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Quem faz o que na Síria e por que.

10/2/2018, Ghassan Kadi, The


Vineyard of the Saker
Fonte: Blog do Alok
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

Parece que cada vez que chega ao fim um capítulo na


guerra contra a Síria, novo fator vem à tona. Como
aconteceu antes na guerra civil 1975-1989 no Líbano, e
que começou com um confronto entre a Organização de
Libertação da Palestina, OLP, e a milícia falangista
libanesa de direita, e acabou com o Líbano invadido por
Israel, a guerra contra a Síria é hoje guerra
completamente diferente da que começou há sete anos.
Com outros que vieram e já foram ou tiveram alterado o
papel que lhe cabia na guerra, o único ator que continua
aqui e não muda é, claro, o Exército Árabe Sírio,
combatendo sempre pela integridade e a soberania da
Síria. Nem se pode dizer o mesmo dos aliados, porque
também os aliados do EAS mudaram.

Há muita especulação quanto a eventos recentes, muita


guerra e propaganda para gerar medo, mas se se
dissecam todos os elementos das potências que
combatem hoje na Síria e se os analisamos, vemos
claramente e sem dificuldade o que está acontecendo e
quem está fazendo o que.

Antes de tentar compreender quem está fazendo o que e


por que, comecemos por listar os principais players em
solo e por trás das cortinas, desde o início e hoje. Eis
uma lista curta:
1. Síria, claro
2. Arábia Saudita
3. Qatar
4. Curdos
5. Turquia
6. Irã
7. Hezbollah
8. Israel
9. EUA
10. Rússia.
Inobstante o papel continuado e a presença inevitável da
própria Síria e das forças nacionais populares sírias
aliadas na guerra contra o próprio país, é preciso
reconhecer que Arábia Saudita e Qatar já
desempenharam seu papel e saíram como derrotados.
Com vistas à documentação para a história, é preciso
deixar isso anotado, mesmo que, hoje, AS e Qatar não
tenham qualquer influência ou poder.

Os Curdos têm papel que não pode ser discutido sem


registrar o que fizeram entre 2011 e 2015-16.
Combatentes curdos, separatistas ou outros, defenderam
a integridade da fronteira norte da Síria no início, já em
2011, quando o Exército Árabe Sírio não tinha aliados em
solo. E mesmo que combatentes curdos e soldados do
Exército Árabe Sírio não tenham combatido fisicamente
dentro da mesma trincheira, os curdos lutaram
valentemente no norte, defendendo o solo sírio contra
incursões que os turcos facilitavam e, depois, contra
o ISIS.

Porém, quando se estabeleceram os movimentos curdos


separatistas, e dado que não foram preventivamente
abrigados sob o telhado de Damasco, algum lado teria
de ceder.

Os Curdos separatistas farão qualquer coisa e acordos


com não importa quem ou quando, para realizar seu
sonho. A história já mostrou que estão preparados para
se unir aos norte-americanos e até a Israel.
É preciso registrar que há curdos não separatistas,
mesmo que não se conheça a porcentagem deles na
população, assim como é impossível saber a porcentagem
dos separatistas, e os não separatistas parecem não ter
voz muito ativa na comunidade. Além do mais, parece
que não há visão nacional inclusiva, sob cuja proteção os
próprios curdos pudessem discutir e expor qualquer
pensamento anti-separatista e arejar as próprias ideias,
seus medos e apreensões como minoria, que inspiram o
anseio por independência.

O papel da Turquia mudou com as marés ao longo dos


últimos sete anos. Desde querer derrubar o governo do
presidente Bashar al-Assad da Síria, com Erdogan rezando
na Mesquita Omayyad como o conquistador de Damasco,
Erdogan opera hoje em modo muito mais contido para
controle de danos, na esperança de conseguir, pelo
menos, impedir que se constitua um Estado curdo ao sul
das próprias fronteiras. O vai e vem da guerra, e o
pedido de desculpas a que foi obrigado, na luta para se
reconciliar com a Rússia depois de a Turquia ter
derrubado um Su-24 russo em novembro de 2015 puseram
Erdogan na posição em que está. Mas Erdogan, islamista
e nacionalista compulsivo, sempre tentará procurar
oportunidades e aberturas, e não vacilará em apunhalar
qualquer um pelas costas, porque seus sonhos de um
sultanato muçulmano com base na Turquia são maiores
que qualquer negócio ou acordo que ele assine com seja
quem for.
Isso posto, Erdogan em nenhum caso aceitará solução que
implique o estabelecimento de um Estado curdo. A
menos que a maré vire a favor dele, é altamente
improvável que venha a mudar de rota e exigir mais.

Verdade é que a guerra no norte da Síria é quase


completamente separada da guerra que se trava no sul,
com Israel.

Irã: O teatro sírio pôs o Irã fisicamente mais perto de


Israel, de modo tal que abriu uma nova fronteira maior
que a que o Hezbollah tem no sul do Líbano. Israel não
tem privilégio recíproco. Assim, embora a presença de
Israel não seja oficialmente reconhecida nos Estados do
Qatar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, não há
praticamente qualquer dúvida de que a costa oriental do
Golfo Persa/Árabe está sob controle direto ou indireto de
israelenses em mais de um sentido.

Deve-se lembrar contudo que a questão que o Irã tem


contra Israel é doutrinal, não é territorial.

Em resumo, a presença militar do Irã na Síria tem tudo a


ver com o tratado de mútua defesa Irã-Síria, mas
também visa a proteger interesses do Irã e a estabelecer
presença militar e capacidades para lançamento de
foguetes que estão a poucos quilômetros de importantes
cidades israelenses, situação muito diferente da
distância de praticamente mil quilômetros que separa
Israel do Irã e mesmo das poucas centenas de
quilômetros que separam a costa leste do Golfo
Persa/Árabe das cidades do sul do Irã.

Dado que o Irã não é potência nuclear, e Israel sim,


considerando o que se disse acima, qualquer
confrontação militar convencional com Israel porá o Irã
numa posição de vantagem.

O status do Irã na Síria não pode ser visto nem como


ofensivo nem como defensivo vis-à-vis Israel. Parece ser
mais provavelmente defensivo, e é pouco provável que o
Irã venha a usar suas posições na Síria pra iniciar ataque
não provocado a Israel, dado que Israel sempre contará
com a força de contenção de seu arsenal atômico.

Hezbollah: Em vários sentidos, falando em termos


ideológicos, o Hezbollah é uma extensão do Irã. Mas
falando em termos estratégicos, o Hezbollah é parte do
processo político libanês. Mas a questão do Hezbollah
com Israel e doutrinal e também territorial.

O Hezbollah foi para a Síria para defender a Síria, claro,


mas ao defender a Síria, o Hezbollah se autodefende e
defende o Líbano.

As linhas de suprimento para o Hezbollah partem da Síria


– o que não é segredo para ninguém. Mas ainda que o
Hezbollah tenha tido de criar rotas alternativas depois de
sete anos de guerra, mesmo assim permanece
dependente da Síria para garantir a própria sobrevivência
em profundidade, bem como sua capacidade de
combate. Ainda que o Hezbollah penetrasse ainda mais e
conseguisse estabelecer uma base de manufatura militar
própria – o que absolutamente não é improvável – mesmo
assim permanecerá conectado à Síria em níveis essenciais
à própria sobrevivência e à própria continuidade.

Ideologicamente, Hezbollah é talvez mais próximo do Irã


que qualquer outro aliado, mas estrategicamente não
poderia estar mais próximo de qualquer outro aliado que
da Síria. Esperar que o Hezbollah ceda à pressão e retire-
se prematuramente da Síria é praticamente a mesma
coisa que contar com que a Coreia do Norte entregue seu
arsenal nuclear.

Israel: Não surpreenderia ninguém dizer que os EUA pós-


Kissinger deixaram Israel sentir-se segura e privilegiada a
ponto de se pôr a coagir a única superpotência mundial
para que carimbasse qualquer coisa que Israel fizesse;
ainda que fosse contra os interesses da superpotência.

Contudo, nem com todo o apoio que EUA deu a Israel a


entidade sionista conseguiu fazer qualquer paz
duradoura. Superioridade militar e paz são muito
diferentes; os EUA tinham meios para garantir a
primeira, a Israel; não a segunda.

Mas até essa superioridade militar que no início dos


tempos significou que Israel era intocável acabou por ser
erodida. A ascensão do Hezbollah ao poder, com
capacidade para bombardear "Haifa e além de Haifa" em
julho de 2006 causou calafrios aos estrategistas militares
de Israel.

Israel agora não tem ideia de o que esperar se e quando


houver outra escalada militar com o Hezbollah e hoje se
prepara para o pior.

Dados os mais recentes confrontos com defesas aéreas


sírias, Israel pôs-se em posição semelhante também em
relação à Síria, sem saber tampouco o que esperar desse
lado.

Os EUA: Apesar de tudo que os EUA fizeram no apoio


inicial ao ataque Saudita/Qatari/Turco contra a Síria, só
conseguiram derrota após derrota.

Se algum dia houve momento nos últimos sete anos para


os EUA lançarem grande ataque contra a Síria, foi quando
do ataque forjado, com armas químicas, apresentado
como se tivesse sido cometido pelo Exército Árabe Sírio
em Ghouta Ocidental. Mas Obama não caiu no golpe
orquestrado pelos sauditas. Se há decisão política pela
qual Obama deva ser lembrado positivamente quando
toda a poeira afinal baixar, será aquela sua decisão de
não atacar a Síria no início de setembro de 2013.

Mas os EUA de Trump herdaram uma Síria na qual os


norte-americanos não têm nem presença nem influência.
A nação decadente não quer ser vista como inerte, sem
reação contra essa realidade.

Rússia: O papel da Rússia foi deixado para o final dessa


reflexão, para poder enfatizar mais uma vez como já em
outros artigos, que o papel da diplomacia russa está-se
tornando mais e mais importante a cada momento na
Síria e no Levante em geral.

Para poder ver no contexto adequado tudo que se disse


acima, é preciso lembrar que está em curso uma guerra
no sul da Síria, e que tem pouco a ver com a outra, que
se trava no norte; e só a Rússia tem potencial para
enfrentar o conflito.

Não há nem rastro de dúvida, para mim, de que a Rússia


tem um plano de paz para o Oriente Médio.

Não tenho dúvidas tampouco de que a Rússia quer


catapultar os EUA para bem longe do papel de
negociador de conversações de paz no Oriente Médio.
Afinal, os EUA permaneceram nessa função por mais de
40 anos, sem marcar qualquer ponto no tabuleiro.

Não se deve esquecer que, apesar de todas as concessões


que os líderes da OLP fizeram a Israel, os EUA nem assim
conseguiram (supondo que tenham tentado) oferecer
qualquer paz à Palestina, tampouco a Israel, é claro. É
altamente provável que até Israel já esteja farta das
promessas de paz que os norte-americanos sempre
repetiram e nunca cumpriram. A paz que os EUA
prometeram a Israel sempre dependeu de os EUA
esmagarem o Eixo da Resistência e plantarem em lugar
dele governos-fantoches desdentados, que dançassem
conforme a música dos EUA; com os norte-americanos
obrigando-os a normalizar relações com Israel e a acabar
com as ameaças contra a entidade sionista, hoje e para
sempre.

Nesse quadro, a Rússia está fortalecendo sua posição no


Oriente Médio, preparando-se para o momento de
aparecer já como potência aceita por todas as partes
envolvidas e único árbitro capaz de realmente construir
acordo de paz amplo e inclusivo que atenda aos
interesses de todos.

Todo o resto é encenação.

A recente escalada da guerra entre Síria e Israel não é


prelúdio de guerra maior. Ninguém quer guerra; não
agora, com todos dramaticamente conscientes do dano
que qualquer guerra atrairá sobre eles mesmos e a
região.

Israel continua sondando as águas, testando as


capacidades de defesa dos sérios e, principalmente,
testando a paciência dos russos e sua determinação na
missão de construir real equilíbrio estável de poder no
Oriente Médio.
Alguns árabes se sentirão desapontados por a Rússia não
permitir a total destruição de Israel, mas a Rússia nunca
prometeu isso. Por outro lado, contudo, a Rússia está
empurrando Israel na direção de ser realista, e nunca
prometeu a Israel qualquer apoio incondicional como
fizeram os EUA, desde os dias de Kissinger.

Cabe a Israel se autoproteger contra os foguetes do


Hezbollah, o que a Rússia não pode fazer por Israel. Em
nenhum caso a Rússia iniciará guerra total nem contra a
Síria nem contra o Hezbollah nem contra ambos. E sem
esquecer a presença iraniana em solo na Síria, muito
próximo das fronteiras de Israel.

Israel tem de aceitar que as regras do jogo mudaram; ou


encarar uma escalada que custará danos gravíssimos à
infraestrutura e aos cidadãos israelenses. A recente
derrubada de um jato F-16 israelense pelas defesas
aéreas sírias e a subsequente visita que Netanyahu fez ao
presidente Putin é sinal claro de que Israel não está
contente com o fornecimento de armas russas à Síria – e
que sabe de que esse movimento dos russos está
mudando o equilíbrio de poder.

Exame atento a eventos recentes verá necessariamente


que a Rússia ainda tenta trazer Israel para conversações
de paz baseadas num equilíbrio regional de poder. Mas
Israel ainda não está convencida de que essa solução
interesse a Israel, porque ainda não se convenceu,
sequer, de que perdeu o controle militar que foi sua
única força objetiva. Por outro lado, também é difícil
para a Rússia convencer Síria, Hezbollah e Irã de que
devem buscar a paz com Israel. E os EUA vão-se
convencendo de que não têm presença na guerra no sul.
Então se põem a usar o pretexto dos curdos para tentar
ter 'uma' (qualquer!) presença no norte para evitar o
pior: acabarem de fora de qualquer tipo de acordo que
os russos consigam. Erdogan faz sua parte para impedir
que se crie um Estado curdo na Síria. Exceto por isso, não
tem qualquer papel a desempenar no conflito no sul.

No final do drama, os EUA apunhalarão os curdos pelas


costas como já fizeram incontáveis vezes, o sonho
independentista dos curdos será atrasado outra vez por
muitas décadas, todos verão que o verdadeiro foco do
conflito estará no sul. E chegará a hora de conhecer o
plano de paz ainda não revelado dos russos e o papel que
realmente cumprirão na reorganização do Oriente
Médio.*****
Postado por Dario Alok às 14:16

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