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Revista

 do  Laboratório  de  


Estudos  da  Violência  da   Ano  2011  –  Edição  8  –  Dezembro/2011  –  ISSN  1983-­‐2192  
UNESP/Marília    

A NECESSÁRIA HARMONIZAÇÃO ENTRE


ABORDAGEM POLICIAL E DIREITOS HUMANOS

NASSARO, Adilson Luís Franco1

Resumo: O artigo analisa os aspectos legais e doutrinários que dirigem o


procedimento de abordagem policial em face das garantias e direitos individuais de
dimensão constitucional. Apresenta a tese de conciliação dirigida a um plano ideal
de equilíbrio das ações policiais restritivas e a incorporação de valores expressos
como direitos humanos nas intervenções consideradas imprescindíveis para a
segurança pública. Descreve a doutrina institucional dirigida a esse fim a partir da
década de 1990, tendo como referência a Polícia Militar do Estado de São Paulo,
diante das mudanças sócio-culturais e políticas que o país testemunhou em especial
a partir de 1985, consolidando a fórmula de mínima restrição de direitos individuais.
Palavras-Chave: Abordagem policial, direitos humanos, busca pessoal, polícia,
direitos individuais.

Abordagem  policial  e  sua  legitimidade  


 
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 foi fortemente influenciada
pelos instrumentos internacionais de proteção aos direitos individuais,
particularmente no seu artigo 5o, em que se verificam garantias da inviolabilidade
pessoal, impondo-se o devido respeito à intimidade, à vida privada e à integridade
física e moral do indivíduo (incisos III, X e XLIX)2.
As polícias militares que por meio de seus agentes desenvolvem
atividades ostensivas e ininterruptas voltadas à preservação da ordem pública - com

1
Mestrando em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Assis/SP, bacharel em Direito
com especialização em processo penal, mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo
Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES) da Polícia Militar de São Paulo, major da Polícia Militar e
subcomandante do 32º BPM/I (batalhão da região de Assis/SP). O artigo é uma síntese de pesquisa
realizada pelo autor em curso de especialização.
2
A Constituição da República Federativa do Brasil (CF) foi promulgada em 05.10.1988 e seu artigo 5º,
que aborda os direitos individuais, possui hoje 78 incisos.

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fundamento no parágrafo 5º, do artigo 144, também da Constituição Federal3 - têm


procurado disseminar a imagem de uma “polícia de defesa do cidadão”, superando
já a partir da década de 1990, o estigma de inflexível “polícia da segurança interna
em defesa do Estado”. Na fase de consolidação de um Estado Democrático de
Direito, esses órgãos continuaram a ser empregados na defesa das instituições
públicas e da aplicação da lei, mas buscaram a mudança do enfoque de atuação,
atualizando-se junto às mudanças sócio-culturais e políticas que o país testemunhou
especialmente nos últimos quinze anos do século XX.
Na verdade, os cidadãos do mundo conheceram uma “era de direitos”
descrita por BOBBIO (1992, p. 49) e o envolvimento de representações de todos os
povos pela primeira vez na história, em 1948, significou um marco logo após a
Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A implantação da chamada filosofia de “polícia comunitária” como
um necessário ajustamento da força policial na década de 1990 estabeleceu a ideia
de uma nova polícia pela doutrina de aproximação assumida e o preconizado
trabalho junto com a comunidade beneficiária dos serviços públicos4.
Todavia, no exercício de missões específicas em razão da
responsabilidade constitucional da instituição, o policial pratica atos que restringem
liberdades individuais, na esfera administrativa de ação do poder público e tal
consequência do pacto, ou contrato social, é uma realidade no trabalho dos agentes
de qualquer força policial devidamente organizada no mundo. Isso ocorre
especialmente no caso da abordagem policial com busca pessoal, mediante o
exercício do poder de polícia com requisitos e limitações que lhe são próprias5.
Compreende-se que a abordagem policial com a busca pessoal (e a
veicular como seu desdobramento) constitui ato administrativo enquanto ato

3
No caso da atuação policial-militar, o parágrafo 5º, do artigo 144, da CF, estabelece que: “às polícias
militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (...)”
4
TROJANOWICZ e BUCQUEROUX (1994, p. 04) apresentaram uma definição objetiva de Polícia
Comunitária: “É uma filosofia e uma estratégia organizacional que proporciona uma nova parceria entre a
população e a polícia. Baseia-se na premissa de que tanto a polícia quanto a comunidade devem trabalhar
juntas para identificar, priorizar e resolver problemas contemporâneos tais como crime, droga, medo do
crime, desordens físicas e morais, e em geral a decadência do bairro, com o objetivo de melhorar a
qualidade geral da vida na área”. No Estado de São Paulo, em 05.10.1993 a Nota de Instrução CPM-
005/3/93 regulou o serviço de Radiopatrulha Comunitária (RPC) na área da região metropolitana (em
torno da Capital); em 23.02.1995 a Diretriz 3EM/PM-002/02/95 definiu no âmbito da Polícia Militar de
São Paulo os procedimentos para implantação do Programa Integrado de Segurança Comunitária (PISC);
ainda em 1995, o Plano Diretor da Polícia Militar para o período 1996 a 1999 estabeleceu como meta a
disseminação da doutrina de polícia comunitária; e em 10.12.1997 a Nota de Instrução PM3-004/02/97
regulou a implantação da polícia comunitária como filosofia e estratégia organizacional.
5 Nesse raciocínio, sintetizou LAZZARINI (1999, p. 205): “O ato de polícia administrativa ou ato de

polícia preventiva, como exteriorização do Poder de Polícia da Administração Pública, tem a mesma
infra-estrutura de qualquer outro ato administrativo. Nele se encerra a manifestação do ‘Poder de Polícia’
e, assim, para ser válido, o ato de polícia deve partir de órgão competente, tendo em vista a realização do
bem comum, observando a forma que lhe for peculiar e que poderá ser a escrita, verbal ou simbólica, tudo
diante de uma situação de fato e de direito que diga respeito à atividade policiada, devendo, finalmente,
ser lícito o seu objeto. Em outras palavras, como qualquer outro ato administrativo, o de polícia deve
conter os requisitos da competência, finalidade, forma, motivo e objeto”.

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A NECESSÁRIA HARMONIZAÇÃO ENTRE ABORDAGEM POLICIAL E DIREITOS HUMANOS

próprio de polícia. No campo da polícia preventiva é fundamentada na competência


constitucional para iniciativas que garantam a preservação da ordem pública. Pode o
policial com competência legal - e deve por questão lógica - realizá-la ainda em face
do autor de um delito, ou durante a prisão em flagrante, no contexto da repressão
imediata, nesse caso caracterizada como busca pessoal processual.
O procedimento é também fundamentado no artigo 244 do Código
de Processo Penal (CPP), quando sem mandado judicial, com a ação de iniciativa
policial baseada em “fundada suspeita”, tratando-se de busca mediante seleção de
quem será revistado. Nota-se que, nesse caso, a fundamentação é subsidiária,
mantendo-se o procedimento na área administrativa de atuação policial - de
prevenção - desde que não constatada a prática de infração penal por parte do
revistado (nessa última hipótese, o procedimento passará à condição de busca
pessoal processual)6.
A noção de limitação de direito, interesse ou liberdade é integrante do
conceito de “poder de polícia”, apresentado e sua forma genérica no artigo 78 do
Código Tributário Nacional (CTN) ainda como referência legal7. E quanto ao modo
de exercício, de acordo com MEIRELLES (1989, p. 114), o ato de polícia possui
três atributos básicos que o identificam: discricionariedade, auto-executoriedade e
coercibilidade; desse modo, caracteriza-se pela livre escolha da oportunidade e da
conveniência, além dos meios necessários à sua consecução, pela execução direta e
imediata da decisão, sem necessidade de participação do Poder Judiciário, bem
como, pela imposição de medidas de modo coativo.
Em razão da versatilidade do emprego da abordagem policial, ela é
considerada atualmente o principal procedimento operacional das polícias militares,
trazendo resultados expressivos e contabilizáveis como prisões, apreensões de
drogas e armas, recuperação de veículos e libertação de reféns de sequestros
relâmpagos. O número de abordagens policiais no ano de 2009 alcançou 11 milhões
em todo o Estado de São Paulo e, com base nos indicadores operacionais, a cada
1.000 buscas pessoais foi possível: prender 10 criminosos; recuperar 06 veículos;

6
Artigo 244 do CPP: “A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver
fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam
corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar” (Decreto-Lei Nº
3.689, de 03.10.1941). Note-se que a partir da constatação de infração penal, por exemplo, a localização
de uma arma portada irregularmente, a busca passa a ter caráter processual, como aquela realizada em
cumprimento à ordem judicial (domiciliar ou pessoal).
7
Artigo 78 do CTN: “Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou
disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de
interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e
do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder
Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos” (Lei
Federal nº 5. 172, de 25.10.1966, com redação do artigo 78 dada pelo Ato Complementar nº 31, de
28.12.1966).

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apreender 02 armas de fogo; apreender 04 Kg de drogas8.


Quanto à prisão de criminosos, foi possível demonstrar em trabalhos
científicos que a maior parte das detenções realizadas por policiais militares em
determinada área e período deu-se como consequência direta de abordagens bem
sucedidas (NETO, 2009, p. 100). A intervenção de caráter discricionário e
caracterizada pela escolha da melhor oportunidade e pela análise da conveniência
em cada caso concreto revela a iniciativa policial, em postura pró-ativa normalmente
incentivada; mas, ao mesmo tempo, traz preocupação ao gestor de policiamento e à
comunidade em geral quanto aos eventuais excessos praticados, que devem ser
coibidos. Nesse propósito de estudo, a preconizada harmonização entre abordagem
policial e os princípios de direitos humanos aplicados aos procedimentos
operacionais significa uma tarefa possível.

 Transparência  diante  dos  focos  de  tensão  

De fato, grande parte das reclamações recebidas no sistema de


atendimento ao usuário dos serviços da Polícia Militar de São Paulo, o “Fale
Conosco”, se refere a condutas de policiais militares em abordagens policiais.
Todavia, constatou-se em entrevista com o oficial responsável pela administração
desse serviço, em 2010, que “o cidadão normalmente não reclama de ter sido
submetido à abordagem policial, mas da forma como foi tratado”.
Superado eventual questionamento sobre aspectos de legalidade e de
legitimidade do procedimento, há que existir um empenho conjunto voltado à
sensibilização dos cidadãos quanto ao aspecto de imprescindibilidade dessa
intervenção, porém associado a um rigoroso trabalho interno (focado nos agentes
policiais) para aperfeiçoar o relacionamento interpessoal no momento difícil
caracterizado como “hora da verdade”, ou “interface crítica”, que significa o grande
teste da qualidade do serviço policial desenvolvido em área precipuamente
preventiva de ação (MORAES, 2001, p. 162). Reconhecendo a necessidade dessas
medidas, a Polícia Militar de São Paulo passou a desenvolver em 2010, em parceria
com o Instituto “Sou da Paz”, o programa “Abordagem Legal - Polícia e
Comunidade Juntos pela Segurança”, promovendo ações de conscientização e
sensibilização após elaboração de diagnóstico e plano de ação, com divulgação na
Internet9.
Nota-se que a vinculação ao chamado Procedimento Operacional
Padrão (POP) de abordagem policial trouxe avanços no contexto do Programa de

8
A informação foi amplamente divulgada em folheto produzido pela 5ª Seção do Estado-Maior da Polícia
Militar de São Paulo, sob o título: “Obrigado por colaborar!” para campanha realizada sobre abordagem
policial, objetivando a conscientização da comunidade sobre a importância do procedimento policial.
9
Disponível em: http://abordagempm.blogspot.com/. Acesso em 21 jul. 2011.

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A NECESSÁRIA HARMONIZAÇÃO ENTRE ABORDAGEM POLICIAL E DIREITOS HUMANOS

Qualidade da Polícia Militar paulista iniciado também na década de 199010. A


adoção de procedimentos padronizados para as atividades operacionais representou
uma das características da Gestão da Qualidade, de modo a garantir o controle dos
denominados processos de produção e, também, de forma a estruturar um sistema
de supervisão encarregado de divulgar e ensinar os padrões aos agentes
operacionais, assegurando o seu cumprimento. Ainda, a partir do ano 2000 os
Planos Plurianuais da Polícia Militar passaram a contemplar a padronização de
procedimentos como estratégia institucional. Como resultado, a sequência de ações
previsíveis que caracterizam um procedimento, com rigor técnico, também trouxe
maior segurança ao agente policial.
Todavia, o POP não se caracterizou como instrumento suficiente para
propor fórmula de comportamento nas inúmeras variáveis da abordagem policial,
notadamente quando existe alguma resistência por parte do sujeito passivo da busca:
esse é o fator humano. E nem mesmo seria possível prever todos os
desdobramentos de uma intervenção policial. Portanto, à exigência de
conhecimentos técnico-policiais, deve somar-se a consciência da fundamentação
legal do procedimento que impõe natural restrição de direitos individuais - no
universo dos direitos humanos - em prol do bem coletivo; e a esse conhecimento
teórico e doutrinário também deve se somar a sensibilidade advinda da consciência
sobre a relevância dos direitos individuais e sua conquista histórica, firmando o
papel exercido pela instituição policial como “protetora e promotora dos direitos
humanos”. Em tal fase de aprimoramento profissional não poderá haver percepção
de antagonismos entre valores de dimensão constitucional: a segurança coletiva e a
preservação, no máximo nível possível, dos direitos individuais.
Apesar dos avanços relatados, constatam-se indesejadas incidências de
não-conformidades que indicam prejuízos desnecessários aos sujeitos passivos das
abordagens policiais. Nessa linha, surgem denúncias e registros de imagens
divulgadas de abusos praticados por policiais, facilitados pela popularização dos
dispositivos portáteis e digitais de filmagem, inclusive em aparelhos celulares, o que
revela a amplitude de uma questão que não é nova no meio policial, mas urgente em
face da relação direta com o importante procedimento da abordagem com busca
pessoal.
Lidar com esses focos de tensão de forma transparente e buscar a
contínua especialização do trabalho deve ser uma preocupação constante do gestor
responsável em cada nível de administração policial. Para tanto, a confiança
conquistada diante de um policiamento preventivo eficiente revela-se fundamental
em função do consequente apoio da comunidade para prosseguimento das

10 A abordagem policial relaciona-se com os Processos: 1.01.00 (abordagem de pessoas a pé); 1.02.00
(abordagem de veículos); 1.05.00 (vistoria de veículo); e 5.03.00 (uso de algemas). O Guia de
Procedimentos Operacionais Padrão da Polícia Militar que compõe o Sistema de Supervisão e
Padronização (SISUPA) foi registrado na Biblioteca Nacional sob nº 500.583, como produção intelectual
em nome da Polícia Militar de São Paulo.

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intervenções policiais - a cada dia aperfeiçoadas - legitimadas acima de tudo pelo


propósito do bem comum.

                                   Justificativa  da  tese  da  harmonização  

Mesmo considerando que as garantias individuais representam


também limitação ao poder do Estado, que é fundamento histórico das
Constituições, pode-se concluir que não são elas (as garantias individuais) absolutas
quando se trata da realização da busca pessoal - núcleo da abordagem policial - e de
outros procedimentos imprescindíveis para a ordem pública e o bem-estar social,
previstos em lei. Deve ocorrer, naturalmente, que alguns direitos individuais cedam
espaço ao interesse maior da sociedade, no limite do que seja necessário e razoável à
realização do bem comum, que é a finalidade do Estado.
Trata-se, na verdade, de equilibrar e garantir direitos individuais de
mesmo nível e dignidade constitucional, no caso, aqueles relacionados à
“inviolabilidade pessoal” e à segurança devida a todo cidadão (caput do artigo 5º, da
CF). É este o sentido do artigo XXVIII, da Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem, de 1948, quando estabelece que: “Os direitos do homem estão
limitados pelos direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas
exigências do bem-estar geral e do desenvolvimento democrático”11.
Na mesma linha de raciocínio quanto à necessária conciliação dos
direitos estabelecidos na Constituição, registra-se a preciosa conclusão de
CANOTILHO e MOREIRA (1991, p. 134), nos seguintes termos:

Os direitos fundamentais só podem ser restringidos quando tal se


torne indispensável, e no mínimo necessário, para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
No fundo, a problemática da restrição dos direitos fundamentais
supõe sempre um conflito positivo de normas constitucionais, a
saber entre um norma consagradora de certo direito fundamental
e outra norma consagradora de outro direito ou de diferente
interesse constitucional. A regra de solução do conflito é a da
máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos e da sua
mínima restrição compatível com a salvaguarda adequada do outro
direito fundamental ou outro interesse constitucional em causa.
Por conseguinte, a restrição de direitos fundamentais implica
necessariamente uma relação de conciliação com outros direitos ou
interesses constitucionais e exige necessariamente uma tarefa
de ponderação ou de concordância prática dos direitos ou
interesses em conflito. Não pode falar-se em restrição de um

11 Texto integral disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/biblioteca


virtual/interamericano/31declaracao.htm>. Acesso em: 21 jul. 2011.

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A NECESSÁRIA HARMONIZAÇÃO ENTRE ABORDAGEM POLICIAL E DIREITOS HUMANOS

determinado direito fundamental em abstracto, fora da sua relação


com um concreto direito fundamental ou interesse constitucional
diverso.

Por outro lado, a Polícia Militar de São Paulo definiu como um dos seus
Objetivos Institucionais a “preocupação constante com a imagem institucional para
que aumente cada vez mais a credibilidade da Instituição e consequente impacto na
sensação de segurança da população”, nos dizeres do seu Planejamento Estratégico
2008-2011 (PMESP, 2007, p.17).
Ocorrências com desfechos negativos e relacionadas a abordagens
policiais geram impacto na opinião pública e são vigorosamente divulgadas pelos
meios de comunicação de massa cada vez mais ágeis em função da mesma
tecnologia que permite a divulgação instantânea de informações e imagens em
movimento. Relevante, por esse motivo, a redução de não-conformidades para o
aprimoramento da atividade policial na pretensão de manter o apoio da sociedade -
no propósito da Polícia Comunitária - partindo-se da harmonização preconizada,
em conjunto com medidas corretivas. Essa meta encontra eco ainda no
Planejamento Estratégico quando se definiu que a instituição policial paulista
buscará ser reconhecida pelos seus valores: “legalidade, competência, atualidade,
flexibilidade e humanitarismo” (PMESP, 2007, p. 18).
Portanto, o maior desafio de uma Polícia voltada à defesa do cidadão e
por isso orientada pelo fundamental “princípio da dignidade da pessoa humana” é o
equilíbrio do seu principal instrumento de atuação preventiva com a defesa dos
direitos humanos.

Amplitude  de  compromisso  institucional    

No Estado de São Paulo, o preconizado equilíbrio foi confirmado


pelos termos do parágrafo único, do artigo 1º, da Lei Estadual 13.123, de 08 de
julho de 2008, que trata do Plano Plurianual do governo para o quadriênio 2008-
2011, ao estipular que “a garantia da segurança pública e a promoção dos direitos
humanos” constitui uma das três diretrizes fundamentais de toda a Administração
Pública Estadual e dos programas do mesmo plano. Nesse sentido, a segurança
pública não exclui a promoção dos direitos humanos, mas complementa-o. Infere-
se, conclusivamente, que as duas condições da citada diretriz estão associadas, pois
uma não pode existir por completo sem a outra.
A legislação infraconstitucional e os regulamentos do trabalho policial
alinharam-se necessariamente às disposições da Constituição Federal (CF). Note-se
que o princípio da “dignidade da pessoa humana” foi alçado em 1988 à condição de

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fundamento da própria existência do Estado brasileiro - como República Federativa


- nos termos do inciso III, do artigo 1º da CF.
Como desdobramento dessa percepção, o tema da promoção dos
direitos humanos em face da segurança pública foi objeto de ampla discussão na 1ª
Conferência Nacional de Segurança Pública, cuja etapa nacional ocorreu de 27 a 30
de agosto de 2009 em Brasília/DF, tendo por um dos seus objetivos o
fortalecimento dos eixos de valorização profissional e de garantia de direitos
humanos como pontos estratégicos para a política nacional de segurança pública,
com foco na prevenção. Conforme divulgado no texto-base que norteou o
encontro, assim se descreveu:
[...] Contudo, nos últimos anos o Brasil vem observando mudanças
importantes. Na mesma medida em que hoje são inquestionáveis
os progressos da democracia brasileira, é preciso creditar parte
desses avanços às conquistas no campo da segurança pública. Não
se trata apenas de uma revisão de valores ou estratégias, mas de
uma verdadeira mudança cultural, que tem como premissa
encerrar a dicotomia pouco produtiva (sobretudo, falsa) entre
repressão e prevenção (também difundida como direitos humanos
versus atuação policial) e reconhecer que a cada uma cabe vocação
e lugar distintos, porém complementares e necessárias uma a
outra.12

Nesse prisma de inexistência de oposições, ainda na análise da polícia


preventiva em São Paulo, os direitos humanos consagrados pelo arcabouço jurídico
nacional e internacional foram contextualizados no suporte doutrinário da
instituição no chamado Sistema de Gestão da Polícia Militar - GESPOL (2010, p.
12), fundamentado na tríade: Polícia Comunitária, Gestão pela Qualidade e Direitos
Humanos.
O suporte doutrinário registrado no GESPOL reafirmou que o
“pensamento institucional” da Polícia Militar comungaria de forma irrestrita com as
diretivas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, definidas como:
[...] o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as
nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da
sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem,
através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses
direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de
caráter nacional e internacional, por assegurar o seu
reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre
os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos
dos territórios sob sua jurisdição. (TRINDADE, 2000, p. 80)

Por esses fundamentos legais, regulamentares e doutrinários - e


também por uma noção ética que se pretende manter-se em desenvolvimento nos

12
Texto integral disponível em: <http://www2.mp.pr.gov.br/cpdignid/dwnld/cep_b47_tf_1.pdf >. Acesso
em: 21 jul. 2011.

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A NECESSÁRIA HARMONIZAÇÃO ENTRE ABORDAGEM POLICIAL E DIREITOS HUMANOS

cursos e nas instruções continuadas - os policiais militares não podem compactuar


com qualquer manifestação ou tentativa de discriminação às pessoas; por outro lado,
as restrições de direitos individuais devem ocorrer no nível mínimo do que é
considerado imprescindível para a materialização do bem comum. Não
gratuitamente, foi adotado o Manual dos Direitos Humanos e Direito Internacional
Humanitário para Forças Policiais e de Segurança, preconizado pela Organização
das Nações Unidas (ONU), com distribuição e treinamento voltados a todo o
efetivo policial-militar em São Paulo13. Defende-se que a mínima restrição de
direitos durante a abordagem realizada com critérios técnicos, na medida do
possível padronizados e com tratamento igualitário, viabiliza os efeitos esperados e
inibe manifestações contrárias à intervenção policial.

             Conclusões  
Deve-se considerar possível o ideal de uma harmonização entre
abordagem policial e a filosofia de direitos humanos permeando todos os
programas de policiamento, diante de um compromisso assumido de defesa da vida,
da integridade física e da dignidade da pessoa humana. Parte-se da noção de que,
paradoxalmente, quando se realiza uma abordagem policial para preservação da
ordem pública e, em última instância para garantia dos próprios direitos humanos
(somente possível com segurança pública), impõe-se uma natural e inerente
restrição de direitos individuais, legitimada no exercício do poder de polícia. Essa
ação será considerada equilibrada pela mínima imposição de restrição de direitos
individuais, observados os critérios da razoabilidade e da necessidade do ato, diante
do caso concreto.
A realização do procedimento de modo uniforme e igualitário, por
parte dos policiais militares, com técnica e sem discriminação não impede o alcance
dos resultados operacionais desejados; em outras palavras, com o máximo respeito -
possível - aos direitos individuais do revistado, o objetivo da intervenção policial
será alcançado.
A formação e os mecanismos de instrução continuada, associados à
depuração, devem ser capazes de capacitar o policial como um agente consciente do
nível de responsabilidade nele depositada na condição de “protetor dos direitos
humanos”, não obstante o aparente conflito entre restrição e proteção de direitos
incidente na ação policial. No plano ideal, o agente se apresentará seguro da
fundamentação dos seus atos em prol da coletividade e, ainda, sensível quanto à
importância da máxima preservação dos direitos individuais em compatibilização
com a intervenção policial restritiva.
O momento é propício para reflexão sobre a chamada “humanização

13
Trata-se da obra “Para servir e proteger. Direitos humanos e direito internacional humanitário para
forças policiais e de segurança: manual para instrutores” (ROVER, 2008).

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no atendimento”, preconizada com ênfase pelos órgãos de saúde de um modo geral,


sem perda de sua efetividade. O conceito deve ser adotado em todas as áreas de
serviço público, especialmente aquelas de interface constante com o cidadão.
Para o propósito de qualidade e excelência na ação policial, como
consequência do princípio constitucional do dever de eficiência dos órgãos públicos
(artigo 37 da CF), são exigidas iniciativas de cada gestor policial, para incorporação
de conceitos e ensinamentos complementares ao procedimento ora padronizado,
aliando-se conhecimento, treinamento e sensibilidade.

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