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Benoist, Luc. Signes, Symboles et Mythes.

Paris: Presses Universitaires de France,


1975. Livre tradução de Ana Paula Rodrigues Cavalcanti.

Capítulo Primeiro

Os signos e a teoria do gesto

O pensamento humano é conforme à teoria dos grupos


A. Eddington.

I – Da sensação ao conhecimento

Para garantir sua segurança ou simplesmente para sobreviver, o homem primitivo,


como todo primata, era obrigado a dar a todo instante a maior atenção aos sinais que
lhes eram transmitidos pela simples presença dos seres e das coisas que estavam ao
seu redor. É de longe uma necessidade sempre bem atual e que foi ilusoriamente
amenizada pela civilização. Hoje, como ontem, somos constrangidos a exercer uma
pesquisa contínua, e na maior parte do tempo subconsciente, sobre nosso ambiente
cotidiano. Por exemplo, sobre a comida, o clima, a circulação, os encontros casuais
múltiplos onde nossa experiência fica muito longe de conseguir avaliar todas as
eventualidades. Desde a origem da vida o homem depende, portanto, da sua função
de conhecimento - se é que podemos usar este termo ambicioso para uma função tão
básica.

Hoje como ontem o recebimento das mensagens que nos vêm do ambiente é diferente
segundo o órgão receptor. Os três sentidos mais concretos – tato, paladar, olfato –
colam, por assim dizer, no objeto do qual estão geralmente muito próximos. Através
deles parece que nosso conhecimento coincide com nossa sensação. Desta forma nos
é frequentemente difícil atribuir-lhes uma especificidade precisa. O tato é cego,
polivalente e pouco seletivo. Mistura diversas noções relativas aos objetos tocados –
sua forma, peso, calor, resistência, textura.

Ao contrário, se ensaiamos qualificar os sabores que o gosto nos revela, a originalidade


de cada um é muito exclusiva, distanciando-se de toda comparação que poderia nos
permitir classificá-los em normas próximas ou ideias simplesmente vizinhas, e nos
resignamos a reparti-los grosseiramente em quatro grupos: amargo, ácido, salgado e
doce – e os chineses adicionariam o acre. Quanto aos sentidos aspirados pelo odor,
estamos longe de usar o sistema de detecção como nossos irmãos mamíferos. Os
cheiros são subjetivamente repartidos por nós em dois grupos elementares: os
agradáveis e os repulsivos. Se nos referimos às capacidades de nossos amigos cães e
gatos, os milhares de odores do mundo são tão individualizados por eles como nós o
fazemos com os rostos de nossos amigos.
Dois outros sentidos mais intelectuais, a audição e a visão, nos ensinam as fontes de
informação em geral fora do nosso alcance. Do perfume de uma flor ao barulho de um
sino, passando ao brilho de uma estrela, a fonte de informação se distanciou mais e
mais, ao ponto que para a estrela sua claridade retrospectiva data talvez milhões de
anos-luz. Sem dúvida o poder da vista compensa sua característica conjectural. Mas se
o olho consegue perceber o brilho de uma vela a uma distância de 17 quilômetros, não
nos permite ter certeza de que se trata realmente de uma vela.

No que concerne à audição, a zona de ruídos audíveis pelo ouvido limita-se a dez ou
onze oitavas e é necessário ser um músico treinado para identificar, na quarta do tom,
a nota colocada. Esta capacidade não poderá, portanto, ser demonstrada a não ser por
um outro músico dotado.

Esta imprecisão subjetiva de nossos sentidos deriva do fato de que eles provêm todos
da pele e do toque - que Epicuro considerava já como o sentido fundamental. Nossos
outros sentidos estão desligados devido a uma especialização do ectoderma em nossa
fase embrionária, no ventre de nossas mães, guardando de sua modesta origem muito
de sua superficialidade, a tal ponto que as mensagens das células sensoriais que
acabamos de enumerar devem atravessar, para serem assimiladas, múltiplos centros
nervosos, hipófise, hipotálamo, corpo estriado e córtex, que têm como função fazer a
síntese destas mensagens e comunicá-las às funções motoras, que por fim vão
transformá-las em gestos - voluntários ou não - permitindo sua interpretação racional.

Faz muito tempo que Leibniz, citando um famoso adágio escolástico, dizia que “não
existe nada no intelecto que não esteja antes nos sentidos”, mas ajuntando este
corretivo capital: “se é que isto não é o próprio intelecto”, devolvendo assim o primeiro
lugar de nossa apreensão pelos sentidos à atividade do nosso pensamento. Plínio
disse: “É por meio do espírito que enxergamos”.

A psicologia contemporânea chama “projeção” à interpretação que nosso intelecto traz


à tona diante de cada signo percebido, e sem esta tradução seria-nos impossível
compreender o signo. Cada nova mensagem é interceptada por uma grade de
referências estritamente pessoais. Parece então que, para qualificar esta operação, o
termo “superposição”, que o cinema nos tornou familiar, seria mais adequado que a
palavra “projeção”. Nos faria melhor compreender a natureza retroativa deste
palimpsesto de imagens que faz reviver debaixo de toda percepção nova uma
sensação antiga instintivamente reaparecida.

Em resumo, nada pode ser compreendido por nós que não evoque uma de nossas
lembranças. Não podemos admitir nada antes de poder encontrar um precedente
conservado em nossa memória. Os pensadores de todos os tempos incansavelmente
repetiram “Nosso conhecimento depende de uma reminiscência” – disse Platão. “ A
palavra ‘dor’ não começa a significar coisa alguma a não ser no momento em que
desperta na nossa memória uma sensação que provamos”, disse Diderot. “Não vemos
a não ser aquilo que conhecemos”, disse Goethe. “Não podemos admitir a existência
de uma coisa se não podemos dar-lhe uma significação”, disse Cassirer. Esta
coincidência de duas experiências distanciadas, Proust, após tantos outros, a
redescobriu e alargou seu campo de aplicação até confundir dois ambientes
geográficos e sentimentais, dois momentos e dois liames de sua vida, fazendo-o
relacionar a lembrança do sabor do biscoitinho madeleine, de Combray, à sensação
do contato das pedras do calçamento irregular de Saint-Marc.

Toda sensação faz assim reaparecer na superfície da consciência um esquema mental


esquecido, um signo correspondente a uma impressão já experimentada. É isto que
permite classificar este signo em um conjunto “temático” da memória e
consequentemente de reconhecê-lo e aceitá-lo. Gombrich qualificou esta operação em
uma frase: “Decifrar uma mensagem é percebê-la de uma forma simbólica”.

II – Do gesto ao signo

O homem primitivo que surpreendemos no início desta exposição atentando para os


perigos ou prazeres que poderiam estar ocultos no seu ambiente, não estava
indiferente ao espetáculo novo que ao mesmo tempo se oferecia aos seus olhos. Ele
respondia através de uma reação apropriada, uma resposta que tomava a forma de
um movimento reflexo; por exemplo, um gesto ou um grito, exprimindo uma emoção
qualquer - medo ou inveja, desgosto ou curiosidade, surpresa ou admiração. O próprio
gesto coexiste com a vida, e é anterior em milhões de anos à palavra, que nada mais é
que uma modalidade ulterior, localizada na boca. O homem primitivo se exprimia de
início por gestos, transformados em sinais por seus familiares, porque este homem das
primeiras eras não estava só no mundo. Vivia como sempre viveu, como nós vivemos
ainda hoje, ou seja, em sociedade. Depois de termos sido isolados na condição de
receptor de signos, devemos considerar esses homens das cavernas, então, como
emissores de mensagens, como objetos de um conhecimento possível, porém
altamente privilegiado, porque sua individualidade era conhecida do seu entorno; seus
gestos eram imediatamente compreendidos pelos irmãos de raça e de tribo. Eles
deveriam despertar entre esses últimos uma emoção da mesma natureza, porque só
compreendemos verdadeiramente aquilo que podemos nós mesmos repetir, pois os
signos preenchem os hiatos que se abrem entre a sensibilidade e a inteligência.

Todo gesto é precedido por uma aspiração profunda de todo o tórax, primeira fase do
ritmo respiratório. A respiração, como disse Rilke, foi o berço do ritmo. Ela é seguida,
depois de um momento de assimilação do oxigênio, por uma expiração que sob sua
forma mais elementar expressa-se por um grito. Este grito, terceiro tempo do ritmo
respiratório e primeira manifestação de vida do recém-nascido, mostra que toda ação é
um dom de si, e que todo homem deve, por assim dizer, expirar para agir. Ele utiliza
sua reserva de força para criar, seguindo uma lei simbolizada, por exemplo, no mito
hindu do sono cósmico de Brahma, onde cada expiração cria um mundo que a
inspiração seguinte, num intervalo de tempo milenar, reabsorve até a próxima
recriação.
Se Goethe supõe que “no começo era a ação”, Hans von Bülow com razão preferiu
dizer: “no começo era o ritmo”, porque todo gesto e todo movimento arrítmicos no
início acabam ritmados através da repetição. O ritmo condiciona a continuidade
necessária a toda ação, à sua transformação ulterior, à sua propagação nas zonas
psíquicas e espirituais do ser. O ritmo do indivíduo define sua forma É uma invariância
dentro de uma mobilidade, “uma periodicidade vazia”, dizem os yogis.

Para se exprimir o homem primitivo então recorria aos sinais gestuais, ainda praticados
hoje em dia, que supõem a experiência prévia do tato para interpretar de forma útil as
mensagens da visão e da audição. No que concerne à visão, é curioso constatar que,
na China e no Egito antigos, a negação ou recusa eram exprimidas pelo gesto de
estender horizontalmente os dois braços, como fazem os guardas para impedir o
trânsito. Na Índia, os mudras - conhecimentos mímicos compostos pelas mãos das
dançarinas - traduzem as mais sutis nuances do pensamento. Os trapistas
contemporâneos os comunicam entre si graças a um rico sistema que usa os dedos,
com 1.300 sinais.

Por outros meios o mesmo se dá. Com a audição, os negros africanos transmitem
entre si, depois de um longo tempo, informações muito detalhadas por meio de
assovios; os caucasianos usam tambores. Conhecemos os quippus dos Incas, que são
cordões cheios de nós - encontrados também na China - como forma de registrar
comunicação. Estes são códigos táteis.

É também com sinais gestuais que podemos vivenciar a inteligência dos animais. O Dr.
Ph. De Wailly conseguiu dialogar com chimpanzés usando os gestos dos surdos-
mudos. Os indivíduos das sociedades animais, em matilhas ou hordas, se comunicam
graças a diversos sinais. Conhecemos as danças informativas das abelhas, os sinais
odoríferos e ultrassons das formigas, os cantos e desfiles rituais dos pássaros, os 114
sinais sonoros usados pelos corvos, os grunhidos de referência emitidos pelos
golfinhos, e isto permite supor que diversas técnicas de reconhecimento animal
permanecem ignoradas pelos humanos.

Voltando a falar dos humanos, a espontaneidade dos gestos constitui-se o fundamento


de um método clássico proposto aos atores, dançarinos e oradores. Ensina-se-lhes que
um gesto deve preceder e anunciar a palavra. E frequentemente a substitui por uma
espécie de reconstituição instantânea da filogênese da linguagem. Aquilo que pode
parecer um simples truque da profissão é na realidade uma lei fundada nas
necessidades da vida social.

Na sua elaboração original, podemos então dizer que a expressão do pensamento mais
pura começa por um movimento reflexo. Ele é tão precoce que já aos três anos de
idade uma criança pode, por seus gestos, revelar a um psicólogo se ele será um
mestre ou um discípulo na vida. A emoção contida na fonte de onde emana o gesto
manifesta a ligação que une o físico e o psíquico e que exprime a palavra “sentimento”
onde Rémy de Gourmont via confundidos o fato de sentir e o de compreender. Com
sua expressão subjetiva, o gesto torna-se, por repetição, um verdadeiro sinal
institucional, a comunicação de uma noção e logo a sugestão de um pensamento. Em
razão de existir dentro da filiação do gesto uma analogia muito próxima entre a
formação de um hábito, a compreensão de um fenômeno e o nascimento de um
símbolo.

Isto permite melhor compreender a significação mais geral que em seguida R. P.


Jousse dará à palavra” gesto”, que será a de uma atitude essencial que utilizaria os
sentidos os mais diversos, assim como os auditivos, visuais, olfativos e táteis. Deste
ponto de vista podemos considerar existir um complexo hereditário de gestos repleto
de vida, e nosso corpo como um conjunto funcional de gestos fixados, tornados
membros e órgãos. O gesto seria assim a sobrevivência de uma antiga atividade
estabilizada, mantida na “cabeça pesquisadora”, o único elemento deixado livre e
criativo. E como toda criatura tende a reproduzir o que ela é, o que ela representa e o
que ela significa, esta semiologia do gesto poderia nos fornecer a melhor definição do
sacramento e do rito que nada são que a repetição de um gesto ancestral.

III – O eu como origem

Nossos gestos traem não apenas nossos sentimentos elementares; eles contêm noções
mais gerais e essenciais. Fixam os limites de um tipo de capacidade física e colocam
marcos em nossa competência de expressão quando delimitam à nossa volta um
quadro rigoroso de três direções espaciais, onde aprendemos a situar nossa própria
estatura. Por conseguinte levamos estas direções inscritas em nós mesmos,
incorporadas nos canais semicirculares de nosso ouvido interno, associadas ao
mecanismo que comanda nosso equilíbrio físico e mental. Essa marca cósmica, que
transfigura o eu mais modesto, confere a cada um de nós um papel de “microcosmo”
platônico, de padrão universal, uma posição central que Schelling em seu tempo soube
mostrar a importância tanto como princípio quanto origem. Nossos gestos manifestam
a autoridade do eu, cuja imagética do cinema interior constitui, disse Blake, a vida
mesma de nosso espírito. A riqueza de nossas lembranças e de nossas experiências
educa cada um de nós na função de poeta criador de uma cultura vivida, nutrida de
sensações provadas e sinais aceitos, recebidos dos ancestrais e transmitidos às
gerações futuras.

Este eu íntimo, centro de nossos atos, sujeito e objeto de nosso conhecimento


intuitivo, penetra-nos com uma autoridade provisória e tranquilizadora. As leis da
perspectiva, que diminuem tudo que está longe, contribuem para alimentar a
dominação sedutora de que se vale nosso egotismo para nos persuadir. Nosso
narcisismo nos empurra a integrar tudo o que vemos como um reflexo de nosso eu no
espelho das coisas, considerando todo objeto como dependente de nós para lhe
emprestarmos vida e consciência, a conceder um pouco de nossa alma a tudo que
possui um corpo.

Esta “empatia projetiva”, como se diz, anima nossos olhos para o espetáculo do
universo e injeta uma vitalidade quase orgânica que explica o animismo do
pensamento primitivo. Esta autoidentificação que o homem descobre no mundo será
transportada, como o expôs Kapp, para a forma e a função não apenas das nossas
ferramentas - as quais não são mais que prolongamentos do nosso corpo - mas para
os objetos naturais e para aqueles que são resultado da nossa indústria.

Não é sem razão que Protágoras proclamou que o homem é a medida de todas as
coisas. Uma tendência invencível mantém sempre em ação este antropomorfismo
original, que se torna o princípio de toda poesia e toda linguagem. A morfologia de
nosso corpo forneceu os primeiros arquétipos de nossa ideologia e nossas primeiras
unidades de medida: o braço, o cotovelo, o palmo, o polegar, o pé e o passo, este
mesmo passo que mede também o tempo, porque obedece ao ritmo respiratório. O
primeiro utensílio do homem foi seu corpo e principalmente a sua mão, que é o
modelo de todas as ferramentas posteriores, “o instrumento dos instrumentos”, como
disse Aristóteles.

Depois de haver dominado sua posição vertical, aquele primitivo que fomos agora pode
agarrar e modelar com sua mão tornada livre os materiais para sua indústria. Dizer
que o homem possui uma mão é restringir demais seu papel, porque esta mão
prolonga tudo inteiramente, e um terço do cérebro lhe está consagrado. Graças à sua
sensibilidade superior, comparada a outras partes do corpo, ela se torna o órgão
detector por excelência, produtor de objetos, operador de signos e uma ferramenta
polivalente. Por isto a palavra “signo” vem do latim signum, que tem a mesma raiz do
verbo secare = cortar, que derivou na palavra “serrar”. Um signo é aquilo que foi
colocado pela mão dentro da casca de uma árvore. O homem deixa em tudo o que faz
ou manipula a marca de seus dedos, dos quais conhecemos o caráter revelador. As
ligações privilegiadas que unem as áreas cerebrais da motricidade àquelas da
linguagem articulada permitem à mão manifestar o homem falante, o pensante, e ao
mesmo tempo, o homem que age. O estado do fazer nada mais é que uma passagem
da função do dizer e etimologicamente, inclusive, nas línguas indo-europeias a palavra
dizer deriva de um a raiz significando mostrar com o dedo.

De fato, mesmo quando o ser humano conquistou o domínio do pensamento abstrato,


a visão de seu universo não ficou menos atada a uma codificação dos movimentos de
sua mão, inscrita nos limites intransponíveis das três dimensões espaciais.

IV – O grito como canto

A aparição da linguagem enquanto balbucio e articulação da boca é na verdade um


falso problema, porque é nato do ser humano, não sendo nem mais precoce, nem
menos natural que os gritos dos animais - rugidos dos tigres, gorjeios dos pombos,
relinchos dos cavalos, grunhidos dos porcos, mugidos das vacas - todos esses sons
que chamamos de gritos simplesmente porque não os compreendemos.
A linguagem foi-se desprendendo pouco a pouco deste esboço de canto que é o grito -
e várias cantoras fazem questão de não nos deixar esquecer disto. Nasce de uma
silabação do grito e do sopro. Mostra-se, sempre que encontra ocasião permitida,
fortemente musical, impregnada de sentimentos elementares - como manifestam, por
exemplo, as aclamações ou vaias das multidões tomadas de admiração ou raiva. Se em
seguida analisarmos o canto popular e espontâneo - onde explode a alegria de viver,
passando pela melopeia antiga, as salmodias religiosas, as queixas sentimentais, até a
simples conversa prosaica - constataremos uma degradação insensível dessa
densidade musical, mas não seu total desaparecimento - o que seria impossível, como
o prova os diversos tons que modulam a pronúncia obrigatória de certas línguas como
o chinês o dialeto twi da África. Uma convivência constante liga certas sensações a
sons específicos, indicando a misteriosa analogia que une a música à vida espiritual,
numa afinidade ainda pouco estudada.

Os especialistas em acústica sabem que toda palavra é identificável e única, pelo seu
timbre, mesmo quando a emissão monótona é imposta, como nas palestras feitas
durante grandes eventos ou jantares. Toda voz é reconhecível graças às flexões e
acentos, adantino ou arioso, tão pessoais como as impressões digitais de cada pessoa.

O fato de que uma tônica reguladora não mais conduz a palavra não impede que os
tons da frase possam ser notados, registrados, estudados, mesmo quando se
negligencia o sentido das palavras; esta eliminação não atrapalha sua compreensão e
muito menos seu poder emotivo.

É um paradoxo que o espectador de um filme mudo pode perceber, e também numa


peça de teatro encenada numa língua que ele não conhece, onde só conseguirá
compreender os gestos e ouvir sons. A atmosfera sentimental penetrará nele o tempo
todo; mais profundamente, talvez, que através de frases cujo sentido poderia
contradizer esta intenção secreta. Não temos necessidade de compreender as palavras
para agarrar seu sentido, o humor do falante, a sua amargura, falsidade ou ódio.
Nossos cães e gatos mostram-nos todos os dias que o tom vale mais que a palavra. É
o segredo do tremendo sucesso de certos oradores ou conferencistas, cuja audiência
acorre sem a intenção de aprender alguma coisa, mas que foram capturadas pela
sedução de suas vozes, e desejam antes de mais nada ouvir-lhes cantar seus
discursos, em vez de simplesmente falar palavras.

A linguagem nasce de um acordo fortuito, reconhecido e aceito, entre um sentimento e


um som correspondente emitido pela boca, graças a uma intonação. Ainda hoje pode-
se constatar que mesmo na língua mais modificada, distanciada de sua língua-mãe,
certas consoantes traduzem com mais fidelidades que outras alguns sentimentos. Em
francês isto acontece com as consoantes labiais B e M, provocando o movimento de
abertura dos lábios necessário à sua pronúncia, o que facilita ao mesmo tempo a
realização do gesto de Beber ou Comer, Morder, Murmurar. A gutural G associa-se a
grunhir, engolir, gofar. O R evoca Rugir, Rodar. A letra L, a Lentidão, Longe. Notamos
que as vogais A, O, U parecem diferentes do E e do I (que são próximas, inclusive
dificultando escolher entre elas na hora da escrita). Estas consonâncias são relíquias
testemunhas de uma correlação antiga entre o fundo e a forma; vestígios de uma
língua ancestral que conservava os traços de sua origem quase animal - ou celestial.

Hoje os linguistas abandonaram a pretensão dos sábios do século XIX, que buscavam
a língua original, mãe de todas as outras. Tudo o que se pode dizer sobre o
surgimento da palavra é manter a hipótese baseada na reconstituição psicológica
confrontada com os estágios mais antigos das diversas línguas cuja datação foi
possível realizar pela novo ramo da ciência chamado gloto-cronologia.

Os linguistas anglo-saxões supõe que, para o nascimento das diversas línguas, as


seguintes fontes são plausíveis:

1) Uma fonte imitativa (teoria do bow-wow), pela qual a linguagem é preenchida


de onomatopeias que imitamos barulhos ou gritos da natureza;
2) Uma fonte emotiva (teoria do pooh-pooh), pela qual a linguagem se forma
progressivamente a partir de suas expressões espontâneas, associadas a
sentimentos definidos;
3) Uma fonte harmônica (teoria do ding-dong), segundo a qual a língua evoca
uma correlação simbólica entre um som e seu impacto impressionista;
4) Uma fonte social (teoria do yo-he-yo), que diz que a língua nasce dos cantos
ou coros que acompanham os esforços musculares e gestos rítmicos coletivos
de nossos ancestrais nas atividades do trabalho.

Outras teorias consideram o desenvolvimento do primeiro balbucio infantil, ou o


canto espontâneo sem motivo outro que não a simples afirmação da presença...
Nenhuma dessas teorias é exclusiva e seria impossível reduzi-las a uma única fonte
comum. Podemos manter a aparição simultânea do homem e da palavra qualquer
que seja o grau da evolução. Todas as ocasiões listadas por cada uma dessas
teorias certamente exerceram seu papel, seja de forma conjunta, seja
separadamente. Que o grito dado diante da pressão de um sentimento forte
exprimindo um desejo viesse a intimar uma ordem, mostrar algo necessário de ser
feito ou um pedido de ajuda, e ficasse melhor entendido assim pelos ouvintes
como uma comunicação bastante clara para ser obedecida, isso já nos levaria a
concluir que de um só golpe a linguagem acabara de nascer juntamente com o
símbolo, pela associação de um sentimento com a música de uma voz.

V – Do nome próprio à palavra comum.

Entre os homens primitivos as relações humanas eram muito mais íntimas e


desenvolvidas que agora, em nossos países praticamente policiados onde, ao
contrário, evita-se com vontade as concentrações gregárias. No entanto, nessas
épocas rudes que alumiaram a aurora indecisa da história, a solidariedade tribal era
uma necessidade mais imperiosa que nos dias atuais. Ela se impunha tão
fortemente quanto o famoso ostracismo grego, que bania um homem do convívio
de sua família, de seu vilarejo ou cidade, terminando por equivaler praticamente a
uma condenação à morte.
Existe de fato entre os seres vivos, tanto animais quanto humanos, uma
necessidade permanente de se agrupar - para evitar uma solidão que outrora era
temida, para colaborar nos jogos coletivos, num trabalho difícil ou simplesmente
para estar juntos, usufruindo de uma presença mútua - impelidos por esse instinto
de afeição, que os etólogos contemporâneos querem substituir pela muito célebre
libido freudiana, a qual na verdade não é mais que uma modalidade da outra.

Nas suas condições de vida primitiva, uma das maiores alegrias desses homens
(cujos momentos de lazer eram forçados) consistia em conversar, trocar ideias -
desde os assuntos comezinhos do dia até às palavras solenes e enfáticas que
conduziam os mais eloquentes à popularidade e ao poder. A necessidade de falar
corretamente, de conhecer perfeitamente a língua garantia à linguagem a
importância de um rito tribal. A linguagem era inclusive preservada de toda
alteração e erro por um desenvolvimento extraordinário da memória, graças ao
qual muitos milhares de versos puderam ser aprendidos, decorados e transmitidos
por simples tradição oral, o que ainda é válido para alguns povos ágrafos. Estas
línguas arcaicas, práticas, realistas e terra-a-terra deviam evocar cada ser familiar,
cada objeto de uso quotidiano em uma situação conhecida, em um momento
preciso de sua existência, sofrendo a influência mútua de várias condições
concretas, notadas por esses observadores insuperáveis que eram os primitivos.
Esta síntese de qualificações permitia designar eficientemente, através de uma só
palavra, um ser ou uma coisa em questão.

Podemos ilustrar isto com o árabe antigo clássico, que continha mais de cinco mil
palavras relativas a “camelo”. Cada uma delas, entenda-se bem, referia-se a um
dos múltiplos aspectos de um camelo, e a um dos detalhes minúsculos de sua
anatomia, aparência, sexo, idade, adornos, gritos, hábitos e ao mesmo tempo a
uma situação bem determinada de tempo e lugar, e lembrando que poderia ser
preciso mencionar sua saúde, vícios, doenças e habilidades. Poderia-se dizer quem
era o sujeito, o camelo em questão, em que estado estava, lugar e com quem, o
motivo de estar lá, como e em que instante, tudo em uma só palavra do leque
vocabular reservado para definir “camelo”. Para satisfazer a todas essas exigências,
a palavra correspondente tornava-se um verdadeiro substantivo próprio que
poderia em um momento dado aplicar-se a apenas um indivíduo.

Cada família humana usufruía de sua língua como os familiares o fazem atualmente
no diálogo entre si, e se fossem surpreendidos por um estrangeiro que conhecesse
a língua que falavam, deixariam o forasteiro na dúvida se estava ou não “iniciado”,
autorizado a tomar parte em todas as implicações contidas em cada palavra e
expressão daquela língua dentre os membros da família surpreendida.

Uma tal especialização, entretanto, vinculada a uma realidade personificada,


baniria toda generalização e impediria a expressão do movimento e da mudança,
que foram facilitadas pela passagem do substantivo próprio para a condição de
comum, ou seja, pela transformação do nome em símbolo. O trabalho em comum,
sobretudo, deve ter facilitado esta transferência, e o uso de ferramentas exigiu
igualmente uma flexibilidade maior da linguagem. A origem artesanal da maior
parte dos verbos testemunharia em favor desta hipótese. A primeira palavra parece
misturada a uma ação ou a palavras que ainda não emergiram da frase,
substituindo os antigos gestos, porque a voz mostrou sua vantagem de levar a
ordem mais longe que os gestos, e ser atendida por aqueles que se desejava
tocar, mas que não se podia ver. Se tivéssemos os meios para fazer uma tal
enquete, poderíamos ensaiar um retrocesso linguístico das palavras mais em uso
atualmente, em especial aqueles verbos que em qualquer língua compartilham de
uma origem artesanal. O simbolismo no sentido estrito aparece quando a palavra,
saída com esforço do meio das pedras, por assim dizer, de uma frase, é utilizada
para transmitir um sentimento ou uma ideia.

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