Em 1434, D. Duarte, ainda infante, cria o cargo de cronista-mor do reino e entrega-o a
Fernão Lopes, “guardador” da Torre do Tombo. Foi então incumbido de “por em cronica as histórias dos reis que antigamente em Portugal foram”, assim “como os grandes feitos e altos do mui virtuoso e das grandes virtudes” d’el rei seu pai. Esta nomeação mostra claramente a intenção de criar uma memória coletiva e uma consciência identificadora que permita contribuir para a afirmação do Estado e da Nação.
Fernão Lopes escreveu três Crónicas, a de D. Pedro, a de D. Fernando e a de D. João I,
com relevo para esta última. Nela se relatam acontecimentos que não foram por ele presenciados, pois ainda era uma criança, mas soube reconstrui-los e recriá-los, fazendo aquilo a que chamamos investigação histórica, consultando fontes escritas contemporâneas dos factos narrados. Como escritor podemos dizer que ele é um mestre da narração e da descrição, com perfeito domínio da língua.
CRÓNICA DE D. JOÃO I - 1.ª Parte - Narração dos acontecimentos desde a morte do
rei D. Fernando até à subida ao trono de D. João I (crise de 1383-85)
Capítulo XI
texto predominantemente narrativo, pois é dominado pela ação, a qual
consiste numa sucessão linear e ordenada de acontecimentos que se encadeiam uns nos outros segundo uma relação de causa - efeito; utilização da “técnica da reportagem” ao descrever de forma minuciosa e realista os acontecimentos como se também estivesse presente e participasse neles ; descrição da multidão na sua diversidade, movimento e poder, e que é feita a partir dos sentidos como a visão e a audição. Ex: “Soarom as vozes do arroido pella çidade, ouvimdo todos braadar que matavom o Meestre; e assi como viuva que rei nom tiinha, e como sse lhe este ficara em logo de marido, se moverom todos com maão armada, corremdo a pressa pera hu deziam que sse esto fazia, por lhe darem vida e escusar morte.”; existência de frases curtas, sob a forma de discurso direto, para reproduzir as diferentes “vozes” que ora apelam à união em defesa do Mestre, ora incitam à violência ou juram fidelidade ; presença do Mestre, personagem individual, em todo o texto, pois ele é a razão que determina a movimentação do povo, que se une para defender a sua vida e, se for preciso, vingar a sua morte; 2
o povo a evidenciar uma consciência coletiva das suas responsabilidades em
defesa da liberdade e da causa do Mestre de Avis, futuro rei É a sua força, coragem e patriotismo que permitem que a história seja assim feita.
Capítulo CXLVIII
texto predominantemente descritivo, onde se analisa sob vários pontos de
vista (económico, social e psicológico), o cerco castelhano à cidade de Lisboa; descrição minuciosa, por vezes muito rigorosa, como, por exemplo, na enumeração de produtos, quantidades, preços; a personagem central é uma personagem coletiva , representada através de diferentes grupos sociais ( ricos, pobres, grandes, pequenos, mãe, pais, filhos), irmanados pela situação (cidade cercada; sem mantimentos; excesso de população); apesar de desesperada, a população, que vivia duas guerras, «ua dos emigos que os cercados tinham, e outra dos mantimentos que minguavom”, estava sempre pronta a defender a cidade, mostrando assim o seu patriotismo; referência a uma personagem individual – o Mestre, solidário , por um lado, com a personagem coletiva, mas que também se distancia dela, dado a sua impotência para resolver a situação; subjetividade do narrador, presente nas frases de tipo exclamativo e interrogativo, que se emociona com o dramatismo da situação; tom coloquial (próximo da oralidade) com vista a aproximar o leitor/ouvinte dos acontecimentos ( uso do imperativo e da 2ª pessoa do plural, bem como recurso aos verbos ver, ouvir, olhar), criando assim uma maior cumplicidade e favorecendo o visualismo.
CARACTERÍSTICAS DA PROSA DE FERNÃO LOPES:
as personagens surgem humanizadas , pois não se apresentam apenas como
heróis de grandes batalhas, mas também são dadas a fraquezas e capazes de cometer erros; a narração é muito movimentada e dinâmica, por vezes até de um ritmo precipitado, sobretudo quando o povo surge como herói; o realismo e a vivacidade que imprime à recriação dos espaços e dos acontecimentos, com muitos dados sensoriais, confere visualismo à sua narrativa, permitindo assim ao leitor “vê-los” e “vivenciá-los”; a preferência pelo uso do pretérito imperfeito do indicativo com vista a uma aproximação do leitor/ouvinte dos acontecimentos; o estilo é gracioso, vivo e coloquial, consequência das intervenções que faz ao longo do discurso, ora exclamando ora interrogando o leitor, numa tentativa de o colocar ao seu lado, o que o transforma num narrador subjetivo; 3
o seu espírito observador permite-lhe captar as reações, atitudes e
comportamentos dos indivíduos, razão pela qual dizem que ele é “o pintor das multidões”, dando-nos quadros ora plenos de alegria, ora reveladores de grande intensidade dramática.