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“ FETICHES “

by B. L.

A decadência. Eis algo que pode levar muito longe. Muito fundo. Mais longe e mais fundo
do que alguma vez pudemos julgar, ou mesmo desejar. É um pau de dois bicos, como demasiadas
coisas acabam por se revelar, na vida.
É claro que a coisa vem aos poucos. Não nos tornamos um monstro da noite para o dia.
Calculo. Não sei como terá sido com o Hitler, o Goebbels, o Beria e a restante malta dessa igualha.
Não é que eu pretenda comparar-me, nem de longe, a esse tipo de gente, mas enfim, os que hoje me
condenam chamam-me nomes e epípetos semelhantes aos com que outrora os classificaram, ou
melhor diria, os desclassificaram a eles. Do tipo psicopata genocida, criminoso contra a
humanidade, inimigo público n.º 1 e outras merdas do género.
O que se passou comigo, é que não soube parar a tempo. Penso que isso acontece com
frequência e não só nos casos do tipo do meu. O certo é que não tive bem consciência dos limites.
Não soube medi-los, entusiasmei-me com os massacres, os delírios, a excitação da chacina. Por isso
me lixei. Porque a coisa excita mesmo. O sangue exalta deveras, e é sempre em crescendo. É por
isso que um gajo acaba perdendo a perspectiva. Convence-se que é o maior, o mais esperto, que há
de levar-lhes a palma a todos. A si não hão de jogar-lhe a luva. Nunca! Delírios de grandeza, já o
disse.
Não culpo, por isso ninguém. Enfim, o costume, o passado, os meus pais, a minha
educação. Uma infância triste e desesperada, sem amor. Nada disso. Pelo contrário, tive uma
infância fabulosa, de filho único, mimado por todos e a quem todos os desejos eram de imediato
satisfeitos. Evidentemente também tive as minhas zangas, as minhas frustrações, os meus pequenos
ódios infantis e inconsequentes. Mas nada de grave, nem duradouro. Muito menos indelével, fixo,
eterno.
De facto, tudo começou bem mais tarde. Já depois de crescido e até de casado. E bem
casado. Invejado até. Mas isso era coisa a que eu estava habituado. Desde sempre tinha sido
invejado, pelos outros, os colegas, os companheiros, os amigos. E precisamente sempre pelas
mesmas razões. Por ser um previlegiado, por possuir sempre mais e melhores brinquedos do que
eles, roupas mais bonitas e de melhor qualidade, mais carinho e mais amor, da parte dos meus. Mais
dinheiro de bolso, serviçais mais leais e mais humildes, eu sei lá, um ror infinito de queixas, ciúmes,
inveja, dor de corno e má língua.
Não era portanto de admirar que agora me invejassem por possuir a mulher mais bonita, a
mais boazona e a mais famosa da cidade e do grupo. Isto ainda antes mesmo de ela se tornar uma
star notória, primeiro como manequim famosa das passarelas e das revistas de fofoca e de moda.
Mais tarde estrela de televisão, tendo começado pelas novelas e estreando-se depois no teatro e até
mesmo no cinema. Foi talvez isso que começou a dar-me ideias esquisitas. Nada de concreto a
principio. Apenas impressões, vagas, dolorosas, imprecisas. Uma certa insatisfação, que cada vez se
tornava mais permanente, um tédio insuportável, uma lassidão, uma preguiça, um aborrecimento
constantes. Já tinha havido gente a suicidar-se, no passado, por causas semelhantes. Mas enfim, eu
não era nenhum lorde inglês, nem vivia nos alvores do séc. XVIII, nas brenhas do campo, sem mais
que fazer do que comer criaditas complacentes e ignorantes e chatear-me de morte no meio das
lezírias infindas, asquerosamente férteis e verdes. Nem ao menos tinha a desculpa de doer-me o cú,
fruto das cavalgadas incessantes da caça à raposa, ou de ter demasiados botões para abotoar e
desabotoar.
Enfim, andava chateado. Isso fez com que ela amuasse também. Sentia-se preterida,
negligenciada, abandonada. Era verdade. Não obstante a sua beleza, a sua graça, a sua pujante
feminilidade, eu ultimamente desinteressara-me dela. E o que é mais grave, comecei mesmo a dar-
lhe negas, na cama. Para uma fêmea do seu calibre, isso era absolutamente intolerável. Ui! Ficava
uma fúria. Os olhos dardejavam-lhe de ódio puro. Se pusesse, matava-me. Não é que lhe faltasse
vontade... Simplesmente não compreendia. Eu bem que tentava explicar-lhe, que a responsabilidade
não era dela. Que continuava a ser uma fêmea excitante, desejável e bela. A culpa era somente
minha. Eu é que andava cansado, arrumado, enervado. Mas a verdade é que já estava farto. Penso
que quando um homem já comeu a mesma mulher para cima de mil vezes, está saciado. Pelo menos
dessa mulher. Pelo menos provisoriamente. Além disso, eu não tinha já paciência de idolatrá-la, tipo
deusa, como ela gostava. De rojar-me aos seus pés, feito tapete, para ela me espezinhar com os
saltos altos da sua indiferença. A cabrona estava era mal habituada pela permanente adulação dos
seus fãs.
Assim, começou a deixar-se cortejar mais assídua e pertinazmente, pela récua inumerável
dos seus inacabáveis admiradores. Talvez de início, fosse somente no intuito de me enraivecer, de
provocar os meus ciúmes. Mas como aquilo em nada alterou a minha aparente abulia e notório
desinteresse, tornou-se para ela numa questão de amor próprio.
Não tardou muito, de facto que eu me apercebesse que ela andava mesmo a dar umas baldas
ocasionais. E como nestas merdas, o que custa é a primeira vez, dentro em pouco tomou o freio nos
dentes e já mal parava em casa, chegando às tantas da madrugada, embriagada, descomposta e
sempre acompanhada por mujos diferentes, em potentes máquinas reluzentes. Era evidente que
pretendia forçar-me a uma atitude. Eu porém, não ajudei em nada. Não só, praticamente deixei de
frequentar o seu leito, como a bem dizer, o próprio quarto e quando raramente lhe dirigia a palavra,
nada fazia para ocultar o meu desdém, quase desprezo, repugnância.
A nossa hostilidade mútua foi aumentando. Nem podia ser de outra maneira. Até que eu me
apercebi que os devaneios com que intimamente me torturava, forçando-me a vê-la nos braços de
outros homens em poses cada vez mais ousadas e acrobáticas e em figurações cada vez mais
eróticas e sugestivas, longe de me incomodarem, como inicialmente seria suposto serem o seu
propósito, pelo contrário, induziam-me num estado de excitação, como havia muito não
experimentava.
Comecei a interrogar-me se não possuiria, muito oculta e reprimida, uma costela, senão todo
um esqueleto sado masoquista. Havia já muito que os exercícios eróticos com máscaras e fatos de
couro, o devassá-la com dildos enormes, adornados de espinhos e protuberâncias diversas, através
das quais recebia descargas eléctricas cada vez mais fortes, o deixar-me chicotear por ela, queimar
por cigarros e charutos, ou lanhar por lâminas e picos, tinham deixado de surtir o efeito desejado.
Nem mesmo as sessões colectivas, os clubes de troca de parceiros, a que recorria-mos sempre que
nos deslocava-mos ao estrangeiro, nomeadamente a Barcelona, cidade que muito apreciávamos,
serviam já para nos satisfazer.
Contudo, ultimamente apercebia-me que o facto de figurar na minha mente, a minha mulher
a ser possuída por outro homem, as imagens lascivas dos seus corpos nús e entrelaçados, retouçando
entre gemidos, suor e mordidelas, longe de me repugnar, humilhar ou enraivecer, dava-me antes
uma espécie meio bizarra, meio dolorosa, mas sempre excitante, de prazer. Isto era grave. Porque a
minha mulher era de facto extremamente bela e eu amava-a deveras. Por isso aqueles devaneios me
davam assim tanto gozo. Um prazer doloroso e “exquisite”. Assim como que o de uma virgem a ser
violada, lentamente desflorada, imagino.
Só havia uma atitude a tomar. E foi a que eu tomei. Sem grandes rodeios informei-a, ou
melhor, exigi-lhe que trouxesse o seu amante lá a casa, nessa mesma noite. Ela assustou-se,
pensando que eu queria fazer alguma loucura do tipo de desafiá-lo para um duelo, ou mesmo
assassiná-lo friamente, envenená-lo à refeição ou qualquer merda assim no género, mas quando
compreendeu a minha intenção, aquilo também a excitou. O que só veio confirmar a minha
convicção de que as gajas, no fundo, lá mesmo no fundo, são todas umas grandes putas.
As primeiras vezes ainda tive o pudor de manter-me oculto, observando-os na maior
intimidade, enquanto me masturbava doidamente, percorrido, dominado mesmo por uma espécie de
gozo intenso e bizarro, como nunca tinha sentido antes.
Então ocorreu-me que, se vê-la a ser fodida daquela maneira, por outro gajo, me dava tão
insólito prazer, se o fosse por vários ao mesmo tempo, então o gozo certamente seria maior. E foi-o
de facto.
Mas também isso rapidamente me cansou e aborreceu. Ela na realidade empenhava-se
bastante, não só prolongando e variando as sessões, como tomando manifestamente atenção para
que as suas poses e movimentações me proporcionassem o melhor ângulo possível. Mas a minha
natureza é muito indócil. Por isso passámos então para as orgias colectivas. Ela, muito louca, sendo
devassada simultaneamente por uma série de gajos, nunca menos de três, matulões, musculosos,
excitados e embriagados de ópios e vinhos e eu a fotografá-los, fodendo e sendo fodido, à vez e
mais tarde, mesmo torturado, batido, rasgado, massacrado, até perder a consciência de exausção e
dor. E também prazer, imagino, se bem que por essa época eu já não tivesse bem noção de nada.
Tínhamos voltado aos nossos joguinhos eróticos e às mascaradas sado masoquistas, com toda a
parafernália de elementos decorativos obrigatórios, fatos justos, de pele negra, botas altíssimas,
chicotes e puas, máscaras, algemas, cintos, argolas, mordaças.
Não importava. O que era preciso era seguir prá frente. Cada vez mais fundo, cada vez
mais forte, mais louco, na procura das emoções mais bizarras, mais sublimes, mais sofisticadas e
estranhas.
Evidentemente que para manter este trem de vida e relações ocultas, é necessário muito
papel, muita massa, dinheiro vivo. Todos os grandes devassos, os maiores libertinos, os grandes
decadentes da história, tem sido todos ricos. Muito ricos. Quase sempre nobres, aristocratas, uma
elite de senhores, acima da lei, da razão e das regras que limitam e empobrecem e agrilhoam todos
os restantes, os operários, o povo, gentinha. Basta ter em mente o marquês de Sade, os grandes reis
do oriente, os tiranos e ditadores da era moderna e tantos outros, mesmo mais humildes, artistas,
políticos, homens de negócios. Os Wharrols, os Saddams, os Heffners e tantos mais, mas sempre
superiores às massas, seja por carácter, por fortuna e condição, por cultura, por acaso, mas sempre,
sempre com muito capital por trás. E alguma imaginação, claro. Felizmente não tínhamos problemas
nesse aspecto. Não só ela ganhava o dinheiro que queria, fruto das suas actividades profissionais,
como eu pessoalmente também usufruía de uma fortuna razoável, por herança. Além disso era um
tigre nos negócios. Nem todos honestos, nem todos legítimos, mas essa era a menor das minhas
preocupações. Tinha uma boa equipa de advogados, para o que desse e viesse.
Porque o gozo na devassa, o grande feeling, é o usufruto do proibitivo, é o ultrapassar das
regras, o ir sempre mais além do que é permitido, o que é normal, o que é bem. O gosto do sangue
escorrendo, do rechinar das carnes queimadas, o estilhaçar dos ossos, o desmembrar dos tendões, os
uivos e gemidos da dor e do prazer.
Por essa época é que começaram os deleites deveras perigosos, a prática de violências
realmente criminosas. Mas aí já não tínhamos controle na nossa demência. A coisa já nos
ultrapassara. Estou em crer que nos encontrávamos já nas mãos do Demónio, se bem que eu coloque
muitas reticências quanto à existência e a realidade dessa figura. Mas encontrávamo-nos deveras
possessos, e completamente descontrolados. Foi por aí que começámos a comprar pessoas,
geralmente menores. Criancinhas, frutos de famílias numerosas, desfavorecidas e miseráveis que
não tinham condições de alimentá-las sequer, quanto mais de as criar decentemente. Pelo que
fechavam os olhos e os corações, mediante as hipócritas promessas dos meus recrutadores, relativas
a uma vida melhor e mais desafogada, no estrangeiro, como criados e preceptoras.
É claro que não enganávamos ninguém, mas o dinheiro falava mais alto. Eles bem sabiam
ou calculavam que as suas filhas iriam enriquecer os bordéis do outro lado do mar, mas também ali,
em casa, na própria terra, não teriam mais amplas perspectivas e lá longe, era sempre possível um
golpe de sorte, que alguma caísse nas graças do seu senhor, ou de algum cliente abastado e acabasse
por casar bem, por tornar-se uma verdadeira senhora e vir a ter um destino melhor que o deles, ou
que o futuro por si mesmo, ali lhes reservaria.
Evidentemente nunca lhes passou pela cabeça que não passassem de carne para canhão, nas
nossas mãos. As pessoas nunca concebem a verdadeira maldade, o mais odioso e animalesco que a
natureza humana pode comportar.
Mas também isso, dentro em pouco se veio a revelar insuficiente. Eram precisas mais
vítimas. A nossa máquina de destruição era insaciável. Os nossos filmes vendiam-se como
amendoins, no mercado negro. Tinham uma procura alucinante, ansiosa, algo nunca visto naqueles
meandros de ociosidade e decadência burguesa.
Aquilo estava a enriquecer-nos de novo, rapidamente. Era um facto. Não nos tornou porém,
mais cautelosos. Antes pelo contrário. Quanto mais dinheiro, mais facilidades, maior a impunidade,
parecia-nos. É claro que não passava de uma ilusão. Mas era uma ilusão poderosa, colectiva, que
nos dominava a todos.
Começamos então com os raptos. As sessões de tortura e os filmes cada vez mais realistas,
mais violentos, hediondos, para consumo privado dessa clientela ávida, burgêssa, altamente
burguesa, disposta a pagar rios de dinheiro, por imagens de uma violência e de uma raridade
ímpares, que era a nossa imagem de marca.
Penso que na América, tudo aquilo fosse banal, mas cá, na nossa parvónia era altamente
original. Por isso, altamente rentável, também. Sobretudo quando começámos a vendê-las através da
Net. E a expandirmo-nos para os sites internacionais do ramo. Que infelizmente estavam altamente
controlados, pela bófia. À pala dos grandes escândalos de pedofilia e tal.
Foi também a nossa perdição.
Hoje estamos todos presos. Eu, a mulher, os amantes, todos os cúmplices. Todos sujeitos a
um veredicto de prisão perpétua ou mesmo à pena máxima. Não me importo. Já nada me importa,
deveras. Só lamento que o gozo tenha acabado.
Aqui dentro não se pode fazer nada semelhante. Estamos muito limitados, demasiadamente
vigiados, totalmente controlados. Actualmente estamos todos isolados, em celas individuais, de
máximo segredo e rigor, tudo à conta daquele puto que apareceu estrangulado e cheio de sevícias,
golpes profundos e queimadelas de cigarro, com uma garrafa enfiada no ânus, nú, suspenso de um
lençol, na própria cela.
Estamos todos fodidos...

BELTRANO MANINGUE / FARO 2003

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