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Capítulo Primeiro
I – Da sensação ao conhecimento
Hoje como ontem o recebimento das mensagens que nos vêm do ambiente é diferente
segundo o órgão receptor. Os três sentidos mais concretos – tato, paladar, olfato –
colam, por assim dizer, no objeto do qual estão geralmente muito próximos. Através
deles parece que nosso conhecimento coincide com nossa sensação. Desta forma nos
é frequentemente difícil atribuir-lhes uma especificidade precisa. O tato é cego,
polivalente e pouco seletivo. Mistura diversas noções relativas aos objetos tocados –
sua forma, peso, calor, resistência, textura.
No que concerne à audição, a zona de ruídos audíveis pelo ouvido limita-se a dez ou
onze oitavas e é necessário ser um músico treinado para identificar, na quarta do tom,
a nota colocada. Esta capacidade não poderá, portanto, ser demonstrada a não ser por
um outro músico dotado.
Esta imprecisão subjetiva de nossos sentidos deriva do fato de que eles provêm todos
da pele e do toque - que Epicuro considerava já como o sentido fundamental. Nossos
outros sentidos estão desligados devido a uma especialização do ectoderma em nossa
fase embrionária, no ventre de nossas mães, guardando de sua modesta origem muito
de sua superficialidade, a tal ponto que as mensagens das células sensoriais que
acabamos de enumerar devem atravessar, para serem assimiladas, múltiplos centros
nervosos, hipófise, hipotálamo, corpo estriado e córtex, que têm como função fazer a
síntese destas mensagens e comunicá-las às funções motoras, que por fim vão
transformá-las em gestos - voluntários ou não - permitindo sua interpretação racional.
Faz muito tempo que Leibniz, citando um famoso adágio escolástico, dizia que “não
existe nada no intelecto que não esteja antes nos sentidos”, mas ajuntando este
corretivo capital: “se é que isto não é o próprio intelecto”, devolvendo assim o primeiro
lugar de nossa apreensão pelos sentidos à atividade do nosso pensamento. Plínio
disse: “É por meio do espírito que enxergamos”.
Em resumo, nada pode ser compreendido por nós que não evoque uma de nossas
lembranças. Não podemos admitir nada antes de poder encontrar um precedente
conservado em nossa memória. Os pensadores de todos os tempos incansavelmente
repetiram “Nosso conhecimento depende de uma reminiscência” – disse Platão. “ A
palavra ‘dor’ não começa a significar coisa alguma a não ser no momento em que
desperta na nossa memória uma sensação que provamos”, disse Diderot. “Não vemos
a não ser aquilo que conhecemos”, disse Goethe. “Não podemos admitir a existência
de uma coisa se não podemos dar-lhe uma significação”, disse Cassirer. Esta
coincidência de duas experiências distanciadas, Proust, após tantos outros, a
redescobriu e alargou seu campo de aplicação até confundir dois ambientes
geográficos e sentimentais, dois momentos e dois liames de sua vida, fazendo-o
relacionar a lembrança do sabor do biscoitinho madeleine, de Combray, à sensação
do contato das pedras do calçamento irregular de Saint-Marc.
II – Do gesto ao signo
Todo gesto é precedido por uma aspiração profunda de todo o tórax, primeira fase do
ritmo respiratório. A respiração, como disse Rilke, foi o berço do ritmo. Ela é seguida,
depois de um momento de assimilação do oxigênio, por uma expiração que sob sua
forma mais elementar expressa-se por um grito. Este grito, terceiro tempo do ritmo
respiratório e primeira manifestação de vida do recém-nascido, mostra que toda ação é
um dom de si, e que todo homem deve, por assim dizer, expirar para agir. Ele utiliza
sua reserva de força para criar, seguindo uma lei simbolizada, por exemplo, no mito
hindu do sono cósmico de Brahma, onde cada expiração cria um mundo que a
inspiração seguinte, num intervalo de tempo milenar, reabsorve até a próxima
recriação.
Se Goethe supõe que “no começo era a ação”, Hans von Bülow com razão preferiu
dizer: “no começo era o ritmo”, porque todo gesto e todo movimento arrítmicos no
início acabam ritmados através da repetição. O ritmo condiciona a continuidade
necessária a toda ação, à sua transformação ulterior, à sua propagação nas zonas
psíquicas e espirituais do ser. O ritmo do indivíduo define sua forma É uma invariância
dentro de uma mobilidade, “uma periodicidade vazia”, dizem os yogis.
Para se exprimir o homem primitivo então recorria aos sinais gestuais, ainda praticados
hoje em dia, que supõem a experiência prévia do tato para interpretar de forma útil as
mensagens da visão e da audição. No que concerne à visão, é curioso constatar que,
na China e no Egito antigos, a negação ou recusa eram exprimidas pelo gesto de
estender horizontalmente os dois braços, como fazem os guardas para impedir o
trânsito. Na Índia, os mudras - conhecimentos mímicos compostos pelas mãos das
dançarinas - traduzem as mais sutis nuances do pensamento. Os trapistas
contemporâneos os comunicam entre si graças a um rico sistema que usa os dedos,
com 1.300 sinais.
Por outros meios o mesmo se dá. Com a audição, os negros africanos transmitem
entre si, depois de um longo tempo, informações muito detalhadas por meio de
assovios; os caucasianos usam tambores. Conhecemos os quippus dos Incas, que são
cordões cheios de nós - encontrados também na China - como forma de registrar
comunicação. Estes são códigos táteis.
É também com sinais gestuais que podemos vivenciar a inteligência dos animais. O Dr.
Ph. De Wailly conseguiu dialogar com chimpanzés usando os gestos dos surdos-
mudos. Os indivíduos das sociedades animais, em matilhas ou hordas, se comunicam
graças a diversos sinais. Conhecemos as danças informativas das abelhas, os sinais
odoríferos e ultrassons das formigas, os cantos e desfiles rituais dos pássaros, os 114
sinais sonoros usados pelos corvos, os grunhidos de referência emitidos pelos
golfinhos, e isto permite supor que diversas técnicas de reconhecimento animal
permanecem ignoradas pelos humanos.
Na sua elaboração original, podemos então dizer que a expressão do pensamento mais
pura começa por um movimento reflexo. Ele é tão precoce que já aos três anos de
idade uma criança pode, por seus gestos, revelar a um psicólogo se ele será um
mestre ou um discípulo na vida. A emoção contida na fonte de onde emana o gesto
manifesta a ligação que une o físico e o psíquico e que exprime a palavra “sentimento”
onde Rémy de Gourmont via confundidos o fato de sentir e o de compreender. Com
sua expressão subjetiva, o gesto torna-se, por repetição, um verdadeiro sinal
institucional, a comunicação de uma noção e logo a sugestão de um pensamento. Em
razão de existir dentro da filiação do gesto uma analogia muito próxima entre a
formação de um hábito, a compreensão de um fenômeno e o nascimento de um
símbolo.
Nossos gestos traem não apenas nossos sentimentos elementares; eles contêm noções
mais gerais e essenciais. Fixam os limites de um tipo de capacidade física e colocam
marcos em nossa competência de expressão quando delimitam à nossa volta um
quadro rigoroso de três direções espaciais, onde aprendemos a situar nossa própria
estatura. Por conseguinte levamos estas direções inscritas em nós mesmos,
incorporadas nos canais semicirculares de nosso ouvido interno, associadas ao
mecanismo que comanda nosso equilíbrio físico e mental. Essa marca cósmica, que
transfigura o eu mais modesto, confere a cada um de nós um papel de “microcosmo”
platônico, de padrão universal, uma posição central que Schelling em seu tempo soube
mostrar a importância tanto como princípio quanto origem. Nossos gestos manifestam
a autoridade do eu, cuja imagética do cinema interior constitui, disse Blake, a vida
mesma de nosso espírito. A riqueza de nossas lembranças e de nossas experiências
educa cada um de nós na função de poeta criador de uma cultura vivida, nutrida de
sensações provadas e sinais aceitos, recebidos dos ancestrais e transmitidos às
gerações futuras.
Esta “empatia projetiva”, como se diz, anima nossos olhos para o espetáculo do
universo e injeta uma vitalidade quase orgânica que explica o animismo do
pensamento primitivo. Esta autoidentificação que o homem descobre no mundo será
transportada, como o expôs Kapp, para a forma e a função não apenas das nossas
ferramentas - as quais não são mais que prolongamentos do nosso corpo - mas para
os objetos naturais e para aqueles que são resultado da nossa indústria.
Não é sem razão que Protágoras proclamou que o homem é a medida de todas as
coisas. Uma tendência invencível mantém sempre em ação este antropomorfismo
original, que se torna o princípio de toda poesia e toda linguagem. A morfologia de
nosso corpo forneceu os primeiros arquétipos de nossa ideologia e nossas primeiras
unidades de medida: o braço, o cotovelo, o palmo, o polegar, o pé e o passo, este
mesmo passo que mede também o tempo, porque obedece ao ritmo respiratório. O
primeiro utensílio do homem foi seu corpo e principalmente a sua mão, que é o
modelo de todas as ferramentas posteriores, “o instrumento dos instrumentos”, como
disse Aristóteles.
Depois de haver dominado sua posição vertical, aquele primitivo que fomos agora pode
agarrar e modelar com sua mão tornada livre os materiais para sua indústria. Dizer
que o homem possui uma mão é restringir demais seu papel, porque esta mão
prolonga tudo inteiramente, e um terço do cérebro lhe está consagrado. Graças à sua
sensibilidade superior, comparada a outras partes do corpo, ela se torna o órgão
detector por excelência, produtor de objetos, operador de signos e uma ferramenta
polivalente. Por isto a palavra “signo” vem do latim signum, que tem a mesma raiz do
verbo secare = cortar, que derivou na palavra “serrar”. Um signo é aquilo que foi
colocado pela mão dentro da casca de uma árvore. O homem deixa em tudo o que faz
ou manipula a marca de seus dedos, dos quais conhecemos o caráter revelador. As
ligações privilegiadas que unem as áreas cerebrais da motricidade àquelas da
linguagem articulada permitem à mão manifestar o homem falante, o pensante, e ao
mesmo tempo, o homem que age. O estado do fazer nada mais é que uma passagem
da função do dizer e etimologicamente, inclusive, nas línguas indo-europeias a palavra
dizer deriva de um a raiz significando mostrar com o dedo.
Os especialistas em acústica sabem que toda palavra é identificável e única, pelo seu
timbre, mesmo quando a emissão monótona é imposta, como nas palestras feitas
durante grandes eventos ou jantares. Toda voz é reconhecível graças às flexões e
acentos, adantino ou arioso, tão pessoais como as impressões digitais de cada pessoa.
O fato de que uma tônica reguladora não mais conduz a palavra não impede que os
tons da frase possam ser notados, registrados, estudados, mesmo quando se
negligencia o sentido das palavras; esta eliminação não atrapalha sua compreensão e
muito menos seu poder emotivo.
Hoje os linguistas abandonaram a pretensão dos sábios do século XIX, que buscavam
a língua original, mãe de todas as outras. Tudo o que se pode dizer sobre o
surgimento da palavra é manter a hipótese baseada na reconstituição psicológica
confrontada com os estágios mais antigos das diversas línguas cuja datação foi
possível realizar pela novo ramo da ciência chamado gloto-cronologia.
Nas suas condições de vida primitiva, uma das maiores alegrias desses homens
(cujos momentos de lazer eram forçados) consistia em conversar, trocar ideias -
desde os assuntos comezinhos do dia até às palavras solenes e enfáticas que
conduziam os mais eloquentes à popularidade e ao poder. A necessidade de falar
corretamente, de conhecer perfeitamente a língua garantia à linguagem a
importância de um rito tribal. A linguagem era inclusive preservada de toda
alteração e erro por um desenvolvimento extraordinário da memória, graças ao
qual muitos milhares de versos puderam ser aprendidos, decorados e transmitidos
por simples tradição oral, o que ainda é válido para alguns povos ágrafos. Estas
línguas arcaicas, práticas, realistas e terra-a-terra deviam evocar cada ser familiar,
cada objeto de uso quotidiano em uma situação conhecida, em um momento
preciso de sua existência, sofrendo a influência mútua de várias condições
concretas, notadas por esses observadores insuperáveis que eram os primitivos.
Esta síntese de qualificações permitia designar eficientemente, através de uma só
palavra, um ser ou uma coisa em questão.
Podemos ilustrar isto com o árabe antigo clássico, que continha mais de cinco mil
palavras relativas a “camelo”. Cada uma delas, entenda-se bem, referia-se a um
dos múltiplos aspectos de um camelo, e a um dos detalhes minúsculos de sua
anatomia, aparência, sexo, idade, adornos, gritos, hábitos e ao mesmo tempo a
uma situação bem determinada de tempo e lugar, e lembrando que poderia ser
preciso mencionar sua saúde, vícios, doenças e habilidades. Poderia-se dizer quem
era o sujeito, o camelo em questão, em que estado estava, lugar e com quem, o
motivo de estar lá, como e em que instante, tudo em uma só palavra do leque
vocabular reservado para definir “camelo”. Para satisfazer a todas essas exigências,
a palavra correspondente tornava-se um verdadeiro substantivo próprio que
poderia em um momento dado aplicar-se a apenas um indivíduo.
Cada família humana usufruía de sua língua como os familiares o fazem atualmente
no diálogo entre si, e se fossem surpreendidos por um estrangeiro que conhecesse
a língua que falavam, deixariam o forasteiro na dúvida se estava ou não “iniciado”,
autorizado a tomar parte em todas as implicações contidas em cada palavra e
expressão daquela língua dentre os membros da família surpreendida.