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realidade psíquica
Resumo
Atravessados pela psicanálise, procuramos desconstruir as chamadas realidades virtuais, com
o intuito de compreender os elementos que as sustentam. Deveriam elas ser desconsideradas
pelo fato de não possuírem “corporalidade”? A dinâmica psíquica de um sujeito ora on-line,
ora off-line apresenta diferenças significativas? Estaríamos vivendo uma era narcísica mediada
pela virtualidade, ou a virtualidade é apenas uma nova roupagem de modalidades narcísicas
de relações objetais? Para responder a esses questionamentos, primeiramente discorreremos
um pouco sobre o surgimento do conceito de fantasia na obra freudiana e sobre o fenômeno
internet e, assim, realizar um entrelaçamento sobre a realidade virtual e a realidade psíquica.
1. Este texto se baseia no trabalho apresentado no XXI Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e no I Congresso In-
ternacional de Psicanálise - Conexões Virtuais: Diálogos com a Psicanálise, realizado pelo Círculo Psicanalítico do Rio Grande
do Sul em Porto Alegre, nos dias 23, 24 e 25 jul. 2015. Ele faz parte de um projeto de pesquisa que conta com uma Bolsa de
Produtividade em Pesquisa do CNPq (Processo n. 312687/2013-3).
[...] tais traumas sexuais devem ter ocorrido branças infantis e com base nelas, e, de outro,
em tenra infância, antes da puberdade, e seu eram diretamente transformadas nos sinto-
conteúdo deve consistir numa irritação real mas.
dos órgãos genitais (por processos semelhan-
tes à copulação) (Freud, [1896] 1996, p. 164). Essa nova perspectiva levou Freud a rever
o mecanismo dos sintomas histéricos. Es-
É necessário ressaltar que, nesse período, ses sintomas não seriam derivados das lem-
Freud ([1896b] 1996) acreditava que a his- branças recalcadas das experiências infantis:
térica e o obsessivo haviam vivenciado real- entre os sintomas e as impressões infantis,
mente uma experiência sexual. Essa primei- existiria a fantasia que fora construída a par-
ra teoria do trauma ficou conhecida como tir das lembranças infantis, diretamente con-
teoria da sedução. A ênfase dada a essa teo- vertidas em sintomas.
ria apresentava um sujeito passivo frente à Freud tentava se afastar da justificativa de
sexualidade que seria externa a ele. O pai se que a neurose seria causada por fatores cons-
torna o personagem principal dessa teoria, e titucionais e hereditários. Mas no momento
a mãe aparecerá só mais tarde; ele é o acusa- em que percebeu que sua teoria da sedução
do de perversão e histerização de suas filhas havia sucumbido, ele se viu em numa encru-
– de forma geral a sedução ocorria com as zilhada: se a sedução como fator caíra por
mulheres (Ceccarelli, 2001). terra, os fatores constitucionais e hereditá-
Entretanto, Freud ([1886-1889] 1996) rios teriam de voltar.
passou a não acreditar mais em sua ‘neuró- Contudo, ele resolve esse dilema numa
tica’ por vários motivos, entre os quais elen- torção da “disposição neuropática geral”
de desejo ou equipara-se até mesmo à ocor- lidade, embora a base de todas elas seja re-
rência do evento desejado (Freud, [1911] solver, dar sentido ao enigma da sexualidade
1996, p. 69-70). (Cabas, 2005).
Segundo Laplanche (1982, p. 169) a fanta-
Freud ([1911] 1996) percebe que o mun- sia é entendida como um:
do da fantasia parece estar no quadro opo-
sitivo entre o mundo interno, que busca a Roteiro imaginário em que o sujeito está pre-
satisfação ainda que marcada pela ilusão, e sente e que representa, de modo mais ou me-
o mundo externo, que impõe o princípio da nos deformado pelos processos defensivos, a
realidade; assim é que nós nos movemos no realização de um desejo e, em última análise,
imaginário, no subjetivo (Laplanche; Pon- de um desejo inconsciente. A fantasia apre-
talis, 1990). senta-se sob diversas modalidades: fantasias
Essa reviravolta em sua teoria é mencio- conscientes ou sonhos diurnos; fantasias in-
nada em Um estudo autobiográfico, no qual conscientes como as que a psicanálise revela,
Freud ([1924] 1996) alega que esse erro po- como estruturas subjacentes a um conteúdo
deria ter consequências fatais para o traba- manifesto; fantasias originárias.
lho analítico. Segundo ele, a maioria de seus
pacientes reproduzia cenas infantis nas quais
eram sexualmente seduzidos por um adulto Fantasia e internet
e, naquele momento, ele acreditara nessas Após essa breve digressão sobre o conceito
narrativas como fatos. Aos poucos, contudo, de fantasia na obra freudiana, abordaremos
ele foi levado a reconhecer que essas cenas um fenômeno que está cada vez mais presen-
jamais haviam existido: eram fantasias de te na sociedade contemporânea: a internet.
seus pacientes. Essa tecnologia, que se integrou totalmente à
A partir daí, Freud ([1924] 1996) perce- paisagem cultural das últimas décadas, pode
be que os sintomas tinham ligação não com ser transformada num ‘estilo de vida’: viver
os fatos, mas com as fantasias: “[...] no to- aquilo que sempre se quis, ter os melhores
cante à neurose, a realidade psíquica era de amigos possíveis, ter uma profissão diferen-
maior importância que a realidade material” te da qual se escolheu, enfim, ser ‘mais feliz’,
(Freud, [1924] 1996, p. 40). ou seja, realizar tudo aquilo que sempre se
Dessa forma, “[...] gradualmente apren- sonhou, sem que a realidade seja levada em
demos a entender que, no mundo das neuro- conta.
ses, a realidade psíquica é a realidade decisi- A partir de um computador pode-se
va” (Freud, [1917] 1996, p. 370). construir um avatar, escolher seu sexo, suas
As fantasias inconscientes estão na ori- características físicas e psicológicas, entre
gem dos sintomas histéricos, e as fantasias outras coisas, e passar a se relacionar com
conscientes seriam os sonhos e os devaneios outros avatares, vivendo num mundo total-
diurnos. E as fantasias conscientes podem se mente virtual, em tempo real e sem a barrei-
tornar inconscientes ou vice-versa, não sen- ra da distância.
do redutíveis a um único registro. Para Castells (2003) citado por Ferreira-
A algumas recordações, que raramente -Lemos (2011), vivemos na era da internet:
estão ausentes da história da infância neuró- um grande símbolo de conectividade entre
tica, Freud dá o nome de fantasias “originá- pessoas, computadores e informações. In-
rias” ou “universais”: fantasias da cena pri- dependentemente do que pensamos sobre
mária, da castração e de sedução. Elas alme- a sociedade em rede, ela já está preocupada
jam responder, respectivamente, ao enigma conosco. Devemos lembrar que, na internet,
das origens, da diferença sexual e da sexua- temos não identidades mas perfis; além dis-
so, ela se insere como uma nova forma de so fantasístico de quem a anuncia, podemos
controle. Esses perfis criados serão idealiza- perceber que há somente uma realidade: a
dos e perfeitos. psíquica, mesmo que as relações sejam vir-
Há outras formas de se reinventar crian- tuais ou presenciais.
do perfis falsos nas redes sociais. Também é
possível externar o ódio a uma certa popula- A fantasia, ou melhor, a fantasmática de um
ção, etnia ou minorias, como verificamos nas indivíduo seria responsável pelos sonhos,
últimas eleições, atrás da tela de um compu- pelos sintomas, pelo agir, pelos comporta-
tador, muitas vezes sem se comprometer. mentos repetitivos, por todo o dinamismo do
Uma das principais características da vida indivíduo. Ela modela e estrutura o conjunto
em rede seria, sem dúvida, a miscelânea de da vida do indivíduo (Porchat, 2005, p. 25).
possibilidades e o anonimato que ela oferece.
Lanzarin (2000) acredita que nas relações Castells (2003) acentua a possibilidade de
virtuais – aquelas que ultrapassam a presen- as pessoas assumirem diversas identidades e
ça física – só é possível conhecer o outro a fantasias em rede, assegurando que, ao con-
partir da mensagem do destinatário. Logo, a trário da oposição real versus virtual, a práti-
rede possibilita o anonimato, que melhor faz ca social da internet é uma extensão da vida
surgir outros habitantes da subjetividade. como ela é. Dessa forma, a internet não seria
Em seu artigo Escritores criativos e deva- um lugar para o qual fugir do mundo real,
neios Freud ([1908] 1996) acredita que os mas uma própria extensão da vida (Cas-
primeiros traços do fantasiar já se encon- tells, 2003 apud Ferreira-Lemos, 2011).
tram na infância. Como a atividade predileta Busquemos como exemplo o filme Her
da criança é o brincar, já poderíamos com- (traduzido para Ela em português). Theodo-
pará-la a um escritor, pois ela cria um mun- re (Joaquin Phoenix) compra um novo sis-
do próprio, reajustando os elementos de seu tema operacional com inteligência artificial
mundo da forma que lhe agrade. para computador com voz feminina e perso-
O escritor faz o mesmo que a criança que nalidade, e que pela qual, para sua surpresa,
brinca: cria um mundo de fantasias, no qual ele acaba se apaixonando. Poderíamos dizer
investe bastante, mas consegue diferenciá-lo que Theodore não esteve apaixonado por Sa-
da realidade. As motivações das fantasias são mantha ou se relacionou com ela (nome do
sempre os desejos insatisfeitos. Toda fantasia programa de computador dado por ela mes-
é a realização de um desejo, uma correção da ma)?
realidade insatisfatória. No início ele fica em dúvida, relatando
Diante disso, poderíamos comparar a que ela (Samantha) parece uma pessoa, mas
criança e o escritor àquele internauta que é só uma voz no computador. Quando ele
constrói perfis falsos no Facebook ou outros lhe diz: “Não acredito que estou falando com
sites, ou que participa de jogos que simulam meu computador!”, Samantha lhe responde:
a vida real, já que eles também, assim como “Você está falando comigo!” Um dos fatos
a criança e o escritor, constroem um mun- mais interessantes no filme é que Saman-
do a partir de seus desejos, mesmo por rela- tha parece obcecada para ter um corpo, não
cionamentos virtuais, pois tanto a realidade Theodore. E embora ela não tenha um cor-
material quanto a virutal se orientam pela po, isso não os impede de se relacionarem
realidade psíquica. sexualmente.
Ceccarelli & Lindenmeyer (2012) nos re- Muito interessante ainda é a profissão de
lembram que na clínica o mais importante a Theodore – escritor de cartas românticas
ser observado é a dinâmica psíquica por trás para outras pessoas – numa sociedade na
do fenômeno observado. Através do univer- qual impera a utilidade de máquinas, uma
sociedade ultratecnológica. Em uma cena, nenhum vestígio do que foi. Em seu relacio-
Samantha consegue alguém para se ‘encar- namento, Theodore não estaria experimen-
nar’ em um corpo para simular uma “relação tando a castração, a falta, o desamparo, a
sexual real” com Theodore, mas é Theodo- angústia e a incompletude nas ausências de
re quem não consegue suportar sua fantasia Samantha? Sobretudo quando ela se relacio-
com ‘aquele’ corpo. na com 8.360 pessoas ao mesmo tempo em
Em determinada altura do filme, o siste- que fala com ele, ou quando se apaixona por
ma operacional fica fora do ar, e Theodore 641 pessoas além dele?
se desmorona com a falta, a castração tanto
que vai ao computador procurar Samantha
e, quando não a encontra, sai correndo pelas Abstract
ruas a sua procura. Logo após ela retorna e We sought to deconstruct the so called virtual
diz que se reuniu com outros sistemas opera- realities, intending to understand the elements
cionais (OS) para uma atualização. Não po- that support them. Should they be dismissed
deríamos perceber a falta, a angústia ou uma because not pertaining to a ‘coporeality? The
rachadura na fantasia? psychical dynamic of someone sometimes on
line, sometimes off line, show meaningful dif-
Considerações finais ferences? Are living at narcissical era media-
A evolução biológica, a aquisição de novos ted by virtuality or is it only a new expedient
conhecimentos, assim como o progresso tec- to show narcissical object realitions? To shed
nológico, em nada contribuem para o “pro- some light on these issues, we’ll discuss about
gresso psíquico”. O trabalho de cultura (Kul- the idea of fantasy at the Freudian text and the
turarbeit) apenas reatualiza antigas estraté- internet phenomenon, as to acheive a coupling
gias para lidar com o recalque e a repressão between virtual reality and psychical reality.
na tentativa, sempre fracassada, de mascarar
o mal-estar na cultura (Das Unbehagen en Keywords: Virtual reality, Psychical reality,
der Kultur): Fantasy.
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