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A saudade roe, roe, roe...

Não "roe", não, caro leitor; rói (com "i" e com acento no "o"). Rói e dói! Não foi por acaso que Chico
Buarque escreveu "Pedaço de Mim", um dos mais belos textos da nossa poesia moderna: "...a saudade dói
como um barco / Que aos poucos descreve um arco / E evita atracar no cais (...) ...a saudade é o revés de
um parto / A saudade é arrumar o quarto / do filho que já morreu".

Bem, voltemos ao chão -ao rés-do-chão. De onde tirei o bendito "roe"? De uma mensagem que recebi de
um site especializado em cartões virtuais. No assunto da mensagem, lia-se isto: "Pasquale, a saudade roe,
roe, roe...".

Como sempre faço, vou tentar explicar a norma e o porquê do desvio. O padrão é este: os (poucos) verbos
terminados em "-oer" fazem a terceira pessoa do singular do presente do indicativo em "-ói". De "moer"
se obtém "mói", de "doer" se faz "dói", de "roer" se chega a "rói", e assim por diante.

Um desses poucos é "soer". Pode-se dizer, por exemplo, que a inundação no túnel Rebouças talvez seja
fruto da falta de planejamento, o que sói no Brasil em períodos pré-eleitorais (e pós também). "Soer"
significa "ser freqüente, comum", portanto "o que sói no Brasil" equivale a "o que é comum/freqüente no
Brasil".

Pois bem, caro leitor, não custa repetir: o rato rói (e não "roe"), o açougueiro mói (e não "moe"), a
saudade dói (e não "doe") e a incompetência sói (e não "soe"). Convém dizer que "mói", "dói", "rói" e
"sói" recebem acento agudo porque se acentua a base tônica dos ditongos "ei", "eu" e "oi", quando abertos
("anéis", "idéia", "réu", "jóia", "apóiam" etc.).

E por que ocorre o desvio na grafia de "rói", "dói", "mói" etc., ou seja, por que muitas pessoas escrevem
"roe", "doe", "moe" (como se lê na caixa de um processador de alimentos de uma conhecida fábrica de
eletrodomésticos)?

Não é difícil chegar ao motivo desse erro de grafia. Quem escreve "roe" se deixa levar pela grafia das
flexões da maior parte dos verbos que terminam em "-er", como "correr", "sofrer", "perder" etc. Na
terceira do singular do presente do indicativo desses verbos (e de 99,99% dos outros terminados em "-er"
sem vogal antes do "e") encontra-se a terminação "-e": "corre", "sofre", "perde", "estabelece", "vende",
"bebe" etc.

A compreensão da razão do desvio não o torna aceitável, sobretudo quando se trata de comunicação
pública, exarada por gente que teve ou tem acesso à escola, aos livros, dicionários etc.

Se não me engano, era Mário de Andrade que dizia que não se importaria nem um pouco se as pessoas
passassem a escrever "gente" com "j" ("jente"), desde que TODOS escrevessem com "j".

O caso que se verifica com "roe" é análogo ao que ocorre com "possue", "distribue" e "contribue", que, é
bom dizer logo, ferem o padrão ortográfico vigente. Temos aí flexões de verbos terminados em "-uir"
("possuir", "distribuir" e "contribuir", respectivamente). A terceira pessoa do singular do presente do
indicativo desses verbos termina em "-ui", mas muitas pessoas grafam "-ue".

O motivo do desvio? O mesmo, ou seja, a influência da grafia da terminação das flexões da maior parte
dos verbos terminados em "-ir". Se não há vogal antes do "i" (o que ocorre com "permitir", "decidir" etc.),
a flexão termina em "e" ("permite", "decide"). Cuidado: o "u" de "distinguir" e o de "extinguir" não são
lidos, portanto grafa-se "distingue" e "extingue", com "e" mesmo. É isso.

Coluna publicada no dia 02 de dezembro de 2004, no jornal "Folha de S. Paulo".

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