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Suspender o tempo, reencantar a cidade: “O grito do povo”, uma história

gráfica da Comuna de Paris


Clóvis Gruner

(...)
O Poeta irá tomar o pranto dos Infames,
Os ódios do Forçado, as queixas dos Malditos;
E as Mulheres serão flageladas de amor.
Seus versos saltarão: Ei-los! ei-los! bandidos!

- Sociedade, está tudo em ordem: - as orgias


Estertoram de novo em velhos lupanares:
E, delirante, o gás nos muros encarnados
Arde sinistramente à palidez dos céus!
Rimbaud (“A orgia parisiense ou Paris se repovoa”)

***

(...) mas que potente vanguarda que, durante mais de dois meses, manteve na
expectativa todas as forças coligadas das classes governantes; que imortais soldados
os que, nos mortais postos avançados, respondiam ao versalhês: “Estamos aqui pela
Humanidade!”
Prosper-Olivier Lissagaray (“História da Comuna de 1871”)

No dia 15 de maio de 1871, uma declaração assinada pelo Delegado


para as Relações Exteriores da Comuna de Paris, Paschal Grousset,
conclamava os franceses das principais províncias francesas a acorrer em
defesa de Paris. Intitulado “Apelo às grandes cidades”, o texto pedia aos
cidadãos livres da França que protegessem a Comuna das “balas
envenenadas de Versalhes”:

Após dois meses de uma batalha de todas as horas, Paris não se acha cansada, nem
dividida.
Paris luta sempre, sem trégua e sem repouso, infatigável, heróica, invicta.
Paris fez um pacto com a morte. Por trás de seus fortes, ela em os muros; por trás de
seus muros, as barricadas; por trás de suas barricadas, as casas, que seria preciso
arrancar-lhe, uma a uma, e que ela faria saltar, se necessário, antes de se entregar à
1
misericórdia.

Aquelas alturas é bastante provável que os communards já


pressentissem o seu fim trágico. Transcorridos mais de dois meses desde a
sua proclamação, em 18 de março, e de resistência a um cerco impiedoso e
violento, a Comuna aos poucos sucumbia ante a superioridade das tropas de
Versailles. Com a ajuda de seus espiões infiltrados na cidade, Thiers já

1
Apelo às grandes cidades. In.: LUQUET, P. (org.). A Comuna de Paris. Rio de Janeiro:
Laemmert, 1969, pp. 97-99.
mapeara os pontos mais vulneráveis a serem forçados no momento da
invasão. Contribuía para a fragilidade dos revoltosos as inúmeras distensões
internas, as disputas ideológicas e sua precária estrutura e organização militar.
Além disso, o apelo às cidades veio tarde: tentativas insurrecionais em Lyon,
Marselha e Grenoble haviam sido abortadas, em parte devido à ameaça de
repressão. Dois congressos republicanos, em Bordeux e Lyon, foram
inviabilizados: o primeiro proibido de ser realizado por Thiers e pelo seu
ministro Ernest Picard; o segundo suspenso e seus delegados, presos e
levados a Versailles pelos militares.
Seus estertores, a Comuna viveria sozinha e sitiada. Entre os dias 21 e
23 de maio as tropas legalistas invadem Paris, derrotando uma após a outra as
pálidas frentes de resistência que tentavam, inutilmente, barrar seu avanço. No
dia 24 de maio o Comitê Central abandona o Hotel de Ville, incendiado,
enquanto o Cemitério Père Lachaise se transforma no palco das derradeiras
batalhas. Em 28 de maio a capital está retomada e restituída à França, e a
Comuna, esmagada. Sob o pretexto de que “Paris não assinou a Convenção
de Genebra e, portanto, não há porque respeitá-la”, Thiers autoriza seus
comandados a romperem com os acordos bélicos internacionalmente
estabelecidos poucos anos antes: atiram em ambulâncias e feridos, ferem e
matam a população civil, fuzilam sem julgamento. O saldo: 10 mil mortos e
outros 20 mil fuzilados sumariamente. A repressão, impessoal e
burocraticamente organizada, só cessou pelo temor de que os corpos,
insepultos e espalhados pelas ruas, gerassem focos epidêmicos a colocar em
risco a salubridade da capital, já debilitada pelos confrontos. Livrados da morte,
outros 35 mil communards foram presos ou deportados.2
Entre os exilados está Prosper-Olivier Lissagaray, o primeiro historiador
da Comuna, “um combate de vanguarda em que o povo, comprimido em uma

2
A historiografia sobre a Comuna de Paris é escassa no Brasil e desde o pequeno grande livro
de Horacio Gonzales pouca coisa foi produzida. Como não é minha intenção falar dela de um
ponto de vista factual nem, tampouco, fazer um balanço historiográfico, remeto aos textos de
que me servi para esse breve relato: GONZALES, Horacio. A Comuna de Paris: os assaltantes
do céu. São Paulo: Brasiliense, 1989; BOITO JR., Armando (org.). A Comuna de Paris na
história. São Paulo: Xamã, 2001; BARSOTTI, Paulo; ORSO, P. J. (orgs.). A Comuna de Paris
de 1871: história e atualidade. São Paulo: Ícone, 2002. Além desses, recomendo
particularmente o trabalho de Alexandre Samis, talvez o mais completo estudo escrito por um
historiador brasileiro: SAMIS, Alexandre. Negras tormentas: o federalismo e o internacionalismo
na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011.
luta militar estudada, não pôde desenvolver suas idéias, nem suas legiões”,
mas que deu “aos trabalhadores consciência de sua força, traçou a linha bem
nítida entre eles e a classe devoradora, esclareceu as relações de classe com
um tal brilho que a história da Revolução Francesa iluminou-se e deve ser
retomada pela base.”3

***

A derrota militar da Comuna de Paris não implicou seu esquecimento.


Seu legado tem sido objeto de reflexões e disputas, especialmente entre
anarquistas e marxistas, que reivindicam seu imaginário, sua herança e
atualidade.4 Os muitos fios que a conectam aos eventos do último século onde
sua memória se faz presente (a ação dos anarquistas na Guerra Civil
Espanhola ou o Maio de 68, por exemplo), se reafirmam sua inquietante
pertinência e contemporaneidade, reatam igualmente aqueles pouco mais de
70 dias à temporalidade que a gestou e lhe fez o parto: o século XIX.
Em um dos fragmentos das “Passagens”, Walter Benjamin afirma ser o
oitocentos um “espaço de tempo [Zeitraum]” e “(um sonho de tempo [Zeit-
traum]) no qual a consciência individual se mantém cada vez mais na reflexão,
enquanto a consciência coletiva mergulha em um sonho cada vez mais
profundo”.5 Para o pensador alemão, o apelo à razão e a ciência, a crença no
progresso e a ampliação das possibilidades advindas com o desenvolvimento
tecnológico, se característicos do período, não são suficientes para
compreendê-lo. Porque se trata também de seguir as “visões oníricas” que
deram conteúdo e forma às experiências constitutivas da modernidade
oitocentista. E não para, de acordo ainda com Benjamin, reafirmar a “oposição
categórica entre sono e vigília”, mas justamente reconhecer a

3
LISSAGARAY, Prosper-Olivier. História da Comuna de 1871. São Paulo: Editora Ensaio,
1991, p. 363.
4
Uma coletânea de textos sobre a Comuna, assinados por autores contemporâneos ou
imediatamente posteriores a ela, entre eles Marx e Bakunin, pode ser encontrada em:
COGGIOLA, Osvaldo (org.). Escritos sobre a Comuna de Paris. São Paulo: Xamã, 2002. Uma
análise da produção do imaginário e das disputas em torno à sua herança pode ser lida em:
ROSS, Kristin. Communal luxury: the political imaginary of the Paris Commune. New York:
Verso, 2015.
5
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/São Paulo: Imprensa Oficial,
2006, p. 434.
indissociabilidade, em um mesmo regime de temporalidade, de dois registros
apenas aparentemente distintos da realidade. A perspectiva benjaminiana é,
neste sentido, basilar para compreendermos o caráter descontínuo das muitas
insurgências que escreveram parte da narrativa política do XIX. Século de
revoluções que pretenderam reorganizar o mundo politico, imprimindo outras e
por vezes inusitadas direções às instituições e práticas democráticas, o
oitocentos foi também o período de desejos e projetos utópicos que forneceram
o seu combustível e ajudaram a moldar suas feições.
Mas há algo de singular na Comuna de Paris. Herdeira tanto do
pensamento e das sensibilidades utópicas oitocentistas, especialmente aquelas
gestadas em solo francês (como o anarquismo de inspiração proudhoniana),
quanto das experiências revolucionárias que a antecederam (1789, 1830 e,
principalmente, 1848), ela se distingue particularmente destas últimas ao
propor e experienciar uma forma de política que pressupunha a destruição da
própria política. Dito diferentemente, ao propor outra forma de apropriação e
gestão da polis, fundamentada na organização social municipalista e autônoma
e na possibilidade de superação do Estado pela autogestão da produção
social, a Comuna opõe, ao sentido burguês, um entendimento de política como
um lugar de radicalidade democrática e de gestão das liberdades.
Em um pequeno texto escrito em 1950, Hannah Arendt define a política
como um lugar de aparecimento de rostos, multiplicidades, diferenças e
intervalos.6 Rostos porque a política não é feita de abstrações, mas de corpos
que falam e agem. Multiplicidades porque não se trata de homogeneizar os
sujeitos políticos, mas de fazer explodir singularidades – movimentos, desejos,
ações singulares. A multiplicidade faz aparecer as diferenças e os intervalos: a
política faz-se também na reciprocidade entre os diversos, que constituem
relações naqueles interstícios – nos intervalos ou nos “espaços entre os
homens” – que os aproximam sem, por isso, anular-lhes a diferença. “A política
baseia-se no fato da pluralidade dos homens"; ela deve organizar e regular o
convívio de e entre diferentes, não de iguais. Razão porque, para Arendt, o
“sentido da política é a liberdade”. Poucos acontecimentos podem reivindicar
esse sentido de política ou aproximar-se dele. A Comuna certamente sim.

6
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 12.
Do romance gráfico a uma história gráfica
Adaptado do romance homônimo de Jean Vautrin e publicado
originalmente em quatro volumes, a graphic novel “Le cri du peuple”, com
roteiro e arte de Jacques Tardi, aparece na França entre os anos de 2001 e
2004. No Brasil, “O grito do povo” foi editado em dois tomos no primeiro e
segundo semestre de 2005, respectivamente.7 Pouco familiar entre os leitores
brasileiros, Tardi é um artista conhecido e reconhecido em seu país de origem
desde praticamente sua estreia no universo das bandes dessinées, ainda na
primeira metade dos anos 70 do século passado. O sucesso consolidou-se
com a série “Les aventures extraordinaires d’Adèle Blanc-Sec”, publicada a
partir de 1976.
Temas e acontecimentos históricos são uma constante em sua obra,
mais visíveis naqueles títulos, por exemplo, que tratam da Grande Guerra
(1914-1918), tais como “Putain de guerre” (com roteiro de Jean-Pierre Verney)
ou “C’était la guerre des tranchées”8, de 1993 e 2009, respectivamente. Mas
mesmo em Adèle Blanc-Sec a história é o pano de fundo em narrativas que
exploram, visualmente, elementos da cultura, da sociedade e da arquitetura
principalmente parisiense entre o fim da belle époque e o início dos “anos
loucos” – as aventuras de Adèle se passam 1911 e 1922. As histórias que
Tardi nos conta se caracterizam, entre outros elementos, pela cuidadosa
atenção aos detalhes (datas, lugares, ruas, coisas) e a presença, em cena, de
rostos e nomes comuns e anônimos, alçados não raro à condição de
protagonistas. Nas narrativas sobre a Grande Guerra somos levados às
trincheiras, onde semblantes amedrontados, cansados e traumatizados, e
corpos impotentes e fragilizados, quando não mutilados pela guerra,
reinscrevem no presente, em um jogo de escalas que aproxima e afasta o olhar
do leitor, o horror e a barbárie das batalhas.
Esse equilíbrio entre a autonomia do traço e a importância da
composição mimética, esse “trabalho de artesanato das palavras e das

7
VAUTRIN, Jean e TARDI, Jacques. O Grito do Povo – os canhões de 18 de março (tomo 1) e
O Grito do Povo – o testemunho das ruínas (tomo 2). São Paulo, Conrad Editora do Brasil,
2005.
8
Apenas a segunda tem uma edição brasileira: TARDI, Jacques. Era a guerra de trincheiras –
1914-1918. Belo Horizonte: Nemo, 2012.
imagens”, Tardi o constrói em um esforço paciente e meticuloso de
investigação documental.9 Se de suas páginas emergem figuras impregnadas
de uma ambientação histórica cuidadosamente reconstituída, tal reconstituição
é fruto de uma imaginação poderosa informada pela coleta e o exame atento
de uma documentação vasta e diversa – croquis, fotografias, antigos atlas e
mapas de Paris, jornais de época, cartazes publicitários... Seu traço e escrita,
tornados e tomados como referências icônicas de tempos pretéritos, são
mediados por representações já existentes desse mesmo passado, uma
“operação gráfica” que abre novas chaves de leitura e compreensão das
experiências e acontecimentos históricos.
Não é diferente em seu trabalho sobre a Comuna. Parte significativa das
imagens de “O grito do povo” recriam o ambiente das ruas, assembleias,
reuniões e batalhas a partir de uma rica documentação produzida pela própria
Comuna. Neste sentido, Tardi foi auxiliado pelos próprios communards,
pródigos na produção de sua memória a partir de registros, visuais e escritos,
daqueles tempestuosos dias. Durante os pouco mais de dois meses da
Comuna, cerca de 400 cartazes foram impressos, em tiragens que
ultrapassaram, alguns deles, 6 mil exemplares. A quantidade distribuída e o
conteúdo impresso variavam de acordo com a destinação, que levava em conta
grupos e categorias profissionais com quem o Comitê Central pretendia
comunicar-se, além da divisão administrativa (arrondissement) e os bairros
onde eles seriam fixados, já que nestes a recepção e a interação com a
Comuna variavam do engajamento militante e entusiasmado à franca e aberta
hostilidade.10
A Comuna pretendeu igualmente uma radical transformação na
produção estética. Animada principalmente pela liderança de Gustave Coubert,
a Federação dos Artistas almejava assegurar a integridade do patrimônio
artístico parisiense e, articulando-o ao presente, fazer nascer uma arte
engajada coerente à ordem revolucionária. Para tanto, propunha a gestão da
arte pelos próprios artistas, além de desenvolver ações que colocassem
museus, bibliotecas, espaços e eventos artísticos à serviço da população,

9
ALARY, Viviane. Tardi, sa marque, son souffle. MEI, nº 26 (Poétiques de la bande dessinée),
2007, pp. 71-88.
10
ARTIÈRES, Philippe. La police de l’écriture: l’invention de la délinquance graphique (1852-
1945). Paris: La Découverte, 2013, pp. 33-37.
ocupando e utilizando lugares públicos tais como praças, parques e jardins
para a realização de exposições, recitais, peças de teatro e concertos
musicais.11 A brevidade da Comuna e as urgências políticas e militares de seus
derradeiros dias, principalmente, limitaram não apenas a consolidação das
ideias da Federação, mas também a produção de seus artistas, especialmente
aqueles ligados às linguagens plásticas, aparentemente mais empenhados em
discutir a “arte política” e uma “política para a arte” que, necessariamente,
produzi-la.12 Em que pese a presença de nomes expressivos entre os pintores
engajados ou simpatizantes da Comuna – além de Coubert, fizeram parte da
Federação dos Artistas, entre outros, Armand Gautier, Honoré Daumier e
Edouard Manet –, a produção pictórica é escassa frente a outros registros
visuais, tais como desenhos, caricaturas e fotografias.

***

Sob esta perspectiva, portanto, o empreendimento de construção de um


imaginário sobre a Comuna foi principalmente verbal. “O grito do povo” ocupa,
nesta tradição, um lugar singular. Adaptado de um romance, de quem preserva
elementos da narrativa e o nome, ao transpor a linguagem literária para os
quadrinhos, Tardi não apenas adapta o texto original, inventa outro. Vale-se
para tanto da confluência entre imagem e palavra, uma das características
centrais da “arte sequencial”; de um hábil uso dos códigos ideogramáticos dos
quadrinhos (diferentes planos e enquadramentos; desenhos simbólicos que
representam movimentos, sons e reações emocionais; etc...), recurso que
permite inúmeras combinações e arranjos narrativos; bem como criativas
disposições dos quadros na página. Muitas das sequências foram criadas por
Tardi a partir de imagens de época, como o mapa de Paris que identifica os

11
SAMIS, Alexandre. Negras tormentas..., pp. 298-302.
12
O historiador Bertrand Tillier defende que, além do pouco tempo e das demandas políticas de
emergência, a mobilizar a energia e a atenção dos artistas, outras razões corroboram para a
escassez da produção plástica sobre a Comuna produzida a partir e no interior dela. Para
Tillier, que a define como um “não-objeto artístico”, os artistas falharam ao representar o
evento, uma falta que boa parte da historiografia reproduziu. De acordo com ele, tão
fundamental para entender tal lapso, foram a censura institucional e a autocensura dos
próprios artistas; o esquecimento da Comuna como condição para a anistia aos communards
em 1881; e a a museificação de sua memória por parte da esquerda francesa. Cf.: TILLIER,
Bertrand. La Commune de Paris, révolution sans images? Politique et représentations dans la
France républicaine (1871-1914). Paris: Champ Vallon, 2004.
lugares onde ocorreram as principais batalhas da Comuna; a recriação das
ruas, parques e praças da capital; ou ainda alguns quadros de ajuntamento
popular claramente retirados dos registros fotográficos da Comuna.
Outros recriam figurativamente acontecimentos emblemáticos da
Comuna: ainda no primeiro volume, a panorâmica de Montmartre, com os
canhões dos communards alinhados “vigiando” a cidade do alto. Uma visão
ampla do Hotel de Ville nos é oferecida em três momentos, e funcionam
também como um recurso para marcar narrativamente mudanças significativas
na trama: no primeiro volume, em página inteira, antes de adentramos suas
salas e corredores e esbarrarmos no vai-e-vem de personagens que circulam
por elas; no segundo, em página dupla, cercado pela multidão, no dia 28 de
março, data em que a Comuna é oficialmente proclamada.13 O mesmo recurso
é utilizado logo no começo do quarto e último volume, que se abre para a cena
a um só tempo trágica e espetacular de uma Paris em chamas, com o Hotel de
Ville em primeiro plano a prenunciar a derrocada final da Comuna.14 Esta é
figurada em sequências onde o leitor tem, paulatinamente, o olhar sitiado pelas
tropas de Versalles até a batalha final, nos muros do Père Lachaise, onde
tombaram fuzilados os últimos revoltosos.
Sem prejuízo à narrativa de reconstituição histórica, Tardi coloca lado a
lado personagens ficcionais e lideranças da Comuna, participando uns e outros
da efervescência política, dos debates e enfrentamentos públicos, lutando,
resistindo e morrendo nas batalhas. Assim, ao mesmo tempo em que
acompanhamos, cronologicamente, a sequência de eventos que vão da
proclamação da Comuna ao seu aniquilamento, ou vemos saltar das páginas
uma reconstituição precisa das ruas e barricadas, das movimentações e
agitações políticas, das quase sempre tumultuadas assembleias, dos cartazes
e comunicados fixados nos muros da cidade, das chamas que consumiram o
Hotel de Ville e das sangrentas batalhas de maio, somos apresentados a um
conjunto de personagens – o inspetor Hippolyte Barthélemy; o subchefe de
polícia Horace Grondin; o serralheiro e arrombador Fio de Ferro; o militar
Antoine Tarpagnan; a prostituta Gabriella Pucci, a Caf’Conc’ – e suas intrigas

13
Respectivamente em: TARDI, Jacques. Os canhões do 18 de Março (vol. 1), p. 70; A
esperança assassinada (vol. 2), pp. 116-117.
14
TARDI, Jacques. O testamento das ruínas (vol. 4), pp. 92-93.
folhetinescas de amores inconclusos, crimes, traições e vinganças. As suas
trajetórias se cruzam com as de Gustave Courbet, Jules Vallès ou Louise
Michel, por exemplo. A referência a acontecimentos e pessoas reais é parte
constitutiva fundamental do universo ficcional de “O grito do povo”. Um
exemplo, entre outros: a prostituta Gabriella é a modelo de Courbet para “A
origem do mundo”, exibida pelo artista a dois amigos – o fotógrafo Théophile
Mirecourt e Tarpagnan – como se pintada nos dias inaugurais da Comuna.15 A
organização dos acontecimentos e personagens, segundo Éric Fournier,
aproximam Tardi das correntes historiográficas mais contemporâneas. Ainda
que de maneira não intencional, ele constrói um enredo a partir de perspectivas
muito próximas às da micro história, da história das representações ou da
“história vista de baixo” de inspiração anglo-saxã, ao reconstituir atenta e
cuidadosamente, junto com os eventos políticos e as cenas de batalhas, as
paisagens sensíveis e as práticas cotidianas dos parisienses insurrectos.16
De um ponto de vista mais especificamente literário, Tardi forja uma
trama intertextual ao brincar com diferentes gêneros, e o zelo quase obsessivo
com a facticidade histórica é emoldurado em uma narrativa que flerta
abertamente com o romance folhetim e os fait divers. A graphic novel inicia
com uma cena noturna, datada de 17 de março: a retirada, do Sena, do corpo
de uma jovem assassinada dá início a uma intriga policialesca que permeia
toda a obra. Mas é também uma espécie de prólogo à história da Comuna, que
se inicia algumas páginas depois, com um simples registro (“18 de março de
1871, 2 horas da manhã”) que antecede o quadro em que um parisiense
anuncia, aos gritos, que “Os soldados invadem a colina!”. Algumas horas
depois, o Comitê Central declara Paris em estado de sítio e convoca os
cidadãos às eleições comunais.17 Na última página de cada capítulo, Tardi
reprisa elementos da história, endereçando ao leitor uma série de questões que
anunciam seus desdobramentos sem, no entanto, revelar seu conteúdo – outra
estratégia narrativa tipicamente folhetinesca que, ao colocar o leitor em
compasso de espera (“Você saberá lendo a segunda parte desta história” ou
15
TARDI, Jacques. Os canhões do 18 de Março (vol. 1), p. 57. O quadro, parte do acervo do
Musée D’Orsay, em Paris, foi pintado em 1866. Apesar de algumas especulações, não se sabe
ao certo quem serviu de modelo a Coubert.
16
FOURNIER, Éric. Tardi et la Commune de 1871 à travers Le Cri du peuple: roman graphique
ou histoire graphique?, Sociétés & Représentations 2010/1 (n° 29), p. 51-64.
17
A vitória de 18 de Março. In.: LUQUET, P. (org.). A Comuna de Paris..., p. 57-58.
“Você saberá tudo isso lendo o segundo volume da história”), incita a
continuidade da leitura e permite ao artista desenvolver sua escrita a partir de
um “vasto campo de possibilidades e acidentes, de interrupções e imprevistos,
de inflexões e bifurcações”.18
Ao aproximar o “histórico” e o “ficcional” até a dissolução de suas
fronteiras, Tardi realiza uma operação de seleção e combinação de elementos
do passado que não pretendem apenas sua representação (no sentido de re-
apresentar, de presentificar uma ausência por um símbolo que a representa e
substitui). Sua arte intenciona (e tensiona) a repetição da realidade como um
“ato de fingimento”, na definição de Wolfgang Iser: “como a irrealização do real
e a realização do imaginário”.19 Isto significa, entre outras coisas, o
deslocamento da “ficção como representação para a ficção como
intervenção”20, permitindo ver dados do mundo empírico por uma ótica outra,
de forma diversa do que é; um “ato de transgressão”, ainda segundo Iser. No
caso de “O grito do povo”, tal ato – o de atribuir aparência de realidade ao
mundo, penetrando e agindo nele –, é duplamente transgressor. De um lado,
ao “fingir” a realidade, repetindo-a, revela possibilidades que servem à
produção de outros mundos possíveis, ao fazer aparecer finalidades que não
pertencem a realidade repetida. E o faz com o recurso a uma forma narrativa, a
dos quadrinhos, que embora não prescinda inteiramente da linguagem verbal
é, fundamentalmente, imagética. A intenção não é oferecer da Comuna, a
exemplo da historiografia acadêmica, uma narrativa “realista”. Mas pela
imagem oferecer, ao leitor, uma narrativa que não sendo real, ainda assim
existiu ou pode ter existido no real.21

18
TILLIER, Bertrand. Tardi, de l'Histoire au feuilleton. Sociétés & Représentations, 2010/1 (n°
29), p. 7-24. Na apresentação que escreve à obra de Tardi, Jean Vautrin, autor do romance,
faz referência indireta ao gênero folhetim ao afirmar, sobre sua intenção ao escrever “O grito do
povo”: “Eu quis embarcar o leitor no labirinto das ruas daquele 18 de março de 1871 e fazê-lo
circular numa Paris misteriosa como a de Victor Hugo, social como a de Eugène Sue e
fervilhante como a Londres de Charles Dickens”.
19
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de
Janeiro: Eduerj, 2013, p. 34.
20
ISER, Wolfgang, O fictítio e o imaginário..., p. 223.
21
Ainda que essa discussão deva muito a uma teoria do ficcional derivada de Iser, me sirvo
também da distinção proposta por Jacques Aumont entre “efeito de realidade” e “efeito do real”.
Segundo Aumont, o “efeito de realidade designa, pois, o efeito produzido no espectador pelo
conjunto de índices de analogia em uma imagem representativa (quadro, foto ou filme,
indiferentemente). (...) O efeito de realidade será mais ou menos completo, mais ou menos
garantido, conforme a imagem respeito convenções de natureza plenamente histórica”. Já o
“efeito do real (...) designa assim o fato de que, na base de um efeito de realidade suposto
Tempo e espaço da revolta
Mas a obra de Tardi é transgressora também ao ficcionalizar o passado
por meio de uma narrativa tida ainda como menor, os quadrinhos, mesmo que
em um de seus gêneros considerado artística e narrativamente mais complexo,
a graphic novel. Arte que incorpora e reinventa criativamente elementos da
literatura, do cinema, da pintura, da fotografia e do design, entre outros, as
histórias em quadrinhos se caracterizam também pelo seu caráter de “massa”.
Os quadrinhos pertencem à cultura industrial, e em grande medida esse
pertencimento – esse “pecado original”, nas palavras de Santiago García – é
condição fundamental para compreender seu funcionamento e alcance
principalmente nas sociedades urbanas contemporâneas. Embora seu
surgimento e popularização remontem ao século XIX, é com o aparecimento
das primeiras revistas, já nos de 1930, que as narrativas gráficas se
consolidam principalmente entre o público leitor mais jovem. O
desenvolvimento de uma produção serializada e a consolidação de um
“mercado de quadrinhos”, no entanto, coincide com o pós-guerra e a
solidificação de uma indústria cultural que criou novos e mais diversificados
mecanismos de circulação de seus produtos. Nesse mercado, os quadrinhos
gozam de uma condição privilegiada, pois sua circulação é facilitada pela
multiplicidade de linguagens e formatos com que se apresenta, lhe permitindo
circular igualmente por meios e suportes tão distintos como as páginas dos
jornais e a web, editoras mainstream como Marvel e DC e produções
alternativas e undergrounds.
À expansão mercadológica correspondeu outra, a narrativa. Embora o
termo graphic novel tenha se difundido principalmente a partir dos anos de
1970, seu aparecimento é anterior, remontando pelo menos às duas décadas
precedentes, embora em sentido distinto daquele que se popularizou,
principalmente, com o trabalho de Will Eisner, nos Estados Unidos. A sua
repercussão e consolidação mobilizou inclusive as duas grandes editoras
americanas, DC e Marvel, que ao longo dos anos de 1980 lançaram séries ou

suficientemente forte, o espectador induz um “julgamento de existência” sobre as figuras de


representação e atribui-lhes um referente no real. Ou seja, o espectador acredita, não que o
que vê é o real propriamente, mas, que o que vê existiu, ou pode existir, no real”. Cf.:
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993, pág. 112-113.
histórias com seus principais personagens – Batman e X-Men, por exemplo –
em formatos e com conteúdos diferenciados.22 Além de uma maior
complexidade visual os “romances gráficos” se diferenciam dos formatos mais
tradicionais, também, por uma nova e singular relação com o tempo, segundo
Català Domènech. Para o pesquisador espanhol, em um processo comparável
às mudanças na narrativa cinematográfica com a passagem dos rolos de curta
para os médias e longas metragens, novos experimentos formais e uma maior
densidade narrativa foram incrementados com a consolidação das graphic
novels: ao ampliarem o tempo da narração, elas permitiram igualmente uma
maior complexidade temática, denotada pelo acúmulo narrativo. De acordo
com Domènech: “Para que exista acumulação, densidade, é necessário poder
pensar de antemão um tempo amplo. (...) Isso só acontece quando há espaço
para agrupar as cenas e criar sequências. O espaço da sequência é o do
tempo complexo, e portanto o da formação complexa das ideias e emoções”.23
Particularmente no caso de “O grito do povo”, essa relação com o tempo
se constrói de diferentes maneiras. Primeiramente, a própria extensão da obra,
que se desenvolve ao longo de quatro tomos – dois, na edição brasileira –,
duas centenas de páginas e dezenas de personagens e acontecimentos, reais
e fictícios – a proclamação da Comuna, as primeiras eleições, a queda da
Coluna de Vendôme –, que se cruzam ao longo da trama. Há ainda a
facticidade da Comuna, a delimitar sua abordagem episódica. Sobre ela, e
como para melhor balizá-la, Tardi introduz, principalmente na parte final de seu
romance – na edição brasileira, o segundo volume – uma série de signos que
pontuam temporalmente o seu avanço em direção ao desfecho trágico da
Comuna (“Sábado, 20 de maio”; “Quarta-feira, 24 de maio, 3h da manhã”;
“Sexta-feira, 26 de maio”), com a derrota militar para as tropas de Versalles.

22
GARCÍA, Santiago. A novela gráfica. São Paulo: Martins Fontes, 2012, pp. 17-38. Os
pesquisadores brasileiros Paulo Ramos e Diego Figueira problematizam o uso do termo
graphic novel, segundo eles imerso em uma “aparente zona nebulosa sobre do que realmente
se trata: uma forma moderna de como produzir quadrinhos, um gênero destes ou ainda algo
mais?”. Cf.: RAMOS, Paulo; FIGUEIRA, Diego. Graphic novel, narrativa gráfica, novela gráfica
ou romance gráfico? Terminologias distintas para um mesmo rótulo. In.: RAMOS, Paulo;
VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego. Quadrinhos e literatura: diálogos possíveis. São
Paulo: Criativo, 2014, pp. 185-207.
23
DOMÈNECH, Josep M. Català. A forma do real: introdução aos estudos visuais. São Paulo:
Summus, 2011, p. 232.
***

Em seu ensaio sobre a insurreição spartakista na Alemanha do começo


do século XX, Furio Jesi estabelece uma distinção entre as experiências da
revolução e da revolta. Segundo o pensador italiano, ela não se encontra em
seus fins – uma e outra podem ter como objetivo a tomada do poder, por
exemplo. O que as distingue, para Jesi, são diferentes experiências de tempo.
Se a revolução está “entera y deliberadamente inmersa en el tiempo histórico”,
a revolta “suspende el tiempo histórico e instaura de golpe un tiempo en el cual
todo lo que se cumple vale por sí mismo, independentemente de sus
consecuencias y de sus relaciones com el complejo de transitoriedade o de
perennidad en el que consiste la história”.24 Se a revolução é um complexo
estratégico de movimentos coordenados, orientados para o longo prazo e com
objetivos finais claros e definidos, com a revolta comprometem-se
deliberadamente homens e mulheres que desconhecem inteiramente as
estratégias em jogo, bem como as consequências de suas ações. Não há um
inimigo, mas adversários convertidos em inimigos a serem combatidos com “el
fusil, el bastón o la cadena de bicicleta”. E toda vitória, por momentânea e
parcial, se converte em um “acto justo y bueno para la defensa de la libertad, la
defensa de la propia clase, la hegemonía de la propria clase”.
Sem renunciar a sua individualidade, anulando-se no todo homogêneo
que compõem as massas revolucionárias, os insurrectos constroem ao longo
das batalhas novos sentidos de comunidade. Não apenas porque compartilham
armas, obstáculo e inimigos, mas também porque partilham os símbolos de sua
revolta, tais como o tempo, e o fazem imersos em uma espacialidade
igualmente específica e comum. Assim como com o tempo histórico, em sua
relação principalmente com o espaço da cidade, a revolta constrói uma relação
singular: no gesto insurrecional, nela inscreve-se o sentido de algo que é a um
só tempo próprio (porque a cidade pertence a quem nela vive) e comum
(porque ela também pertence aos “outros” que a habitam). Se “a la hora de la
revuelta, dejamos de estar solos en la ciudad”, é nas batalhas, ainda segundo
Jesi, que tal sentido é tecido. Ao eleger o espaço urbano como locus

24
JESI, Furio. Spartakus: simbologia de la revuelta. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2014, p.
63.
privilegiado, os revoltosos dele se apropriam “huyendo o avanzando en la
alternancia de los ataques”, uma experiência de reconhecimento que é também
a de partilha da cidade.25
Apesar do debate em torno à Comuna insistir, não sem certa razão, em
sua inserção na longa e rica tradição revolucionária do século XIX, “O grito do
povo” não hesita em figura-la como uma revolta. Nesse sentido, a própria
disposição cronológica dos acontecimentos, o desenrolar da trama marcado
pelo registro dos dias e meses (e às vezes também horas) no canto superior da
página, não cumpre uma função exatamente objetiva. Mesmo quando anotação
de eventos significativos na construção da experiência comunarda, tal registro
circunscreve a Comuna em uma temporalidade específica, uma historicidade
própria em sua relação seja com o passado ou o futuro, um e outro
atravessados pela emergência do presente. Nessas ocasiões quem fala é uma
voz onipresente, mas não onisciente: o narrador partilha com os communards
suas alegrias e expectativas, suas ansiedades e temores. As duas páginas que
narram, em quatro quadros, a eleição e instalação da Comuna em 26 de
março, por exemplo, registram em sucintas vinhetas sobrepostas às imagens
da multidão que desfila pelas ruas de Paris, que

O povo votou. Os Parisienses, agentes do triunfo de suas idéias, exprimiram nas urnas
seu desejo de uma mudança banhada de luz. Tudo corria bem com a Comuna. Ela
tinha as cores da liberdade e desabrochava no respeito aos mais necessitados. Ela se
exprimia pela boca da classe operária, que se tornava adulta. E, já que tudo devia ser
reaprendido, ela produziria um novo cidadão. Um juiz. Um resistente. Um agende sua
própria força. A instalação da Comuna em 26 de março não se deu conforme a
cerimônia e o fausto de um Antigo Regime. Ela foi republicana. Valente. Espontânea.
Sedutora como uma risada feliz. Não havia divisão em seu interior. Era uma explosão
vermelha. A Comuna era o agrupamento dos infelizes, dos banidos pela especulação,
dos explorados das fábricas, dos habitantes da periferia e da grande massa dos
26
pobres.

Nenhuma menção à ofensiva dos exércitos francês e prussiano que,


dali a algumas semanas, aniquilará a resistência parisiense e que, naqueles
dias, já estava a ser gestada por Thiers. As primeiras referências às batalhas
entre communards e as tropas de Versalles só aparecem no começo do
terceiro volume, quando o traço de Tardi ilustra as primeiras e violentas baixas
nas fileiras rebeldes. Sobrepondo as narrativas verbal e visual, lançando mão

25
JESI, Furio. Spartakus..., p. 70-73.
26
TARDI, Jacques. A esperança assassinada (vol. 2), pp. 112-113.
de documentos e registros históricos, ao mesmo tempo em que dá
continuidade à trama folhetinesca que atravessa todo o romance, ele introduz o
tema da derrocada final da Comuna por meio da reprodução de um
comunicado do Comitê de Salvação Pública datado de 22 de maio, onde se lê:
“Que todos os bons cidadãos se levantem! Às barricadas! O inimigo está em
nossos muros! Sem hesitação! Avante pela República, pela Comuna e pela
Liberdade! ÀS ARMAS!”.27 E embora nós, leitores, saibamos que esse será o
início do fim, a narrativa mantém em suspenso o desfecho: os communards
não sabem, não podem saber, que ao final os aguarda a derrota, a morte, a
prisão e o exílio.
É a da história a voz que narra o processo de construção da Comuna,
segundo Viviane Alary.28 À medida, no entanto, que a Comuna se aproxima de
seu fim, ela á paulatinamente substituída pela presença e a voz de
personagens comuns; ao contarem sua trajetória pelos escombros de uma
Paris tornada ruínas, dão testemunho do fim trágico da própria Comuna. 29
Como já ficou claro, a presença da “gente comum” não se restringe às páginas
e episódios derradeiros de “O grito do povo”. Rostos, anônimos ou não, de
personagens fictícios estão presentes em toda a trama, dividindo suas páginas
– como mencionado anteriormente – com os de Louise Michel, Vallès e
Courbet, entre outros, circulando pelas ruas da capital tornada comuna, se
apropriando de seus espaços e devolvendo à cidade seu caráter livre e
profano.30 A multidão e a cidade ocupam lugar central na trama, ambas
retratadas em tons que captam sua potência libertária: o olhar que Tardi lança
sobre a Comuna de Paris, não esqueçamos, é informado pela solidariedade e o
reconhecimento de sua pertinência passada e sua incômoda atualidade
presente. Por isso a estética e a história, ainda que assentadas sobre bases
relativamente “realistas”, não preconizam o distanciamento “objetivo” de seus

27
TARDI, Jacques. As horas sangrentas (vol. 3), p. 45.
28
ALARY, Viviane. Tardi, sa marque, son souffle..., p. 85.
29
É o personagem Ziquet quem afirma a Lili, em diálogo travado no interior de um dos
mausoléus do Père Lachaise, que a “Comuna está acabada”. Cf. TARDI, Jacques. O
testamento das ruínas (vol. 4), p. 158.
30
De acordo com Andrea Cavalletti, a partir de uma das notas de Benjamin nas “Passagens” –
mas que repercute também o conceito de revolta já presente em Jesi –, se “a classe e suas
lutas exigem uma ordem temporal completamente nova”, este novo tempo “muda também
completamente o espaço”. Cf.: CAVALLETTI, Andrea. Classe: uma ideia política sob o signo de
Walter Benjamin. Lisboa: Antígona, 2010, pp. 127-128.
personagens. Ele não pretende, em relação ao passado, tomá-lo como coisa
morta para simplesmente explicá-lo. A intenção é fazer aparecer as potências
libertárias de uma experiência única como a da Comuna, desenclausurar e
liberar aquilo que nela ainda nos é contemporâneo, notadamente a urgência da
revolta contra toda forma de opressão.
Analisando as fotografias dos communards mortos e ainda insepultos,
expostos em seus caixões logo após a retomada de Paris pelas forças da
ordem, Didi-Huberman nos chama a atenção para o risco de nos enganarmos
com essas imagens se as tomarmos a partir da intenção primeira que tiveram,
as autoridades francesas, ao registrá-las. Se o objetivo era, com elas, tornar
perene a impotência da Comuna ao enfrentar o Estado e seu aparato bélico, o
historiador francês afirma, a partir delas, que “su potencia no cesa cuando
fracasa su acceso al poder. Es lo que les pasa a los comuneros muertos em
1871: su revolución fracasó, sin duda, pero su comunidad sigue afirmándose
con vigor hasta en la reunión – indeleble en nuestra memoria – de esos doce
ataúdes encuadrados por el fotógrafo”.31 O último quadro de “O grito do povo”
reitera essa potência. Nele, braços erguidos, Lili e Ziquet, sobreviventes das
batalhas e do massacre comandado por Thiers, respondem à “pacificação” de
Paris e a vitória da repressão estatal: “Você sabe o que disse Blanqui?” “NEM
DEUS! NEM MESTRE!”.

In.: FREITAS, Artur; GRUNER, Clóvis; REIS, Paulo; KAMINSKI, Rosane;


HONESKO; Vinícius (orgs.). Imagem, narrativa e subversão. São Paulo:
Intermeios, 2016, pp. 145-160.

31
DIDI-HUBERMAN, Georges. Pueblos expuestos, pueblos figurantes. Buenos Aires:
Manantial, 2014, p. 101.

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