You are on page 1of 34

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

Instituto de Ciências Humanas


Curso de Licenciatura em História

Trabalho de Conclusão de Curso

Esporte e exclusão:
O negro no futebol Pelotense (1925-1938)

Christian Ferreira Mackedanz

Pelotas, 2014
Christian Ferreira Mackedanz

Esporte e exclusão:
O negro no futebol Pelotense (1925-1938)

Trabalho acadêmico apresentado ao


curso de Licenciatura em História da
Universidade Federal de Pelotas, como
requisito parcial à obtenção do título de
Licenciatura em História.

Orientadora: Profª. Drª. Lorena Almeida Gill

Pelotas, 2014
Christian Ferreira Mackedanz

Esporte e exclusão: O negro no futebol Pelotense (1925-1938)

Trabalho de Conclusão de Curso aprovado, como requisito parcial, para obtenção do


grau de Licenciatura em História, Instituto de Ciências Humanas, Universidade
Federal de Pelotas.

Banca examinadora:

Profª. Drª. Lorena Almeida Gill (Orientador),


Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Prof. Dr. Luiz Carlos Rigo,


Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas.
Resumo

MACKEDANZ, C. F. Esporte e exclusão: O negro no futebol Pelotense (1925-1938),


Pelotas, Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, 2014,
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História).

Este trabalho discute como o futebol se relacionou com o quadro excludente que os
negros enfrentavam no período pós-abolição em Pelotas, a partir de uma
perspectiva social e cultural. Na pesquisa, através da análise de periódicos,
fotografias e depoimentos, é feito um debate sobre quais as semelhanças e as
diferenças entre o contexto nacional de democratização do futebol e a situação do
esporte nessa cidade e qual o impacto dessas mudanças na sociedade. É analisado,
ainda, o papel que o futebol vai desempenhar neste ambiente já referido, sendo, às
vezes, reprodutor daquele quadro social excludente e, em outros momentos, agindo
como um instrumento de organização dos afro-descendentes.

Palavras-chave: exclusão; futebol; Pelotas; pós-abolição.


Sumário

Introdução .................................................................................................................. 6
Capítulo Teórico-Metodológico ................................................................................ 8
O Preconceito com o Negro no Futebol em Pelotas ............................................ 16
Considerações Finais ............................................................................................. 32
Referências Bibliográficas ..................................................................................... 33
Introdução

“No Brasil, o futebol é bastante jogado e insuficientemente pensado”


(FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 11). Começo este trabalho com esta citação porque ela
reflete bastante a minha experiência com o tema. Comecei a jogar futebol desde
pequeno. Jogava em casa com a família, jogava na vizinhança com os amigos,
jogava até na escolinha de futebol.
De tanto jogar, por problemas físicos, surgidos relacionados ao esporte, tive
que me afastar da prática por um longo tempo, ainda na sétima série. Comecei a me
dedicar à leitura, a me interessar pelas ciências humanas, mas sempre sem
desconfiar da possibilidade de vincular esses dois temas que pareciam tão opostos.
Há aproximadamente um ano e meio fui selecionado como bolsista do PIBID,
programa da CAPES voltado à área de ensino, sem saber que ele viria a influenciar
não só no meu futuro como professor, mas também nas minhas pesquisas. Como
este programa tem como um dos principais objetivos trabalhar de forma
interdisciplinar, aproximei-me de acadêmicos de várias áreas.
Paralelamente a isso, em um evento da UFPel, conheci o professor Luiz
Carlos Rigo, da Faculdade de Educação Física desta Universidade, e através dele
descobri esta linha de pesquisa, de Estudos Sóciohistóricos do Futebol.No semestre
seguinte cursei na ESEF a disciplina de Futebol I, junto com os colegas da
Educação Física que participavam do PIBID. A partir daí meu interesse pelo tema só
aumentou, tanto que, atualmente, sou bolsista FAPERGS justamente nesta área de
pesquisa.
Sobre a escolha de trabalhar o preconceito com o negro, dois fatores me
instigaram. Primeiro, tenho uma postura política de apoio aos grupos
marginalizados, sendo solidário à causa do combate ao preconceito e ao racismo.
Em segundo lugar, percebe-se que essa temática não tinha sido ainda abordada por
um trabalho específico, e que seria interessante explorá-la.
Quanto à delimitação do objeto, abordarei a relação do negro com o futebol,
ou melhor, a possível discriminação dele no ambiente excludente do início do século
XIX e também o provável uso deste esporte, em alguns casos, como forma de
resistência. O futebol, rapidamente, após a sua chegada ao país no final do século
XIX, começa a chamar a atenção de muitas pessoas. Porém, como o material para a

6
prática era caro, com destaque para o alto valor da bola, o esporte chega e se
consolida com um caráter elitista. Como os negros naquelas décadas posteriores a
abolição (muitos ainda hoje inclusive) sofriam segregação social, que se refletia
numa situação econômica bem limitada, eles tinham o acesso a esta prática (e a
muitas outras) dificultado. Escolhi este tema, pois acredito que as práticas culturais
reproduzem certas realidades sociais. Outras vezes, servem de mecanismo de
mudança de algumas dessas práticas. Por isso, e pela importância social que o
futebol possui, em comparação às demais práticas culturais brasileiras, escolhi essa
temática.
O espaço será a cidade de Pelotas, pois ela tem um passado de significativa
exploração da mão-de-obra escrava, se comparada ao resto do Estado, e,
consequentemente, um histórico de atritos entre a elite e a população negra, seja
antes ou depois da abolição. Além disso, o fato de o recorte espacial ser Pelotas,
facilita também o acesso às fontes, por ser o meu município de residência.
Em relação ao recorte temporal, Rigo (2004, p. 130-141) aponta que o
processo de profissionalização do futebol, nos anos de 1930, contribuiu para a
democratização desse esporte, antes profundamente elitista. Por isso, a pesquisa foi
feita de 1925 até 1938, ano que o último time que não aceitava negros
supostamente cedeu. A intenção deste recorte é poder verificar os dois momentos: a
inicial exclusão e a posterior aceitação. No entanto, tive que me deter no ano de
1925 devido à escassez de fontes anteriores. Este detalhe será melhor debatido no
referencial metodológico.

7
Capítulo Teórico-Metodológico

Em relação ao quadro teórico, a temática deste trabalho estará melhor


amparada pela História Social e pela História Cultural, pois será estudado o impacto
de uma prática cultural num ambiente de exclusão social, mas também, de
resistência. Dito isto, os primeiros aportes teóricos tentarão situar como este trabalho
entende o tema do preconceito com o negro. Hofbauer (2006) faz um histórico do
racismo na sociedade ocidental. Para ele, “até o século XVI o conceito de raça [...]
era usado exclusivamente para destacar a „linhagem pura‟ de famílias nobres da
realeza e dos bispos” (HOFBAUER, 2006, p. 101).
Esta vinculação da raça com a linhagem é importante, pois ao analisar as
metamorfoses históricas do racismo, o mesmo autor observa, em relação ao Brasil
escravocrata, que:

uma vez que o controle social era tratado como uma questão
primordialmente privada, isto é, a esfera privada imperava sobre a pública, a
concepção do Estado assemelhava-se mais a uma espécie de „núcleo
familiar ampliado‟. [...] Sabemos que os valores burgueses surgiram no
contexto de uma história específica. A valorização do indivíduo e dos
direitos civis deu-se como produto da luta da burguesia contra o Antigo
Regime. [...] Trata-se de mudanças estruturais que não ocorreram no Brasil
do século XIX (HOFBAUER, 2006, p. 151).

Portanto, ao falar de racismo no Brasil, é preciso lembrar que o paternalismo


dominava as relações políticas. Além do preconceito étnico, os negros eram
excluídos também por não fazerem parte das famílias mais influentes. Tal aspecto
será fundamental para que se possa entender porque quando os negros começam a
ter alguns direitos, isso acontece, num primeiro momento, apenas com um grupo
restrito.
Para finalizar essa análise dos caminhos que o racismo percorreu, é
importante perceber como é recente a superação de alguns desses discursos. O
mesmo autor aponta que “alguns cientistas começaram, a partir da década de 1930,
a reivindicar o abandono do conceito de raça” (HOFBAUER, 206, p. 217). Para ele:

foi apenas depois da Segunda Guerra Mundial, e principalmente na década


de 1950, que, no Brasil, o discurso intelectual – hegemônico – do
branqueamento sofreu questionamentos sérios (HOFBAUER, 2006, p.

8
261).1

Após estas considerações sobre a temática do racismo em si, acho pertinente


debater como a historiografia trata o fenômeno da escravidão e o que isso pode
influenciar na análise do preconceito no período pós-abolição. Al-Alam (2008)
analisa quais as correntes historiográficas que já discutiram a escravidão no Rio
Grande do Sul. A primeira vertente se caracterizava por tentar demonstrar que aqui
a escravidão era mais branda, enfatizando que os trabalhos pesados estariam de
acordo com a “natureza negra” e que “não seriam nem pesados e nem excessivos,
estariam conforme a resistência física dos trabalhadores (AL-ALAM, 2008, p. 38).

Contrapondo-se a esta visão,

Maestri e Gutierrez já demonstraram a horrenda realidade dos trabalhos dos


escravizados, obrigados a labutar cerca de 16 horas por dia, de pés
descalços, suscetíveis à umidade do ar muito grande, na beira dos arroios e
canais; muitos acabavam não chegando à média de expectativa de vida,
que era de 5 a 7 anos de trabalho efetivo (AL-ALAM, 2008, p. 39).

Porém, essa reação àquela primeira vertente acabou por criar uma segunda
tradição historiográfica, “marcada pela ênfase dos estudos da resistência escrava
através da violência, ou seja, através das revoltas, dos justiçamentos, das fugas, das
formações de quilombos, etc” (Al-Alam, 2008, p. 40). Estudos muito interessantes e
importantes, mas

representantes dessa época, partiram de uma concepção limitada de


cultura, fazendo a oposição entre resistência e aculturação, ou seja, ou o
sujeito resiste, e quase sempre pela violência, ou ele é totalmente destruído
pelo senhor ou colonizador, tornando-se um aculturado, perdendo
totalmente suas bagagens culturais. (AL-ALAM, 2008, p. 41).

Tentando superar esse enrijecimento da segunda tradição, surge uma terceira


corrente, na qual

muitos pesquisadores, sejam eles antropólogos, historiadores ou


sociólogos, já contestaram o binômio aculturação/resistência, colocaram em
cheque (sic) a ideia de que os sujeitos perdem totalmente seus padrões
culturais quando sofrem um processo de espoliação, de violência física e

1
Cabe salientar a importância dos crimes raciais cometidos pelos nazistas para essa mudança de
mentalidade.
9
moral; temos que pensar que eles se apropriavam dos signos culturais
impostos, mas os adaptando de acordo com suas leituras de mundo, suas
perspectivas, suas experiências de vida, a cultura seria constantemente
recriada (AL-ALAM, 2008, p. 41).

Faço este debate, para dizer que o meu trabalho dialoga com esta terceira
vertente. Mesmo que não seja mais dentro do ambiente da escravidão, no pós-
abolição o negro segue lutando contra o racismo, e essa luta tem que ser percebida
como bem mais complexa do que a exclusiva confrontação pela violência física.
Sobre a questão da exclusão social, um tema central nesta pesquisa,
Thompson (1998) fala sobre como as camadas superiores procuram manipular a
cultura popular. O autor defende que “o povo está sujeito a pressões para „reformar‟
sua cultura segundo normas vindas de cima” (THOMPSON, 1998, p. 13). Ele
também comenta que as culturas conservadoras recorrem a costumes tradicionais e
procuram reforçá-los e explica de que forma elas agem:

As formas são também não racionais; não apelam para a „razão‟ por meio
do panfleto, do sermão ou do palanque do orador. Elas impõem uma
variedade de sanções pela força, o ridículo, a vergonha e intimidação
(THOMPSON, 1998, p. 19).

É com este olhar que estudarei a tensão entre a tentativa da elite de manter a
prática do futebol restrita e o interesse de participar dos negros.
Nessa mesma linha de raciocínio, Foucault (1999) também trabalha com o
conceito de exclusão. O autor aponta que o racismo moderno

está ligado a isto que nos coloca, longe da guerra das raças e dessa
inteligibilidade da história, num mecanismo que permite ao biopoder
exercer-se. Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado
que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da
raça para exercer seu poder soberano. (FOUCAULT, 1999, p. 309).

Muito interessante a relação que ele faz entre o velho poder soberano e a
exclusão, pois é bem este o caso, um ambiente em que já ocorreu a abolição, mas
onde o argumento da diferença racial ainda impera.
A seguir, irei discutir qual será o aporte teórico do futebol que, enquanto
fenômeno social/cultural, está em contato com as tensões sociais, como no caso da
exclusão social do negro no início do século XX. Além disso, pretendo discutir o
futebol como uma forma não só de legitimação do preconceito, mas também de

10
organização dos grupos marginalizados contra esta realidade. Neste contexto,
concordo com Loner (1999), quando ela, citando Hobsbawm, comenta que:

Hobsbawm, falando sobre a formação da classe trabalhadora inglesa,


considera de fundamental importância o papel desempenhado pelo futebol
na cultura operária, unificando inclusive a linguagem e o tema das
conversas diárias entre os operários. O mesmo autor descreve o desprezo e
a intolerância com que esta faceta do comportamento operário era vista
pelos ativistas sindicais, para os quais isso era um dos fatores a demonstrar
a estupidez e indolência das massas proletárias e a falta do que eles
caracterizariam como consciência de classe (Hobsbawm, 1987, p.291).
Entretanto, ele sublinha o papel unificador e delimitador de uma cultura
comum entre os operários ingleses, representada, ao mesmo tempo, pela
torcida por um time, pelo uso do boné e pelo consumo de peixe frito
(LONER, 1999, p. 414).

Mais importante do que discutir o impacto social do futebol na Inglaterra, é


discutir este mesmo fenômeno em relação ao Brasil, visto que a temática de
pesquisa é aqui situada. Neste sentido, as colocações de DaMatta (1994) são muito
importantes. Algumas das observações do autor são que o futebol possibilitou ao
brasileiro resgatar os valores mais profundos dos símbolos nacionais, antes restritos
à elite e aos militares, e permitiu ao povo o orgulho de ser brasileiro. Além disso,
“instituiu abertamente a malandragem como arte de sobrevivência e o jogo de
cintura como estilo nacional” (DaMATTA, 1994, p. 17).
Além dessas influências em relação à identidade nacional, o autor fala de
alguns impactos do futebol nas experiências do povo brasileiro. Sobre os aspectos
negativos, o autor reconhece que:

Sua função no mundo moderno tem uma ligação íntima com dois aspectos
fundamentais da vida burguesa. O primeiro é a disciplina das massas que o
esporte ensina e reafirma, quando exige que todos cheguem aos estádios
em horas certas, pagando corretamente as entradas. E o segundo é a sua
ligação íntima com a idéia de fair-play, pois esporte trivializa a vitória e a
derrota. Ora, essa socialização para o fracasso e para o êxito, essa
banalização da perda, da pobreza e da má-sorte, somente poderia ocorrer
numa sociedade transformada, como disse Karl Polanyi, pelo mercado que
tudo engloba e faz crer que todos são mesmo jogadores com iguais
oportunidades. Ademais, o esporte afirma valores capitalistas básicos, como
o individualismo (cada um de nós tem o direito de escolher um clube, time
ou herói esportivo), e o igualitarismo (no início do jogo os adversários são
iguais e devem ser tratados com lisura e respeito, principalmente na
derrota), o que, como já disse, ajuda na socialização de uma justiça
burguesa universalista (DaMATTA, 1994, p. 13-14).

Porém, na chegada do futebol a estas terras, na última década do século XIX

11
e nas primeiras do século XX,

o velho esporte bretão entrava em conflito com valores tradicionais.


Habituada a jogar e não a competir, a sociedade brasileira, construída de
favores, hierarquias, clientes, e ainda repleta de ranço escravocrata, reagia
ambiguamente ao futebol (DaMATTA, 1994, p. 12).

É neste contexto social, que algumas das características mais interessantes


dessa interação entre futebol e povo brasileiro se manifestam, como sua capacidade
de agir como um formidável código de integração social, de possibilitar ao povo
pobre a experiência da vitória, de permitir que os brasileiros experimentem a
experiência da igualdade e da justiça, através das regras do esporte, e de propiciar a
alternância entre vencedores e perdedores, característica da democracia
(DaMATTA, 1994, p. 16-17).
Essa discussão é muito importante para este trabalho, e será retomada nos
capítulos seguintes, pois tentarei observar nas fontes, essa característica do futebol.
Se por um lado, se viu este esporte reforçando o preconceito, por outro esta
capacidade de integração e de igualdade amparada nas regras, pode ter feito do
futebol uma prática que contribuiu para a superação dessa realidade excludente.
Em relação ao referencial metodológico, essa pesquisa será desenvolvida
através de uma análise qualitativa de fontes escritas, imagéticas e orais. Sobre a
análise de imagens, é importante observar que se tratam fundamentalmente de
fotografias. Portanto, é neste sentido que serão feitas algumas considerações.
Primeiramente, a respeito do uso de textos não escritos, é imprescindível que se
perceba que:

Não é de hoje que a história proclamou sua independência dos textos


escritos. A necessidade dos historiadores em problematizar temas pouco
trabalhados pela historiografia tradicional levou-os a ampliar seu universo
de fontes, bem como a desenvolver abordagens pouco convencionais, à
medida que se aproximava das demais ciências sociais (MAUAD, 1996, p.
77-8).

Além disso, é importante explicitar com qual olhar as fontes serão tratadas.
Nas fotografias:

entre o sujeito que olha e a imagem que elabora há muito mais que os olhos
podem ver. A fotografia - para além da sua gênese automática,
ultrapassando a idéia de analogon da realidade - é uma elaboração do
12
vivido, o resultado de um ato de investimento de sentido, ou ainda uma
leitura do real realizada mediante o recurso a uma série de regras que
envolvem, inclusive, o controle de um determinado saber de ordem técnica.
(MAUAD, 1996, p. 75). [...] Parafraseando Jacques Le Goff, há que se
considerar a fotografia, simultaneamente como imagem/documento e como
imagem/monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como
índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos,
pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse
passado - condições de vida, moda, infra-estrutura urbana ou rural,
condições de trabalho etc. No segundo caso, a fotografia é um símbolo,
aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a
ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é
monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma
determinada visão de mundo (MAUAD, 1996, p. 80).

Estando ciente, portanto, do olhar que deve ser direcionado para o registro
fotográfico, é importante dizer que esta pesquisa poderá cumprir adequadamente
um critério apontado pela mesma autora, quando ela diz que “há que se observar
um critério de seleção, evitando-se misturar diferentes tipos de fotografia” (MAUAD,
1996, p. 83), afinal as fotografias estudadas serão todas do mesmo tipo (jogadores
perfilados, formando uma equipe).
Quanto ao estudo de fontes orais, não será necessário fazer muitas
considerações metodológicas, visto que, será usada apenas uma fonte, um trecho
de uma entrevista que não foi realizada por mim. Sendo assim, será feita apenas
uma defesa deste método de pesquisa, colocando que:

se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação


também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e
fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer,
deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto
de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. Nem a fonte
escrita pode ser tomada tal e qual ela se apresenta. O trabalho do
historiador faz-se sempre a partir de alguma fonte. É evidente que a
construção que fazemos do passado, inclusive a construção mais
positivista, é sempre tributária da intermediação do documento. Na medida
em que essa intermediação é inescapável, todo o trabalho do historiador já
se apóia numa primeira reconstrução. Penso que não podemos mais
permanecer, do ponto de vista epistemológico, presos a uma ingenuidade
positivista primária. Não acredito que hoje em dia haja muita gente que
defenda essa posição (POLLAK, 1992, p. 207).

É interessante colocar ainda que a história oral “apareceu como um


instrumento privilegiado para avaliar os momentos de mudança, os momentos de
transformação” (POLLAK, 1992, p. 211). O momento que é tema deste estudo pode
ser considerado um período de mudança, pois a escravidão havia sido abolida, mas
muitos indivíduos e grupos ainda insistiam em negar aos negros vários direitos.
13
Em relação às fontes escritas, algumas considerações precisam ser feitas.
Como estas se vinculam aos periódicos, é importante assinalar que cada jornal,
longe da ilusão da imparcialidade, expressa ideias e juízos do grupo que o comanda
e mantém. Sendo assim, é fundamental perceber qual grupo controla qual jornal,
para saber interpretar o que se lê. Em relação à temática de pesquisa, alguns
autores já analisaram os principais jornais da cidade e, com base nesses estudos,
foi possível saber sobre quais jornais a pesquisa devia ser direcionada.
Dito isto, agora farei algumas observações sobre os jornais utilizados. O
primeiro deles, A Opinião Pública, tem as seguintes características:

O fato de ser um jornal consolidado e respeitado na cidade, possuindo


clientela fixa e, ao mesmo tempo, estar disponível para arrendamento,
tornou este jornal singular dentro do contexto pelotense da República Velha.
Em primeiro lugar, porque permitia a qualquer grupo político ou empresarial
com capital suficiente para bancar suas pretensões promover suas idéias,
sem ter que passar pela fase inicial de implantação de um jornal, fase
extremamente árdua e que normalmente termina produzindo periódicos
natimortos. Ao contrário, sendo um órgão já tradicional, incorporado aos
costumes da cidade – entre eles o de ler o jornal – A Opinião Pública
permitia a rápida difusão das idéias do novo grupo dentro de cada lar e de
cada empresa da cidade. Assim, ele é um espaço à disposição de quem
tem dinheiro e um projeto a veicular (LONER, 1998, p. 14).

O segundo jornal do qual obtive fontes escritas, foi O Libertador. Sobre ele, a
mesma autora comenta que:

como todos os jornais oposicionistas, buscará uma maior aproximação com


o movimento operário e popular na cidade, mas, diferentemente dos
demais, esse era um jornal com uma forte aproximação com a Igreja
Católica. Será também um jornal de vida longa para os parâmetros de um
órgão oposicionista, tendo durado até 1937, sendo fechado quando o
Estado Novo aboliu os partidos e concomitantemente decretou o
fechamento de vários jornais partidários (LONER, 1998, p. 31).

O terceiro jornal, que foi o mais utilizado nesta pesquisa, é A Alvorada. Para
finalizar este item do projeto e entendermos a importância dele em relação à minha
temática:

O jornal A Alvorada circulou na cidade de Pelotas e região de 5 de maio de


1907 a 13 de março de 1965, o que o torna hoje o mais longevo periódico
da imprensa negra brasileira. Foi fundado por trabalhadores, na sua maioria
de origem afrobrasileira, para ser um veículo de informação, defesa e
protesto da comunidade negra e da classe operária pelotense. Por meio de
suas páginas podemos resgatar boa parte das trajetórias de vida de alguns
dos principais intelectuais negros pelotenses e líderes operários, bem como
14
acompanhar as discussões e demandas dos trabalhadores brasileiros
daquele período. [...] O Jornal era o espaço onde a comunidade se via
representada. Fotografias, anúncios de nascimento e morte, convites para
bailes, aniversários, casamentos e jogos de futebol, denúncias sobre casos
de discriminação e preconceito racial, divergências internas, tudo está nas
páginas do semanário. Reconhecido em Pelotas como “jornal de negro”, A
Alvorada nos abre a janela para o passado e descortina uma comunidade
negra cheia de história, organização e trabalho (SANTOS, J. A. IN: LONER,
B. A.; GILL, L. A.; MAGALHÃES, M. O. (Orgs.), 2010, p. 13).

15
O Preconceito com o Negro no Futebol em Pelotas

Pelotas é a cidade que possui a maior população de afro-descendentes do


interior do Estado, isto porque havia um grande contingente de negros escravos
vinculados às charqueadas. Gutierrez (1999) mostra o contraste que existia em
Pelotas, no período por ela estudado, entre os senhores endinheirados, querendo
mostrar, através das obras arquitetônicas, seu gosto refinado e seu poder
econômico, e os escravos, obrigados a trabalhar na produção econômica escravista
do charque e também nos canteiro de obras da área urbana.
O objetivo deste trabalho, no entanto, é pesquisar o período pós-abolição.
Nesse sentido, as colocações de Loner (2010, p. 182) são fundamentais:

A população afro-descendente de Pelotas foi trazida à região para trabalhar,


sob o regime da escravidão. Posteriormente à Abolição eles se radicaram
aqui, trabalhando em todo o tipo de serviço [...]. Em 1890, formavam cerca
de um terço da população urbana de Pelotas e sua grande concentração na
cidade tornou-os um dos principais grupos de trabalhadores do município.
Durante a maior parte do século XX, os negros sofreram muito com a
segregação e o preconceito racial, que terminaram condicionando suas
chances de ascensão social e de busca de emprego na cidade.

Além disso, Dornelles (1998, p. 108-112) comenta que a concorrência com os


imigrantes era desleal, com relação à necessidade de seu trabalho, pois estes
recebiam, tanto no campo como na cidade, um apoio muito maior da imprensa e das
camadas dirigentes. Portanto, é nesse contexto social de tensão, entre os negros
que buscavam se integrar à sociedade na sua nova condição (trabalhador livre) e a
segregação e o preconceito com que eram recebidos, que este trabalho pretende
discutir como essa situação se manifestou no futebol. Para que o recorte temporal
proposto para a pesquisa faça sentido, é fundamental que sejam feitas algumas
considerações sobre como o futebol chegou nessa cidade.
A primeira partida de futebol em Pelotas provavelmente ocorreu em 19012
(RIGO, 2004) e o primeiro clube da cidade, o Athlético Foot-Ball Club, foi fundado
em 1904 (LONER, 1999; RIGO, 2004). Porém, Alves (1984, p. 16) diz que foi em
1906 “o primeiro grande ano do futebol em Pelotas”. Rigo (2004, p. 69) confirma
que, “ao que tudo indica, 1906 pode ser considerado o ano em que o futebol deu os

2
Lembrando que quem jogou a partida foi o Sport Club Rio Grande, o clube mais velho do Brasil.
Para mais informações sobre ele, ver RIGO (2004, p. 55-60).
16
sinais indicativos de que veio pra ficar. A partir desse ano, cada vez mais, ele se fez
presente nos eventos festivos e esportivos da elite pelotense.”
Este interesse da elite pelotense pelo futebol tem explicação geográfica
(proximidade com Rio Grande, do clube mais antigo, e com a Argentina e o Uruguai,
onde o futebol já era praticado antes do Brasil), mas tem, sobretudo, uma explicação
econômica. Magalhães (1993, p. 296), comparando Pelotas a Porto Alegre, destaca
que:

os dois municípios praticamente se equiparavam, em desenvolvimento, no


transcorrer do Império. Mas, em 1927, do total das receitas arrecadadas
pelos municípios gaúchos, Porto Alegre participará com 43,2%, em primeiro
lugar; Pelotas, mesmo em segundo lugar, terá o índice de 6,5%.

Apesar do fim da escravidão os setores das charqueadas e da indústria


saladeiril terem tido uma queda acentuada, que os fez deixar de rivalizar com a
capital, essa região continuou tendo uma importância significativa dentro do contexto
estadual, seja nas dimensões política, econômica ou cultural, importância esta, que
vai se perdendo com o decorrer do tempo.
Com uma situação econômica favorável durante o período de funcionamento
das charqueadas, muitos senhores enviavam seus filhos para estudar na Europa,
onde o futebol já era mais praticado e possuía um significado social maior. Portanto,

Essa empatia inicial pelo futebol, muitas vezes iniciada em terras


estrangeiras, acontecia tanto com os distintos cidadãos de posse da região,
que viajavam seguidamente a negócios ou a passeio, como também com os
seus filhos, que na época iam estudar na Europa. Ao retornarem às suas
cidades de origem, além de camisas de seda, da literatura em voga e das
novidades européias do ano (o corte de cabelo, as palavras mais usadas,
os costumes e hábitos corporais em moda), alguns desses seletos filhos da
elite da região trouxeram também informações, material apropriado e um
certo conhecimento prático do futebol (RIGO, 2004, p. 64).

Além disso, o material para a prática era caro, sendo a bola um item precioso.
Juntando esses fatores, é possível entender porque os primeiros anos do futebol em
Pelotas foram marcados pelo elitismo. Porém, a elite tomava medidas para tentar
garantir que este esporte continuasse restrito. A intenção era a de controlar:

quem, como e onde se praticava o futebol fazia parte das intenções da elite
da época, que estava atenta para fazer de seu tempo de lazer uma
experiência singular de classe. A resistência a uma miscigenação maior,
tanto social como racial, era uma das fortes preocupações para uma fração
17
significativa da cidade, que fazia questão de viver aristocraticamente (RIGO,
2004, p.82).

Loner (1999) também fala sobre a questão da tensão entre elite e


democratização deste esporte em Pelotas. Para ela (1999, p. 142), o futebol

desenvolveu-se primeiro junto às classes mais abastadas, mas rapidamente


o futebol encontrou-se com a classe operária e demais setores populares.
Já em 1909 havia o clube Aliança dos Operários, cuja primeira diretoria
contemplava dois negros em posições de destaque.

Apesar disso, ela (1999, p. 144) comenta que:

essa transformação iniciou ainda nos times de várzea e nas disputas


amigáveis, pois os principais campeonatos foram, por muito tempo,
controlados pela elite. Dizer que o futebol era um esporte mais democrático
não significa que ele fosse imune aos processos seletivos vigentes na
sociedade. Houve discriminação racial em vários desses clubes, mais
evidente nas diretorias, mas evidenciando-se, em alguns casos, também no
campo de esportes.

Assim, em Pelotas “segundo a hierarquia antes apontada, destacam-se


inicialmente os times de elite, como o: Brasil, Pelotas, Ideal, União, Rio Branco e
outros” (LONER, 1999, p. 144). No caso do E. C. Pelotas, fundado em 1908 da fusão
dos clubes C. S. Internacional, C. Esportivo e Foot-Ball Club (RIGO, 2004), é
possível observar, através da imagem 1, como de fato o clube começa sendo
composto exclusivamente por jogadores brancos.

18
Imagem 1: Equipe do S. C. Pelotas de 1912 que venceu uma série de jogos amistosos na
região e se auto-intitulou Campeã Estadual. (Revista Almanaque de Pelotas, 1917, p. 89).

Se parece consensual que o E. C. Pelotas surgiu com este viés elitista, o caso
do G. S. Brasil, fundado em 1911 (RIGO, 2004), merece maiores cuidados. Como
atualmente este clube é considerado popular, muitas vezes, isso produz a falsa
impressão de que essa característica o acompanha desde o seu nascimento.
BOANOVA (1997), por exemplo, afirmou que “a expressão „time de negros‟ encontra
no G. S. Brasil uma assimilação, pois este time realmente contava com negros entre
suas equipes desde seu nascimento, sendo muitas vezes negros os ídolos da
equipe” (BOANOVA, 1997, p. 17). Os trabalhos de Loner (1999) e Rigo (2004)
apontam que essa característica popular não estava presente já na fundação. Loner
(1999, p. 144) diz que:

[...] o G. S. Brasil, nascido de uma dissidência no time de


empregados da cervejaria Haertel, depois ficará conhecido como
time "de negros", mas no início isso não se configura em suas
diretorias, em que apareciam nomes de indivíduos da pequena
burguesia, muitos deles filhos de imigrantes.

Apesar desse início, Rigo (2004, p. 151) coloca que:

19
Entre os times que disputavam o campeonato da Liga Pelotense de Foot-
Ball3, o Grêmio Esportivo Brasil logo se tornou o clube mais popular. Ele é
lembrado também como o primeiro clube desta liga que sê dispôs a aceitar
em seu grupo jogadores negros e mulatos. O depoimento concedido por
Seu Clóvis ressalta que, já em 1919, quando o Brasil venceu a primeira
edição do Campeonato Estadual, promovido pela federação Rio Grandense
de Desportos, fazia parte da equipe campeã o mulato Babá.

A imagem 2, mostra que o jogador mulato referido acima não estava presente
apenas em 1919, mas já em 1917 (o Babá é o segundo jogador em pé, da direita
para a esquerda).

Imagem 2: Equipe do G. E. Brasil, campeã da cidade em 1917. (Revista Brasil


Gigante. Edição da ORPAL – Org. de Pub. E Emp. Prom. Ltda. (Dir.) Edson, Pires. n. 1. 1971.).

Rigo (2004, p. 152) ainda comenta que “se a presença isolada do mulato
Babá na equipe de 1919 pode ser vista apenas como mais uma exceção à regra, o
mesmo não se pode dizer das equipes que o clube formou um pouco mais tarde”.
Este tema, do momento em que os clubes comentados passaram a aceitar mais
atletas negros, voltará a ser debatido mais adiante. Neste momento, o que fica

3
Que começa a ser disputada em 1913 (RIGO, 2004, p. 87).
20
explícito é a relutância inicial dos principais clubes pelotenses em aceitar jogadores
negros. É nesse contexto que surge a Liga José do Patrocínio. Loner (1999, p. 144)
assinala que:

a Liga José do Patrocínio foi fundada em 10/6/1919, congregando times


negros da cidade e mantendo sua existência pelas próximas duas décadas.
Faziam parte dela os clubes Juvenil, América do Sul, Universal, Vencedor,
União Democrata e Luzitano.

Rigo (2004, p. 150) também corrobora o surgimento dessa liga e o caráter


que ela irá assumir, fazendo ainda algumas considerações sobre o quadro
excludente que antecede a sua criação ao colocar que:

como resultado do acúmulo dessas experiências de resistência e de


contraposição à perpetuação exclusiva de um futebol branco e de elite,
fundou-se em Pelotas, em 1919, a “Liga José do Patrocínio”, que logo se
tornou conhecida como „a liga dos negros‟. No primeiro ano de sua
existência, fizeram parte de seu campeonato as seguintes equipes: „América
do Sul, Juvenil e Vencedor‟.

Na imagem 3, é possível ver, se feita uma comparação com as outros duas


imagens mostradas, o contraste entre os clubes (brancos) da Elite do futebol
Pelotense e os clubes (negros) da Liga José do Patrocínio, nas primeiras décadas
de prática do futebol em Pelotas.

21
Imagem 3: Equipe do S. C. Juvenil que disputava a Liga José do Patrocínio, em 1922 (A Alvorada,
15/11/1931).

Feita esta discussão sobre o surgimento do futebol em Pelotas e os


primeiros conflitos, que acabaram opondo a Liga (Branca) Pelotense de Foot-Ball e
a liga (Negra) José do Patrocínio, agora será abordado o período propriamente
delimitado por este estudo (1925-1938).
Em uma entrevista, Mário Chagas fala a respeito de uma Liga de Negros
(embora curiosamente não seja a Liga José do Patrocínio, seja a Liga Afonso Arinos,
sobre a qual não encontrei nenhuma informação) e sobre o preconceito no futebol:

Houve uma série de coisas que fez com que essas pessoas se juntassem...,
foi a maneira das pessoas terem onde se divertir, porque, por exemplo; o
futebol tinha uma Liga Afonso Arinos, que era a liga de negros, porque os
negros não jogavam com os brancos em Pelotas. Tinha o (delegado?) que
até o "Alvorada" cita isso, que era uma perseguição, uma ignorância. E fez
com que as pessoas em torno de ter aonde ir. O futebol acho que foi a
razão do Fica Aí ter sido feito, porque tinha dois times que era o América e o
Juvenil, segundo o senhor Isaqueu, porque isso não é do meu tempo, e
havia uma rivalidade. Então eles brigaram lá no jogo e eles vinham tudo
para o Chove, fundaram o Fica Aí Pra Ir Dizendo, por isso é que saiu esses

22
nomes, Chove Não Molha, Depois da Chuva.4

Nesse ponto da discussão, cabe uma reflexão em relação às fontes. Os


vestígios trazidos nesta pesquisa pretendem demonstrar a existência de preconceito
na elite do futebol pelotense, nas primeiras décadas do século XX. Porém, isso
pretende ser discutido a partir da percepção da não-existência de negros nos clubes
da elite e da investigação dos caminhos percorridos por eles para continuarem
praticando o esporte, como no caso da Liga José do Patrocínio. É fundamental que
se diga que não foram encontradas fontes que relataram um episódio claro, visível
de negação da prática do esporte a um negro. Nesse ponto, percebe-se como os
silenciamentos estão presentes na relação entre história e memória. Sobre essa
questão Le Goff (1992, p. 109) lembra que:

a reflexão histórica se aplica hoje à ausência de documentos, aos silêncios


da história. (...) Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta;
penso que é preciso ir mais longe: questionar a documentação histórica
sobre as lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os
espaços brancos da história. Devemos fazer o inventário dos arquivos do
silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de
documentos.

É dessa forma que esta pesquisa irá se relacionar com as fontes. Procurará
perceber na ausência do negro, a maior prova do preconceito velado ao qual este
grupo era submetido nas décadas posteriores à abolição.
Voltando ao debate sobre a Liga José do Patrocínio, os clubes da Liga, além
das suas funções esportivas, pareciam ter um papel importante na reunião de
membros da comunidade negra pelotense, dados os inúmeros convites para bailes
que faziam5.
Mas foi em um episódio, a princípio alheio ao futebol, através do qual esta
Liga mostrou cumprir um papel social que extrapolava o âmbito desportivo. A matéria
de jornal abaixo se trata de um protesto contra um caso de preconceito que havia
ocorrido e que tinha sido negado por outro jornal da cidade. O interessante dessa
fonte não é saber qual foi o episódio que gerou a denúncia, pois por não ter relação

4
Entrevista realizada no dia 3/06/2004 com o senhor Mário Chagas, no clube Chove Não Molha.
Entrevistadores: Lorena Almeida Gill, Débora Clasen de Paula, Marcele Victória dos Santos. Acervo
do NDH/UFPel.
5
É possível citar, como exemplo, as matérias do A Alvorada de 3 de abril de 1932 (p. 7), de 10 de
julho de 1932 (p. 2) e 14 de agosto de 1932 (p. 8), que convidam para os bailes organizados,
respectivamente, pelos clubes Sport Club Juvenil, S. C. Universal e S. C. América do Sul.
23
com o futebol seria tema para outro estudo. O que é importante é que o
representante da Liga José do Patrocínio foi o primeiro a assinar a moção de
protesto, o que demonstra que a instituição interferia a favor dos negros, também em
outras esferas e não apenas no futebol.

Preconceito de Casta - Moção de solidariedade das Associações e dos


homens de cor desta cidade, ao periódico Porto-Alegrense „O Exemplo‟.
Nós abaixo firmados declaramos ao público em geral que estamos em plena
solidariedade aos artigos publicados no „O Exemplo‟, semanário que se
edita em Porto Alegre sobre o caso dos preconceitos de raça, existentes no
Teatro 7 de Abril. O Vespertino local „A Opinião Publica‟, um dos porta-vozes
dessa seleção, entretanto, no dia 12 do corrente, teve o desplante de negar
a existência do preconceito de cor, da parte da empresa Xavier & Santos e
da própria sociedade pelotense; e tudo vem demonstrando o contrário.
Pelotas, 12 de Julho de 1927. Jose Antonio Ferreira da Silva, pela Liga de
6
Foot Ball José do Patrocínio; Alcides [...] Firma Reconhecida (O Libertador,
16/07/1927, p. 4).

Pode-se relacionar este indicativo de que o futebol também foi um instrumento


de organização dos negros naquele período, com as considerações sobre o
significado social do futebol no Brasil feitas por DaMatta (1994, p. 16-17), quando ele
comenta que o futebol é/foi importante para a sociedade brasileira.

Primeiro porque ele é um formidável código de integração social. De fato, o


futebol ajuda uma coletividade altamente dividida internamente a afirmar-se
como uma coletividade capaz de atuar de modo coordenado,
corporadamente e de eventualmente vencer. Ora, essa experiência com
uma organização coletiva com a qual podemos nos identificar abertamente
e que opera para nosso deleite e benefício é muito rara no mundo diário
brasileiro, um universo onde as instituições públicas estão, há décadas,
desmoralizadas pela inflação e por práticas sociais clientelísticas e
personalistas desconcertantes, difundidas por todos os partidos políticos e
irremovíveis. Uma segunda dimensão do futebol como força integrativa é a
sua capacidade de proporcionar ao povo, sobretudo ao povo pobre e
destituído, a experiência da vitória e do êxito. Essa vitória que o mundo
moderno traduz com a palavra mágica „sucesso‟ e que o sistema social
hierarquizado e concentrador de riqueza do Brasil faz com que poucos
possam experimentar. Mas através do „jogo de futebol‟ as massas
brasileiras podem experimentar vencer com os seus times favoritos. [...]
Finalmente, o futebol proporciona à sociedade brasileira a experiência da
igualdade e da justiça social. Pois, produzindo um espetáculo complexo,
mas governado por regras simples que todos conhecem, o futebol reafirma
simbolicamente que o melhor, o mais capaz e o que tem mais mérito pode
efetivamente vencer. Que a aliança entre talento e desempenho pode
conduzir à vitória inconteste. E, melhor que tudo, que as regras valem pra
todos. Para os times campeões e para os times comuns, para ricos e
pobres, para negros e brancos, e para os sãos e os doentes. Nesse sentido
profundo o futebol dá uma potente lição de democracia. [...] Além disso, [...]
tal afirmação das regras do jogo conduz a uma alternância entre vitoriosos e

6
Seguem-se várias outras assinaturas.
24
perdedores que, projetada na vida social, é a base da mais autêntica
experiência democrática. [...] Aprende-se, pois, que a alternância na glória é
a glória da alternância – base da igualdade e da justiça modernas. Para
mim, é a mais bela lição de igualdade que um povo massacrado pela
injustiça pode receber.

Talvez em parte pelas manifestações de inconformidade das entidades e dos


grupos negros pelotenses e também, em boa parte, pelo movimento que estava em
marcha por todo o país, o fato é que, com a proximidade dos anos 30, os negros
foram gradualmente sendo mais aceitos nas principais equipes de futebol de
Pelotas.
Um primeiro indício de contato entre as organizações é o fato de que, pelo
menos em 1931, partidas da Liga José do Patrocínio eram disputadas nos campos
do G. S. Brasil e do E. C. Pelotas7. Porém, a motivação para o uso do espaço podia
também ser muito mais comercial (estádio maior) do que qualquer outra. Pelo menos
a disponibilidade parece indicar um avanço.
Outro possível evento que pode ter ajudado a melhorar as relações entre
brancos e negros no futebol, aproximando-os, foi a realização de jogos anuais entre
Brancos e Negros.

Brancos e Negros – Domingo próximo, provavelmente, terão os


apreciadores de futebol ensejo de assistir a um encontro interessante, que
promovido pelo 1º C. A. Bancário, anualmente se repetirá. Trata-se da
instituição de jogos anuais entre o selecionado de jogadores de raça branca
e o selecionado de cor. Sabemos que, para tais encontros, o C. A. B.
instituiu um regulamento especial e um rico troféu para nele serem inscritos
os nomes dos componentes do quadro vencedor. Os selecionados jogarão
oficialmente sob a designação de Stratch Branco e Stratch Negro. Sabemos
igualmente que já foram nomeadas comissões de representantes das duas
cores, as quais ficará afeto o trabalho de constituir os respectivos
combinados (A Opinião Pública, 27 de outubro de 1927, p. 1).

Contudo, é provável que a maioria dos jogadores dos clubes da elite do


futebol pelotense não participasse da disputa, o que minimiza (embora não anule) o
impacto do jogo numa possível melhora das relações interétnicas. Mas é digno de
nota que o C. A. Bancário, nos primeiros anos após a sua fundação, disputava a Liga
Pelotense de Foot-Ball e não aceitava negros (RIGO, 2004), o que aumenta a
importância da iniciativa. Outro problema foi não ter encontrado, nas edições
seguintes, nenhuma repercussão da partida, o que põe em dúvida até mesmo se a

7
Ver as matérias do A Alvorada de 6 de dezembro de 1931 (p. 3) e 27 de dezembro de 1931 (p. 3).
25
partida foi realizada. Se tivesse sido encontrada a repercussão da partida, poderia
ser avaliado se a iniciativa realmente aproximou brancos e negros, ou se,
hipoteticamente, até piorou, graças ao surgimento de uma rivalidade, já que era uma
etnia contra a outra.
Após estas considerações, será analisada como foi a repercussão desse
momento de inclusão do negro, na década de 1930, nos três clubes que hoje são
considerados, talvez por serem os únicos a terem sido campeões estaduais, os
principais da cidade: o Farroupilha, o Brasil e o Pelotas.
O Grêmio Atlético Farroupilha, fundado por militares em 1926, com o nome
de Grêmio Atlético 9° RI (regimento e Infantaria), formava equipes compostas
predominantemente por militares, normalmente trazendo bons jogadores de
diferentes cidades da região sul para prestar serviço militar em Pelotas (RIGO,
2010). É possível perceber a presença maciça de militares também na sua diretoria:

Grêmio Atlético 9º RI – Sua Nova Diretoria – Da secretaria do valoroso


Grêmio Atlético Farroupilha [...] recebemos o seguinte ofício circular: „Temos
a honra de comunicar a V. S. que, em sessão de assembleia geral ordinária
realizada a 14 do corrente, foi empossada a diretoria que terá de reger os
destinos desta agremiação no ano social de 1937-38, sendo a mesma assim
constituída: Conselho deliberativo: Presidente, Capitão José Canavarro
Pereira; 1° vice-presidente, Capitão Jacy Guimarães; 1° secretário,
subtenente Catharino Pires de Araújo; 2° secretário, Sargento Pedro
Pereira; 1° tesoureiro, (reeleito) tenente Felix da Cunha Paes; 2° tesoureiro,
sargento Oswaldo Pinheiro de Jesus. Conselho fiscal: Capitão Ruy Lemos
Barbieri, tenente José de Ávila Souto, tenente Pedro Couto, tenente José
Torres‟. (A Opinião Pública, 26 de janeiro de 1937, p. 5).

Quanto ao preconceito no clube, Rigo (2004, p. 154-155) coloca que:

8
“Seu Plácido apontou que, no Farroupilha, a questão da cor não era motivo
de exclusão. Segundo ele, ela sucumbia perante a exigência maior que era
o vínculo militar:„No Farroupilha jogava de qualquer cor, porque soldado
tinha preto, branco, tinha amarelo, tinha de tudo que era cor‟.

O fato de não ter ocorrido nenhum atrito neste clube, pode se dever também
ao ano de fundação, quando a exclusão já não era tão hegemônica. No caso dos
outros dois clubes, os contrastes nas reações de ambos foram grandes. A seguir,
estão fotos dos dois times. A diferença de data entre elas é de apenas um ano.

8
Entrevistado pelo autor citado em 1999.
26
Imagem 4: S. C. Pelotas, Campeão Estadual em 1930 (Revista Esporte Clube Pelotas 90 anos: 1908-
1998. 1998, p. 10).

Imagem 5: G. S. Brasil,Campeão Pelotense em 1931 (Opinião Pública, 25/12/1931)

27
Nessas imagens, fica clara a diferença étnica nos plantéis. Enquanto quase
a metade do time do G. E. Brasil era composto por jogadores negros 9, no S. C.
Pelotas a equipe continuava branca.
Sobre a aceitação de negros no G. E. Brasil, Rigo (2004, p. 152) coloca que:

Ainda nos anos 20, passam a fazer parte da equipe outros jogadores
negros10, como, por exemplo, Gradim e Ivo, em 1925, e Fruto, em 1929.
Esse processo de incorporação de atletas negros, além de ter sido uma
estratégia que qualifica significativamente as equipes do Brasil, acabou por
fortalecer o veio popular do clube. Ao longo de toda a década de 30, a
presença de jogadores negros se fortaleceu, tornou-se uma constante e
virou uma espécie de emblema.

O E. C. Pelotas teve uma postura diferente e, segundo Rigo (2004, p. 153), o


time:

É lembrado como o clube que representava a elite da cidade e que mais


resistência teve ao movimento de miscigenação racial que acontecia no
futebol brasileiro e local. Alcides de Morais11, ex-goleiro do Pelotas, se
reportou a isso tecendo um paralelo com o ocorrido com a dupla Gre-Nal, na
capital do estado. „No Pelotas foi só um pouco depois que eles começaram
a jogar. Até então, pode ver no pavilhão do Pelotas: só se vê branco. Em 38
já tinha o Dirceu jogando, que era um mulato. Era quase como o Grêmio,
que o primeiro a jogar foi Tesourinha‟

O mesmo autor ainda comenta que (RIGO, 2004, p. 154-155) em outros


clubes da Liga Pelotense de Foot-ball e até em times de bairros ocorriam casos de
preconceito com os negros. E que isso mostra que o racismo, longe de se manifestar
exclusivamente no futebol, era um problema social da época. No entanto, as
posições mais destacadas em relação à aceitação do negro foram mesmo as
posturas do G. E. Brasil e do S. C. Pelotas.
Apesar de todas essas peculiaridades de Pelotas, antes de concluirmos a
discussão que este trabalho propôs é importante perceber que o fato da aceitação
ter se intensificado na década de 1930, apesar da Frente Negra Pelotense (FNP) ser
“uma entidade aglutinadora na luta contra a discriminação racial” (LONER, 1999,

9
É importante destacar que na foto do G. E. Brasil é possível perceber que há ainda certa “distância”
entre negros e brancos. Com exceção de um que está agachado bem à direita, os demais negros
estão de pé, agrupados atrás (além de um menino branco). Este aspecto pode demonstrar que,
apesar da aproximação, entre os jogadores a cor da pele ainda podia ser um elemento de
aproximação/afastamento.
10
Além do já citado Babá, em 1917 e 1919, mas que era exceção.
11
Entrevistado pelo autor citado em 1999.
28
401) que conseguiu algumas conquistas, está conectado com um movimento
nacional do período, que foi a profissionalização do futebol. Sobre isso, Loner (1999,
p. 412-413) explica que:

grande parte dos clubes contavam com operários de todas as categorias e


ramos de atividade, que participavam seja em fins de semana ou feriados,
seja seguindo o rumo da profissionalização, possível a partir de 1933. Até
essa data, a participação de operários no futebol era restrita pela
artificialidade da exigência do amadorismo, que impedia reivindicações e a
profissionalização dos atletas, criando situações constrangedoras para os
jogadores, que ficavam à mercê dos clubes.

Franco Júnior (2007, p. 75-76) faz uma discussão interessante sobre o


fenômeno da profissionalização, relacionando-o com a Revolução de 30 e com a
saída de muitos jogadores para o exterior:

O clima de desavenças futebolísticas interligava-se com a grave crise


política brasileira que culminaria logo depois na derrubada do regime. A
quebra da Bolsa de Nova York em 1929 enfraquecera a poderosa oligarquia
de São Paulo. Após as eleições – vencidas pelo paulista Júlio Prestes –, o
assassinato do candidato a vice na chapa de Getúlio Vargas, João Pessoa,
quatro dias antes da final da Copa, levou à eclosão de protestos nas
principais cidades do país, sobretudo no Rio de Janeiro. Em 31 de outubro,
uma multidão saudava os revolucionários que chegavam à capital, como se
comemorassem um título nacional. A transição política coincidia com o
definhamento do amadorismo. Um grande número de jogadores, atraídos
pelo profissionalismo implantado no exterior, deixava o país, como Fausto
(1931, Barcelona), Leônidas (1931, Peñarol), Tupi, Vani, Ramon, Teixeira e
Petronilho (1931, San Lorenzo de Almagro), Del Debbio e De Maria (1931,
Lazio), Ministrinho (1931, Juventus), Raro e Filó (1932, Lazio) – este último
se tornaria campeão mundial jogando pela Itália na Copa de 1934 – e
Domingos da Guia (1933, Nacional do Uruguai). Em 1931, o governo Vargas
incluía o jogador de futebol entre as profissões que deveriam ser
regulamentadas pela legislação trabalhista. A exemplo da Argentina (1931) e
do Uruguai (1932), em janeiro de 1933 a recém criada Liga Carioca de
Futebol (LCF) – Fluminense, América, Vasco, Bangu e Bonsucesso -
decidiu oficialmente pelo profissionalismo de seus jogadores.

Rigo (2004) traz importantes colocações sobre este fenômeno. Ele comenta
que a instauração do profissionalismo dentro do futebol moderno é um processo que
extrapolou as fronteiras territoriais do nosso país e mesmo de nosso continente.
Avisa, também, do perigo de tornar o ano de 1933 o marco da profissionalização no
Brasil, pois isso poderia relegar a segundo plano outras conquistas ocorridas em
outros lugares do Brasil e em momentos anteriores ou mesmo posteriores a 1933.
Observa ainda, a existência de uma espécie de profissionalismo velado, tanto em
Pelotas como em outras regiões, desde o início do século XX, caracterizada pela
29
compra de alguns jogadores, mesmo que não fosse legalizada, como também, por
compensações financeiras aos jogadores e ofertas de emprego (RIGO, 2004, p. 134-
141).
Ele aponta também, que o profissionalismo não é o único fenômeno que
propiciou a democratização do futebol. O futebol de Várzea e a proliferação e a
diversificação nos tipos de competições igualmente desempenharam um papel
central.
Denuncia, ainda, a dimensão aristocrática e elitista intrínseca aos discursos
que lamentam o fim do amadorismo, dizendo que esse tipo de discurso tende a
idealizar um futebol amador que nunca existiu, já que os jogadores sempre
demonstraram orgulho em contar com benefícios econômicos conseguidos com o
futebol.
Mas esse discurso saudosista é forte. É difícil ter que usar o livro de Galeano
(2010), uma verdadeira obra de arte sobre o futebol, como exemplo desse tipo de
fala, mas para ele:

a história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo


tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que
nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar. [...] O jogo se transformou
em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol
para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos
do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se
jogue. [...] O futebol profissional faz todo o possível para castrar essa
energia de felicidade, mas ela sobrevive apesar de todos os pesares
(GALEANO, 2010, p. 10 e p. 204).

Apesar desse tipo de opinião ser muito sedutora, até porque em muitos casos
os lucros em cima do futebol são, de fato, abusivos, ela despreza as diferenças
sociais existentes entre os atletas. Filho (2003, p. 176) aborda muito bem essa
questão, citando o caso de Fausto, que como já dito foi para o Barcelona em 1931.
Segundo ele:

Amadorismo, amor ao clube, estava bom para um Fortes, que não precisava
de dinheiro. Fortes tinha tudo, uma baratinha, uma lancha, até uma
garçoniére atrás da Casa de Saúde Pedro Ernesto, todo o primeiro andar do
número 75 da Rua Paulo de Frontin. Fausto não tinha nada, morava com a
mãe, casa de porta e janela, da Rua Pereira Nunes, chegava a passar
necessidade. A mãe cada vez mais magra, não parando de manhã até de
noite, varrendo o chão, limpando as panelas, cozinhando. Só contava com
ele. Se ele não precisasse, não ia bancar o palhaço. Porque o jogador de
futebol, branco, mulato ou preto, comparava-se a um palhaço. O torcedor ia

30
para um campo de futebol, comprava uma geral, uma arquibancada, para
quê? Para se divertir. Tal como num circo.

Ainda o mesmo autor, lembrando que a primeira edição de sua obra foi
lançada em 1964, sintetiza muito bem a questão ao dizer: “Há quem ache que o
futebol do passado era bom. De quando em quando a gente esbarra com um
saudosista. Todos brancos, nenhum preto” (FILHO, 2003, p. 29).
Como DaMATTA (1997) muito bem observou, e já foi citado ao longo deste
trabalho, se num ambiente predominantemente capitalista o profissionalismo pode
ser questionado, naquele contexto social da república velha brasileira, em que a
concepção escravocrata de sociedade teimava em sobreviver, o futebol foi um
importante instrumento democrático. A profissionalização, naquela realidade, só
aumentou a capacidade desse esporte de propiciar a ascensão e, principalmente, a
inclusão social de indivíduos marginalizados, étnica e/ou economicamente.

31
Considerações Finais

Este trabalho buscou debater o fenômeno da exclusão do negro no período


pós-abolição em Pelotas através de um novo olhar, ou seja, buscando uma interface
entre futebol e história que permitisse discutir como este esporte se relacionou com
o preconceito naquele contexto. Esta pode ter sido, por si só, uma primeira
contribuição da pesquisa, caso o intento tenha sido obtido.
O que se percebeu, ao tentar cumprir este primeiro objetivo acima explicitado,
foi que o futebol não foi apenas um mero reprodutor de uma realidade excludente.
Obviamente o esporte foi influenciado pelo contexto e, em vários momentos,
reproduziu os preconceitos a que os negros eram submetidos em outros ambientes
sociais. No entanto, também serviu como instrumento de integração dos negros,
união essa que contribuiu para o enfrentamento do estigma, tanto no próprio
esporte, como em outras situações.
Além disso, foi possível perceber que a democratização do futebol, em se
tratando de Pelotas, em alguns momentos repercutiu diversas tendências nacionais,
como no caso dos anos de 1930; e em outros apresentou peculiaridades, como na
relação do E. C. Farroupilha com os militares; do caráter precoce da aceitação de
negros no G. E. Brasil e no papel que a Liga José do Patrocínio acabou assumindo,
para além do futebol.
Esta pesquisa pretende ampliar as possibilidades de discussão sobre este
período histórico tão conturbado, mostrando que o futebol, longe de ser apenas um
instrumento de alienação, propiciou, àquela sociedade marcada pelo clientelismo,
pelas hierarquias, pela herança escravocrata, uma experiência democrática, com
regras simples que valem para todos os jogadores, brancos ou negros. Mesmo que
a sociedade da época tenha tentado impedir alguns de entrar em campo, quando
entraram, tiveram, mais cedo ou mais tarde, que ser tratados da mesma forma.

32
Referências Bibliográficas

Fontes Primárias

Entrevista realizada no dia 03/06/2004 com o senhor Mário Chagas, no clube


Chove Não Molha. Entrevistadores: Lorena Almeida Gill, Débora Clasen de Paula,
Marcele Victória dos Santos. Acervo do NDH/UFPel.
Jornal A Alvorada, Pelotas, anos de 1931 a 1935; 1945 a 1950 (Biblioteca
Pública Pelotense).
Jornal A Opinião Pública, Pelotas, anos de 1925 a 1950 (Biblioteca Pública
Pelotense).
Jornal O Libertador, Pelotas, anos de 1924 a 1937 (Biblioteca Pública
Pelotense).
Almanaque de Pelotas de Florentino Paradera. Anos de 1913, 1915, 1917,
1918, 1929, 1932 (Biblioteca Pública Pelotense).
Revista Esporte Clube Pelotas 90 anos: 1908 – 1998. Pelotas, RS. 1998.
Revista Brasil Gigante. Edição da ORPAL – Org. de Pub. E Emp. Prom. Ltda.
(Dir.) Edson, Pires. n. 1, 2, 3 e 4. 1971.

Bibliografia

AL-ALAM, C. C. A negra forca da princesa: polícia, pena de morte e correção


em Pelotas (1830-1857). Pelotas: Edição do autor; Sebo Icária, 2008.
ALVES, E. O futebol em Pelotas. Pelotas: Livraria Mundial, 1984.
AMARAL, M. G. A história do futebol em Pelotas (1901-1941), Pelotas,
Instituto de Ciências Humanas, UFPel, 2003, Monografia (Graduação em História).
BOANOVA, A. P. dos S. Bra-Pel – Explicitando Rivalidades, Pelotas, Instituto
de Ciências Humanas, UFPel, 1997, Monografia (Graduação em História).
DA MATTA, R. Antropologia do óbvio. Revista USP, São Paulo, nº 22, p. 10-
17, jun/jul/ago 1994.
DORNELLES, J. B. Profissões Exercidas Pelos Negros em Pelotas (1905-
1910).História em Revista, Pelotas, v.4, 95-138, 1998.
FILHO, M. O Negro no Futebol Brasileiro. 4. Ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.
FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
33
FRANCO JÚNIOR, H. A Dança dos deuses: futebol, cultura e sociedade. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GALEANO, E. Futebol ao sol e à sombra. 3. Ed. Porto Alegre: L&PM, 2008.
GUTIERREZ, E. J. B. Barro e sangue: mão-de-obra, arquitetura e urbanismo
em Pelotas (1777-1888). Tese de Doutorado em História,PUCRS, Porto
Alegre,1999.
HOBSBAWM, Eric. Mundos do trabalho. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e terra,
1987.
HOFBAUER, Na. Uma história do branqueamento ou o negro em questão.
São Paulo: Editora UNESP, 2006.
LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: São Paulo, Ed. Da UNICAMP,
1992.
LONER, B. A. Classe Operária: Mobilização e Organização em Pelotas: 1888-
1937.Tese de Doutorado em Sociologia, UFRGS,Porto Alegre, 1999.
LONER, B. A. Jornais pelotenses diários na República Velha. Ecos Revista,
Pelotas, v. 2, n.1, p. 5-34, 1998.
LONER, B. A.; GILL, L. A.; MAGALHÃES, M. O. (Orgs.). Dicionário de História
de Pelotas. Pelotas, Ed. Da UFPel, 2010.
MAGALHÃES, M. O. Opulência e Cultura na Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas:
EdUFPel: Livraria Mundial, 1993.
MAGALHÃES, M. O. História e tradição na cidade de Pelotas. 3. Ed. Pelotas:
Armazém Literário, 1999.
MAUAD, A. M. Através da imagem: fotografia e história, interfaces. Tempo,
Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1996, p. 73-98.
OLIVEIRA, C. R. de. O negro no futebol paranaense: o caso do Coritiba Foot
Ball Club (1909-1942). Curitiba: Imprensa Oficial, 2005.
POLLAK, P. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
RIGO, L. C. Memórias de um Futebol de Fronteira. Pelotas: Editora
Universitária UFPel, 2004.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.

34

You might also like