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Belo Horizonte
Editora UFMG
2006
Inclui referências.
ISBN: 85-7041-536-2
Voto Obrigatório
Cícero Araújo
isso que o instituto da obrigatoriedade pare- contudo, esses grupos acabam reforçando
ce desprezar. E, ao induzir o voto leviano e sua marginalização social, pelas razões ex-
alienado, a regra provoca a ampliação de postas acima. O voto obrigatório seria então
práticas clientelísticas na relação candida- uma política de Estado que, mesmo não eli-
to-eleitor, cada lado vendo nela uma oportu- minando a desigualdade política derivada da
nidade de troca de favores. estrutura social, pelo menos a atenuaria. E
II) As ponderações de princípio, no en- isso já compensaria as desvantagens da
tanto, não esclarecem toda a questão. Mes- própria compulsoriedade. De fato, a série
mo que argumentos dessa ordem venham histórica de eleições nos Estados Unidos,
a nos fazer pender na direção do voto facul- onde o voto é facultativo, revela uma menor
tativo, seria imprudente desconsiderar os proporção de comparecimento eleitoral da
efeitos, reais ou possíveis, de sua institui- população negra em relação à branca. No
ção numa sociedade com tais ou quais Brasil, uma pesquisa de opinião recente in-
características. Se desprezamos esse as- dica que as faixas de menor escolaridade
pecto, uma medida, em tese, bem-inten- compareceriam menos do que as de maior
cionada pode revelar-se perversa na prática. escolaridade, se lhes fosse dada a opção
Ou, ainda que correta conceitualmente, a de- de não votar. O caso dos Estados Unidos,
pender da estrutura social sobre a qual se especialmente, é um alerta para o perigo de
ergue, acabe produzindo efeitos danosos que que a defesa do voto facultativo se torne um
superem muito os benéficos. É esse o pon- álibi para justificar o descompromisso deli-
to em que se fixam certos defensores do berado para com as camadas mais preteri-
voto obrigatório. das da sociedade.
Tomemos, por exemplo, os efeitos da Quanto aos efeitos da abstenção sobre
participação/abstenção eleitoral sobre a as decisões de governo, em especial as
representação política. Há quase um con- políticas públicas, os dados empíricos não
senso entre os cientistas políticos de que a são claros. Mesmo com informações incon-
maior ou menor extensão e variedade dessa clusivas, há quem pondere, tendo em con-
participação tem seus reflexos no compor- ta, por exemplo, a história do desempenho
tamento dos representantes. Quanto mais de Estados como o brasileiro para diminuir
um determinado grupo social é alijado do as desigualdades sociais — mesmo em
voto, menor a chance de encontrar agências tempos de democracia, mas com voto obri-
políticas dispostas a fazer ecoar suas quei- gatório —, que o impacto de um compareci-
xas ou defender seus interesses. Já o sim- mento eleitoral amplo e variado é nulo ou
ples fato de um representante saber que irrelevante. Os porta-vozes dessa opinião até
essa participação existe, altera seu modo sugerem que, no fundo, os grupos margina-
de proceder na arena pública. De modo que lizados têm um motivo bem razoável para
uma participação eleitoral diferenciada de se abster ou desejar se abster: a percep-
grupos sociais causa efeitos distintos na atu- ção, geralmente confirmada, de que seu voto
ação dos governantes. Quem participa me- faz pouca diferença. Não votar seria, portan-
nos recebe menos atenção. to, um sinal de protesto.
É isso que parece ocorrer quando o voto Mas se é um protesto contra as práticas
torna-se facultativo. Grupos marginalizados da representação política, por que não votar
da sociedade — marcados desfavoravel- em branco ou nulo, em vez de se abster?
mente pela escolaridade, pela distribuição Essa pergunta remete à relação entre o com-
de renda ou pelo preconceito racial — ten- parecimento eleitoral e o grau de compromisso
dem a participar menos das eleições. Seu dos cidadãos com a sustentação de um re-
próprio alijamento social os torna mais des- gime democrático. Será que esse compro-
crentes das instituições políticas, logo, me- misso deve depender exclusivamente do
nos estimulados a votar. Não votando, desempenho satisfatório dos representantes?
do regime democrático em si, diferença que KAHN, T. 1992. O voto obrigatório. Dissertação (Mestrado) – FFLCH-USP,
São Paulo. Mimeografado.
poderia ser muito bem marcada pelo com-
FIGUEIREDO, M. 1990. O voto obrigatório (comportamento do eleitor bra-
parecimento com voto nulo ou em branco. sileiro). Textos Idesp, n. 36. São Paulo: Idesp.
Porém, boa parte do eleitorado potencial não
LIPSET, M. (Org.). 1995. The Encyclopedia of Democracy. Londres:
a percebe, o que acaba facilitando o cami- Routledge.
nho da abstenção. PORTO, W. C. 2000. Dicionário do voto. Brasília: Editora da UnB.
O voto obrigatório, por sua vez, não pare- STUART MILL, J. 1980. Considerações sobre o governo representativo.
ce ser capaz de corrigir essa deficiência, na Brasília: Editora da UnB.