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NERVOS SADIOS – W.

Benjamin (1930)*

Essa exposição é um caso de sorte. Está relacionada com a memória de um homem singular. Ernst Joël,
médico-chefe nas escolas do distrito de Krauzberg, que a planejou e a dirigiu em boa parte, foi um dos raros
homens que, de maneira racional e completa, colocou a serviço da causa de um bem pensado e conseqüente
esclarecimento do povo uma capacidade incomum de influenciar os outros, uma energia de liderança
associada a um grande charme, que, na Alemanha, freqüente- mente são desperdiçados em caprichos
frívolos, maníacos e sectários. Se esse homem não somente deixou marcas, mas uma memória, em todos os
setores de atividade da sua curta vida, é porque ele destoou da situação alemã de um modo tão benéfico. Que
justamente as naturezas mais fones e mais sugestivas não encontrem o lugar livre e razoável para tomar
eficazes as suas forças, que se enclaustrem em colônias religiosas sectárias e em mo,imentos paramilitares
nacionalistas, em associações masdasnan e conjuntos de dança, que façam do fanatismo um conforto, e
percam as suas melhores energias - esta é a catástrofe crônica da Alemanha de pós- guerra. Ernst Joe1 tinha
tudo para ser um fanático: a convicção, a inquietude e a eficiência. Só lhe faltava uma coisa: o orgulho. E,
por isso, essas forças podiam voltar-se soberana e integralmente para um campo despretensioso mas fértil,
que via de regra é o domínio incontestado dos burocratas: o esclarecimento médico popular.

O resultado de tal caso de sane mostra-se nesta exposição. Aqui não apenas se deu conta do proverbial
trabalho de minúcias e da parte organizatória, mas, além do mais, percebe-se em toda pane uma reflexão e
uma clareza, que não são produto de horário de expediente, mas de meses da mais apaixonada atividade.
Nem Joel nem algum de seus colaboradores estiveram na Rússia. Tanto mais interessante, que a primeira
impressão do visitante ao entrar nessas salas pode dar uma idéia da Casa dos Camponeses em Moscou ou do
Clube dos Soldados Vermelhos no Cremlin. Ou seja, alegre e movimentada, como se justamente hoje, no dia
da sua visita, fosse acontecer alguma coisa de especial. Modelos e faixas são agrupados, como se estio
vessem aguardando o aniversariante, estatísticas balouçam como guirlandas de pare- de em parede, em
alguns aparelhos procura-se automaticamente a abertura para acioná-Ios com uma moeda, pois é tão
inconcebível que tudo seja de graça. Logo des- cobrimos um truque: o diretor artístico dessa exposição,
Wigmann, é professor de desenho. Ele mandou seus alunos pintarem alguns dos temas dessa exposição.
Assim, o "Dia do Supersticioso" e os "Erros de Educação dos nossos Pais" transformaram- se em seqüências
de imagens vivamente coloridas, faltando apenas os textos de rea- lejo e a varinha do jogral. Sem falar de
que a expectativa de tal utilização prática dos seus trabalhos aumenta o prazer das crianças. As crianças,
nesse caso, sabem transmitir tão bem a informação porque são os leigos por excelência.

E são leigos também os visitantes dessa exposição, e devem continuar a sê-lo. Com isso, acabamos de
formular a diretriz da nova educação do povo em oposição à anterior, que partia da erudição e acreditava
que, com o auxílio de algumas tabelas e lâminas, esse saber erudito podia e devia ser assimilado pela massa.
A qualidade, dizia-se, converter-se-á em quantidade. Ao contrário disso, a nova formação do povo parte do
fato das visitas em massa. Transformar a quantidade em qualidade - eis a palavra de ordem, uma
transformação que é idêntica com a passagem da teoria à práxis. Os visitantes devem permanecer leigos,
como já se disse. Não devem deixar a exposição mais eruditos, mas mais sabidos. A tarefa da apresentação
genuína e atuante é libertar o conhecimento dos limites da disciplina e tomá-lo prático.

Mas o que vem a ser essa “apresentação genuína”? Com outras palavras: o que é a técnica de exposição?
Quem quiser sabê-lo, que se dirija aos mais antigos especialistas do ramo. Todos nós os conhecemos. Desde
cedo tivemos aulas com eles. Sentados na sela, aprendemos a manejar mamíferos, peixes e aves; disparando
tiros, aprendemos a conhecer os gestos de todos os ofícios e estamentos sociais, e até aprendemos a medir
nossas forças com a "Júlia Giganta" - o monstro que le- vantava a cabeça de dentro de um cilindro de
madeira, toda vez que se acertava nela um golpe de martelo. Os viandantes vivem da exposição, e a sua
profissão é bastante antiga para tê-losmunidos de um tesouro de experiências. E todas elas são agrupadas em
tomo desta sabedoria: impedir, a todo preço e a todos, a postura contemplativa, a observação passiva e
indiferente. Por isso, não há espetáculo sem carrosséis, barracas de tiro, medidores de músculos, termômetros
de amor, carto- mantes e loterias. Quem veio para olhar boquiaberto, que volte como quem parti· cipou - este
é o imperativo categórico da quermesse. O caráter desta exposição resulta nem tanto de seus dioramas, suas
faixas, suas imagens cambiantes que, aliás, são construídos com os recursos mais primitivos, mas desse
acionamento do visi- tante. - Aí está a palavra-chave: "orientação vocacional". Uma cabeça diante de um
disco, onde são montados emblemas e situações das profissões mais diversas. Uma batida no disco e agora
parece - mas é uma ilusão de óptica - que a cabeça se põe em movimento, mostrando um balançar resignado,
que expressa a sua per· plexidade. Ao lado, uma série de aparelhos, onde quem quiser pode testar a sua
habilidade, seu senso de cores, sua capacidade de exercício, seu talento combinatório. O oráculo de Delfos
"Conheça-te a ti mesmo" é o atrativo de todas as balanças automáticas. A quermesse o conhece na versão do
gabinete-do-diabo, compartimento revestido de preto, onde o diabo, debaixo de seu chapéu de plumas,
parece fazer caretas. Quando você se abaixa para olhar a cara do diabo, você se vê a si mesmo num espelho.
Wigmann foi inteligente: pensou nisso também. Há uma sala anti-superstição: "Quem acredita nisso?" está
escrito num quadro móvel, onde estão expostos prospectos. Você o levanta e se vê a si mesmo, no espelho
que aparece atrás.

O que significa isso tudo? Significa que a apresentação genuína afasta a contemplação. Para integrar o
espectador dentro da exposição, como aconteceu aqui, o elemento óptico deve ser usado com parcimônia.
Seria entontecedora toda ins- trução visual à qual faltasse o elemento de surpresa. O que se vê, nunca deve
ser o mesmo, nem simplesmente algo mais ou menos do que diria uma inscrição. Deve conter algo de novo,
um truque de evidência que, em princípio, não pode ser obtido com palavras. Represente-se, por exemplo, o
consumo trimestral de um alcoólatra. A idéia mais comum seria acumular um conjunto considerável de
garrafas vazias de vinho ou aguardente. Ao invés disso, Joel coloca, ao lado do quadro com a inscrição, um
papelzinho todo gasto e dobrado: a conta trimestral da venda. E enquanto as garrafas de vinho iluminam o
texto, até certo ponto, sem, porém, sofrer muita modificação através dessa combinação, o documento, a
conta, surge de repente numa nova luz. Provoca atenção, porque é bem montado.

As barracas naturalmente não conhecem a montagem. Aqui irrompe o estilo de exposição visual da nossa
época, a vontade de mostrar o autêntico. A montagem não é um princípio estilítico artesanal. Nasceu, quando
no fim da guerra a van- guarda compreendeu que a realidade não se deixava mais subjugar. Resta·nos apenas
- para ganhar tempo e manter a cabeça fria - deixar que ela própria se expresse desordenada, anárquica, se
necessário. A vanguarda era, então, represen- tada pelos dadaístas. Montavam retalhos, passagens de bonde,
cacos de vidro, botões, fósforos e, com isso, diziam: vocês não mais dão conta da realidade. Nem desse lixo,
nem dos transportes de tropas, da gripe ou das notas do Banco do Reich. Quando a Nova Objetividade
timidamente ousou contestá-Ios e restabelecer a ordem, essa tendência deveria ter se apoiado sobretudo no
cinema, que fornecia uma material documentário extraordinariamente volumoso. Mas, a indústria de
diversões, que desenvolve as possibilidades técnicas somente para imobilizá-Ias em seguida, impediu isso
também. De qualquer modo: desenvolveu a visão do autên- tico. Quantas coisas não são autêmicas, sem que
nós, que estamos de passagem, nos demos conta? Quantas coisas não se tomam um corpus delicti para quem
conduz o processo contra a exploração. a miséria e a estupidez, sem se deixar intimidar? Para os
organizadores dessa exposição não houve nada mais importante do que essa to- mada de consciência e o
pequeno choque que daí resulta. Na "Sala Anti·supersti- ção" instalou-se uma cartomante, na qual quase tudo
é autêntico, desde o dinheiro e o baralho na mesa até o coque cinza-amarelado; quem está perto não se sente
ins- truído, mas simplesmente apanhado em flagrante. Não voltará "nunca mais", mesmo que nunca tenha ido
a uma cartomante.

Armadilhas astutas, que chamam a atenção e a prendem. O que resta de textos são palavras de ordem. "A
não-observação do dia de trabalho de oito horas tira ao trabalhador a possibilidade de participar das
conquistas da cultura. ~ a morte de toda higiene mental." - Ou: debaixo do quadro que mostra o interior de
uma repartição pública para encaminhamento de desempregados, um cartaz, coberto de cima para baixo, em
dez colunas, com a palavra impressa "esperar". Parece-se com as informações de um jomal sobre a Bolsa de
Valores. Em diagonal, em cima, com letras garrafais: "O boletim da Bolsa de Valores do pobre." Se faltar
algo, talvez seja a colocação, na entrada, de uma sentença, que aqui foi tão bem demonstrada: O tédio
entontece, a diversão esclarece.

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