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2 A realidade da fantasia e a fantasia da realidade:

Borges e a fenda foucaultiana1


Lucas Marques2

1 Texto inicialmente resumo Quais conexões possíveis poderíamos tra- abstract Which possible connections could we
apresentado no XIV çar entre a obra literária de Jorge Luis Borges e a trace between Jorge Luis Borges’ work and
Seminário Interno de
Pesquisa do Grupo Cul- filosofia de Foucault? No prefácio de As Palavras e as Foucault`s philosophy? Foucault makes some sug-
tura, Memória e Desen- Coisas, Foucault nos traça algumas sugestões. Nes- gestions in the preface of The order of things. In
volvimento, ocorrido te artigo intento, a partir desta obra de Foucault, this article, I tried to explore some of these sug-
entre os dias 20 e 22 de
julho de 2011. Gostaria explorar algumas destas sugestões, relacionando-as gestions, relating them with his literary influences
de agradecer a leitura com suas influências literárias e o modo como essa and the way in which this literature – focusing
atenta e comentários literatura – focando aqui a de Borges – possibili- in Borges’ work – allowed the possibilities where
realizados pelo professor
Edson Farias, bem como tou o espaço mesmo onde seu pensamento pôde ser your thought takes place. Finally, based on Fou-
pelos demais colegas do construído. Por fim, a partir do conceito foucaultia- cault’s concept of heterotopia, I search for the way
Programa de Educação no de heterotopia, busco de que modo essas fendas in which those slits make us question our own re-
Tutorial (PET) em So-
ciologia da Universidade nos fazem questionar nossas próprias realidades, alities, allowing us to think about the unthinkable.
de Brasília. possibilitando-nos pensar o impensável.
keywords Jorge Luis Borges, Michel Foucault,
2 Aluno de Gradua- palavras-chave Jorge Luis Borges, Michel Fou- Heterotopia
ção em Antropologia cault, Heterotopia. 40
lucas marques

na Universidade de
Brasília. À época, en- Este artigo nasceu de um texto de Foucault. Do Foucault constrói seu pensamento n’As Palavras e
contrava-se em seu 3º mesmo riso inquietante que, décadas atrás, pertur- as Coisas (e assim abordando o que ele chama de
semestre de graduação.
bou as familiaridades do pensamento – ainda nosso arqueologia) para, depois, relacionarmos com suas
Atualmente trabalha
com religiões afro- – de Foucault, ao ler um texto de Borges. No prefá- influências literárias – que vão de Mallarmé, pas-
-brasileiras, sob uma cio de As Palavras e as Coisas, Foucault nos remete sam por Blanchot e chegam a Borges – e o modo
perspectiva da antropo-
ao conto “O idioma analítico de John Wilkins”, em como essa literatura – focando aqui a de Borges –
logia das técnicas e dos
objetos. que Jorge Luis Borges cita “uma certa enciclopé- possibilita o espaço mesmo onde seu pensamento
http://buscatextual. dia chinesa” onde “os animais se dividem em: a) poderá ser construído. Para isso, também, teremos
cnpq.br/buscatex-
pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) que nos aprofundar no conceito de heterotopia, tal
tual/visualizacv.
do?id=K4471129J5 domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) qual formulado por Foucault.
cães em liberdade, h) incluídos na presente classifi-
cação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, A fenda foucaultiana (ou a arqueologia dos
k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de espaços ordenados)
camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a Em As Palavras e as Coisas, Foucault preocupa-
bilha, n) que de longe parecem moscas.” (Foucault, -se, em suma, com a ordem. A ordem, porém, como
1966a, IX; Borges, 1952, 124). o espaço mesmo onde os enunciados podem ser
Essa passagem do conto de Borges – e, creio, sua proferidos, onde os discursos tornam-se “verdade”.
obra como um todo – inspirou Foucault a elabo- Para Foucault – e inspirado fortemente em Nietzs-
rar sua inquietante linha de raciocínio presente no che – a ordem é essa potência que se faz ato, o espa-
livro, que viria a abalar todo o pensamento filosófico ço construído que possibilita a instauração de posi-
dali em diante. A partir daí, nos surge a seguinte tividades e empiricidades. Essa experiência nua da
questão: qual a relação existente entre a obra de ordem instaura o solo positivo onde as coisas pode-
Foucault e os contos de Borges? No prefácio de As rão avizinhar-se; onde poderão, enfim, serem clas-
palavras e as Coisas, Foucault nos aponta alguns sificadas. A essa potência de positividades Foucault
caminhos. Assim, antes de entrarmos nesse con- vai denominar de épistèmé. A épistèmé é, portanto,
to de Borges, interessa-nos analisar o modo como o campo “onde os conhecimentos, encarados fora de 41
lucas marques

3 É interessante notar qualquer critério referente a seu valor racional ou a esforça “por encontrar a partir de que foram possí-
aqui que os enunciados suas formas objetivas, enraízam sua positividade e veis conhecimentos e teorias; segundo qual espaço
não dizem respeito tan-
to à substancialização manifestam assim uma história que não é a de sua de ordem se constituiu o saber; na base de qual a
de palavras por coisas perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições priori histórico e no elemento de qual positivida-
(ou vice-e-versa), mas, de possibilidade” (Foucault, 1966a, XIX. Itálicos de puderam aparecer idéias, constituir-se ciências,
antes, aos processos
relacionais que possibi- meus). É o espaço onde se entrecuzam saber e po- refletir-se experiências em filosofias, formar-se ra-
litam a mútua constitui- der, palavras e coisas. cionalidades, para talvez se desarticularem e logo se
ção dos termos. Dizem A épistèmé é permeada de discursos – permitida e desvanecerem” (Foucault, 1966a, XVIII).
respeito às materialida-
des elas mesmas, e seus construída a partir deles. Esses discursos estabelecem Deste modo, a arqueologia, através de um corte
processos constitutivos o objeto, possibilitando o campo dos saberes e dos diagonal – transversal –, define o espaço onde as
de repetição e dife- conhecimentos; são dotados daquilo que Foucault vai coisas podem avizinhar-se; para que depois, em de-
rença. Poder-se-ia até
indagar se não se trata chamar mais tarde de “regime de verdade” (Foucault, corrência de rupturas, o campo de possibilidades e
aqui de uma ontologia 1971). Segundo Deleuze (1986, 24) “longe de serem classificações possa mudar. Ela então foca-se nesse
dos processos, tal qual sínteses de palavras e coisas, longe de serem compo- entremeio onde as ordens se deslocam, na transição
praticada na filosofia
deleuziana, ou mesmo sições de frases e de preposições, os enunciados, ao entre regimes de verdade; na fenda que possibilita
no estruturalismo de contrário, são anteriores às frases ou às proposições um novo espaço de saber. A arqueologia que realiza
Lévi-Strauss. que os supõem implicitamente, são formadores de Foucault, deste modo, se volta para as fendas – fis-
palavras e de objetos”. Os enunciados, portanto, são os suras que abrem, irrompem e possibilitam novas or-
que formam esses regimes de verdade3. dens (e, portanto, novas possibilidades). São essas
Assim, para dar conta desse espaço onde os enun- fendas, “contra-lugares” que abalam nossos regimes
ciados são proferidos, Foucault monta séries, mos- de verdade, que Foucault vai dar o nome de hetero-
tra elementos e elucida ordens, através de cortes topias (Foucault, 1967).
diagonais (Deleuze, 1986) que não necessariamente As fendas (heterotopias) se fazem presentes du-
seguem uma história linear. Através dessa arque- rante todo o argumento de As Palavras e as Coisas.
ologia – análise histórico-filosófica das rupturas Através delas, Foucault nos mostra a transição de
que possibilitam espaços de saber – Foucault se uma épistèmé antiga para uma épistèmé clássica 42
lucas marques

(na passagem entre o século XVI e o século XVII); e outra, o quadro (assim como a enciclopédia chine-
e de uma épistèmé clássica para uma épistèmé mo- sa) delineia o raciocínio mesmo de Foucault.
derna (entre o século XVII e o século XIX). Para Como já foi dito, a primeira transição de épistèmé
isso, o autor nos remete a imagens que, de certa analisada por Foucault ocorre entre o século XVI e
forma, delineiam o espaço onde essas épistèmés o século XVII. Enquanto na épistèmé do século XVI
surgem. Essas imagens (literárias e visuais) “ante- as palavras e as coisas eram um só corpo – sendo a
cipam” a nova épistèmé, desvanecem as imagens linguagem vista como uma coisa em si, instauradora
antigas e desvelam as novas possibilidades. de objetos –, na épistèmé do século XVII a lingua-
A pintura “Las meninas”, de Velásquez, é a primei- gem torna-se atribuição de sentido, fazendo com
ra imagem que Foucault se utiliza para elucidar seu que a palavra deixe de ser coisa e passe a significá-
pensamento. Esse quadro – assim como o conto e a -la. Passa-se, assim, de uma épistèmé da similitude
obra de Borges – fornece a Foucault conceituações para uma épistèmé da representação.
que lhe serão caras no decorrer da obra: o duplo da Para Foucault, a obra de Cervantes, Dom Quixote,
representação, a autonomização e o desdobramen- apresenta de maneira clara essa transição. Ela é,
to da linguagem e a queda do divino concomitante portanto, uma fenda possível desse período. Quan-
com o surgimento efêmero e transitório desse duplo do Dom Quixote, no segundo momento da obra de
empírico-transcedental que é a figura do homem. É Cervantes, começa a viver a literatura, ele torna-se o
importante ressaltar as semelhanças entre o que o herói do mesmo, passando de um mundo de simili-
quadro de Velásquez suscita na análise de Foucault tudes para um mundo de diferenças: torna-se então
e a obra de Borges. Ambos se utilizam de metáforas narrativa e assume sua realidade enquanto tal (Fou-
semelhantes – como o espelho, o jogo infinito de cault, 1966a, 66). Assim, o signo não é mais seme-
imagens e representações – e possibilitam o desdo- lhança, mas atribuição; a linguagem então se volta à
bramento da linguagem sobre si mesma. Nesse sen- representação. As palavras, de certa maneira, sepa-
tido, “Las meninas” pode ser considerada uma obra- ram-se das coisas, se autonomizando e rompendo
-conceito do pensamento que vai seguir todo o livro. com as similitudes; porém, permanecem ligadas
Mais do que mostrar a transição entre uma épistèmé através da representação (Foucault, 1966a, 65). 43
lucas marques

Como nos diz Machado (2000, 86), “a episteme Porém, como nos lembra Motta (2009), o nasci-
clássica tem como fundamento a representação”. mento dessa épistèmé moderna só pôde ser possível
Ela, portanto, constrói imagens do mundo, através no entrecruzamento da obra Sade com a filosofia
de ordenações e medidas, taxionomias e matemáti- de Kant. Ele é, assim, o limiar que marca e irrom-
cas, estabelecendo diferenças e identidades através pe a modernidade. A partir de Kant, conhecer não
da descrição de estruturas visíveis, formando um se torna mais sinônimo de representar (Machado,
quadro de identidades e diferenças. Essa construção 2000). As coisas escapam do espaço do quadro das
da ordem dá-se nos mais diversos modos de saber: representações, ganham forma autônoma. O fenô-
na gramática geral, na história natural e na análise meno ao qual é possível o conhecimento surge a
das riquezas. partir de uma intuição sensível. A própria noção do
Na passagem do século XVIII para o século XIX objeto empírico então aparece. A representação só é
uma nova transição de épistèmé vai surgir. Trata-se possível nessa épistèmé se residindo no exterior do
da passagem da épistèmé clássica para a épistèmé objeto, numa espécie de mundo profundo. As coi-
moderna. A figura que ilustra essa fenda é a obra sas então deixam de ser analisadas somente em sua
do Marquês de Sade. Para Foucault (1966a, 290), superfície e passam a ser vistas em sua profundida-
“Justine e Juliette [obras de Sade], no nascimento de. Daí a importância de conceitos como estrutura,
da cultura moderna, estão talvez na mesma posição vida, trabalho e linguagem.
que Dom Quixote entre o renascimento e o classicis- A noção de análise de riquezas é deslocada, e o
mo”. Para ele, Sade permite que a obscura violência trabalho passa a ser a unidade de medida, surgindo
repetida do desejo ultrapasse os limites da repre- assim o que hoje conhecemos como economia polí-
sentação, desenrolando o quadro das identidades e tica. O mesmo acontece com a história natural que,
das diferenças. “Sade atinge a extremidade do dis- deslocada a partir da importância dada à organiza-
curso e do pensamento clássicos. Reina exatamente ção e às funções, dá lugar à noção – aqui primordial
em seu limite” (Foucault, 1966a, 292). Através da – de vida. Assim, surge a biologia e os estudos sobre
violência do desejo, a representação então se desdo- a vida. A gramática geral também vai sofrer essa
bra sobre si mesma. desarticulação. Através da flexão, a língua passa a 44
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ser vista como um sistema complexo – as palavras foi somente através da filosofia – em especial a de
analisadas em sua relação. Já a linguagem, último Kant – que a finitude se “radicalizou”, atingindo a
a priori a se autonomizar, só pôde mudar quando própria consciência do homem. Portanto, “o ho-
mudou o ser mesmo das representações (Foucault, mem, na analítica da finitude, é um estranho duplo
1966a, 320). empírico-transcedental, porquanto é um ser tal que
nele se tomará conhecimento do que torna possível
Na épistèmé moderna, a linguagem se redupli- todo o conhecimento” (Foucault, 1966a, 439).
ca, volta-se a si indefinidamente. As palavras Essa idéia de que o homem é uma figura finita –
não mais se entrecruzam com as representa- uma invenção recente que logo se desvaneceria – é,
ções. Elas, assim, separam-se de vez das coisas. segundo Machado (2000), uma clara influência da
A partir desse movimento, a linguagem se do- filosofia de Nietzsche. Para o autor, a idéia niet-
bra sobre si. Com essa autonomização da lin- zschiana da “morte de Deus” e do surgimento do
guagem, surge a figura – recente – do homem. super-homem – acompanhado pelo desaparecimen-
É então no entrecruzamento do nascimento da to do próprio homem – é o que inspira Foucault a
biologia (com o conceito de vida), da econo- realizar sua arqueologia das ciências do homem.
mia (com o de trabalho) e da filologia (através Mas, lembra-nos Machado (2000, 10) “essa referên-
das flexões), que o homem surge como medida cia a Nietzsche se deve principalmente aos literatos
de todo o conhecimento – objeto e sujeito do franceses que introduziram na França não pro-
saber (Foucault, 1966, 430). Mais do que isso, priamente o comentário de Nietzsche, mas, o que
doravante o homem se descobre como ser fini- é muito mais importante, um estilo nietzschiano,
to: temporal e histórico. Aliás, ele só é possível não-dialético e não-fenomenológico, de pensamen-
através dessa finitude mesma. to: Bataille, Klossowski, Blanchot”. Mais adiante,
ele nos diz que “em entrevistas dos anos 80, Fou-
Machado (2000, 102) nos lembra que, com a bio- cault reconhecerá não só que Nietzsche, Blanchot e
logia, a economia e a filologia, a finitude do homem Bataille permitiram que ele se libertasse de Hegel e
se estabeleceu no nível empírico, sensível. Porém, da fenomenologia, como também que leu Nietzsche 45
lucas marques

por causa de Bataille e Bataille por causa de Blan- modernidade, a literatura é também seu “contra-
chot” (Machado, 2000, 107). Desse modo, fica clara -discurso”, pois contesta o estatuto da linguagem
a influência que a literatura exerceu sobre todo o com sua função significante (Foucault, 1966a, 119).
pensamento de Foucault. Essa reduplicação da linguagem literária, esse des-
Antes de adentrarmos nesse assunto, nos preocu- dobramento indefinido, faz com que o pensamento
paremos com o modo como se deu o nascimento da se mantenha no exterior de onde é possível a subje-
literatura para Foucault para, aí sim, analisarmos tividade. Assim, o (re)aparecimento do ser da lin-
como essa literatura foi o espaço mesmo que permi- guagem na literatura é o desaparecimento do pró-
tiu que Foucault construísse seu pensamento. prio sujeito (Machado, 2000, 114-115). Na literatura
Segundo Foucault (1966a, 417), o surgimento moderna, o sujeito que fala não é mais o responsá-
da literatura – tal qual a conhecemos hoje – só foi vel pelo discurso. Segundo Foucault (1966b, 221), “a
possível graças à épistèmé moderna. Na autono- fala da fala nos leva à literatura, mas talvez também
mização da linguagem, a literatura aparece como o a outros caminhos, a esse exterior onde desaparece
lugar mesmo onde as palavras se reduplicam. Lá, a o sujeito que fala. É sem dúvida por essa razão que
linguagem é levada ao infinito. Enquanto na épistè- a reflexão ocidental hesitou por tanto tempo em
mé clássica, com o imperativo das palavras, a lin- pensar o ser da linguagem: como se ela tivesse pres-
guagem era silenciada, na épistèmé moderna, com sentido o perigo que constituiria para a evidência do
o surgimento da figura do homem, o discurso se ‘Eu sou’ a experiência nua da linguagem”.
autonomiza. Assim, na modernidade, o isolamento É justamente nesse espaço possível que a litera-
da linguagem sobre si mesma propicia a criação de tura aparece como fenda, como potência possibi-
uma literatura que, não mais voltada à representa- litadora, como heterotopia. Levando ao limite a
ção, se reduplicasse incessantemente. experiência da linguagem, da finitude, da morte, da
A literatura, criação da épistèmé moderna, é tam- duplicação e do pensamento impensável (Foucault,
bém a que lhe é exterior; a fenda, que abre a possi- 1966a, 532), a literatura é o espaço que anuncia a
bilidade para que se possa pensar em outros cami- fragilidade da recente invenção do homem. E é aí
nhos, outros regimes de verdade. Possibilitada pela que, junto com os surrealistas, com Kafka, Bataille, 46
lucas marques

Blanchot, Borges e – por que não? – Nietzsche, que com sua leitura, perturba todas as familiaridades
Foucault vai alojar seu próprio pensamento. Não do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa
é por acaso que alguns dizem que ele é o mais lite- idade e geografia –, abalando todas as superfícies
rário dos filósofos e o mais filosófico dos escritores ordenadas e todos os planos que tornam sensata
(Molina, 1999). para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e in-
Com o passar do tempo, nos lembra Machado quietando, por muito tempo, nossa prática milenar
(2000), Foucault deixa de tocar nesse tema que do Mesmo e do Outro” (Foucault, 1966a, IX).
antes lhe era tão caro. Após seus escritos da década Desse modo, pretendo, nesse segundo momento
de 60, Foucault muda sua forma de pensamento. do texto, discorrer sobre o modo como a obra de
Passando da análise dos discursos à análise do po- Borges pode ser considerada essa “fenda” entre uma
der, a literatura passa a assumir, para Foucault, um épistèmé moderna e outra nova forma de pensar
papel extremamente diferente do anterior: não mais – que é própria da obra de Foucault. Vale lembrar
forma de libertação do humanismo e do estatuto do que, junto com Borges, outras obras podem desem-
“eu privilegiado”, mas parte do jogo de poder imbri- penhar esse papel. Através desse corte transversal –
cado nos saberes e no sujeito. Porém, vale lembrar, e, poderíamos dizer, também arbitrário – pretendo
seu pensamento só foi possível graças ao espaço buscar aproximações entre Borges e Foucault, entre
aberto pela literatura e pela obra de Nietzsche. a literatura moderna (espaço antes creditado por
Foucault como possibilitador de novas formas de
A realidade da fantasia e a fantasia pensar) e a reflexão filosófica que o próprio autor de
da realidade As palavras e as Coisas produziu.
Assim como Dom Quixote, de Cervantes, possibili- No mesmo prefácio d’As Palavras e as Coisas,
tou a épistèmé clássica, e Justine e Juliette, de Sade, Foucault nos fornece, ainda que brevemente, um
conformaram a transição da épistèmé clássica para conceito que considero essencial se quisermos se-
a moderna, a obra de Borges possibilitou o pensa- guir as linhas pelas quais o autor constrói sua filo-
mento de Foucault. Como ele mesmo nos diz: “Este sofia. Trata-se do conceito de heterotopia. Falando
livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, sobre esse conceito, ele vai nos dizer que: 47
lucas marques

As heterotopias inquietam, sem dúvida porque próprios regimes de verdade. Em um texto seu
solapam secretamente a linguagem, porque menos conhecido – escrito para uma palestra em
impedem de nomear isto e aquilo, porque fra- 1967, mas só publicado (sem revisão do autor) em
cionam os nomes comuns ou os emaranham, 1984 – chamado “Of Other Spaces”, Foucault (1967)
porque arruínam de antemão a ‘sintaxe’, e não vai desenvolver esse conceito de heterotopia, po-
somente aquela que constrói frases – aquela, rém focando-se agora no espaço enquanto entidade
menos manifesta, que autoriza ‘manter juntos’ física. Diferentemente das utopias, as heterotopias
as palavras e as coisas [...] as heterotopias encontram lugar no real, ainda que este lugar este-
(encontradas tão freqüentemente em Borges) ja fora de todos os outros espaços. As heterotopias
dessecam o propósito, estancam as palavras (como, veremos, o Aleph ou a Biblioteca de Borges)
nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda a são lugares onde estão concentrados todos os outros
possibilidade de gramática; desfazem os mitos lugares – um espaço-outro, onde nele se revela (e,
e imprimem esterilidade ao lirismo das frases logo, se inquieta) toda a ordem existente. Além de
(Foucault, 1966a, XIII). espaços de resistência, as heterotopias revelam a or-
dem, como nos diz, discutindo esse conceito na obra
Aqui, as heterotopias são pensadas enquanto sítios de Foucault e Borges, Robert Topinka (2010, 55):
de resistência a qualquer tipo de ordem. São, sobretu-
do, espaços que fogem, linhas de fuga, para falarmos Heterotopias are sites in which epistemes col-
como Deleuze (1994), processos de desterritoriali- lide and overlap, creating an intensification of
zação e territorialização que não são fixos, mas que knowledge. Such intensification is certainly
escapam; que evadem. As heterotopias inquietam. not at odds with the practice of resistance, but
Utilizando-se sobretudo de metáforas espaciais shifting our emphasis from one to the other
para constituir essa “arqueologia dos espaços or- promises new insights into the primary func-
denados”, Foucault vai tratar as heterotopias en- tion of heterotopias.
quanto “não-lugares”, ou seja, espaços que, como
a literatura de Borges, fazem-nos abalar nossos Para descrever as heterotopias, Focault (1967) 48
lucas marques

propõe até a elaboração de uma descrição sistemá- é o caráter fantástico existente nesses animais, mas
tica (uma “quase-ciência”), que ele vai chamar de a ordem alfabética que os liga e os colocam em uma
“heterotopologia”, para dar conta da análise desses série classificatória. Ou seja, é essa série (a, b, c, d...)
espaços-outros, como uma espécie de contestação que transgride toda a imaginação – a nossa. É essa
simultaneamente mítica e real do espaço em que heterotopia que fez Foucault rir durante muito tem-
vivemos, fazendo-nos revelar as ordens que aliam po; um riso inquietante, desajustado. Adentrarmos
poder e saber na sociedade. agora nas obras de Borges – relacionando-as com
Assim, é a partir da obra de Borges, tomada aqui as de Foucault – nos ajudará a melhor compreender
como um espaço heterotópico, que Foucault vai essa inquietude provocada em nossos pensamentos.
revelar e desestruturar a ordem presente, desvane- Em “O idioma analítico de John Wilkins”, Bor-
cendo a figura do Homem como, na orla do mar, um ges faz uma reflexão acerca da linguagem e de seu
rosto de areia. estatuto de ordenação (e, por que não, criação) do
Voltemos, então, a certa enciclopédia chinesa. mundo que lhe é característico. Através de certa
Para Foucault, o encantamento exótico que nos pro- “obra especulativa”, Wilkins vai atrás de um idioma
duz essa enciclopédia revela o limite de nosso pró- universal. Assim, nesse idioma, cada palavra se de-
prio pensamento. Esse limite se traduz na própria finiria a si mesma e nenhuma seria meramente um
impossibilidade patente de se pensar isso (Foucault, símbolo arbitrário. Esse idioma serviria, por conta
1966a, IX). Essa impossibilidade não se encontra de sua especificidade, também como enciclopédia,
na vizinhança das coisas, mas no lugar mesmo onde pois, ao tomar conhecimento da palavra, dever-se-ia
elas poderiam avizinhar-se. Assim, “os animais ‘i) tomar conhecimento de tudo que ela poderia signi-
que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) dese- ficar. Ao dividir o universo em 40 categorias, subdi-
nhados com um pincel muito fino de camelo’ – onde vididas em diferenças que, por sua vez, se subdivi-
poderiam eles jamais se encontrar; a não ser na voz diriam em espécies, Wilkins não escapa, entretanto,
imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser das ambiguidades características da classificação. E
na página que a transcreve?” (Foucault, 1966a, XI). é ai que Borges aproxima o idioma criado por Wi-
Dito de outro modo, o que nos causa estranheza não lkins da “certa enciclopédia chinesa” que Foucault 49
lucas marques

cita em seu prefácio. Essas ambiguidades servem própria classificação – ou o “não-sentido” – delimi-
para mostrar, como nos diz Borges, que “não há ta os limites do que faz sentido ou não, ou seja, do
classificação do universo que não seja arbitrária que nos é possível: em suma, de nossa épistèmé.
e conjectural. A razão disso é muito simples: não Esse tema se mantém em diversos outros contos
sabemos o que é o universo” (Borges, 1952, 124). O de Borges. Além disso, algumas outras aproxima-
autor vai ainda mais longe ao questionar o estatuto or- ções entre Borges e Foucault podem ser buscadas a
gânico e unificador que permeia esse conceito abstrato partir da obra de Borges.
e ambicioso que é o universo (Borges, 1952, 125). No conto “O Aleph”, Borges – após a morte da
À luz do texto supracitado – e após as reflexões personagem Beatriz Viterbo – nos leva ao encontro
aqui apresentadas – podemos delinear algumas de Carlos Argentino Daneri, primo-irmão de Beatriz
aproximações entre a obra de Borges com o pensa- que escrevia um poema e que exercia um cargo su-
mento foucaultiano. Ao falar sobre a arbitrariedade- balterno em uma biblioteca qualquer. Após ganhar
-conjectural que permeia a classificação do universo uma suposta confiança do protagonista, Daneri o
– portanto, das palavras e das coisas –, Borges nos apresenta ao Aleph. O Aleph “é um dos pontos do
diz, assim como Foucault, que há ordem; porém, espaço que contém todos os outros pontos [...] o lu-
essa ordem não é universal, orgânica. Como nos diz gar onde estão, sem se confundirem, todos os luga-
Menezes (2008, 22), “a assertiva de Borges: ‘há or- res do planeta, vistos de todos os ângulos.” (Borges,
dem’, denuncia para Foucault o a priori histórico da 1949, 145). Após uma série de requisitos necessários
épistèmé na dimensão da construção da linguagem, para visualizar o Aleph, do fundo de um porão escu-
que atravessa todo o quadro do nosso pensamento, ro, o protagonista enfim o vê.
situado em termos da sua ‘idade’ e ‘geografia’”. Nesta parte do texto, Borges interrompe a narrati-
Ao falar dessa ambigüidade presente na classifica- va para discorrer sobre a impossibilidade do relato
ção, ou seja, dessa possibilidade do “não-sentido” se nessa forma linear que se dispõe a linguagem. Dian-
ordenar em um quadro classificatório, Borges nos te da infinitude do Aleph, sua enumeração torna-se
abre a possibilidade de pensar que essa “ordem” impossível; pois não há como enumerar infinitos
não é natural, tampouco universalmente legítima. A que se apresentam simultaneamente. O Aleph é um 50
lucas marques

4 Cabe lembrar que os infinito que encerra sua infinitude na finitude que e quiçá infinito, de galerias hexagonais, com vastos
contos “O idioma Analí- é ele próprio. Em uma esfera de aproximadamente poços de ventilação no centro, cercados por varan-
tico de John Wilkins” e
“A biblioteca de Babel” dois ou três centímetros de diâmetro, o espaço cós- das baixíssimas” (Borges, 1941, 84). Essa biblioteca
são também analisados mico inteiro se faz ali presente, sem diminuição de é, portanto, interminável: uma esfera cujo centro
por Menezes (2008). tamanho. O protagonista, então, tudo vê no Aleph, é qualquer hexágono, cuja circunferência é inaces-
inclusive ele mesmo e o próprio Aleph – movimento sível. Ela não tem espaço nem tempo definidos.
que se repete infinitamente. Não fosse a inescapável Dentro da Biblioteca estão todos os livros – tanto os
ação do esquecimento, o protagonista seria capaz de que já existiram como os que irão existir. É possível
reconhecer tudo o que existe ou já existiu. encontrar todas as combinações possíveis dos 25
O Aleph, então, é o espaço infinito, a própria he- símbolos ortográficos existentes, de qualquer idio-
terotopia que desfigura os demais espaços. Espaço, ma. Qualquer série de símbolos já está lá, nalgum
pois delimita sua finitude em uma esfera, e infinito, livro. Entretanto, não existem, em uma única pra-
pois essa finitude abarca todo o universo, toda a teleira sequer, dois livros idênticos. Na Biblioteca
infinitude. É o espaço do impensável, do indizível; (ou no universo) tudo que é dado a expressar já está
aquilo que está no exterior de toda a nossa épistè- preexistente. Tudo, inclusive (acredita-se) um livro
mé: universo que se faz universo; repetição ilimita- que indicaria todos os demais. Esse livro total seria
da de todos os mundos possíveis. o compêndio de todos os outros, o próprio sentido
O texto sobre John Wilkins não é o único de Bor- da existência do universo. Ademais, alerta-nos Bor-
ges que será comentado por Foucault em sua vasta ges, basta que um livro seja possível para que ele
obra. Outro conto nos chama a atenção, tanto por exista – pois na biblioteca tudo há.
ser trabalhado por Foucault, quanto por ser possível Labirinto infindável e periódico de hexágonos rode-
abstrair nele parte da reflexão foucaultiana – parte ados de espelhos, a biblioteca é, pois, a multiplicação
que aqui nos interessa. Trata-se do conto “A biblio- da linguagem (e do universo) ao infinito. Apesar de
teca de Babel”4. já ser infinita, a biblioteca ainda multiplica-se pelos
Nesse conto, “o universo (que outros chamam a espelhos e pelos livros que falam sobre ela mesma,
Biblioteca) constitui-se de um número indefinido, nos revelando que “mesmo o infinito da linguagem se 51
lucas marques

multiplica ao infinito, repetindo-se sem fim nas figu- diferentes formas de organização dos saberes”.
ras do Mesmo” (Foucault, 1963a, 58). Sustentação infinita dos fragmentos da linguagem,
Ao pensar sobre o “livro total”, Foucault (1963a, a Biblioteca é infinita e efêmera, real e fantástica.
59) nos fala que ele é um “lugar sem lugar”, abri- Seu paradoxo é o próprio paradoxo da linguagem. A
go de todos os livros possíveis, porém antes e após linguagem multiplicada ao infinito que, a partir daí,
todos eles. Ele é, portanto, o espaço mesmo da lite- faz com que o próprio ser que fala desapareça. Ela
ratura. Aqui podemos pensar que, assim como esse aparece, portanto, nesse ponto em que se encontra o
“livro total”, o Aleph exerce o mesmo papel. Lugar “livro total” e o Aleph: na infinitude da finitude e na
sem lugar, a biblioteca e o Aleph são infinitos que se finitude da infinitude; na realidade da fantasia e na
encerram em sua finitude – que se desdobram inde- fantasia da realidade. É aí que a ficção aparece como
finidamente. o espaço próprio da constituição desse paradoxo.
Para Motta, a “Biblioteca de Babel” é um exemplo É na forma de ficção que esse saber construído
do nascimento da literatura e, portanto, do parado- sobre a realidade se desvela. Através da ficção, a lin-
xo mesmo do ser da linguagem: essa linguagem que guagem se duplica e dobra-se sobre si mesma. Du-
“retorna e consome em sua figuração outra lingua- plo movimento da épistèmé moderna, a ficção cria
gem diferente, fazendo nascer uma figura obscura o sujeito para, logo, o desvanecer. Para Foucault, a
mas dominadora na qual atuam a morte, o espelho ficção é “o que nomeia as coisas, fá-las falar e ofe-
e o duplo, o ondeado ao infinito das palavras” (Mot- rece na linguagem seu ser já dividido pelo soberano
ta, 2009, XI). Paradoxo que, a partir de Sade, abre a poder das palavras” (Foucault, 1963b, 68). Definin-
possibilidade de uma épistèmé moderna, mas que, ao do o fictício, Foucault nos diz que ele é “a nervura
mesmo tempo, multiplica essa linguagem ao infinito; verbal do que não existe, tal como ele é” (Foucault,
expurga o sujeito, se autonomiza – espaço criador 1963b, 69). Isso nos diz que é através da realida-
para uma nova ordem em potencial. Assim, confor- de da fantasia que a fantasia da realidade pode ser
me Menezes (2008, 23), “a biblioteca materializa, desnudada.
através da linguagem, o paradoxo da noção de épis- Daí a importância do chamado “realismo fantásti-
tèmé na delimitação de uma ordem do espaço e das co” para o pensamento do Foucault. O realismo fan- 52
lucas marques

5 Isso se deve sobretudo tástico desvela essa heterotopia que provocou o riso From the standpoint of the mirror I discover
ao fato de que, como em Foucault. Mais do que a utopia, a heterotopia my absence from the place where I am since
nos lembra Topinka
(2010), há dois concei- revela a variedade de mundos possíveis, ou mesmo I see myself over there. Starting from this
tos distintos de hetero- impossíveis, impensáveis. Essas heterotopias estão gaze that is, as it were, directed toward me,
topia tal qual utilizado presentes na ficção, no surrealismo, no realismo from the ground of this virtual space that is
por Foucault: o primei-
ro é fundamentalmente fantástico de Borges e etc. São linhas de fuga que on the other side of the glass, I come back
textual (presente em As nos inquietam, revelando-nos a ordem e fazendo- toward myself; I begin again to direct my
Palavras e as Coisas), -nos nos posicionar. eyes toward myself and to reconstitute myself
enquanto no segundo as
heterotopias são descri- Espelhos, labirintos, bibliotecas, enciclopédias, there where I am (1967, 24).
tas como espaços físicos deuses, universos: são essas as temáticas recorren-
(aprofundado em “Of tes de Borges (e que tanto agradaram Foucault). Todos esses elementos funcionam como fendas,
Other Spaces”).
É interessante notar que a maioria das temáticas heterotopias – passagem que transporta o leitor
utilizadas por Borges, como a biblioteca, o Aleph, para o espaço do impensável – que o fazem questio-
a Gramática e o espelho, são também temáticas nar suas próprias realidades. Talvez por isso ele nos
semelhantes às usadas por Foucault (1966a), seja provoque esse riso inquietante. Textos que retor-
analisando o próprio Borges, seja analisando o qua- nam a textos; dobras que se voltam a si. Através da
dro “Las Meninas”, de Velásquez, seja analisando a ficção, Borges eleva a linguagem ao infinito que é ela
própria linguagem. Esses espaços seriam, aqui, he- mesma. Com a reduplicação da linguagem, Borges
terotopias par excellence. Entretanto, em “Of Other questiona nossas universalidades, arromba nossas
Spaces” (1967), esses espaços ocupam, quando mui- neutralidades. E talvez aí seja onde ele mais se pare-
to, um meio caminho entre a utopia e a heterotopia, ça com Foucault.
como é o caso, por exemplo, do espelho5. Em um Borges, assim como Foucault, foi uma pessoa in-
tom de desabafo de seu próprio pensamento bem quietante (e, mais do que isso, inquietadora). Leitor
semelhante ao utilizado no prefácio d’As Palavras e assíduo das teorias filosóficas de sua época e pensa-
as Coisas, com a leitura de Borges, Foucault diz: dor inusitado, Borges teve grande inspiração na fi-
losofia. Chegou a dar palestras em grandes universi- 53
lucas marques

6 Como referência vide dades, discutindo temas aparentemente ordinários, doxo que é a reduplicação indefinida da linguagem.
Borges, 1979. mas através de grandes reflexões filosóficas6. Ele foi, Unir Borges e Foucault nos faz mostrar que ambos
em suma, um grande pensador, que buscou através estão nessa situação de fenda. Essa possibilidade do
de contos, romances e poesias mostrar que se pode desvanecimento do homem (como na orla do mar,
pensar em outros mundos possíveis, em espaços um rosto de areia) se dá através de suas próprias
inimagináveis, intangíveis. Borges nos revela, atra- obras. Revelar o rosto do homem significa construir
vés da realidade da fantasia, a fantasia mesma que é essas linhas de fuga, essas heterotopias que abrem
a realidade – movimento que Foucault se apropria fendas. Como nos diz Agambem (1996) em um ins-
para elucidar a relação entre poder e saber, entre o pirador ensaio sobre O Rosto:
que nos é possível e aquilo que nós tornamos pos-
sível. E talvez o quadro de Velásquez que Foucault A revelação do rosto é a revelação da própria
evoca em seu primeiro capítulo d’As Palavras e as linguagem. Essa não tem, consequentemente,
Coisas seja ainda o que melhor ilustre essa relação. nenhum conteúdo real, não diz a verdade so-
Mesma metáfora do espelho, ali a linguagem se bre esse ou aquele estado da alma ou de fato,
reduplica, fazendo com que o sujeito desapareça da sobre esse ou aquele aspecto do homem ou do
cena do quadro. Assim também a biblioteca, o Ale- mundo: é unicamente abertura, unicamente
ph e a enciclopédia chinesa fazem com que, através comunicabilidade. Caminhar pela luz do rosto
do desdobramento sobre si próprio, o sujeito que significa ser essa abertura, padecer dela.
fala desapareça, e a linguagem enfim se autonomi-
ze. Duplo-movimento (como já foi dito) que se faz Ao mostrar-nos que nossos saberes são, em suma,
possível em nossa épistèmé mas que a atravessa, historicizados e que mesmo o espaço do impossível
irrompendo novas possibilidades. pode-nos ser algum dia o espaço ordenado, Fou-
Assim, nessa fenda possibilitadora onde se en- cault e Borges arrombam nossas neutralidades, nos
contram Nietzsche, Blanchot, Bataille, Borges e o inquietam, pois nos posicionam.
espaço da literatura na épistèmé moderna, podemos E se, para Foucault, filosofar é pensar diferente do
situar o próprio Foucault. Ele faz parte desse para- que se pensa, pensemos então as heterotopias. Pen- 54
lucas marques

semos a biblioteca, o Aleph, a enciclopédia chinesa. Bibliografia


E talvez, desse riso que nos inquiete e nos cause
estranheza, possamos, ao fim e ao cabo, criar. agambem, Giorgio. 1996. “O Rosto”. Tradução de: Il
volto. In: Mezzisenza fine. Note sulla politica. Bolla-
ti Boringhieri: Torino, 74-80. Retirado do blog:
http://murilocorrea.blogspot.com.br/2010/02/
traducao-o-rosto-de-giorgio-agamben.html
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lucas marques

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