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Doutoramento

JÚLIO MACHADO VAZ

Rev. Lusófona de Educação n.7 Lisboa 2006

Sexualidade e Educação Sexual

Manuel Tavares (MT)-Professor, para iniciarmos a nossa conversa,


não se importa de fazer uma breve síntese do seu curricum vitae?

Júlio Machado Vaz (JMV) – Licenciado em Medicina; especialista em


Psiquiatria; doutorado em Psicologia Médica; regente da disciplina de
Sociologia Médica; vice-presidente da Sociedade Portuguesa de
Sexologia Clínica; co-director do mestrado de Sexologia da
Universidade Lusófona.

Obra publicadas: Sexo dos Anjos, O Fio Invisível, Domingos, Sábados


e Outros Dias, Conversas no Papel, Estilhaços, Estes Difíceis
Amores, Olhos nos Olhos (publicado em Espanha).

Autor e Apresentador dos seguintes programas


televisivos: Sexualidades e Estes Difíceis Amores.

Autor e apresentador dos seguintes programas, na rádio: O Sexo dos


Anjos,A Bela e os Monstros, Olhos nos Olhos e o Amor é....

Director clínico da comunidade Terapêutica de Adaúfe.

MT – «Chega-se ao companheiro ideal após experiências diversas, que


permitem reconhecê-lo por contraste de afetos e prazeres, uma vez
nos seus braços poderemos dizer sem receio, como Neruda: confesso
que vivi.» JMV, Estilhaços, pp. 146-147. Depois, vem um conselho:
«nem sempre a prática corresponde à teoria.» (op. cit., p. 147).

Este discurso seria impensável tê-lo há quarenta anos. Os tempos


mudaram mesmo? Estas «experiências diversas», estes contrastes,
significam saltar de ramo em ramo, experinciar a sexualidade,
descobrir, descobrir-se, re-descobrir-se? Por onde andam os tabus?
Por fim, o conselho às mulheres: cuidado! Os homens sabem o que
significam as suas experiências diversas! Não as aceitam nas mulheres
(nas curso masculino sobre a igualdade entre os sexos?

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JMV– Vivemos tempos de alguma «experimentação curtida e


eufórica», mas sobretudo de monogamia seriada – um homem das
suas vidas de cada vez e fazendo figas para que funcione!

É verdade: os homens debitam um discurso politicamente correto para


«portuguesas verem». E, às vezes, – os marotos! – para as seduzirem.
Mas não para lhes aceitar a igualdade ao nível dos comportamentos.

MT– A retórica masculina sobre a sexualidade tem finalidades


perversas? Será que as novas narrativas se enquadram numa
estratégia de conquista pós-moderna? Ou, tal como os deuses, os
homens também evoluem?

JMV – Claro que evoluem (quanto aos deuses, não sei). Mas menos do
que parece e com menores diferenças do que seria de esperar nas
gerações mais novas.

MT – Gostaria que me falasse um pouco de como perspetiva a


educação sexual nas nossas escolas. Uma disciplina específica?
Integrada em diversas disciplinas? Qual o âmbito dessa educação
sexual? Complemento da Educação na família ou, apenas, numa
perspetiva científica?

JMV – 1º Nunca me agradou a hipótese de uma disciplina específica,


tresanda a presente envenenado, pois pode tornar-se no “gueto
sexual” das terças às onze da manhã. 2º O núcleo duro informativo e
de avaliação obrigatória ficaria muito bem na área da saúde, desde que
acompanhado por uma discussão dos fatores culturais que influenciam,
por exemplo, as tomadas de decisão na vertente preventiva. 3º Nas
diversas disciplinas que amplamente o justificam – história, psicologia,
literatura.. – a sexualidade deveria ser abordada pelo que é – parte
integrante da personalidade e das relações interpessoais. 4º A
“perspetiva científica” não pode ser isolada de questões éticas em
particular, e culturais, em geral. De resto, não acredito em abordagens
científicas “puras”, a ciência não se limita a discutir factos, interpreta-
os à luz dos mais variados pré-conceitos e ideologias.

MT – As suas investigações direcionam-se, atualmente, para a história


da sexualidade (penso que não estou a fazer confusão!). Por que razão
a nossa relação com o corpo (o corpo próprio, como diz Ricoeur) é,
ainda, numa época tão freneticamente liberal, tão complicada?
Estudamos o corpo, referimo-nos a ele cientificamente sem tabus (o

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corpo-objeto, também expressão de Ricoeur) e, quando se trata de


uma relação afetiva, sensual, erótica… tudo se complica?

Por outro lado, o discurso sobre a sexualidade tem sido, ao longo da


história, por um lado, um discurso do silêncio e, por outro, um discurso
da repressão, do arrependimento e da culpabilidade. Concorda com
esta leitura? Se sim, como criar hoje narrativas sobre a sexualidade
que se enquadrem nas novas narrativas do corpo como, por exemplo,
as da publicidade?

JMV– Não creio que possamos falar de história da sexualidade. O


conceito é moderno e não faria sentido, por exemplo, para os clássicos,
que não davam ao sexo a importância nuclear e “rotuladora” que lhe
atribuímos. Penso que assistimos a uma pseudolibertação sexual e a
uma reificação de um corpo não pensado ou fantasiado. E sem fantasia,
a um ritmo frenético, como aspirar ao erotismo? Não concordo
inteiramente com a leitura que refere, ela está ligada à Igreja (não
emprego a expressão “tradição judaico-cristã” porque a considero
injusta para Jesus e para os Judeus). Mas, ao mesmo tempo, ao erigir
a Carne como inimigo principal – na minha opinião ao arrepio
dos Evangelhos…. –, a Igreja deu-lhe uma visibilidade aterradora;
pense nos milhares de páginas escritas sobre o tema por obcecados
homens de negro. Qualquer penitencial do primeiro milénio faz corar
de inveja os Tratados de Sexologia!

MT – Na era da globalização, é inevitável que as sociedades


democráticas ocidentais se transformem, cada vez mais, em
sociedades multiculturais. Estaremos nós preparados, do ponto de
vista das mentalidades, para aceitar determinadas práticas, ditas
culturais, de iniciação à fase adulta, como, por exemplo, mutilação de
órgãos genitais femininos, circuncisão? Cultura ou barbárie? Crime ou
cultura?

JMV – Fui educado na convicção de que a democracia defende os


direitos até dos que conspiram contra ela. Em contrapartida, considero
que o multiculturalismo não pode servir de justificação a atentados
contra a dignidade da pessoa humana. A questão faz-me pensar no
que em antropologia médica apelidamos de “camuflagem cultural”:
determinado indivíduo, por exemplo, não abusa do álcool, e ponto,
parágrafo. O comportamento acontece, porque ele é, suponhamos,
irlandês. Uma cultura não pode servir de álibi a práticas como a
mutilação genital feminina, embora possa admitir, num período de

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transição, a possibilidade de pactuar com rituais simbólicos que evitem


práticas discriminatórias por parte do grupo em questão.

MT – Com a vulgarização de Internet, de salas privadas de chat, onde,


muitas vezes, se pratica sexo virtual a dois ou em grupo, com a
vulgarização das Web Cams, como analisa este novo tipo de
relacionamento virtual, solitário e, por outro lado, que reflexos
psicoafectivos poderão ter nos indivíduos que aderem a essas práticas
e que consequências nos relacionamentos afetivos reais?

JMV-A tecnologia é o que fazemos dela. Conheço namoros e


casamentos que começaram na Net, abençoada seja! Mas também
observo o enorme potencial aditivo desse mundo, o qual, se “encaixa”
em determinadas características psicológicas, pode levar pessoas a
recusarem as agruras – e recompensas… – das relações “ao vivo”. O
caso de adolescentes que se autoexilam no seu quarto é
particularmente preocupante. Por outro lado, a experiência de ter um
blogue foi uma agradável surpresa, ao demonstrar-me as
extraordinárias potencialidades do que apelidaria de “tertúlia virtual”.
Mas é evidente que o anonimato da Net também permite a ativação do
que mais cruel e mesquinho nos habita.

MT – “Uma em cada três adolescentes já tomou a pílula do dia


seguinte. As jovens portuguesas continuam a correr muitos riscos nas
relações sexuais. Um dos maiores estudos sobre as práticas
contracetivas já realizados em Portugal revela que uma em cada seis
raparigas entre os 15 e os 19 anos não utiliza qualquer método
anticoncecional.” (Alexandra Campos, Público, 03-03-05). Quer fazer
um comentário?

JMV – Quando, vinte e um anos depois da aprovação de uma lei de


educação sexual, um ministério precisa de constituir uma comissão
para averiguar o que se passa no (seu) terreno, está tudo dito sobre o
que os sucessivos Governos fizeram para modificar esse estado de
coisas.

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Entrevista a Júlio Machado Vaz - O sexo e a (univer)cidade


Liberdade, desinibição e igualdade entre sexos são os conceitos
fundamentais para se perceber os comportamentos sexuais dos
estudantes. Quem o diz é alguém com anos de experiência clínica em
sexologia e uma vida inteira dedicada à docência. A Aula Magna foi
bater à porta do seu consultório e faz a radiografia de uma época.
É um falador nato. Confortavelmente
sentado no sofá, voz pausada mas
convicta, o olhar bem fixo no
interlocutor. Júlio Machado Vaz tem o dom
da palavra e domina a arte de uma boa
conversa. Não é por acaso que se tornou
um dos rostos mais mediáticos da televisão
e rádio portuguesas. O tema também
ajuda. Sexo a todos diz respeito e
o professor jubilado do Instituto de
Ciências Biomédicas Abel Salazar, aborda
os assuntos sem tabus nem complicações.
Retrata com frontalidade os novos hábitos
sexuais, como reafirma a necessidade de
informação e formação. E dos afectos. Os 30 anos que leva de prática
clínica também lhe permitem aferir as mudanças que, desde o seu
tempo de juventude, se verificaram na sociedade portuguesa. Nem
sempre no mesmo sentido.
A entrada no ensino superior é um momento decisivo para a
sexualidade dos estudantes?
No meu tempo era, em termos práticos e simbólicos, a primeira
oportunidade de ter aulas com raparigas. Hoje em dia, é importante
pela liberdade que proporciona. Os estudantes passam a ter outra
disponibilidade temporal e psicológica. É uma espécie de ritual de
passagem, que muitas vezes, segundo as estatísticas, corresponde à
primeira relação coital.
É um período de descoberta?
Sem dúvida, até porque o estudante está a seguir o trilho que escolheu.
É o primeiro passo na direcção do que sempre desejou ou que levou
tempo a perceber que queria. Mas não podemos ser ingénuos e pensar
que os estudantes do ensino superior são uma elite esclarecida, uma
espécie de vanguarda, do político ao erótico. Um estudo recente

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indicou que os universitários viam como normal umas bofetadas no


namoro…
Os hábitos sexuais têm mudado?
Nem por isso, porque normalmente quem está na universidade
pertence a um estrato sócio-económico mais favorecido e informado,
pelo que têm uma entrada mais gradual na sexualidade e uma panóplia
de comportamento mais alargada. Nas camadas mais desfavorecidas
ainda há uma noção de que sexo é coito. Conforme se vai subindo nos
níveis educacionais há uma visão mais alargada. Mas as diferenças têm
vindo a diminuir.
Os estudantes são hoje mais conservadores ou liberais?
Há de tudo. A seguir ao 25 de Abril era a festa, a todos os níveis. E nos
universitários houve uma febre de experimentação, quase um certo
medo de não se estar a aproveitar a liberdade também a nível erótico.
Depois houve um movimento em sentido contrário. Encontrei duas ou
três gerações claramente mais conservadoras. Neste momento, não se
pode tomar uma posição definida. Nas minhas aulas ouvi todo o tipo
de discursos: pessoas eufóricas em termos de actividade sexual e
gente a assumir com tranquilidade que queria casar virgem ou ter uma
relação estável com uma única pessoa. Essa pluralidade é uma
vantagem. Quer dizer que se é menos vítima dos pares ou da sociedade
em geral. É bom não esquecer que vivemos numa sociedade de
consumo que rapidamente passou do 8 para o 80. Antigamente, era-
se muito bem compostinho. Hoje, em certos sítios, pensa-se duas
vezes antes de dizer que não se é um D. Juan ou uma ninfomaníaca.
O que distingue os estudantes actuais e as suas práticas
sexuais?
Encontra-se uma maior liberdade de comportamentos e sintonia entre
os dois sexos. O que não significa o desaparecimento do duplo padrão.
Há mais raparigas a ter comportamentos semelhantes aos dos rapazes,
mas elas fazes e calam, enquanto eles fazem e publicitam. É o método
clássico de defender a virilidade. Aos homens normalmente não basta
fazer, é preciso que os outros homens saibam que eles fizeram.
Essa é a grande novidade em relação a outras gerações: as
mulheres estão mais desinibidas?
Seguramente. E não só no fazer, mas também na iniciativa. Tenho
30 anos de clínica e nos últimos 10 comecei a receber homens que se
sentiam ao mesmo tempo contentes e incomodados porque as
raparigas se atiravam a eles. Por um lado, esfregam as mãos porque

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lhes saiu a sorte grande, por outro,


sentem-se desconfortáveis porque era
suposto serem eles a tomar a iniciativa.
Outras questões, como o swing, verificam-
se não tanto entre os estudantes, mas
entre os 30 e 40 anos, indiciando a
necessidade de novos estímulos perante
uma eventual monotonia sexual.
Actualmente, os estudantes também
ficam mais tempo em casa dos pais.
Isso influencia a sua actividade
sexual?
Muitos ficam porque não têm autonomia
financeira, mas também há quem fique por
comodismo puro e duro. No entanto, a posição dos pais também
mudou, nomeadamente em relação às raparigas. Estão em casa dos
pais e, ao fim de semana, vão para o apartamento do namorado, ou
dormem fora regularmente. Isso já não é um cataclismo, como noutros
tempos. É um negócio magnífico: cama, mesa e roupa lavada sem
liberdade cortada.
Como explica que os comportamento de risco sejam tão
elevados entre os estudantes, incluindo uma grande taxa de
incidência do HIV?
A medicina continua a ter uma visão muito curativa e pouco preventiva.
A nossa primeira ilusão foi o paradigma da informação. Pensámos que
se todos estivessem informados não haveria comportamentos de risco.
Foi um falhanço terrível. Também se ouve raparigas dizer que se
falarem em preservativos os rapazes vão pensar que têm muita
experiência e não gostam. Os rapazes, por seu turno, têm medo de
puxar do preservativo porque elas vão pensar que eles vinham
preparados para isso. Com alguma frequência diz-se, e esse é
o mecanismo psicológico mais interessante, que não nos conhecíamos
suficientemente bem para falar sobre o assunto. Vivemos numa
sociedade em que a intimidade física antecede a intimidade psicológica.
Recebe muitos estudantes nas suas consultas?
Sim, e por uma razão triste. Num país em que nunca houve uma
verdadeira educação sexual, às vezes recebo estudantes que apenas
vão fazer duas ou três perguntas. Ao fim de dez minutos agradecem e

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querem ir embora. O que me coloca um problema ético, porque eles


pagam uma consulta de 45 minutos.
Quais são as perguntas mais frequentes?
Por exemplo, se ter ejaculações nocturnas é normal. A um rapaz
acontecia-lhe com frequência e começou a perguntar-se se seria
normal. Não tinha coragem para falar com outras pessoas e portanto
veio falar com um especialista. Num país civilizado uma ejaculação
nocturna devia ser encarada com tranquilidade desde o início da
adolescência.
Que outras dúvidas surgem?
Se têm problemas de disfunção eréctil, a que erradamente chamam
impotência, porque houve um falhanço. Nestes casos, é possível ouvir
descrições fantásticas sobre por que razão não se teve uma erecção.
Fala-se de um encontro em que o rapaz não estava muito atraído pela
rapariga e no fim aquilo não funciona. O problema é que as pessoas
acham anormal não ter funcionado.
A performance é muito valorizada?
Sobretudo a masculina. Supostamente, o homem está sempre pronto.
É uma visão errada e deprimente, segundo a qual os homens são
escravos da sua testosterona. Ou que as raparigas coitadinhas só
querem sexo se amarem muito e com casamento previsto. Há
mulheres que querem sexo puro e duro e mais nada.
A homossexualidade é bem aceite
no ensino superior?
As pessoas estão mais abertas a outras
orientações sexuais, mas continua a
haver discriminação. Recentemente
uma rapariga foi sovada numa escola
por causa da sua bissexualidade. Ainda
recebo cartas com pessoas a
perguntarem se podem falar comigo,
porque não têm mais ninguém. Esta é
a face negra. A mais brilhante é receber
jovens, muitas vezes universitários,
que vêm ter comigo e dizem que são
homossexuais e que é uma questão
pacifica, mas que os pais ficaram de
cabelos em pé. E pede-me que fale com
eles. Porque os pais também têm de fazer o luto, são apanhados

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completamente de surpresa, sonham com netos e outras coisas. É


preciso respeitar o seu sofrimento e explicar-lhes que não é o fim
do mundo.
Fala muitas vezes da banalização do sexo. Porquê?
Uma coisa é liberdade de opções, outra é quando o sexo se torna uma
espécie de necessidade fisiológica. É uma visão do sexo que torna mais
difícil a valorização de uma relação erótica na sua plenitude. Por isso
está tão na moda o tema da dependência sexual, com o sexo a ser
utilizado não como veículo privilegiado de comunicação mas como
ansiolítico ou antidepressivo. Uma pessoa está mal, sexo, a pessoa
está com medo, sexo.

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Psiquiatra falou em Leiria das “novas


modalidades da relação e comunicação”

Júlio Machado Vaz: “Esta é a sociedade


mais adolescente que já existiu”

Para Júlio Machado Vaz, médico psiquiatra, «a tecnologia está a formatar uma
maneira de pensar». Convidado do XXIV Encontro Nacional de Psiquiatria da
Infância e da Adolescência, que decorreu no Centro Hospitalar Leiria-Pombal,
nos dias 15, 16 e 17 de maio, o especialista falou das “Novas modalidades da
relação e comunicação”, nomeadamente do impacto nas novas tecnologias nas
relações e na sociedade, partilhando a mesa com a jornalista Inês Meneses.

Para Graça Milheiro, pedopsiquiatra do CHLP e membro da Comissão


Organizadora do Encontro, que juntou cerca de 200 participantes, «foi possível
contribuir para o enriquecimento pessoal dos profissionais, o que resulta na
consequente melhoria na prática clínica dirigida às crianças, além disso, a
componente social envolvida possibilita saudáveis momentos de convívio e a
troca interessante e enriquecedora de experiências entre os profissionais – que
neste caso foram de muitas áreas: pedopsiquiatras, pediatras, psicólogos,
enfermeiros, assistentes sociais, professores, etc.»

Falando das TIC, Júlio Machado Vaz disse que atualmente «a tecnologia é um
maná, dá conforto, a sensação de omnipotência no mundo tecnológico»,
explicando que a timidez é um problema comum, que as novas tecnologia
atenuam. Estar na net «é evitar humilhação no mundo real», passando muitas
vezes o «mundo virtual a ser mais real que o mundo real».

A dependência da net e deste novo mundo pode tomar tal forma que «se
desenvolvem patologias como a agorafobia», vivendo rodeados de ecrãs:
telemóvel, computador, etc. «Somos um animal de aprendizagem social e se
passarmos anos neste mundo, podemos considerar-nos incompetentes
[socialmente]». A maioria das pessoas que cria dependência das novas
tecnologias «tem dificuldade em lidar com os tropeções do mundo de carne e
osso», além de que as TIC «potenciam a nostalgia e a idealização», explicou o
especialista.

Vivemos num mundo de info-obesidade

O excesso de informação é outro problema atual, quando falamos das novas


modalidades da relação e comunicação. Júlio Machado Vaz chama-lhe “info-
obesidade”. O que acontece atualmente é que não agimos, “reagimos”, porque
«é tudo em tempo real, estamos presos no imediatismo, o que em termos de
relações humanas traz a possibilidade de complicações. Não controlamos a

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informação. Os outros podem fazer forward», por exemplo, «perdemos


ponderação». Para o psiquiatra, hoje «tudo é urgente», sinal dessa nova
maneira de pensar, em que «a urgência é superficial e rápida». «Perdemos a
noção de verdadeira urgência», defendeu Inês Meneses.

Uma outra característica deste “novo pensar” é a alteração da maneira de


escrever, «um dialeto» para Júlio Machado Vaz, assim como a «possibilidade
imediata de reforço positivo», ou seja, nas redes sociais a «comunicação é
rapidíssima», e rapidamente se põe um like numa fotografia que se carregou, o
que «preenche todas as condições para criar um vício». Para Inês Meneses,
estas pessoas, especialmente crianças e jovens, «não têm armas para enfrentar
o mundo, que não seja no computador, é uma forma de defesa».

Acresce que «determinadas fronteiras ficam esbatidas»,


defendeu Machado Vaz: não controlamos o forward, é traída a confiança que
depositamos no outro, não temos privacidade. «Não há intimidade do
pensamento», explica Machado Vaz, referindo-se aos pais que controlam o dia-
a-dia dos filhos, seja violando a sua privacidade, vendo às escondidas os seus
telefones, diários, etc., seja através de outro tipo de controlo. Por exemplo em
França, infantários permitem que os pais vão acedendo às camaras que o
infantário tem instaladas nas salas, e assistiam a tudo o que os filhos vão
fazendo. «Sem intimidade do pensamento não pode haver crescimento
psicológico, as crianças não podem crescer, e as crianças deixam de ter
novidades para contar».

É também «muito importante que haja educação para a triagem, não temos
hipótese de ler toda a informação que nos chega». Este novo paradigma, «a
possibilidade de aceder a tudo em tempo real», esta «multifuncionalidade»
acaba até por ter «repercussões na ciência» porque os investigadores procuram
online os artigos mais lidos, mais votados, o que cria unanimidade, uma
«bibliografia pobre».

Vivemos um big brother

«Deixamos impressões digitais por todo o lado», atestou Machado Vaz, que
considerou vivermos num big brother. Especialmente nas crianças isto cria
alguns problemas, nomeadamente no que toca ao espaço psíquico, ficam
«patologicamente dependentes». «Em termos de autonomização e de
crescimento não é saudável», e no que toca à questão de vigiar
permanentemente os petizes, «a hiperprotecção não é uma boa maneira de
educar, cria um grau de tolerância à frustração menor, podendo levar a vícios»,
alerta o especialista.

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Paralelamente, levanta-se a questão do anonimato nestas novas relações


mediadas pela tecnologia: «a tecnologia permite fazer coisas indelicadas, e tem
a possibilidade de não se ser apanhado». Acresce que «a conceção de amizade
e de privacidade tem vindo a mudar, há novos conceitos». «Em termos de
privacidade os riscos não são verdadeiramente avaliados pelas pessoas»,
defende Júlio Machado Vaz, acrescentando que «há preços a pagar pela
tecnologia». Sendo que nas crianças de hoje esta questão assume maior
importância por que «não há essa ambivalência, não conhecem o conceito de
amigos verdadeiros como os adultos, assim como o conceito de privacidade»,
elas «cresceram na era da amizade virtual».

Para o psiquiatra, as novas tecnologias são a forma mais fácil de estragar a


vida a alguém, de enlamear, são também o auge do narcisismo. «É preciso que
todos aprendam não só a usar as novas tecnologias não só em termos técnicos
– e as crianças dominam esta questão - como tudo aquilo que pode surgir da
tecnologia; confiar é uma noção muito importante», que se não aprendida, leva
a “nodoas engras”. «Na net as pessoas não se podem nunca ir embora, e ser
capazes de ficarmos sozinhos connosco próprios torna-se mais difícil», e
quando falamos de crianças, que «estão permanentemente ligadas, quase não
há tempo psicológico para estarem sozinhas, ficando dependentes de objetos
externos».

“Penso, logo existo” vs “like, logo existo”

No entanto é importante não esquecer que «é uma ilusão pensar que isto só
acontece com as crianças», «vivemos na sociedade da gratificação, superficial».
E neste “novo” mundo, o feedback é crucial. «O like é um estímulo», as pessoas
precisam de resposta imediata. Surgindo assim um novo paradigma do
pensamento, primeiro “penso, logo existo”, depois “penso, sinto, logo existo”, e
hoje, “like, logo existo”, ou “respondo, logo existo”, ou ainda “apareço, logo
existo”.

E nesta que é «a sociedade mais adolescente que já existiu»,


Machado Vaz tem dúvidas que «possamos traçar fronteiras». E deu exemplos:
«passámos do pensamento do amor romântico para os homens e mulheres das
nossas vidas»; «a adolescência começa cada vez mais cedo, e invadiu a
adultice». Uma outra questão ainda levantada pelas novas formas de
comunicação e relação, e pela diluição das fronteiras, é a da hipersexualização
das crianças: «a mesma sociedade que torna as crianças objetos de desejo,
autênticas lolitas, vive aterrorizada com a pedofilia». «Estas são problemáticas
muito importantes para quem está a crescer mas não são opostas às que se
põem aos mais velhos»: retarda-se cada vez mais a velhice «a mensagem é
“pareça mais novo” e não “envelheça saudável”; é preciso educar para a saúde,

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para que a pessoa envelheça com qualidade e não negar-se o envelhecimento».


É uma sociedade de consumo.

O XXIV Encontro Nacional de Psiquiatria da Infância e da Adolescência,


organizado pela Unidade de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar Leiria-Pombal
decorreu no Hospital de Santo André e reuniu uma centena de especialistas de
todo o país para debater as múltiplas interfaces da saúde mental infantojuvenil.

Fonte: Midlandcom

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Psiquiatra conta o que lhe chamou a atenção no estudo da Universidade


de Virginia.

O que surpreende no estudo?

O tornar evidente e de forma tão expressiva um comportamento coerente com


aquilo a que assistimos no dia-a-dia. Vivemos numa sociedade em que,
atendendo ao ritmo em que se vive, às dificuldades e ao próprio consumo
capitalista, é-nos pedido não para agir mas para reagir. Ora isto cria uma
verdadeira dependência de ter estímulos exteriores sem os quais é
estranhíssimo viver e temos uma cada vez maior dificuldade em entrar em
contacto com estímulos internos.

A incapacidade de pensar está na origem de angústias que as pessoas


manifestam depois no consultório?

É uma moeda de duas faces. Pensar pouco, no sentido de dialogar connosco


próprios, pode ser um mecanismo de defesa eficaz contra a ansiedade - embora
não o considere desejável. Há coisas que nos angustiam porque estão dentro de
nós. Mas tal como pode ser uma fuga para a frente, ao não estabelecer um
diálogo interior não estamos verdadeiramente capazes de lidar com aquilo que
somos, o que também pode trazer problemas.

Devíamos ter treino para pensar?

É um verbo que me arrepia por ser muito behaviourista. Mas o que é certo é que
cada vez mais se desvaloriza o pensar. Vê-se isso até nas palavras. Nos velhos
gregos, a palavra ócio não tinha uma conotação pejorativa. O ócio era quando
se pensava e filosofava. O médico era também um filósofo. Hoje o médico é
empurrado para o estatuto de técnico e o ócio é ligado à preguiça. A pessoa que
tem sistematicamente o poder é aquela que está sempre a agir, a fazer muitas
coisas, e muito menos a que questiona quem é, o que faz, para onde vai. Se
uma pessoa não é "proactiva" está tramada. Resultado: tornámo-nos uma
sociedade de superespecialistas: sabemos cada vez mais sobre menos.

A óptica do estudo é no sentido de como voltar a ganhar o gosto por


pensar. Se o modo de vida actual nos afasta de pensar, para que é que
precisamos de o fazer?

De facto, se a nossa única ambição é sobreviver, pensar no sentido nobre da


palavra não é propriamente uma prioridade. Se a pessoa está satisfeita, tudo
bem. A mim não me serve. Penso que esta maneira de viver que levou a este
recuo na arte de pensar faz com que reine uma enorme superficialidade em tudo
e que as pessoas se afastem de tudo o que lhes é desagradável.

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Isso é visível também no consultório?

Muito. Cada vez é mais habitual as pessoas queixarem-se de a companheira ou


companheiro ter rompido com elas usando as frases habituais mas por sms. Mas
isto estende-se a tudo: uma das coisas que nos torna o animal mais perigoso à
face da Terra é termos inventado forma de matar à distância. Os animais têm
mecanismos que protegem as diferentes espécies. As serpentes venenosas,
quando lutam empurram, o adversário mas não injetam veneno. Entre os lobos,
aquele que está a perder estende o pescoço mas o que ganha não o morde, é
um sinal de submissão. Há 30 anos descobriram que os pilotos que lançavam
Napalm sem pensar duas vezes eram incapazes de matar um peru pelo Thanks
Giving. Com todas as vantagens que tem, a sociedade em que vivemos está a
aumentar a falta de respeito e reflexão sobre as consequências do ato. É preciso
ter algo em conta: o "meio é mensagem", como disse McLuhan. Este é o nosso
meio. A pessoa até pode dizer que "consegue desligar". Mas as gerações estão
a ser formatadas. Quando um avião aterra, ouve-se sempre a hospedeira que
pede para não tirar os cintos e ligar os telemóveis antes de parar. Se olhar à
volta está toda a gente a prevaricar e nem é nos cintos. As pessoas ficam
autenticamente angustiadas por terem estado hora e meia desligadas.

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