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José Barreto

Fernando Pessoa e Salazar

Versão revista de uma comunicação ao I Congresso Internacional Fernando Pessoa, Lisboa, 25-28 de
Novembro de 2008. Publicada em Pessoa – Revista de Ideias, n.º 3, Junho de 2011, pp. 17-34, sob o
título “Fernando Pessoa e Salazar: Sobre o pensamento político do escritor e a sua ruptura com o
salazarismo”

I.

Se outros motivos não existissem para estudar o pensamento de Fernando Pessoa acerca
de Salazar e do salazarismo, bastaria talvez a circunstância de se tratar de dois ícones —
ambos controversos, embora não igualmente — do século XX português. É conhecido,
também, uma espécie de incidente tacitamente desenrolado entre os dois, que girou em
torno das palavras proferidas por Salazar na sessão de distribuição de prémios do
Secretariado de Propaganda Nacional, em 21 de Fevereiro de 1935, a que Pessoa
decidiu não estar presente. Essas palavras de Salazar foram consideradas por Pessoa
como um enxovalho feito a todos os escritores portugueses. Assumiu-as (por essa razão
ou por outra, sobre o que só podemos especular) como dirigidas a si e reagiu-lhes com
indignação e sarcasmo em poemas e textos que não pôde publicar.

A estes motivos de interesse há porém que acrescentar, se não mesmo preferir, outros
mais substanciais: a independência política de Pessoa, a sua preparação intelectual e
vasta cultura, o raro “olhar inglês” (Eduardo Lourenço) que lançou sobre Portugal, bem
como o facto de ter vivido num período que viu a queda da Monarquia, a instauração e o
declínio da 1.ª República, a génese do Estado Novo e o triunfo pessoal de Salazar,
acontecimentos que acompanhou sempre com vivo interesse e, por vezes, alguma
paixão. Não em último lugar, refira-se que o espólio de Pessoa encerra uma quantidade
apreciável de textos e fragmentos com referências directas e indirectas a Salazar, alguns
dos quais já conhecidos do público.

Em trabalhos recentes, tenho abordado a questão da importância, no conjunto da obra de


Fernando Pessoa, dos seus escritos políticos, sociológicos e de temática religiosa. 1
Pessoa nunca foi político nem militante político, conservando-se geralmente distante de
actuações gregárias nesse domínio e mantendo grande independência em relação ao
poder, qualquer que ele fosse, circunstâncias que tornam muitas das suas reflexões sobre
os referidos temas particularmente atraentes. Vários autores sublinharam já — contra a
opinião de outros, é certo — o valor e originalidade dos seus escritos sobre temas
políticos e sociais, de que só uma parte, talvez a menor, era conhecida à sua morte. Joel
1
José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of Fernando Pessoa”, Portuguese Studies, 24
(2), 2008, pp. 168-214; “Pessoa e Fátima. A propósito dos escritos pessoanos sobre catolicismo e
política”, em Jerónimo Pizarro (org.) Fernando Pessoa: O Guardador de Papéis, Texto, Alfragide, 2009,
pp. 219-281; e “Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista” (Análise Social nº 193, 4-
2009, pp. 693-718).
Serrão, referindo-se ao conjunto dos escritos politico-sociológicos que Pessoa deixou
inéditos, falou de um “itinerário secreto”, pois só “muito esporadicamente emergiu à luz
do público”, mostrando a “permanente atenção prestada por Pessoa à nebulosa política
do seu tempo” e a sua preocupação em produzir sobre esses temas uma obra de índole
“científica”.2 No seu conjunto (e ainda há muito por conhecer), esses escritos revelam,
de facto, um aspecto menos conhecido de Pessoa, o de pensador da sociedade e da
política portuguesas. Esta sua faceta, distinta da de artista, embora obviamente não dela
desligada, não é um mero acessório biográfico nem é diminuída pela envergadura do
poeta e prosador. Os estudos em curso e a edição tanto quanto possível completa dos
seus escritos confirmarão, sem dúvida, esta afirmação.

Quando, a partir de 1974, finalmente começaram a ser revelados em Portugal os escritos


anti-salazaristas de Fernando Pessoa, reacendeu-se um velho debate sobre o pensamento
político do escritor. Esse debate tinha sido iniciado, no começo dos anos 50, pela
primeira biografia de Pessoa e pelas críticas que de imediato provocara.3 O grande
prestígio já alcançado nos anos 70, nacional e internacionalmente, pela obra de Pessoa
transformou os escritos inéditos revelados (e os muitos que se lhe seguiram) num tema
de polémica politicamente interessada. À esquerda e à direita procurou salientar-se
certas facetas do escritor político Fernando Pessoa em detrimento de outras. A própria
edição dos escritos de Pessoa passou, em diferentes períodos, por esse e outros crivos
profilácticos.

Logo em 1935, dias após a sua morte, se verificou a primeira tentativa de apropriação
política do legado do escritor com a republicação, no semanário Bandarra (jornal
lançado, através da Editorial Império, pelo Secretariado de Propaganda Nacional, de
António Ferro), do folheto O Interregno, obra de 1928 que Pessoa havia entretanto
repudiado.4 Seguir-se-ia, em 1940, a publicação, pela mesma editora, do poema “À
Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais”, que fora inicialmente publicado em 1920
(sem o “Rei” no título), acompanhado agora da chamada “Nota autobiográfica” de
Fernando Pessoa, de Março de 1935, amputada de cerca de metade dos seus parágrafos,
precisamente aqueles em que Pessoa repudiava O Interregno, considerando-o como
“não existente”, e se definia como um conservador liberal de “estilo inglês”, anticatólico
e “absolutamente anti-reaccionário”, além de anticomunista e anti-socialista.5 As

2
Joel Serrão, Fernando Pessoa, Cidadão do Imaginário, Livros Horizonte, Lisboa, 1981, p. 20.
3
João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa: História de uma Geração , Bertrand, Lisboa,
1950 (vols. I-II), e Pedro Veiga (Petrus), “Considerações finais”, em Fernando Pessoa, Crónicas
Intemporais, C.E.P., s.l., s.d. [ca. 1952], pp. 91-110.
4
O Interregno foi republicado, a seguir à morte de Pessoa, nos quatro últimos números do semanário
Bandarra, entre Dezembro de 1935 e Janeiro de 1936. Pessoa tinha repudiado essa obra de 1928 na “nota
autobiográfica” que escreveu em Março de 1935 e distribuíra entre amigos. Pensa -se que o amigo íntimo
Augusto Ferreira Gomes terá sido o responsável pela publicação de O Interregno no jornal Bandarra.
5
À Memória do Presidente-Rei Sidónio Paes, Editorial Império, Lisboa, 1940. Pedro Veiga (op. cit., p.
100) denunciou a intenção dos redactores do Bandarra e da Editorial Império de ocultarem, em 1935 e
em 1940, uma parte do pensamento de Pessoa. A expressão “Presidente-Rei” não aparecia no título
original do poema, publicado no n.º 4 do jornal Acção (27 de Fevereiro de 1920) nem no corpo do
mesmo, mas Pessoa acrescentou à mão, num exemplar do jornal que lhe pertenceu, a palavra “Rei”,
precedida de hífen, à palavra “Presidente” no título do poema Assim figura também em dois projectos
editoriais de Pessoa de 1935, confirmando que a alteração foi feita pelo autor, embora o poema só
postumamente tivesse sido publicado s ob o novo título.
tentativas de apropriação do pensamento de Pessoa e, até, do seu recrutamento como
profeta e escritor político tinham começado ainda em vida, por parte dos meios
estadonovistas, como adiante se mostrará, mas a essas pôde o próprio escritor reagir,
repelindo-as. Não me proponho aqui historiar a longa série de distorções introduzidas,
até à actualidade, através de diferentes critérios de selecção, edição ou interpretação dos
escritos políticos de Pessoa, mas é notório que as tentativas de manipulação não
acabaram, apenas começaram com o Estado Novo, tendo-se desde então diversificado.

Sobre o pensamento e o sentido político da obra de Pessoa está longe de atingir-se um


consenso no próprio meio académico, onde já não é dificultado principalmente por
partis pris ou tentativas de apropriação, mas sim pela natural diversidade de teses,
pontos de vista ou metodologias. Uma causa profunda desta dificuldade estará
certamente no facto da rejeição por Pessoa do pensamento tradicional e do quadro
mental português seu contemporâneo, no propósito assumidamente “indisciplinador” e
“perturbador” (contestatário, dir-se-ia hoje) que caracterizou a sua atitude crítica e a sua
intervenção cultural ou, como escreveu Eduardo Lourenço, na “espécie de olhar
subversivo” com que o escritor “dinamitou a constelação de valores, de referências, de
estereótipos, de reflexos, de modelos, que até ele tinham presidido à vida do imaginário
lusíada”.6 Foi este olhar singular, se não único, que Pessoa lançou sobre a realidade
social e política nacional. A essa característica essencial do seu pensamento, acresce que
a variedade de juízos, opiniões e posições que o escritor patenteou ao longo da sua vida
não foi ainda convenientemente estudada no seu contexto histórico, nem sequer
considerada, por vezes, no seu elementar quadro cronológico — em parte devido, é
certo, à dificuldade de datação de muitos dos escritos que Pessoa deixou inéditos.

Outra dificuldade de interpretação do pensamento de Pessoa residirá, como Raúl


Morodo sublinhou7 , na plasticidade ou subjectividade dos conceitos políticos e
ideológicos por ele utilizados, muitas vezes em desafio do sentido convencional com
que os seus contemporâneos os utilizavam. “Liberal”, “conservador”, “democracia”,
“reaccionário” ou “anti-reaccionário” não têm, frequentemente, em Pessoa o mesmo
sentido que os seus contemporâneos davam usualmente a essas expressões, como não
têm sempre o mesmo significado nos próprios escritos de Pessoa. Certas expressões
oximorónicas pessoanas, como “Presidente-Rei”, “monarquia não hereditária”,
“república aristocrática”, “ditadura liberal”, “ditadura democrática”, “sebastianista
racional”, etc., têm que ser descodificadas, porque têm um sentido preciso e esclarecem
não o carácter contraditório, mas a coerência do pensamento político pessoano.

Perante dada afirmação ou posição que Fernando Pessoa tenha deixado registada, é
quase sempre possível encontrar, na obra publicada ou no espólio, uma posição
aparentemente diversa ou oposta, mesmo sem considerar as oscilações puramente
devidas ao jogo heteronímico pessoano. Tem, assim, sido possível opor, muitas vezes
sem qualquer preocupação hermenêutica, textos pessoanos pró e contra o liberalismo, a
democracia, a ditadura, o regime republicano, o regime monárquico, o direito de voto
feminino, a Revolução Francesa, a política inglesa, a política alemã, Afonso Costa,
Salazar, o cristianismo, o catolicismo, a Maçonaria, etc. Deste modo, o próprio ideário

6
“Apoteose ou segunda morte de Fernando Pessoa?” (1985), republicado em Eduardo Lourenço,
Fernando, Rei da nossa Baviera, INCM, Lisboa, 1993, pp. 45-53.
7
Raúl Morodo, Fernando Pessoa e as “Revoluções Nacionais” Europeias, Caminho, Lisboa, p. 65.
político de Pessoa aparece como “oximorónico”, e não apenas as expressões que
construiu jogando com oposições de sentidos.

A transposição acrítica para o plano do pensamento político pessoano da boutade do


escritor, a propósito da evolução da sua obra literária, “não evoluo, viajo” (1935), fez
esquecer a alguns que o ideário político de Pessoa passou, em trinta anos de idade
adulta, por diferentes fases, sofreu diversas influências, reagiu a uma série de
conjunturas políticas e acontecimentos históricos, abandonou determinados padrões e
adoptou (ou regressou a) outros. As suas ideias, inevitavelmente, foram-se depurando,
reorientando, eventualmente refinando ao longo dessas três décadas, pelo que se
justificaria distinguir no seu pensamento pelo menos uma ou duas fases da juventude e
duas ou três fases da maturidade. Curiosamente, poucos estudiosos se preocuparam até
hoje em estabelecer um tal faseamento, ainda que Joel Serrão e Raúl Morodo o tenham
esboçado, prestando atenção a “etapas” no itinerário de Pessoa, sem deixar de assinalar
as constantes. A abordagem estática, numa errada perspectiva sincrónica, de todos os
escritos políticos de Pessoa e dos seus heterónimos e semi-heterónimos contribuiu, sem
dúvida, para que tantos autores tenham insistido no seu carácter “contraditório”, em
detrimento da procura nele de um percurso ou sentido evolutivo.

Em muitos casos, os paradoxos e contradições insanáveis que diversos autores


detectaram no pensamento de Pessoa não o são. Jorge de Sena escreveu sobre Pessoa
algo que se aplica aqui: “[Pessoa] não foi um mistificador, nem foi contraditório. Foi
complexo”.8 A constância de determinados valores e princípios orientadores do seu
pensamento, por muitos autores reconhecida, não é posta em causa por diversas
oscilações, aparentes ou reais, das suas posições — que teriam sempre de ser
convenientemente contextualizadas. Mesmo certos factos indiscutíveis, como o
sucessivo abandono por Pessoa das ideias republicanas radicais, do republicanismo tout
court, do anti-cristianismo e do anticlericalismo feroz da sua juventude, não invalidam
que alguns traços do pensamento dessa época se tenham mantido, ora implícitos ou
manifestando-se sob formas mais nuancées, ora reaparecendo idênticos, muito mais
tarde, em resposta a circunstâncias precisas da vida portuguesa.

O sublinhar-se o carácter “contraditório” dos escritos políticos de Pessoa parece por


vezes ter servido, como já foi sugerido por um autor, o pio propósito de neutralizar
aspectos quiçá incómodos do seu pensamento, evacuando-os para um plano poético,
lúdico, de jogo heteronímico ou de mera intenção provocatória.9 Entre estes aspectos
“incómodos” — que o seriam não só para um público pessoano de esquerda, mas
também para a maioria do público intelectual — pode citar-se o anti-humanitarismo (de
raiz nietzschiana, mas também spenceriana), o elitismo fortemente anti-plebeu e a
apologia da ditadura. Junte-se-lhes, em exemplos avulsos, a atracção pessoana pela
teoria de uma conspiração mundial plutocrato-judaica, a aceitação, quando não elogio,
do esclavagismo e do “direito da força”, a consideração da guerra como o “estado
natural da humanidade”, o antifeminismo (par do anti-plebeísmo de Pessoa) e diversas
teorizações misóginas que se podem encontrar esparsas pelo seu espólio. Se é certo que
alguns destes aspectos “incómodos” do pensamento de Pessoa são datados ou

8
“Carta a Fernando Pessoa”, em Jorge de Sena, Fernando Pessoa e C.ª Heterónima, edições 70, Lisboa,
2000, p. 19.
9
Brunello de Cusatis, Esoterismo, Mitogenia e Realismo Político em Fernando Pessoa , Caixotim, Porto,
2005, p. 68.
puramente conjunturais, outros não o são e, obviamente, não podem ser ignorados ou
menosprezados nem sob a alegação do propósito de “escandalizar” que os teria
motivado (Jacinto Prado Coelho10 ), nem com o argumento de que os textos em que se
encontram teriam sido deixados impublicados pelo autor em vida (como se apenas dele
tivesse dependido a sua publicação), inferindo-se daí a sua menor valia ou
genuinidade11 — objecção não considerada quando se tratou de publicar centenas de
outros textos deixados inéditos, de tema político ou não, como a maior parte do Livro do
Desassossego, que hoje alguns consideram já a obra prima de Pessoa.

Elevado nas últimas décadas a mito ou glória nacional com lugar nos Jerónimos, é de
prever que o debate sobre o seu pensamento se vá eternizando. Independentemente do
seu valor intrínseco, originalidade e potencial provocatório, que ainda não murcharam
(não nos esqueçamos que, há mais de 50 anos, Pedro Veiga tinha augurado a Pessoa o
papel de “agitador póstumo”), o pensamento de Pessoa tornou-se num património
nacional que cada um tenta recortar e adequar à sua medida e necessidades. A isto
chamou Onésimo Teotónio de Almeida, com espírito certeiro, o “Fernando-Pessoa-
tudo-para-todos”.12 Mas não seria esse mesmo o necessário resultado da paciente
construção por Pessoa de uma auréola de sábio ou génio vogando, como Romain
Rolland ou Julien Benda, au-dessus de la mêlée, guiado apenas por valores eternos e
universais, como a verdade e a beleza?

II.

Alguns dos escritos políticos inéditos que se foram revelando desde 1974 — primeiro os
poemas satíricos sobre Salazar e o Estado Novo, depois também textos de análise
política sobre esses e muitos outros temas — vinham aparentemente pôr em causa uma
imagem de Pessoa há muito existente, talvez dominante: a de um pensador nacionalista,
ao mesmo tempo conservador e moderno, defensor de governos musculados; a de um
elitista que olhava com ostensivo desprezo não só as lutas operárias, mas também a
própria “democracia moderna” (em contraponto com a democracia ateniense); a de um
escritor-profeta que fizera poemas a ditadores messiânicos e defendera a Ditadura
Militar. Imagem que, não sendo falsa, pecava por incompleta, unilateral e datada. Como
conjugar essa velha imagem com o pensamento político desconhecido que muitas
centenas, se não milhares de páginas das arcas de Pessoa começaram a revelar? Em
particular, como entender e situar o pensamento de Pessoa relativamente à génese e
consolidação do Estado Novo salazarista?

10
Jacinto do Prado Coelho, Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, 11.ª edição, Verbo, Lisboa,
1998, p. 232.
11
Alfredo Margarido, “Sobre as posições políticas de Fernando Pessoa”, Colóquio-Letras, n.º 23, Janeiro
de 1975, pp. 66-68. Defende este autor, a propósito dos escritos de Pessoa: “O documento inédito pode
revelar uma tendência [...]. O texto revelador é aquele que na praça pública define a posição do autor e
define as posições políticas de uma época”.
12
Onésimo Teotónio de Almeida, “O Fernando Pessoa-tudo-para-todos e o manifesto de Lourenço”, JL
- Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa, 1 de Outubro de 1985.
Iniciado o debate sobre o pensamento político de Pessoa à luz de um universo de textos
em constante ampliação, as posições foram-se dividindo por vários grupos, de que
destaco alguns, sem preocupação de exaustão:

1) Os que sustentavam que Pessoa, embora tivesse formulado muitas opiniões ao longo
da vida, não possuía um pensamento político coerente, nem talvez mesmo qualquer
pensamento político caracterizável segundo coordenadas comummente estabelecidas.
Pessoa teria sido acima de tudo ou exclusivamente um artista, um poeta, cujo discurso
político não seria situável no “domínio referencial”, pois remeteria sempre e apenas
para uma “lógica poética”. José Augusto Seabra é o representante principal desta linha,
com vários trabalhos sobre os escritos políticos de Pessoa, o primeiro dos quais 13 ,
fundador da sua tese, sintomaticamente anterior à organização por Joel Serrão de três
volumes recheados de inéditos, no final da década de 70.14

2) Os que achavam que Pessoa, independentemente das críticas feitas a Salazar ou ao


Estado Novo no fim da vida, fora sempre claramente um conservador radical, adepto de
ditadores carismáticos e apóstolo de um nacionalismo místico e anti-democrático, tendo
participado, com outros modernistas, na criação de uma “cultura política” ou de um
“ambiente cultural” desestabilizador da 1.ª República, e merecendo, assim, ser visto
como um precursor do nacionalismo autoritário ou fascista em Portugal. Pessoa teria
sido, para estes autores, algo como um pré-fascista ou proto-fascista — termos que
foram aplicados, com critérios variáveis, a escritores europeus seus contemporâneos,
como Barrès, Sorel, D’Annunzio, Marinetti, Yeats, Eliot, Kipling, Pound e vários
outros, independentemente de alguns deles terem mais tarde apoiado ou aderido ao
fascismo. Nesta linha, que recusa coerentemente a possibilidade de ter existido um
Pessoa anti-fascista, devem citar-se, com particularidades que os distinguem, Alfredo
Margarido, Manuel Villaverde Cabral e António Costa Pinto,15 cujas teses diversas —
mas irmanadas numa busca comum das raízes intelectuais ou culturais do fascismo —
se confrontam, por igual, com a dificuldade em explicar aquilo que terá sido um volte-
face nas posições políticas de Pessoa, sobretudo em 1935. Na mesma linha incluir-se-ia
o atrás já citado Raúl Morodo, se bem que este autor, considerando Pessoa um dos
“antecipadores da revolução nacional e do Estado Novo posterior”, tinha começado por
recusar a hipótese de classificar Pessoa como um pré-fascista ou pré-salazarista.16

13
José Augusto Seabra, “Poética e política em Fernando Pessoa”, Persona, n.º 1, 1977, pp. 11-20.
14
Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao Problema Nacional, Ática, Lisboa, 1979; Da
República, Ática, Lisboa, 1979; e Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, Ática, Lisboa, 1980;
organização e introdução de Joel Serrão, recolha e leitura de Isabel Rocheta e Paula Morão.
15
Ver, especialmente, Alfredo Margarido, entre outros trabalhos, “Introdução”, em Fernando Pessoa,
Santo António, São João, São Pedro, A Regra do Jogo, Lisboa, Lisboa, 1986, pp. 9-90; António Costa
Pinto, “Modernity versus Democracy? The Mystical Nationalism of Fernando Pessoa”, em Zeev
Sternhell, The Intellectual Revolt against Liberal Democracy, The Israel Academy of Science and
Humanities, Jerusalém, 1996, pp. 343-355; e Manuel Villaverde Cabral, “A estética do nacionalismo:
modernismo literário e autoritarismo político em Portugal no início do século XX”, em Nuno Severiano
Teixeira e António Costa Pinto, A Primeira República Portuguesa: Entre o Liberalismo e o
Autoritarismo, Colibri, Lisboa, 2000, pp. 181-211.
16
Raúl Morodo, op. cit., pp. 63-64 e 99-102. A contradição é resolvida pelo autor com a afirmação de
que o Estado Novo real (de partido único, corporativista, estatista e católico) não era o “Estado Novo”
implícito no pensamento de Fernando Pessoa. A concluir o seu estudo, Morodo rotula ainda Pessoa de
“anarquista utópico de direita”.
3) Os que achavam que Pessoa, se bem que tivesse passado por uma fase aguda de
contestação doutrinária do democratismo parlamentarista republicano, teria na realidade
sido um liberal anti-autoritário (opinião partilhada por Pedro Veiga e Jorge de Sena),
alguém que teria prezado acima de tudo as liberdades individuais e que,
consequentemente, teria sido um opositor do Estado Novo (opinião partilhada por
Jacinto do Prado Coelho). Já nos anos 20, mais exactamente em 1923, Pessoa teria dado
provas (em “Aviso por causa da moral” e “Sobre um manifesto de estudantes”) do anti-
fascismo que os seus poemas anti-salazaristas revelariam mais tarde. Como
representante desta última tese, surgida em 1974, deve citar-se Pedro da Silveira, que
não teve dúvidas em retratar Fernando Pessoa como “anti-salazarista e anti-fascista” e
em datar o seu “antifascismo” de 1923. 17

4) O grupo, enfim, dos que, sem negarem a existência de um verdadeiro pensamento


político, coerente ou incoerente, em Pessoa, contestaram as diversas tentativas de
rotulagem ou apropriação política do escritor, defendendo que o pensamento político e
filosófico (e a própria obra literária) de Pessoa, cujas primeiras características seriam a
singularidade e a heterodoxia, o distanciavam irremediavelmente de todos os quadrantes
políticos e ideológicos portugueses tradicionais, existentes e futuros. Mais ou menos
nesta linha, podem citar-se, entre outros, Joel Serrão, Eduardo Lourenço e Onésimo
Teotónio de Almeida.

Não se pretende neste trabalho analisar cada uma das linhas reveladas no debate,
iniciado este numa época em que boa parte dos textos políticos das arcas pessoanas
ainda era desconhecida. Não são posições que qualitativamente se equivalham, mas em
todas elas há, porventura, algum fundamento real, alguma parcela de “verdade”. Tentar-
se-á, em compensação, situar o assunto principal da polémica — a relação de Pessoa
com o salazarismo — no campo dos factos, dos textos pessoanos e do seu contexto, para
assim apontar algumas realidades que se afiguram indiscutíveis.

III.

São conhecidos alguns textos provenientes da arca de Pessoa em que o escritor enumera
as qualidades que teriam feito de Salazar um dirigente prestigiado no país e fora dele,
em que faz um balanço positivo da obra administrativa do ditador e em que chega a
declarar-se um “situacionista por aceitação” (adiante se verá o que queria dizer com
isso). Estes escritos ou simples trechos contendo juízos positivos sobre Salazar, bem
como os de sinal contrário, não podem obviamente ser isolados do conjunto a que
pertencem, pois só conjuntamente têm um sentido preciso e verdadeiro. Mas antes
mesmo de se considerar o teor dos textos políticos pessoanos vindos a lume pós-1974, é
indispensável assentar numa coisa: em vida, Fernando Pessoa nunca apoiou

17
[Pedro da Silveira], “Nota adicional” a Jorge de Sena, “Quatro poemas anti-salazaristas de Fernando
Pessoa”, Seara Nova, n.º 1545, Julho de 1974, p. 20. A nota não é assinada, mas foi atribuída a Pedro da
Silveira, que a não rejeitou. Que a cruzada da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa contra os livros
imorais, em Fevereiro-Abril de 1923, era de inspiração fascista, isso não escapava a Pessoa, que guardou
na sua arca um recorte do Diário de Notícias de 26 de Fevereiro de 1923, noticiando as “medidas de
Mussolini contra os livros imorais” e defendendo uma “medida severa” idêntica para Portugal (BNP/E3,
135C-103).
publicamente Salazar ou o salazarismo, nem através da sua actividade de publicista nem
por qualquer outra tomada de posição conhecida. Não há nada que documente esse
apoio público, ainda que se tenha especulado em torno de certos factos que, realmente,
não provam nada.

Assim, o facto de Pessoa ter apresentado, em 1934, a Mensagem, livro de poemas de um


nacionalismo místico e sebastianista, ao concurso literário do Secretariado da
Propaganda Nacional, foi descrito por Alfredo Margarido como uma “colaboração com
as autoridades salazaristas e com a sua «estética»”18 , apesar de se saber também que a
maioria desses poemas eram muito anteriores ao Estado Novo, datando o primeiro
projecto da obra dos primeiros anos da República. Adiante se voltará à questão do
sentido político da Mensagem. O mesmo Alfredo Margarido avançaria depois, como
prova consistente da “adesão” de Pessoa “não só ao salazarismo, mas também às suas
propostas estéticas”, o facto de, em 1934, o poeta estar a preparar um livro de quadras
ao gosto popular.19 Desmentindo o que atrás defendera, Margarido acha então que “a
Mensagem não cabia nos apertados parâmetros desta estética tão particular” (a estética
do salazarismo, que nunca caracteriza), enquanto que as quadras populares, elas sim,
estariam “mais perto dessa opção” (opinião que também não justifica). Margarido alega
ainda como prova o facto de um amigo de Pessoa, Augusto Ferreira Gomes, ligado ao
nacional-sindicalismo e, depois, ao salazarismo, ter insistido em 1933 junto do ministro
da Instrução do Estado Novo, Gustavo Cordeiro Ramos, para que o poema “Mar
Português” (de 1922, embora integrado depois na Mensagem) fosse incluído nas
selectas oficiais de leitura para o ensino. Que Ferreira Gomes tivesse “escolhido” o
jornal nacional-sindicalista A Revolução para exaltar e defender a adopção do poema de
Pessoa, eis o que, novamente para Alfredo Margarido, num seu artigo prévio, se
afigurava como “a confirmação dos laços que uniam Fernando Pessoa à extrema-
direita”. Pessoa, segundo afirma aí, não teria apoiado somente a ditadura, “mas também
frequentemente as opções mais radicais dos nacional-sindicalistas, dos camisas-azuis”.20
Estas alegações, quando não são falsidades factuais, enfermam de um evidente
tendenciosismo interpretativo. Mas a própria argumentação de Margarido acerca da
colaboração de Pessoa com a “estética” do salazarismo se desmente a si própria: de
facto, em vida de Pessoa, o “Mar Português” não foi adoptado como leitura pelas
selectas oficiais.

Poder-se-iam citar mais “provas” de idêntico valor, incluindo alegações sobre


hipotéticas simpatias fascistas de Pessoa. Entre estas destaca-se a acusação —
novamente de Alfredo Margarido, que foi quem mais se notabilizou como carreador de
provas neste processo de fascistização de Pessoa — de que o escritor teria sido um
“admirador de Mussolini”.21 Esta afirmação é desmentida por diversos textos de Pessoa
sobre o fascismo e sobre Mussolini, alguns dos quais já conhecidos quando tal
afirmação foi feita, mas que Margarido ignorou, para se fixar numa única frase do

18
Alfredo Margarido, op. cit., p. 12.
19
Idem, p. 14.
20
Alfredo Margarido, “Pessoa, ídolo dos nacional-sindicalistas”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
29 de Novembro de 1983.
21
Alfredo Margarido, “Nota curta para lembrar que Pessoa admirou Mussolini”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias. Lisboa, n.º 85, 21 de Fevereiro de 1984.
escritor sobre a personalidade do Duce e daí partir, confessadamente, para “uma
extrapolação não documentada” (sic), em que chega a fazer a insinuação delirante de
que “[...] para Pessoa a figura carismática por excelência é, naturalmente, Mussolini,
cujo verbo e cuja veemência física se aproximam de Hitler, mas se afastam de
Salazar”.22 Teríamos, assim, um Pessoa de “extrema-direita”, mais atraído pelo carisma
de Mussolini e Hitler do que por Salazar. A verdade, porém, é que não há nenhum texto
conhecido de Pessoa, publicado ou inédito, que sustente tal posicionamento ou atracção
do escritor. O reconhecimento da personalidade carismática (ou magnética, como se
dizia na época) de Mussolini pertence ao domínio do óbvio. Sobre a personalidade de
Hitler, o juízo de Pessoa é de desprezo: “His very moustache is pathological. Lack of
sense of humour”.23 Textos divulgados nos últimos vinte anos mostram o desdém pleno
de sarcasmo de Pessoa pelo fascismo, que numa nota definiu como “nacionalismo
mórbido” e, noutra, como “nacionalismo animal”.24 Vários textos de Pessoa sustentam
que há uma “identidade fundamental” entre fascismo, nacional-socialismo e
comunismo.25 Outros escritos de Pessoa, até há pouco desconhecidos, vão em idêntico
sentido, revelando, por exemplo, a sua viva reacção de condenação da invasão da
Etiópia pela Itália fascista em Outubro de 1935, acto imperialista que, para Pessoa,
estava intimamente ligado à natureza do próprio fascismo.26

Passando a outro tipo de alegações sobre as supostas ideias salazaristas ou fascistas de


Pessoa, é por vezes avançada como prova delas a publicação do panfleto Interregno.
Defesa e Justificação da Ditadura Militar, opúsculo escrito em 1927 e publicado no
início de 1928, quando Salazar ainda nem era ministro. Se lido atentamente, O
Interregno não chega a ser uma defesa da Ditadura Militar concreta que em 1928
governava Portugal, como Pessoa expressamente frisa no seu opúsculo, limitando-se a
defender um “Estado de transição” liderado pelas Forças Armadas. Uma transição para
quê ou para onde? Pessoa não o diz, não o sabe, adia a questão para futura obra e evita,
sobretudo, pronunciar-se sobre o programa concreto da Ditadura Militar existente. O
único autor político citado, e longamente, neste opúsculo de Pessoa é Lord Hugh Cecil,
político conservador, amigo de Churchill e um dos mais destacados doutrinadores do
conservadorismo britânico do século XX (Pessoa citou a sua obra principal,
Conservatism, de 1912), cujo nome obviamente nunca esteve associado a ditaduras ou
ideologias autoritárias. Se algo pode provar O Interregno, é, talvez, o conservadorismo
de “estilo inglês” de Fernando Pessoa, como ele próprio mais tarde se definiu.

Mas a defesa (ainda que em termos genéricos) da Ditadura Militar em 1927-1928,


comum a muitas figuras que posteriormente se afastaram do salazarismo, não implicava
que Pessoa apoiasse o governo de Salazar. A sua primeira reacção perante o triunfo de
Salazar e o anúncio do partido único (a União Nacional), em 1930, foi mesmo de

22
Idem.
23
BNP/E3, 92I-51, publicado pela primeira vez em Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa: entre Génio e
Loucura, INCM, Lisboa, 2007, p. 216. Como Pizarro observa, a falta de sentido de humor era, para
Pessoa, um sinal de distúrbio mental.
24
José Barreto, “Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista”, op. cit.
25
Idem.
26
Idem.
rejeição. Pessoa classificou as teses defendidas por Salazar no histórico “Discurso da
Sala de Conselho de Estado” como “um apanhado dos princípios políticos da contra-
revolução”, identificando-os com “as doutrinas dos chamados integralistas”. E
acrescentava, num texto em que se propunha “contraditar os princípios expostos” quer
do manifesto da União Nacional (que fora lido previamente pelo primeiro-ministro
militar) quer do discurso de Salazar, então ministro das Finanças: “Há razões para
supor […] que dois terços do país estão com a Ditadura Militar; o que não há razão para
supor é que os mesmos dois terços, ou qualquer coisa que se pareça com esses dois
terços, estejam com o Integralismo Lusitano”.27 E em Julho de 1932, com a tomada
formal das rédeas do governo por Salazar, Pessoa considerou que nova transformação
fora operada no padrão da Ditadura portuguesa, de uma simples “ditadura militar à
Primo de Rivera” para a “actual ditadura à Mussolini”.28

O facto de, em 1934, o órgão de propaganda governamental dirigido por António Ferro,
ter desejado premiar Pessoa pela Mensagem, poema de um nacionalismo herético (do
ponto de vista católico) e sebastianista, também não prova a adesão do poeta ao regime
nem aos cânones estéticos do salazarismo. Prova somente, junto com outros factos, que
Pessoa foi cortejado pelo poder, isto é, convidado, com adiantamento de prémio (e, até,
do custo de impressão do livro), a pôr a sua veia poética, profética e messiânica ao
serviço dos fins políticos do regime. Esse “convite”, se quisermos, indirecto, foi
reiterado de modo mais explícito nas páginas do órgão político do regime, o Diário da
Manhã, pelo escritor monárquico João Ameal, ideólogo do Estado Novo e colaborador
de António Ferro. O artigo laudatório de Ameal, em 21 de Janeiro de 1935, apresentava
a Mensagem e o seu grito final “É a hora!” como uma profecia da “Hora” do Estado
Novo.29 Fernando Pessoa não podia senão repelir tal abordagem, que o comprometia
politicamente, deixando até a impressão de que Ameal pretendia cobrar serviço político
em troca do prémio literário concedido a Pessoa. A tentativa de apropriação política da
Mensagem por João Ameal foi, dias depois, simbolicamente rejeitada na praça pública
por Pessoa, com a publicação no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935 do artigo
“Associações Secretas”, em defesa da Maçonaria.

Este artigo “bomba” (como o autor lhe chamou, com visível comprazimento), sob a
forma de protesto contra a proposta de lei antimaçónica, foi, acima de tudo, um acto
público de demarcação de Pessoa em relação ao Estado Novo e como tal perfeitamente
entendido pelas gentes do regime. “Vá lá a gente fiar-se em poetas!” — escreveu no dia
seguinte deselegantemente o Diário da Manhã, o mesmo jornal em que na semana
anterior Ameal tinha tentado apresentar o autor da Mensagem como um profeta do
Estado Novo. O artigo de Pessoa tinha feito esgotar o Diário de Lisboa nas bancas,
suscitando um interesse nunca em vida igualado por outro escrito seu. A tentativa de
recrutamento do escritor visionário pelo S.P.N. tinha falhado estrondosamente: Pessoa
não só não aceitava ser profeta ou propagandista do regime, como ainda o atacava
publicamente. “Vá lá a gente fiar-se em poetas!” — o desabafo na primeira página do

27
BNP/E3, 111-53 e 55.
28
BNP/E3, 92M-39 e 40 (original em francês, publicado por Teresa Rita Lopes em Pessoa Inédito,
Livros Horizonte, Lisboa, 1993, p. 370).
29
José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of Fernando Pessoa”, op. cit., pp. 181-183.
órgão da União Nacional, dirigido expressamente a Fernando Pessoa, é muito
esclarecedor sobre a relação do escritor com o salazarismo.

A ostracização de Pessoa foi a consequência imediata do seu artigo em defesa da


Maçonaria. Numa nota manuscrita, Pessoa queixou-se depois de que a Censura até a
menção elogiosa do seu nome passou a proibir. Isso é comprovado por instruções do
dos Serviços de Censura emanadas em 8 de Fevereiro de 1935, documentos
recentemente revelados que esclarecem também porque não pôde Pessoa defender-se
das críticas ao seu artigo, conforme planeara: qualquer referência ao assunto era
proibida a partir de então, de modo a propiciar o “esquecimento de um assunto que deve
ser evitado” 30 . No semanário O Diabo, conotado com a oposição ao Estado Novo, a
Censura cortou uma nota com menção elogiosa do artigo de Pessoa, razão pela qual a
redacção do jornal não teve outro meio de manifestar o seu aplauso ao escritor, senão
publicando o seu retrato na primeira página, sob o título “Figuras da actualidade”. 31

O artigo “Associações Secretas” tinha surgido num momento bem preciso da vida
política e cultural portuguesa. Quatro dias antes, a 31 de Janeiro de 1935, duzentos
escritores, artistas e jornalistas tinham-se reunido num banquete em Lisboa e aprovado
o envio de um documento de protesto contra a Censura ao presidente da recém-
inaugurada Assembleia Nacional, José Alberto dos Reis.32 A assinatura de Fernando
Pessoa não se encontra entre os signatários do documento, embora não se saiba se foi
solicitada. Certo é que, quatro dias depois da reunião dos intelectuais, com a publicação
do seu artigo, Pessoa tomou uma posição individual de oposição ao regime que pode ser
interpretada como uma espécie de alinhamento desalinhado com a posição colectiva dos
duzentos escritores e artistas. O artigo “Associações Secretas”, que pôde beneficiar de
uma tolerância censória que Pessoa não voltaria mais a usufruir, acabou por ter muito
maior repercussão pública do que o abaixo-assinado dos duzentos, já que a Censura
proibiu toda a publicidade na imprensa ao documento colectivo dos intelectuais.33 O
semanário O Diabo ainda pôde noticiar, em primeira página, o banquete dos
intelectuais, mas nem uma palavra foi permitida sobre o documento contra a Censura
que foi redigido e subscrito nessa reunião.34

O artigo de Pessoa contra a lei anti-maçónica não teve exclusivamente, ou sequer


principalmente, como motivo a oposição do autor a essa lei. Não que o escritor não se
opusesse sinceramente à lei ou que ela fosse pouco importante para o regime, muito
pelo contrário — a avaliar não só pelo facto de se tratar da primeira lei apresentada na
recém-inaugurada Assembleia Nacional, como pela circunstância de a Maçonaria (em
particular, o Grande Oriente Lusitano, liderado pelo general Norton de Matos) ser então
o inimigo número um do regime. O assunto do projecto de lei, porém, serviu

30
Richard Zenith, Fotobiografias Século XX. Fernando Pessoa, Círculo de Leitores, Lisboa, 2008, p.
164.
31
O Diabo, 10 de Fevereiro de 1935, p. 1.
32
Arquivo da Assembleia da República, Assembleia Nacional, Livro nº 1, fls. 123 a 142, 8 de Fevereiro
de 1935.
33
Richard Zenith, op. cit., p. 164.
34
“A fundação de um centro cultural em Lisboa”, O Diabo, n.º 32, 3 de Fevereiro de 1935.
basicamente de pretexto a Pessoa para aparecer publicamente a demarcar-se do poder
político. Pessoa esclarece os seus reais motivos num escrito de 1935, até há pouco
inédito35 , que o autor destinava ao Diário de Lisboa e, obviamente, não foi publicado.
Diz aí:

“Publiquei neste jornal [Diário de Lisboa], em 4 de Fevereiro, um artigo intitulado


‘Associações Secretas’. Era esse artigo dirigido, directa e aparentemente, contra
um projecto de lei que o sr. José Cabral apresentara na Assembleia Legislativa; era
dirigido, indirecta e realmente, contra as forças que moveram o senhor José
Cabral, quer ele o saiba quer não. O sr. José Cabral e o seu projecto serviram-me
— digo-o sem ofensa nem intenção dela − simplesmente de trampolim. De há
bastante tempo que se tornou preciso atacar certas influências, infiltradas em
muita parte e partidos ou pseudo-não-partidos, que ameaçam, em todo o mundo, a
dignidade do Homem e a liberdade do Espírito. Decidido, de há muito, a fazer o
que pudesse — dentro dos limites da minha inteligência e da minha acção — para
contrariar essas forças, servi-me da primeira oportunidade que se me ofereceu. Foi
o projecto de lei do sr. José Cabral; podia ter sido outra coisa qualquer.”

Este trecho contribui para lançar nova luz sobre toda a produção anti-salazarista
pessoana de 1935, constituída por uma torrente de poemas e textos em prosa, uns
visando Salazar, outros o Estado Novo, outros ainda os seus ideólogos, membros do
governo e deputados. Atente-se também na afirmação por Pessoa de que “há muito”
tomara a decisão de combater pelos meios ao seu alcance, as forças e influências
políticas que ameaçavam a “dignidade do Homem” e a “liberdade do espírito”.

Seria, de facto, errado imaginar que a questão da lei maçónica teria provocado por si só,
em 1935, uma repentina e radical mudança de opinião de Pessoa a respeito de Salazar
ou do Estado Novo. Também não parece realista admitir que pudessem ter tido esse
condão mágico as palavras proferidas por Salazar em 21 de Fevereiro de 1935, na
famosa sessão de distribuição dos prémios literários do S. P. N. a que Pessoa faltou, na
qual o ditador defendeu a imposição não só de limitações como também de directrizes à
criação intelectual e artística. É certo que, em numerosos textos e poemas satíricos,
Pessoa atacou violentamente essas palavras de Salazar, que acusou textualmente de
“enxovalhar todos os escritores portugueses”.36 Dificilmente esse episódio poderia
provocar uma mudança súbita na opinião de Pessoa acerca de Salazar, uma vez que essa
política de limitações e directrizes estava perfeitamente definida e institucionalizada
desde 1933, com a constitucionalização do regime de censura e a criação do S.P.N.
Houve, sim, nos primeiros meses de 1935 uma conjunção de acontecimentos que
fizeram desaparecer as últimas réstias de aceitação e confiança de Pessoa na governação
de Salazar — “confiança” e “aceitação” que alguns textos pessoanos deixados inéditos
registam, mas que nunca tinham significado adesão e que sempre tinham sido
permeados de fortes críticas. Esses acontecimentos criaram uma oportunidade, que
Pessoa decidiu aproveitar, para expressar abertamente a sua oposição à governação de
Salazar, focalizando-se particularmente nos temas da censura e da liberdade de

35
BNP/E3, 129-51. Trecho publicado em José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of
Fernando Pessoa”, Portuguese Studies, 24 (2), 2008, p. 186.
36
BNP/E3, 92M-81 (trecho de uma carta ao Presidente da República Óscar Carmona, publicado pela
primeira vez em Teresa Rita Lopes, Pessoa Inédito, op. cit., p. 375.)
expressão e criação, que, como escritor, lhe diziam directamente respeito. A reunião dos
intelectuais em 31 de Janeiro de 1935 e o documento contra a censura nela aprovado
contribuíram certamente para levar Pessoa a revelar enfim publicamente uma atitude de
oposição “há muito” amadurecida, que não se fundava apenas na questão da censura.

Não me baseio apenas no trecho atrás citado para provar que as críticas de Pessoa ao
governo de Salazar eram muito anteriores. Poderiam citar-se praticamente todos os
textos e notas em que Pessoa se refere a Salazar entre 1930 e 1934. Se, em vários desses
escritos provenientes da arca, Pessoa admite confiar, aceitar ou até, uma vez, admirar a
obra administrativa de Salazar, em praticamente nenhum deles faltam, porém,
observações críticas, menosprezando as qualidades de chefia de Salazar, escarnecendo
da sua “cesarização” e “divinização”, apontando a inspiração do salazarismo no
Integralismo Lusitano e em Maurras (ambos detestados por Pessoa), denunciando o
“sovietismo direitista” da União Nacional, discordando explicitamente da Constituição
de 1933 e da orgânica corporativista instaurada no mesmo ano, acusando, enfim, a
“estreiteza mental” de Salazar, que Pessoa atribuía, por um lado, à excessiva
especialização da sua formação e, por outro, à sua formação católica — que reforçava,
na opinião do escritor, a estreiteza mental de Salazar e a agravava com dogmatismo e
intolerância.37

Pessoa era um espírito livre e independente. As suas posições políticas, muitas vezes
vistas como contraditórias e paradoxais, simplesmente não se enquadravam nos
sectarismos e partidarismos existentes na época. Sobre quase tudo, tinha uma opinião
singular, por vezes surpreendente. Na mesma época em que fez as críticas mais
contundentes a Afonso Costa e à “Oligarquia das Bestas”, não deixou, porém, de
reconhecer as qualidades “únicas” de “homem de acção” do mesmo político, chegando
até a esboçar umas curiosas “Razões para apoiar o gabinete Afonso Costa” (1912),
manuscrito ainda inédito.38

Relativamente a Salazar, Pessoa procedeu de modo não muito diferente, embora a


situação política estivesse nos antípodas do afonsismo. Todos os textos sobre Salazar
provenientes da arca, os conhecidos e os ainda inéditos, reflectem idêntica
independência, o mesmo esforço de destrinça dos aspectos positivos e negativos, de
acordo com o sistema de valores particulares e intransmissíveis de Pessoa. Assim,
reconheceu algumas qualidades pessoais e alguns aspectos da obra governativa de
Salazar, em particular o restabelecimento do crédito de Portugal no estrangeiro.
Valorizou o seu perfil de “homem de ciência, de trabalho e de poucas palavras” — o
oposto, na sua opinião, de todos os anteriores chefes políticos da República e da
Monarquia. O oposto, também, do perfil de Mussolini. Por volta de 1933-34, estas
apreciações faziam com que Pessoa se assumisse como aquilo a que chamou um
“situacionista por aceitação” (em confronto com “situacionista por convicção”). Um
“situacionista por aceitação” era alguém que, discordando no todo ou em parte da
situação política vigente, confiava, porém, nos seus dirigentes (ao nome de Salazar,
Pessoa acrescentou o de Armindo Monteiro). Ora, as discordâncias do “situacionista por
aceitação” Fernando Pessoa relativamente ao regime de Salazar não eram de somenos:
afirma repetidamente em notas coevas não entender o que é o “Estado Novo”, discorda

37
Um inventário circunstanciado das críticas e dos elogios de Pessoa a Salazar podem encontrar-se em
José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of Fernando Pessoa”, op. cit.
38
“Razões para apoiar o gabinete Af[fonso] C[osta]” (BN / E3, 92W -62r e 63r).
da Constituição de 1933 e rejeita o regime corporativista, que era para ele a negação dos
sacrossantos princípios do individualismo e do liberalismo económico. A crescente
influência ideológica do tradicionalismo católico e monárquico na génese e
consolidação do Estado Novo é também muitas vezes alvo da sua crítica, desde 1930.
Enfim, sobre a personalidade de Salazar, Pessoa aponta ainda, nestas suas notas, a
mentalidade católica e rural do ditador, a sua falta de imaginação e de entusiasmo, a
falta de contacto com a vida cultural e intelectual e com “todo o tipo de vida”. “Cadáver
emotivo artificialmente galvanizado por uma propaganda” — com esta fórmula
completa Pessoa o retrato humano de Salazar.39

Pessoa não tinha, de facto, grande opinião acerca de Salazar e, em 1935, num artigo em
francês que aparentemente destinava ao semanário Les Nouvelles Littéraires, mas que
ficou inédito, não parecia sequer admitir que ele pudesse governar Portugal durante
muito mais tempo.40 Podemos constatar quanto se enganou a esse respeito...

O padrão destas críticas à personalidade de Salazar revela, por contraste, determinado


modelo de homem de Estado que Pessoa, consciente ou inconscientemente, idealizava.
Esse modelo não era, absolutamente, Mussolini, como Alfredo Margarido pretendeu,
como atrás vimos, sem apresentar quaisquer provas convincentes. Em nossa opinião,
um dos grandes modelos de estadista de Fernando Pessoa era — bastante
anacronicamente, diga-se — Frederico II da Prússia, monarca ilustrado, personalidade
carismática, maçon, patrono das artes e das ciências. Este rei-soldado e monarca
absoluto fora amigo de Voltaire e activo promotor da tolerância religiosa. Pessoa refere-
se elogiosamente a Frederico II em vários escritos políticos dos anos 30, inclusive no
artigo “Associações Secretas”, de 1935, como contraponto à intolerância religiosa do
Estado Novo e do catolicismo português.41 A utópica “República aristocrática” sobre
que Pessoa diversas vezes procurou teorizar, opondo-a não só à República democrática
afonsista como também ao Estado Novo, tinha muito mais afinidades com esse figurino,
embora anacrónico, de absolutismo ilustrado do que com os modernos modelos anti-
individualistas e liberticidas de Estados autoritários, corporativistas, perseguidores das
classes cultas, entre os quais se contava o modelo autoritário do católico Salazar.

Para terminar, reproduzo abaixo um trecho inédito de 1935, anti-fascista e anti-


totalitário na sua essência, em que Pessoa, numa alusão concreta às palavras de Salazar
na já referida sessão de distribuição dos prémios literários do S.P.N., esclarece

39
Ver, em particular, alguns dos textos publicados por Teresa Rita Lopes (org.), Pessoa Inédito, op. cit.,
e Fernando Pessoa, Da República, op. cit., e Teresa Sobral Cunha, “Fernando Pessoa em 1935. Da
ditadura e do ditador em dois escritos inéditos”, Colóquio/Letras, n.º 100, Novembro-Dezembro de 1987,
pp. 127-131, e ainda alguns trechos sobre Salazar em: J. Barreto, “Salazar and the New State...”, op. cit.
40
BNP/E3, 92V−73 a 96. Este texto foi pela primeira vez publicado por Teresa Sobral Cunha (op. cit.).
A razão de ter sido escrito em francês pode estar relacionada com o projecto que Pessoa tinha de enviar
colaboração para o semanário parisiense Les Nouvelles littéraires (vd. o fac-simile de um elenco de
publicações projectadas por Pessoa em Junho de 1935, em Poemas de Fernando Pessoa. Quadras, ed.
crítica de Luís Prista, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1997, 2.ª página do extratexto entre
pp. 76 e 77). Este texto pode ainda relacionar-se com as notas em francês sobre Salazar “Il a apporté au
gouvernement…” e “Mussolini et Hitler s’en tiennent…” (BNP/E3, 92V−97 e 92M−37 a 40).
41
Ver também o texto ainda inédito “Political Conditions in Present -Day Portugal” (BNP/E3, 92−64 a
67), em que Pessoa compara a “democracia anti-liberal” de Hitler com a monarquia absoluta, mas liberal
e tolerante de Frederico II da Prússia.
luminosamente os fundamentos do seu ataque ao salazarismo e da sua oposição aos
totalitarismos seus contemporâneos.

Parece que o opprimir /alguem/ se tornou hoje uma das obrigações sociaes dos
governantes e dos que os acompanham. O sadismo politico tornou-se dever e
regra. O odio ao individuo, que é, afinal, a unica realidade social tangivel e
pensante; o odio ao pensamento, que é, afinal, a unica coisa que
verdadeiramente define o homem como homem; o odio á expressão do
pensamento, que é, afinal, a fórma social e util do pensamento, que, sem isso,
não vale mais que o sonho — são estes trez odios os trez pés das tripeças de
que tendem cada vez mais a fazer seus thronos os governantes modernos. 42

42
BNP/E3, 92L96 (fragmento posterior a 21 de Fevereiro de 1935).

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