 4 – “Que crê e duvida, e diz: “Isto é... não é”: Canto VII, verso 12 e finalmente
o Capítulo 5 – “Não é a fama do mundo que um minguado vento”: Canto XI, verso 100.

5. Conclusões
O texto (auto)biográfico é importante e valioso para descrever aspectos de época, o
imaginário social, o contexto histórico e político, a(s) subjetividade(s) presentes no texto e
no contexto e para a pluralização de narrativas antes centralizadas na perspectiva de

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complexos institucionais autorreferenciais. No entanto, falar de vidas presentes em obras,
construídas em narrativas, não pode sob nenhuma forma decair na ilusão de se narrar uma
vida em sua totalidade, unidade e linearidade. A narrativa de uma vida está emprenhada
pelas visões de mundo daquele que a escreve, da sua psiqué, de suas ideologias e das
motivações que levaram a escrever o texto, não há possibilidade de afirmar sobre o íntimo
de um outro individuo sem construir naquela outra subjetividade uma refração da sua
própria.
O biografema barthesiano considera o fazer (auto)biográfico enquanto romanceado, a vida
escrita na narrativa não é uma vida una, mas uma personagem de romance do autor-
narrador. Barthes alerta para a impossibilidade de contar uma vida, sem decair em ilusões,
sem dar sentido aos fatos da vida do biografado – que podem não ser bem aqueles
“investigados” pelo autor, mas também outros, até mesmo, ficcionalizados. Portanto, o
biografema é constituído pelas cinzas do autor, os fragmentos do seu corpo físico, de sua
história, subjetividade, dessa vida que pode até ser narrada, mas sem linearidade, que não
deixa escapar uma fagulha dos fatos da vida de um outro, sem lhes atribuir sentido.

Assinalado por abordagens biografemáticas, o olhar híbrido do romance Purgatório


(MARTÍNEZ, 2009) recai sobre o novelo policial da busca por Simón, pela metáfora do
purgatório enquanto ponto de espera ao paraíso, que seria o retorno tão esperado do marido
por sua amada, a qual o procurou durante 30 longos anos. Do individual, subjetivo, para o
coletivo, o purgatório significa também a espera de um povo, de uma nação, por um regime
democrático e pela volta dos “desaparecidos”, quer dizer, dos perseguidos pela ditadura,
muitos deles, assassinados ou exilados.
Relacionados a essa temática, os biografemas aos quais viso na presente investigação têm
uma especificidade: aqueles que se entrecruzem com os fatos e o contexto histórico; que
digam respeito à vida do escritor enquanto jornalista exilado por escrever textos contrários
ao permitido pela censura; aqueles que testemunham nas vozes de outros, encobertos pela
história oficial: militantes de esquerda, ativistas, democratas, estudantes e mães da Praça de
Maio. Biografemas acerca d essas figuras compõem o espaço biográfico martineziano,
aliando-se a várias formas de narrar – cartografia, ensaio, história, memória, reportagem,
romance policial – para uma descentralização das versões históricas oferecidas pela
ditadura argentina representada em seu romance assim hibridizado.
Os muitos lugares onde se passa o romance, tanto na América Latina quanto nos Estados

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Unidos – Buenos Aires, Tucumán, Caracas, Rio de Janeiro, México, Highland Park, New
Jersey – simbolizam o protelamento da democracia ao mesmo tempo em que colocam mais
uma peça no mosaico híbrido do romance, ao fazê-lo dialogar com a cartografia, ciência da
representação gráfica do espaço, que tem como produto final uma representação: o mapa.
Se Emília e Simón eram cartógrafos, o ficcionista Tomás Eloy Martínez antes se exercitou
como biógrafo (de Evita, de Juan Domingo Perón). Hábil em manusear diversas formas
assumidas pela escrita biográfica, no romance analisado, o autor se vale de biografemas
que apontam à própria existência. O sujeito histórico que também enfrentou seu purgatório,
não deixa de narrar a si mesmo, sob perspectiva biografemática e metatextual, em várias
passagens como a seguinte, quando se refere aos 30 anos de separação entre Emilia e
Simón que, de certa forma, reproduzem “o vácuo dos trinta anos que passei fora de meu
país, o qual esperava encontrar, quando voltei, tal como o havia deixado. Sei que é uma
ilusão, ingênua como todas as ilusões, e talvez tenha sido isso que me atraiu, porque os
anos perdidos nunca deixaram de me atormentar e, se eu contá-los, se imaginar cada dum
dos dias da vida que não vivi, talvez – pensei – possa exorcizá-lo” (MARTÍNEZ, 2009, p.
204).
A espera pelo momento de voltar à Argentina durante todo o exílio nos Estados Unidos
mostra que Martínez, como sua protagonista de Purgatório, esteve distante do país em
corpo, mas em mente esteve presente a todo momento. Isso fica claro na sua “obsessão”
por ficcionalizar a história argentina, apresentando diferentes versões, trazendo
microrrelatos, testemunhos, documentos históricos, mapas que desaparecem à procura de
um ponto em comum onde possamos encontrar o desaparecido. O purgatório se torna um
enigma meta e intertextual que joga o leitor num labirinto narrativo, pois passa grande parte
do romance em estudo, também convertido em crítica histórica e crítica literária, em busca
dos personagens Simón Cardoso e Emilia Dupuy, da mesma forma que o escritor, os
argentinos, os latino-americanos, em constante peregrinação para viver em sociedades mais
justas e mais democráticas.
Uma parte dessas considerações foi socializada no VII Seminário de Pesquisa e Extensão
em Letras da UESC (SEPEXLE). Com a outra parte, somada a um panorama geral da
pesquisa, pretendo realizar minha apresentação no XXI Seminário de Iniciação Científica
da UESC. Outro texto que produzi durante minha atuação como bolsista de IC foi
apresentado na II Jornada de Literatura, História e (Auto)Biografia, promovida pelo Grupo
de Pesquisa (CNPq) O Espaço Biográfico no Horizonte da Literatura, do qual participo, e

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que, em 2014, teve como sede o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Estadual de Feira de Santana. Publicado nos anais do evento, o texto está disponibilizado
logo a seguir, como anexo.

6. Referências
ARFUCH, LEONOR. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de
Janeiro: EDUERJ, 2010.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Brasiliense, 1990.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: EDUSP, 2003.
LACLAU, Ernesto. Prefácio. In: ARFUCH, 2010, p. 09-14.
MARTÍNEZ, Tomás Eloy. Purgatório. São Paulo: Companhia das letras, 2009.
MATTOS, Cristine Fickelscherer de. Para uma reflexão teórica na leitura das obras de Tomás
Eloy Martínez. Anais... 14º Congresso de Leitura do Brasil. Campinas, UNICAMP, 22-25
jul. 2003 Disponível em: <http://alb.com.br/arquivo-
morto/edicoes_anteriores/anais14/Cse14.html>. Acesso em: 24 set. 2015.
ROMERO, Luis Alberto. História contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006.

7. Publicações
Apresentações de Trabalho

SIMÕES, T. C.; MITIDIERI, André Luis. Horizonte biografemático na construção


ficcional de Purgatório. II Jornada de Literatura, História e (Auto)biografia.
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), 2014.

SIMÕES, T. C.; MITIDIERI, André Luis. A construção híbrida do romance Purgatório.


VII Seminário de Pesquisa e Extensão em Letras (SEPEXLE). Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC), 2015.

Resumos Publicados

SIMÕES, T. C.; MITIDIERI, André Luis. Horizonte biografemático na construção


ficcional de Purgatório. II Jornada de Literatura, História e (Auto)biografia.

Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), 2014. Disponível em: <

13
http://gpbio.jimdo.com/ii-jornada/simp%C3%B3sio-ii>. Acesso em: 05 ago. 2015.

SIMÕES, T. C.; MITIDIERI, André Luis. A construção híbrida do romance Purgatório.


VII Seminário de Pesquisa e Extensão em Letras (SEPEXLE). Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC), 2015. Disponível em:
<http://www.uesc.br/eventos/sepexle/viisepexle/arquivos/caderno_de_resumos.pdf>.
Acesso em: 05 ago. 2015.

Trabalhos Completos Publicados em Anais de Eventos

SIMÕES, Tiago Calazans. Horizonte biografemático na construção ficcional de


Purgatório. II Jornada de Literatura, História e (Auto)biografia. Universidade Estadual

de Feira de Santana (UEFS), 2014. Disponível em: <


http://www2.uefs.br/ppgldc/gelc/coloquio2014/index.htm#ANAIS>. Acesso em: 05 ago.
2015.

14
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Gerência de Pesquisa
Rodovia Ilhéus-Itabuna, Km 16 – Ilhéus-BA – Brasil - CEP 45.650-000
Fone: (73)680-5129
E-mail: gpesquisa@uesc.br

AVALIAÇÃO FINAL DE DESEMPENHO DO BOLSISTA


(a ser preenchido pelo orientador)
1. IDENTIFICAÇÃO

1.1. NOME DO BOLSISTA: Tiago Calazans Simões

1.2. PROGRAMA INSTITUCIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

(x ) PROIIC ( ) PIBIC ( ) FAPESB

1.3. NOME DO ORIENTADOR: André Luis Mitidieri Pereira

1.4. DATA DE INGRESSO NA EQUIPE: 1.5. PERÍODO DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS:

Ago. 2014 Ago. 2014/jul. 2015

1.6. TÍTULO DO PROJETO DE PESQUISA: 1.7. N° CADASTRO PROPP:


Tomás Eloy Martínez em Produção Biografemática
1371485059

1.8. TÍTULO DO PROJETO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA: A crítica biografemática de Tomás Eloy Martinéz

2. DESEMPENHO
2.1. PARTICIPAÇÃO DO BOLSISTA NO DESENVOLVIMENTO DO PROJETO E, OU GRUPO DE
PESQUISA (atribuir notas de 0 – 5)

NÃO SE APLICA
AULAS E SEMINÁRIOS: (4 ) ()
APRESENTAÇÃO DE COMUNICAÇÕES EM (5 ) ()
SEMINÁRIOS/CONGRESSOS:
DISCUSSÕES TÉCNICAS: (5 ) ()
COLETA DE DADOS: (5 ) ()
ANÁLISE DE DADOS: (4 ) ()
OUTROS TIPOS DE PARTICIPAÇÃO (ESPECIFICAR): () (x )

15
2.2. ANÁLISE DO DESEMPENHO (atribuir notas de 0-5):
INICIATIVA: (4) CRIATIVIDADE: (5 )
QUALIDADE DOS TRABALHOS
LIDERANÇA (5) (4 )
DESENVOLVIDOS/RESULTADO FINAL
CAPACIDADE DE REFLEXÃO (5 ) CAPACIDADE DE DISCUSSÃO ( 5)
ASSIDUIDADE: (3) RESPONSABILIDADE: (4 )
3. PARECER (OBRIGATÓRIO) E OBSERVAÇÕES (SE HOUVER)
Apesar de faltas iniciais, no que diz respeito à assiduidade, no decorrer do processo, o bolsista sanou os problemas
apresentados, cumprindo a rigor com suas atividades e apresentando trabalhos julgados muito satisfatórios. Ademais,
auxiliou o grupo a crescer em conjunto, organizando atividades e encaminhando discussões de ordem crítica e teórica.

4. CONTINUIDADE NO PROGRAMA

RECOMENDA (x) NÃO RECOMENDA ( )

ANEXO

Horizonte biografemático na construção ficcional de Purgatório

Em pesquisa qualitativa e de cunho bibliográfico, destacamos a noção barthesiana de


biografema, a hibridação cultural de Canclini para caracterizar a hibridez dos gêneros
fronteiriços - aqueles que não são historicamente constituídos que não tem fronteiras de
identificação claras, frutos da hibridez entre história, ficção e testemunho, gêneros
homogêneos e heterogêneos combinados para gerar novas estruturas, objetos e práticas –
relacionados ao espaço biográfico, definido por Arfuch para a análise da configuração
biografemática de Purgatório. Nosso problema no romance Purgatório é a configuração
“biografemática” do romance em estudo, por meio do qual o autor dá visibilidade a vozes
excluídas do processo histórico, político e socioeconômico promovido pelo Estado ditatorial
argentino das décadas de 1970-80. Apontaremos quais os gêneros, tanto historicamente
constituídos quanto os mais híbridos, caracterizados como terrenos movediços e que
permeiam o texto martineziano trabalhado. Buscamos suscitar o debate sobre o contexto
ditatorial, onde:

Os desaparecimentos foram maciços entre 1976 e 1978, o triênio sombrio, e depois


se reduziram a um número mínimo. Foi um verdadeiro genocídio. A comissão que

16
investigou os desaparecimentos documentou nove mil casos, mas indicou que podia
haver muitos outros não denunciados, enquanto as organizações defensoras dos
direitos humanos procuravam por 30 mil desaparecidos. Caíram militantes de
organizações políticas e sociais, dirigentes sindicais atuantes nas comissões internas
das fábricas – alguns empresários costumavam mesmo pedir a colaboração dos
militares responsáveis – e junto com eles militantes políticos, sacerdotes,
intelectuais, advogados relacionados à defesa de presos políticos, ativistas de
organizações de direitos humanos e muitos outros, pela única razão de serem
parentes de alguém, terem seu nome em um caderno de telefone ou serem
mencionados em uma sessão de tortura (ROMERO, 2006, p. 199).

Fatos ocorridos de forma sistemática após o estabelecimento de uma junta militar que
levou o general Jorge Videla à presidência (1976-1983) marcaram com ferro e fogo uma parte
sombria da história Argentina. Esse período caracterizado como “processo de reintegração
nacional” consistiu em uma série de instrumentos de dominação (baseada nos grandes lobbies
do capital internacional) e pretendia promover o apagamento sistemático de qualquer forma
de representatividade da sociedade civil em movimentos e partidos políticos organizados com
aspirações populares. Assim, temos entre os nossos objetivos específicos divulgar essa
temática pouco abordada pela crítica do país, para promover debates políticos ligados a um
contexto de violência e dominação, mexendo nas feridas das ditaduras latino-americanas
financiadas pelo capital externo, que tentou implementar na recente história desses povos um
modelo altamente ditatorial, garantido pelas torturas e pela proibição da representação e
organização da sociedade civil. Temos o intuito de identificar e problematizar possíveis
relações entre crítica cultural, crítica literária e espaço biográfico, na narrativa ficcional
analisada, que possibilitam a abertura dos “arquivos sombrios” da Argentina. No momento em
que se debatem os casos suscitados pelas Comissões Nacionais da Verdade (CNV’s) no Brasil,
torna-se pertinente, a partir do romance, debater a prisão de ditadores e torturadores na
Argentina, trazendo à tona dessas questões que uma parte do país quer esquecer, enquanto
outra luta pelo resgate da memória daqueles que se insurgiram contra o regime.
A noção de “espaço biográfico”, definida por Leonor Arfuch (2010), surge de sua
problematização enquanto macrogênero, das problemáticas implicações dessa compreensão
do fazer (auto)biográfico entendido enquanto conjunto de gêneros que podem ser delimitados
com facilidade e homogeneidade. Esse conceito traz uma perspectiva bakhtiniana do
biográfico enquanto espaço permeado pela construção de gêneros discursivos que se
confundem e não exibem muros muito bem delimitados. Partindo dessa ideia, entendemos o
espaço biográfico como um “local” permeado por uma confluência de gêneros
interdiscursivos, onde pode ocorrer um apagamento de fronteira dos mesmos, um espaço onde

17
podemos encontrar outros gêneros confluentes além de formas e dicções autobiográficas e
biográficas. Desse modo, forma-se o “lugar” onde “[...] um tanto mais livremente, o leitor
poderá integrar as diversas focalizações provenientes de um ou outro registro, o ‘verídico’ e o
ficcional, num sistema compatível de crenças” (ARFUCH, 2010, p. 56).
Por sua vez, o conceito de “biografema” vem da reflexão do que é o fazer
(auto)biográfico na história da crítica literária, de uma perspectiva não clássica ou canônica,
que não reconhece a escrita biografia como um espaço para inflar ou destruir reputações, nem
como um espaço onde o sujeito biografado possa ser constituído de uma unidade e linearidade
em sua identidade com início, meio e fim, mas como um sujeito disperso e fragmentado. Ao
definir qual é o autor que vem da escrita biografemática, Roland Barthes (1990, p. 11) assim
afirma:

O autor que vem do seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é um
simples plural de “encantos”, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto,
de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que
lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopeia de um
destino; não é pessoa (civil ou moral) é um corpo.

O corpo (o sujeito) está no texto (destruidor de todo sujeito), e se há alguém para se


amar dentro desse, esse alguém é disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento
após a morte. É essa ideia de sujeito fragmentado que Barthes expõe ao falar sobre o texto que
atravessa o autor, para ele é impossível falar em biografia como o relato real de um sujeito,
quem ele foi de fato. Para ele, o sujeito da biografia é mais uma personagem de um romance.
Em Sade, Fourier e Loyola, Barthes oferece-nos uma definição de biografema como alguns
pormenores, alguns gostos e inflexões, esse corpo que o autor deposita na sua escritura, ou
seja, na forma do seu prazer ficcional.
Baseados nesse entrecruzamento de gêneros discursivos problematizados por sua
configuração híbrida onde se entrelaçam realidade e ficção, podemos situar Purgatório entre a
escrita biográfica e romanesca. O caráter (auto)bigráfico desse romance é compatível com a
visibilidade dada às vozes excluídas do processo histórico, político e socioeconômico
dominante na América Latina durante o século XX. O autor argentino em questão, Tomás
Eloy Martínez, foi um escritor e jornalista nascido na cidade de San Miguel de Tucumán,
onde graduou-se em literatura espanhola e latino-americana na Universidad Nacional de
Tucumán. Após receber ameaças da Aliança Anticomunista Argentina (triple A ou AAA), o

18
escritor partiu para o exílio onde escreveu para vários jornais. Martínez não viveu nenhum dia
do período ditatorial na Argentina, porém em diversas entrevistas cedidas a jornais ele afirma
que escreve muitas vezes sobre aquilo que não aconteceu, mas que poderia ter acontecido.
O autor define a história de seu personagem Símon (Purgatório) como um fato que
poderia ter acontecido a ele caso ficasse na Argentina, ou seja, desaparecido e assassinado
pelo estado militar violento. Sobre sua escrita, Martínez (2001) afirma:

Lo que buscan las narraciones a las que estoy aludiendo es que el lector identifique
los destinos ajenos con su propio destino. Que se diga: a mí también puede pasarme
esto. Hegel primero, y después Borges, escribieron que la suerte de un hombre
resume, en ciertos momentos esenciales, la suerte de todos los hombres. Esa es la
gran lección que están aprendiendo los periódicos en este comienzo de siglo.

No corpus selecionado para este projeto, Purgatório, Tomás Eloy Martínez recupera a
atmosfera asfixiante que tomou conta da Argentina depois do golpe de 24 de março de 1976,
onde teve início do processo de reintegração nacional, idealizado pelos militares:

A proposta dos militares – que pouco fizeram para impedir que o caos chegasse a
esse extremo – ia além. Consistia em cortar o problema pela raiz, que segundo o
diagnóstico, estava na própria sociedade e na natureza de seus conflitos. O caráter da
solução projetada podia ser percebido nas metáforas empregadas – doença, tumor,
extirpação, cirurgia – resumidas em uma expressão clara e contundente: cortar o nó
górdio com a espada(...) Tratou-se de uma ação terrorista, dividida e quatro
momentos principais: sequestro, tortura, prisão e execução (ROMERO, 2001 p. 196-
197).

Naqueles tempos, as pessoas desapareciam aos milhares sem nenhuma razão aparente,
caracterizando um relembrar das memórias dolorosas do povo argentino, apertando as feridas
da história recente de seu país, para que ninguém se esqueça das cicatrizes históricas, para que
não haja maquiar de fatos escancarados. Purgatório é um romance de amor, mas que toca na
temática política do desaparecimento, das torturas e assassinatos de maneira voraz. A
narrativa entrelaça os acontecimentos da vida da personagem Emilia nos Estados Unidos de
1999 e seu passado de horror nos “anos de chumbo” da ditadura, onde a filha do General
Dupuy, colaborador e um dos ideólogos da ditadura, após uma discussão no jantar sobre o
tema “tortura” e uma opinião contrária por parte do seu genro sobre as práticas que reinavam
no período, desencadeia acontecimentos que levam ao desaparecimento do rapaz. O autor
expõe as feridas abertas deixadas pela ditadura, usando Emilia como exemplo de alguém que

19
crente no mito do “desaparecimento”, procurou por parte de sua vida um homem que foi
torturado e assassinado, esse homem representa no livro a perseguição promovida pela
ditadura e os seus desdobramentos, causas e consequências, políticas, econômicas e
ideológicas. O autor move a memória, o imaginário social do povo argentino, com os mitos
que cercavam os desaparecimentos, as artimanhas e crimes perversos de um estado ditatorial,
a tentativa de resistência dos silenciados. O autor mescla gêneros literários híbridos que
confundem realidade e ficção, de modo que o leitor pode não ter certeza absoluta de estar
lendo um livro de história, um romance ou notícias de jornais do passado:

Numa entrevista a correspondentes japoneses, a enguia teve de dar uma resposta


sobre a epidemia de desaparecimentos [...] ‘Um desaparecido é uma incógnita, não
tem entidade, não está vivo nem morto, simplesmente não está. É um desaparecido’
(MARTÍNEZ, 2009, p. 60).

Um dos temas tratados na obra em estudo são os traumas gerados pela violência e
perseguição a pessoas que defendiam a democracia, se organizavam em movimentos de
esquerda revolucionária e a líderes sindicais que defendiam os direitos da classe trabalhadora.
O autor traz visibilidade a vozes contrárias às do discurso oficial do estado ditatorial, ao dar
no presente, juízo de valor sobre os fatos do passado, representando uma parte do imaginário
social argentino marcado pela violência e pela tortura. O autor também realiza o recurso da
metalepse, insere-se na obra, enquanto personagem que participa da trama, dialoga com suas
personagens, revela aspectos ligados a fatos concretos de sua vida, apresentando seu parecer,
seu juízo de valor sobre a história:

Quando aquilo que agora é chamado de ditadura caiu, meu pai era um homem rico,
riquíssimo. Foi beneficiado com empréstimos que nunca saudou, comissões
milionárias por títulos do Estado, subsídios por obras públicas que não serviam a
ninguém [...] Quando a ouvi falando ‘aquilo que agora é chamado de ditadura’,
pensei, por um momento, que você também tinha sido cúmplice. Desculpe. Como
você sabe, o que nós sofremos foi mesmo uma ditadura, a mais perversa da história
argentina, que conheceu tantas outras antes (MARTÌNEZ, 2009, p. 83).

O autor contrapõe-se ao projeto ditatorial de progresso econômico e social baseado na


ordem e nos “bons valores” cristãos, usado para justificar os assassinatos e repressões à
sociedade, que defendia o crescimento econômico através do liberalismo, menos Estado, mais

20
“competição” do mercado. O governo divulgava na mídia que a Argentina estava sendo
modernizada, mas enquanto isso: “Buenos Aires era outra cidade: os jornais diziam que as
mudanças se deviam ao progresso, mas a única coisa que Emilia via progredir eram as
desgraças” (MARTÍNEZ, 2009, p. 189). O autor usa suas personagens para se desfazer dos
relatos lineares que foram defendidos como motor das mudanças sociais na propaganda do
Estado. Suas personagens são participantes do processo, vítimas e acusados que se
apresentam no texto, no qual o autor culpabiliza os que causaram a dor e absolve os que
foram violentados. O romance traz as memórias dos corpos desaparecidos, torturados e das
mães subversivas que antes da morte tiveram os seus filhos roubados. Aparecem no livro
elementos históricos ligados a fatos de extrema relevância na história do país, como a copa do
mundo de 1978, a derrota e desmoralização na guerra das Malvinas (1982), a economia
instável e destroçada pelas políticas econômicas entreguistas de favorecimento a grandes
grupos internacionais. Na seguinte passagem, destacamos um posicionamento a respeito da
guerra das Malvinas e dos soldados argentino que lá combatiam:

Suponho que o que os mantém acordado seja o patriotismo que a ditadura voltou a
desencadear nas pessoas para disfarçar a miséria, a inflação, a sensação de
desmoronamento iminente. No começo daquele ano, sentindo que o país escapava
de suas mãos, os militares apelaram para um gesto de náufrago: invadem as ilhas
inóspitas com soldados recrutados das zonas tropicais do nordeste, onde ninguém
conhece o frio. Os governantes agora são outros, sucessores da Enguia e do
Almirante, mas o horizonte daquilo que eles pensam é a mesma linha em branco do
nada. (MARTÍNEZ, 2009, p. 214)

O escritor aponta para uma época que ele acompanhou de perto, mesmo estando em
outros países (exilado). Com o enfoque nos desaparecimentos e na perseguição sistemática de
pessoas contrárias ao projeto, o escritor aborda diversos fatos ligados ao genocídio cometido
pelo estado terrorista, em momento durante o qual fala sobre o pai de Emilia, general Dupuy:

A diretora de um orfanato feminino declarou que o doutor visitava as internas de vez


em quando, escolhia as mais jovens e as levava para passear em seu carro. Nenhuma
delas jamais reapareceu. Eram meninas recém-saídas da adolescência e que tinham
aprendido a costurar, cozinhas e fazer contas. (MARTÍNEZ, 2009, p. 167)

21
Notamos constantes “repetições” tanto de fatos documentados, de memórias, quanto
de metáforas ligadas a essas temáticas, e de histórias que aconteceram, porém tomam forma
no romance através de suas personagens. Desse modo, justificamos este trabalho pela
relevância de divulgar parte da obra martíneziana, privilegiando a temática escolhida, de um
romancista e jornalista argentino, o livro Purgatório, por sua capacidade de dar visibilidade a
histórias, fatos e processos que envolvem autoritarismo e violência acontecidos na ditadura
militar e resgatados através de relatos, entrevistas e documentos oficiais. Essa é mais uma
pequena parte de revisão histórica, embora pelo viés da ficção, num momento em que a luta
pelo resgate da memória daqueles que se insurgiram contra o regime ainda é grande, os
esforços de entidades de esquerda, anistia, de defesa dos direitos humanos e da democracia
ainda são inúmeros, todos os países que passaram por ditaduras sanguinárias na América
Latina ainda procuram seus cadáveres:

Apesar de a junta militar ter estabelecido a pena de morte, esta nunca foi aplicada, e
todas as execuções foram clandestinas. Às vezes, os cadáveres apareciam na rua,
como se tivessem morrido em confrontos ou tentativas de fuga. Em outras ocasiões,
pilhas inteiras de corpos foram dinamitadas, como uma represália espetacular a
alguma ação guerrilheira. Mas na maioria dos casos, os cadáveres eram ocultados,
enterrados em cemitérios como indigentes, queimados em valas coletivas, cavadas
pelas próprias vítimas antes de serem fuziladas, ou lançadas ao mar presos a blocos
de cimentos, após serem postos para dormir com uma injeção (ROMERO, 2006, p.
198-199).

Muitas mães ainda lutam pelo direito de enterrar os seus filhos, de ter acesso à
verdade. Os acontecimentos criminosos dessa época precisam ser admitidos pelos estados
democráticos, pela imprensa e mídia que apoiaram e participaram às vezes até ativamente do
processo de caça aos “comunistas”, nos processos de esconder e desviar o foco de qualquer
manifestação que visasse expor essas situações. A pesquisa realizada neste projeto assim tem
por motivação a necessidade de ampliar o campo de pesquisa acerca da obra de Tomás Eloy
Martínez, como participante da literatura latino-americana, expondo e debatendo a temática
de sua obra e o contexto em que são produzidos seus textos, estendendo o campo de
investigação a seus textos jornalísticos, contos e narrativas autobiográficas, grande parte está
ainda sem tradução para o português.
As problemáticas trazidas pelo texto em estudo nos levaram à leitura biografemática
no seu espaço biográfico, que dá pluralidade às diferentes vozes que tiveram participação no

22
processo político ditatorial representado, tanto aos agressores quanto aos agredidos. Além de
debates teóricos que trazem a luz o caráter fronteiriço e híbrido de suas narrativas, a
problematização dos gêneros historicamente constituídos, os gêneros heterogêneos e a sua
fusão de fronteiras entre realidade e ficção, o conceito de hibridação (CANCLINI, 2003)
permite-nos situar o romance entre os gêneros romanesco, ensaístico, histórico, testemunhal,
da memória e reportagem. Essa mescla tem como produto uma narrativa hibrida, entre a
realidade e a ficção, que por diversos momentos se entrecruza com o fantástico para suscitar a
ironia quanto aqueles que feriram, mataram, fizeram desaparecer e impediram a organização
social da sociedade civil de formas bárbaras.

REFERÊNCIAS

ARFUCH, LEONOR. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de


Janeiro: EDUERJ, 2010.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Brasiliense, 1990.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: EDUSP, 2003.
MARTÍNEZ, Tomás Eloy. Purgatório. São Paulo: Companhia das letras, 2009.
ROMERO, Luis Alberto. História contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006

23

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