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CRAS?
Patrícia do Socorro Nunes Pereira1
Roseane Freitas Nicolau2
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à saúde mental. No geral, esse tipo de atenção tem sido atrelado a programas sociais e
de políticas públicas.
Para que possamos avançar em nossa discussão, faz-se necessário
compreendermos a origem e forma de funcionamento de um CRAS. Começamos com o
direito a assistência social, que embora seja previsto na Constituição Federal, somente
com a criação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) em 1993 ela passou a ser
reconhecida como política pública, de responsabilidade do Estado e de direito do
cidadão. A Política Pública de Assistência Social funciona de forma a considerar as
desigualdades sociais e territoriais, objetivando o seu enfrentamento, a garantia dos
mínimos sociais4 e a universalização dos direitos sociais (PNAS 2004). A partir da
implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), esse compromisso social
foi fortalecido. Este, por sua vez, define as bases e diretrizes da Política Nacional de
Assistência Social. A implantação do PNAS se tornou uma nova forma de proteção dos
considerados em vulnerabilidade social em decorrência da pobreza.
O Centro de Referência de Assistência Social - CRAS é definido no PNAS como
a unidade pública estatal e territorial, localizado em áreas consideradas de
vulnerabilidade social e tendo como meta atender 5.000 famílias. No CRAS são
executados serviços de Proteção Básica5, organização e coordenação da rede de serviços
sócio assistenciais locais do PNAS, constituindo-se assim, como a porta de entrada dos
usuários da rede de proteção básica do SUAS.
As atividades desenvolvidas no CRAS começam com o acolhimento em grupo
na chegada do usuário e posteriormente, em uma entrevista individual para cadastro
com as informações necessárias para solicitação do benefício. Definem-se, então, os
encaminhamentos para a inclusão do usuário nos programas de repasse de renda do
Programa Bolsa Família (PBF) e do BPC - Benefício de Prestação Continuada,
programa para idosos de baixa renda e pessoas incapazes para o trabalho.
Os beneficiários destes programas de repasse de renda são integrados em grupos
de convivência e sócio educativos, tendo como objetivo o fortalecimento dos grupos
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Assistência com vistas a atender as necessidades mais básicas para a sobrevivência do cidadão, evitando
que ocorra um caos social (PNAS 2004).
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Proteção básica é caracterizada por ações preventivas, quando ainda não houve violação de direitos e
rompimento de vínculos familiares. Esta ação é alicerçada em programas, projetos e serviços.
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sociais. Assim, através do CRAS se visa proporcionar o repasse de renda, o
fortalecimento dos grupos sociais e dos vínculos familiares, as atividades sócio
educativas e o incentivo a atividades individuais geradoras de renda, além de garantia a
assistência social ao cidadão.
As atividades desenvolvidas no CRAS são de responsabilidade da equipe técnica
composta principalmente por psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e educadores.
Os beneficiários dos programas devem fazer parte de um grupo de convivência ou sócio
educativo. Desta forma, a instituição cumpre sua função de repasse de renda para
minimizar os riscos sociais em decorrência da pobreza.
Porém, as dificuldades dos usuários vão além de problemas sociais relacionados à
pobreza. E, quando essas dificuldades estão relacionadas a questões de ordem subjetiva,
emocionais?
O usuário que traz demanda de ordem emocional é encaminhado para o psicólogo,
que, além das atividades já descritas, tem que encontrar disponibilidade para dar escuta
a este indivíduo. As atribuições do psicólogo no CRAS contidas no Manual prevê que o
usuário deve ser ouvido nas atividades de grupo, só permitindo que seja atendido
individualmente em número de vezes pré-definido para avaliação da necessidade. Se a
demanda de atendimento for contínua, ele deve ser encaminhado à outra instituição que
ofereça esse serviço, sem que isso ocasione seu desligamento do CRAS.
O Manual de Referências Técnicas para a atuação do psicólogo no CRAS/SUAS
(CREPOP 2007) define que a psicologia deve priorizar a construção de práticas que
estejam comprometidas com a transformação social, ou seja, que o psicólogo deva
atender o indivíduo e sua respectiva família que estejam em situação de vulnerabilidade
com vistas a prevenir o risco social. Embora contenha neste Manual que a escuta do
psicólogo seja diferente da escuta do assistente social, é proposto que o psicólogo deva
romper com os dispositivos clínicos do consultório:
(...) a atenção acerca do significado social da profissão e da direção da
intervenção da Psicologia na sociedade, apontando para novos
dispositivos que rompam com o privativo da clínica, mas não com a
formação da Psicologia, que traz, em sua essência, referenciais teórico-
técnicos de valorização do outro, aspectos de intervenção e escuta
comprometida com o processo de superação e de promoção da pessoa
(CREPOP, 2007 p. 29).
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Assim, o indivíduo e sua família constitui o público-alvo a receber proteção social
do Estado. Partindo daí, o CRAS através de serviços sociais e assistenciais, assegura o
acesso aos direitos sociais essenciais à família, com o objetivo de inseri-las neste
contexto assistencial, respeitando seus valores, sua cultura e sua história. Desse modo,
as famílias recebem proteção social por parte do Estado, mas na condição de sujeito de
direitos. Embora o Manual preveja a atuação do psicólogo no âmbito da escuta e do
atendimento do indivíduo, o que acontece é que, o atendimento se dá exclusivamente no
âmbito social. Entretanto, em muitas situações, essas ações não são suficientes, exigindo
que o profissional de psicologia venha: “(...) intervir diretamente numa demanda de
caráter subjetivo que teima em aparecer no espaço do CRAS” (MARIANO 2011, p.
209). Desta forma, em relação à demanda para a escuta subjetiva no CRAS, Scarparo e
Poli (2009) observam:
Conforme podemos observar com as autoras, mesmo no espaço social existe mais
que um indivíduo de direitos sociais. Neste contexto, pode surgir o sujeito com uma
história de vida e com questões psíquicas que precisam ser escutadas. Assim, é na
exigência que o sujeito faz para a instituição e que ela não dá conta, que surge a
oportunidade de entrar o psicanalista. Considerando que a psicanálise tem seus
pressupostos na existência do inconsciente e do sujeito, como ela pode se aplicar na
instituição quando esta tem outra lógica de funcionamento?
Para essa discussão, a teoria dos discursos de Lacan, desenvolvida pelo autor para
pensar a articulação do laço social, pode nos auxiliar a analisar a prática da psicanálise
na instituição social. Os quatro discursos proposto por Lacan (1969-1970), são: o
discurso do mestre, da histérica, da universidade e do analista.
Partindo da concepção de que na instituição vigora o discurso do mestre,
analisaremos a possibilidade de prática da psicanálise na instituição, esta que se dirige
ao sujeito a partir do discurso do analista. Desta forma, nos deteremos nos discursos do
mestre e do analista.
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Lacan (1969-1970/1992), na teoria dos discursos, estabelece as formas de se fazer
laço social. As quatro variações discursivas serão determinadas pela composição de
quatro elementos, que são os significantes S1 (Significante mestre) e S2 (o Saber, a
cadeia de significantes), $ (sujeito barrado) e o objeto a (a mais-valia ou mais-de-
gozar), distribuídos em quatro lugares, definidos como: o agente, o outro, a verdade e a
produção, representados da seguinte maneira:
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fato necessita do saber do escravo, pois é ele quem sabe e sabe mais ainda que o mestre,
cabendo a este fazer somente um esforço: dar uma ordem. Para o mestre só importa que
as coisas funcionem, não importa como e nem por que. (LACAN 1969-1970/1992).
Conforme Lacan (1969-1970/1992) nos mostra, o mestre está sustentado por uma
verdade, uma verdade que está oculta. Esta verdade ($) diz respeito à própria castração
do mestre, o qual precisa do saber do escravo para poder produzir. O que o discurso do
mestre produz é o a, que para o escravo é o mais-de-gozar, um gozo que ele produz
apenas para satisfazer o mestre. Na posição de mestre o agente sempre trata o outro
como escravo, exercendo seu poder sobre ele para fazê-lo produzir gozo. Mas qual a
posição do analista no discurso? O discurso do analista é representado da seguinte
forma:
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do discurso do analista. O sujeito ($) no discurso do analista é um sujeito ativo,
inventivo, um sujeito que trabalha.
O S2 está na posição da verdade e abaixo da barra do agente, antecipando que a
verdade desse discurso está num saber do analista, uma verdade não completa: uma
meia verdade. Ainda no lugar de S2, observamos que o outro supõe que o agente possui
um saber sobre ele. É isso que vai garantir que o discurso possa se dar. O analista no
lugar de agente do discurso opera como objeto e não faz uso do saber para exercer
domínio sobre o outro, não dominando o outro nem pelo saber e nem pelo poder, como
acontece no discurso do mestre. Assim, essa relação só pode se dar pela transferência.
Neste discurso a função do analista é ser agente causa de desejo, ou seja, provocar o
desejo de saber no outro, um saber sobre sua verdade.
Na instituição, a psicanálise se insere de modo subversivo ao discurso do mestre
vigente que coloca o sujeito como objeto de tutela. Considerá-lo assim implica em
abordá-lo de forma autoritária, acreditando possuir um saber a priori sobre ele. O saber
inconsciente do sujeito não pode ser transmitido pelo Outro, como pretende esse
discurso, colocando o sujeito numa posição passiva, de mera receptora de conhecimento
(BESSET 2005). Desta forma: “ao recusar o lugar de quem sabe sobre o sujeito e aquilo
que o causa, o analista abre a via de um percurso” (BESSET 2001, p. 161).
A presença da psicanálise nas instituições depende muito mais da posição ética de
quem faz valer o exercício desta orientação. Com a presença de um psicólogo
atravessado pelos pressupostos da psicanálise lacaniana é possível apostar na
contingência como um saber particular de cada sujeito frente aos desafios impostos pela
vida (DUPIM e tal 2011).
Deste modo, a psicanálise na instituição só se dá quando o psicanalista, enquanto
agente, se dirige ao sujeito para colocá-lo a trabalhar e produzir seus próprios
significantes mestres. Ao se ver impelido em direção a essa produção, o sujeito: “(...)
pode tomar uma nova posição diante de tais significantes que o marcaram (...)”
(ALBERTI 2010 p. 20). Alberti (2010) questiona a prática da psicanálise em uma
instituição de assistência social em que, mesmo os colegas “psi” que se utilizam da
psicanálise como norteador de seu trabalho, nada garante que assim o fazem com ética e
que tenham se submetido à análise pessoal, conforme podemos ver na citação abaixo:
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lugar do outro ou mesmo, que se dirige ao sujeito no lugar do
gozo, o sujeito do gozo, para coloca-lo a trabalhar e promover a
queda do mais-de-gozar! A questão então que se coloca é: como
transmitir isso sem que os outros colegas da equipe tenham sido
ou sejam analisantes?” (ALBERTI 2010 P. 23).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Acesso: 01/03/2012.
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