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PARA ALÉM DO ENSINO RELIGIOSO: AS PRÁTICAS RELIGIOSAS

CATÓLICAS NO INTERIOR DA ESCOLA

Rosana Areal de Carvalho


(rosanaarealdecarvalho@gmail.com)
Karla Karoline Pereira
(karlakarolinep@yahoo.com.br)
Janaína Maria de Souza
(janainafds88@yahoo.com.br)
Wanessa Costa Rodrigues
(vanicosta@hotmail.com)
Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP

Palavras chaves: cultura escolar, práticas religiosas, grupo escolar.

De início foi realizada como de costume a oração da mestra i

Damas de Ferro foi a denominação que demos a algumas diretoras do Grupo Escolar
“Dom Benevides”, de Mariana, Minas Gerais. A escolha do termo recaiu, justamente,
pelas semelhanças com a “dama de ferro” original – Margareth Tchatcher, Primeira
Ministra da Inglaterra entre 1979 e 1990. As diretoras em destaque ocuparam o cargo
por mais de 10 anos e conduziram a escola com pulso firme. Além disso, não nos
escapou o contexto minerador, tão característico da industrialização inglesa como da
exploração extrativa na região das minas na qual se localiza Mariana. Assim, discutimos
neste trabalho um recorte temático e cronológico do projeto Damas de Ferro: as
diretoras do Grupo Escolar “Dom Benevides”.

O Grupo Escolar de Mariana foi inaugurado em agosto de 1909, num prédio alugado,
próximo à Câmara Municipal. Em muitos aspectos se assemelha à trajetória de outros
grupos escolares criados em Minas Gerais após a Reforma João Pinheiro, de 1906. Em
sintonia com o contexto republicano e a missão que se atribuía à educação e, por sua
vez, ao arcabouço institucional que era o grupo escolar, este, de Mariana recebeu, em
1914, a denominação de Grupo Escolar Dr. Gomes Freire, em homenagem ao
republicano marianense mais proeminente durante as três primeiras décadas do século
XX no município.

Gomes Henrique Freire de Andrade formou-se em Medicina no Rio de Janeiro, em


1888. Filho da terra, a ela voltou ocupando funções políticas e profissionais, sendo
professor da Escola de Farmácia de Ouro Preto e médico da Companhia Inglesa de
Mineração, sediada em Mariana. Era líder do grupo republicano marianense, amigo
pessoal de João Pinheiro, deputado constituinte em 1891 e agente executivo municipal
nas primeiras décadas do século XX.

As forças políticas continuaram se fazendo presente no Grupo Escolar, levando a uma


terceira denominação, em 1931: Grupo Escolar “Dom Benevides”. Nos anos 70, com a
extensão do nível escolar, passou a chamar-se Escola Estadual Dom Benevides,
permanecendo em atividade até hoje.

Da pesquisa inicial que buscou compreender o contexto e as condições de instalação do


Grupo Escolar de Mariana, articulando a política republicana com as especificidades
locais, outras se desdobraram, em especial aquelas em torno dos sujeitos escolares. Foi
assim que chegamos a Gomes Henrique Freire de Andrade e José Ignácio de Sousa,
primeiro diretor do Grupo Escolar de Mariana. Estimuladas por apreender mais da
trajetória e da cultura escolar produzida no interior desta instituição, nos propusemos a
avançar no tempo, de forma a produzir um quadro mais compreensivo da trajetória
dessa escola. Também estávamos instigadas pelo perfil e pelo conceito da escola após
cem anos de atuação. Algumas observações sobre a escola atual e outras em
funcionamento na cidade nos despertaram a atenção para a presença, para a “influência”
da direção na própria escola. Assim, articulando sujeitos e tempo histórico, nos
detivemos em duas diretoras, no momento: Abigail Dias e Darcy Dias.

A proposta assumida pelo projeto “Damas de Ferro: as diretoras do Grupo Escolar


Dom Benevides” é compreender a atuação dessas diretoras, buscando identificar
indícios da “experiência” desses sujeitos na conformação das práticas escolares. As
respectivas gestões possuem traços peculiares e despertam atenção para além do longo
período em que estiveram na direção do Grupo Escolar. Considerando que a direção de
uma instituição escolar se reveste de um conteúdo político, seja hoje ou no século
passado, e que tal instituição se insere num contexto de forças políticas, econômicas,
sociais, enfim, culturais, é de suma importância compreender as possíveis dificuldades
pragmáticas com as quais tenha que lidar no exercício de sua função. A análise dos
contextos políticos em três níveis – municipal, estadual e nacional – e as implicações
das mudanças políticas e sociais no interior da escola nos permitiram verificar como
esta, enquanto instituição social, é afetada pelas vicissitudes do ambiente macro social.

Neste trabalho, estamos apresentando resultados parciais de um recorte temático sobre o


período da gestão de Abigail Dias, que tomou posse como professora no Grupo Escolar
“Dom Benevides” em 1929 e ocupou o cargo de diretora entre 1946 e 1958. Durante
esse período, o contexto político nacional experimentou mudanças significativas,
destacando um processo turbulento no nível do executivo federal que levou Getúlio
Vargas ao poder; seguido de anos de governo autoritário e, por último, um processo de
redemocratização. Nesse interregno, para além dos desdobramentos do jogo político,
identificamos um movimento de modernização do Estado brasileiro, dando ensejo à
organização e ampliação da máquina administrativa, incluindo, finalmente, a criação do
Ministério da Educação e Saúde, que teve como primeiro ministro, o mineiro Francisco
Campos. No campo pedagógico, as décadas de atuação de Abigail Dias coincidiram
com o movimento escolanovista.

Interessa-nos, portanto, verificar, por um lado, em que medida as modificações no


cenário político nacional tiveram implicações diretas nas atividades fins deste
estabelecimento de ensino em particular, mas que, certamente, nos possibilitam inferir
sobre as dificuldades que se impuseram a tantos outros diretores escolares e professores.
Por outro lado, nos ocupamos em identificar as “marcas” impregnadas por essa gestão
na cultura dessa instituição.

O corpus documental priorizado para esta análise, constituído pelas atas, nos impõe uma
leitura rigorosa e um cuidado extremo na manipulação das informações ali contidas. Em
princípio, há que reconhecer que o registro dessas reuniões nada mais é do que uma
representação dos debates em torno dos temas tratados. As atas são manuscritas, o que
nos permite identificar a autoria das mesmas a partir das assinaturas dos presentes à
reunião. Portanto, compreendendo que nas atas está registrado o que se quer mostrar,
muitas perguntas emergem. Por que se quer mostrar isso? O quê se quer esconder? Por
quê? Quais eram as intenções daquela que redigiu a ata? Que relações tinham com o
poder personificado na diretora? Ou, a redação da ata era apenas o cumprimento de uma
incumbência? Ou ainda: algo premeditado, obedecendo a um jogo e não meramente
circunstancial?
Em geral, a redação de uma ata não é feita simultaneamente à reunião. Faz-se um
rascunho com o qual se opera gramatical e politicamente. Não há dúvidas que existe
uma seleção criteriosa que antecede o registro oficial. Entender esses critérios é um
desafio quase intransponível para o pesquisador. Porém, esses desafios são os que
movem o investigador, o pesquisador. Não haveria ciência se não houvesse as
perguntas!

As reuniões de professores, ou melhor, das professoras, pois o corpo docente era


absolutamente feminino, se dividiam entre regulamentares e extraordinárias, em geral,
aos sábados. Investigamos as atas das reuniões ocorridas entre 1946 e 1956, sob a
direção – atenta? rigorosa? – de Abigail Dias.

Nestas atas observamos o registro do discurso da diretora em torno, principalmente, de


três pontos: orientações sobre a prática educativa; questões de ordem administrativa que
julgava importantes para o corpo docente na condição de funcionários públicos,
incluindo práticas associativas; e a formação moral, historicamente associada à
orientação religiosa e fartamente visível nas práticas religiosas instituídas no cotidiano
escolar e estendidas ao corpo discente.

Abigail Dias nasceu na cidade de Mariana no dia 05 de janeiro de 1905. Filha de uma
família como tantas outras desse município que traziam consigo um forte traço da
sociedade mineira e, mais especificamente, marianense – a religiosidade. Estudou no
Colégio Providência, em Mariana, instituição que é referência regional no âmbito do
ensino confessional. Este colégio foi fundado em 1849 ii, no contexto do Ato Adicional
de 1834, caracterizado por um movimento de descentralização que delegava às
assembleias provinciais a responsabilidade pela estruturação e investimento nos
empreendimentos educacionais no nível primário e secundário.

Com o diploma de normalista obtido no curso oferecido pelo Colégio Providência,


Abigail Dias passou a exercer a função de professora primária. No Grupo Escolar “Dr.
Gomes Freire” (“Dom Benevides” a partir de 1931) tomou posse em 15 de abril de
1929. Durante o período em que esteve no exercício do magistério, assumiu por
diversas vezes a direção do Grupo em caráter de substituição. Possivelmente pelo
destaque que alcançou no exercício de suas funções docentes e pela experiência nas
funções administrativas, Abigail foi indicada para o Curso de Aperfeiçoamento
oferecido pelo Instituto de Educação de Minas Gerais, em Belo Horizonte.
Tal curso foi criado em 1929, durante o governo de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada
e tinha como objetivo formar técnicos para atuarem na operacionalização da Reforma
Francisco Campos (1927) dotando as escolas públicas mineiras de recursos humanos
qualificados. O ingresso era condicionado à indicação e também a um rigoroso processo
de seleção. Se o curso pressupunha uma seleção rigorosa, podemos inferir que Abigail
possuía potencial intelectual suficiente para garantir seu ingresso na Escola de
Aperfeiçoamento.

De acordo com a legislação em vigor, “Os diretores de escolas públicas primária serão
sempre escolhidos mediante concurso de provas entre professores diplomados, com
exercício anterior de três anos, pelo menos, e, de preferência, entre os que hajam
recebido curso de administração escolar.” (Lei Orgânica do Ensino Primário. Decreto-
Lei no. 8.529, de 2 de Janeiro de 1946. Cap. IV, Art. 36)

Como diretora, Abigail galgou um elevado nível de respeitabilidade, tanto entre os


professores como diante da comunidade. Além de uma formação profissional em
instituições de referência na formação docente, seu trânsito no ambiente político,
religioso e educacional da cidade de Mariana, garantiu a perenidade de sua atuação
como diretora. Os trechos a seguir demonstram com clareza como Abigail estabelecera
laços sociais favoráveis à sua atuação:

Usando da palavra a Senhora Diretora falou-nos sobre a festa da


criança dizendo-nos que este ano ela pretendia melhorar da melhor
forma possível a sôpa para as crianças durante a semana e que no
último dia ofereceria uma bôa merenda. Para isto ela encarregou duas
professoras para irem a Prefeitura pedir ao Sr. Prefeito para cooperar
em alguma quantia na merenda e no pagamento de um filme
instrutivo. (Ata da 5ª reunião regulamentar de sábado, 2º semestre de
1953, 10 de outubro de 1953).
A senhora Diretora usando da palavra deu início a esta reunião com as
orações habituais. Em seguida falou-nos sobre um convite que o
Grupo Escolar havia recebido do Snr. Monsenhor Oscar de Oliveira
para assistir a sua sagração Episcopal no dia 22 de Agosto. (Ata da 4ª
reunião regulamentar de sábado, 31 de Julho de 1954).
As sociabilidades, estabelecidas por Abigail no âmbito da cidade, garantiram que ela
alcançasse a legitimação de sua imagem como autoridade em assuntos educacionais e,
consequentemente, seu reconhecimento como diretora competente e de “pulso firme”.
Para além de sua imagem pessoal, é possível identificar a contribuição de sua postura no
conceito do próprio estabelecimento de ensino, tido como o melhor Grupo Escolar da
região.
Alguns autores, tais como Faria Filho (2000) e outros estudiosos do tema, defendem que
o êxito dos grupos escolares dependia, em grande parte, da direção, tanto no que se
refere às determinações legais para a função, como com relação à atuação da mesma. Os
diretores eram a alma desses estabelecimentos; dependia de sua boa vontade, de seus
esforços, de sua competência, de seu patriotismo. Era sua a responsabilidade com a
divisão regular dos trabalhos escolares, a fiscalização permanente, a uniformidade na
execução dos programas, o estímulo aos professores e alunos, a ordem, a disciplina e a
higiene. Sem a atuação eficiente e eficaz do diretor não seria possível a realização, pelos
grupos escolares, da missão atribuída pelo programa republicano.

Portanto, a reconstituição da trajetória de formação e da atuação profissional de Abigail


Dias pareceu-nos indispensável para compreender sobre quais elementos se havia
constituído o espaço de experiência social da diretora e, portanto, sua própria identidade
pessoal e profissional.

Da leitura das atas, despontam inúmeros temas passíveis de serem explorados no


tocante à conformação da cultura escolar. Como nosso interesse tem sido identificar as
marcas da presença de Abigail Dias à frente da direção da escola, forjamos a imagem da
“permeabilidade” do muro escolar. Como esse elemento que, para além do seu
significado físico, de segurança, de delimitação de um espaço, atua como uma
membrana permeável, permitindo o trânsito entre o está fora e dentro do espaço
escolar? Para realizar esse exercício reflexivo, destacamos o aspecto religioso. No
âmbito extramuros, a religião está presente na formação do município, cujas raízes
históricas se encontram entrelaçadas com a presença da Igreja Católica. Relação
embrionária, edificada desde os tempos coloniais, impressa na paisagem urbana e na
alma dos marianenses, a vida religiosa tinge a vida citadina. Intramuros, a prática
religiosa está muito presente nos registros das atas, nas ordens da diretora, nas
atividades da escola.

Segundo os dados do Censo de 1940, a população brasileira era de 41.236.315


habitantes, dos quais 39.177.880 eram católicos, ou seja, 95%. Em Minas Gerais, a
população total era de 6.736.416 habitantes, sendo 97,6% católicos (6.572.947
habitantes), portanto, um percentual superior ao registrado para o país. Sem medo de
errar, podemos afirmar que em Mariana o percentual de católicos era maior do que a
média estadual.
Como se fazia presente o ensino religioso nessa escola foi nossa primeira pergunta. A
partir desta, outras questões foram surgindo, inspiradas ora pela documentação ora pela
contemporaneidade, estando esta delimitada pela LDB de 1996 e pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais. Daí formulou-se nossa hipótese: o ensino religioso, conteúdo
escolar presente em inúmeras legislações cercado por uma constante tensão, não se
restringia ao espaço da sala de aula, como as demais disciplinas. Estava presente nas
atividades escolares, no ambiente, nas práticas docentes; por vezes como que
camuflado, disfarçado, entre tudo o mais que compunha o cotidiano escolar; outras
vezes franca e propositalmente explícito. E como isso chegava à escola? A diretora, em
função do seu poder impunha essas práticas? Havia alguma oposição a isso? Como era a
relação entre política e religião na cidade de Mariana?

Para entender o contexto escolar que substanciava os registros encontrados nas atas,
estabelecemos um diálogo com a legislação pertinente, com destaque para a Lei
Orgânica do Ensino Primário (Decreto-Lei no. 8.529, de 02 de Janeiro de 1946) e a
Constituição dos Estados Unidos do Brasil (De 18 de Setembro de1946). No âmbito
estadual não localizamos nenhuma legislação específica para o mesmo período. Outras
fontes impressas também foram pesquisadas, como a Revista do Ensino, publicada pela
Secretaria de Estado de Educação, além de outros impressos, como órgãos oficiais de
divulgação – Diário de Minas e periódicos correntes. A leitura dessa documentação
atendia a dois objetivos: formar um panorama amplo das questões que estavam postas
para o período em estudo – política, economia, sociedade, cultura em geral –
compreendendo a relação interdependente com a educação, nosso objetivo específico.

Desse modo, o contexto escolar analisado se apresentava como espaço onde as práticas
sociais predominantes eram as da Igreja Católica, contrariando, inclusive as prescrições
legais da época. Por exemplo: “as orações de costume” com as quais se iniciavam as
reuniões de professoras; as datas para a coroação em consonância com a agenda da
paróquia e a comemoração de outras datas festivas da religião católica.

A frequência com que o tema ensino religioso e a relação entre educação e religião
aparece nos artigos da Revista do Ensino, lida regularmente durante as reuniões dos
professores, indicam que tais práticas estavam disseminadas por todo o Estado de Minas
Gerais, quiçá em todo o Brasil, certamente em graus variados. Em especial para este
periódico, é importante nos determos na análise de alguns artigos publicados durante o
período de atuação da diretora em questão, que expressam a centralidade da questão
religiosa nas deliberações envolvendo as práticas pedagógicas.

A Revista de Ensino, periódico de instrução pedagógica, lido e trazido nas reuniões


como referencial para atualização das práticas pedagógicas, pautava suas publicações
não apenas na perspectiva de transmitir aos professores o avanço científico nas
pesquisas educacionais. No auge de suas publicações, a Revista do Ensino dá pistas da
maciça associação das práticas pedagógicas, bem como dos estabelecimentos públicos
de ensino, ao cristianismo católico, em um período de intenso debate sobre a legalidade
da presença de uma religião específica nas instituições educacionais não confessionais.
Artigos com títulos enfáticos e conteúdos apologéticos proclamavam a religião católica
como a legítima mediadora das questões escolares.

Assim, é comum nos depararmos com títulos como “Deus no coração da escola” (Raul
de Almeida Costa, 1946. Do gabinete do Secretário da Educação); “O catecismo e a
vida social” (Padre A. Negromonte, 19[?]) ou ainda, “A ação católica e os bons hábitos
na escola primária” (Salvador Pires Pontes, 1951. Do Departamento Nacional da
Criança). Esses exemplos demonstram a clara opção pela doutrina católica para fornecer
as balizas necessárias para a regulação do comportamento moral a ser estimulado nos
estudantes.

Em se tratando do cenário nacional, recordamos que dentre as Leis Orgânicas da


Educação Brasileira, dadas a efeito a partir de 1942, sobre os diversos níveis de ensino
existentes, temos Decreto-Lei nº 8.529, de 02 de Janeiro de 1946 – Lei Orgânica do
Ensino Primário. No seu primeiro artigo, quanto às finalidades do ensino primário,
indicava: “proporcionar a iniciação cultural que a todos conduza ao conhecimento da
vida nacional, e ao exercício das virtudes morais e cívicas que a mantenham e a
engrandeçam, dentro de elevado espírito de Naturalidade humana”.

Continuando sobre as prescrições contidas nessa legislação, no art. 10 do Capítulo IV –


De orientação geral do ensino primário fundamental, informa que esse nível de ensino
deveria atender aos seguintes princípios:

desenvolver-se de modo sistemático e graduado, segundo, os


interesses naturais da infância; ter como fundamento didático as
atividades dos próprios discípulos; apoiar-se nas realidades do
ambiente em que se exerça, para que sirva à sua melhor compreensão
e mais proveitosa utilização; desenvolver o espírito de cooperação e o
sentimento de solidariedade social; revelar as tendências e aptidões
dos alunos, cooperando para o seu melhor aproveitamento no sentido
do bem estar individual e coletivo; inspirar-se, em todos os momentos,
no sentimento da unidade nacional e da fraternidade humana.
Quanto ao currículo a ser desenvolvido no ensino primário – prescrito no Capítulo VI –,
determina que o ensino primário obedecesse a programas mínimos, estabelecidos pelos
estudos realizados pelos técnicos do Ministério da Educação e da Saúde; acrescidos de
temas de caráter regional, respeitando os princípios gerais do decreto-lei. Do Art. 13,
apesar de uma escrita truncada, é possível apreender que era lícito aos estabelecimentos
de ensino oferecer o ensino religioso, desde que este não constituísse uma ocupação
obrigatória dos professores e que também não fosse exigida a frequência obrigatória
para os alunos.

Em correspondência ao período democrático inaugurado em 1946, foi promulgada, em


18 de setembro, uma nova Carta Magna. O artigo 168, do Capítulo II – Da Educação e
da Cultura –, desta Constituição, determina os princípios a serem seguidos pela
legislação educacional e consta, no inciso V: “o ensino religioso constitui disciplina dos
horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com
a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu
representante legal ou responsável”.

Pode se observar que a legislação é ampla: o ensino religioso é facultativo, ou seja, não
obrigatório para as escolas oficiais, as escolas públicas. Em havendo, deveria ministrado
conforme a confissão religiosa do aluno. Porém, quais as possibilidades reais de
aplicação dessa lei? Quais as possibilidades logísticas de que pudesse ser praticada? O
que as atas deixam transparecer é que, na prática, não havia espaço para outra profissão
de fé que não a católica. A ligação entre o ensino religioso e o catolicismo é
incontestável, ainda que, a despeito da legislação, como é explicitado no trecho que
segue:

Quanto ao Catecismo, precisa ser ensinado. Fui ao Seminário e pedi


ao Pe. Superior para providenciar um professor pois o mês de Maria
está se aproximando e com ele o tempo das crianças fazerem a 1ª
Comunhão. Se não conseguirmos isto, vamos nós mesmos ensinar o
catecismo. (Ata da 1ª reunião regulamentar de sábado, 1º semestre de
1955, 12 de Março de 1955)
Na realidade do Grupo Escolar “Dom Benevides”, com base nos dados censitários e na
própria história da cidade, podemos reconhecer que a Igreja Católica exercia uma
autoridade muito próximo de um poder hegemônico. Associado a isso, temos a estreita
relação de Abigail Dias com a Igreja Católica, incluindo a proximidade com a
hierarquia desta instituição sediada em Mariana. Podemos inferir, portanto, que o ensino
religioso ministrado nesta escola era católico e, dificilmente, contestado.

Faria Filho (1998, p.98), ao refletir sobre o uso da legislação como corpus documental,
alerta para as dimensões da lei. Decorre daí as possibilidades de interrelacionar, no
campo educativo, várias dimensões do fazer pedagógico, às quais, atravessadas pela
legislação, vão desde a política educacional até as práticas da sala de aula.
Acrescentamos: para além das práticas nas salas de aula, o espaço escolar, no estudo em
questão, se mostra com alto teor de absorção das práticas religiosas, como veremos a
seguir.

Iniciando a sessão invocamos o Espírito Santo (...) e a Jesus Cristo (...) para o
desempenho, o melhor possível de nossa dificultíssima missão – de educar e instruir iii

Entendemos, portanto, a cultura escolar como uma elaboração que surge na tensão entre
a legislação e a concepção de educação da diretora, alimentada pelos costumes que
sustentavam tais hábitos sociais. Isso que chamamos de cultura escolar está entrelaçada
com a ideia de cultura apresentada por Julia (2001), que nos mostra que a cultura
escolar é um conjunto de normas decisivas na escolha dos conhecimentos a serem
ensinados, as condutas e práticas essenciais à incorporação desses conhecimentos no
âmbito escolar.

Fica evidente que a função de diretora, revestida de poder, se apresentava nas reuniões
convocando as demais docentes a essa prática religiosa, dando-a como uma prática
comum a todas, algo que as unificava. A frequência dessas práticas religiosas no Grupo
Escolar “Dom Benevides”, especialmente na época da diretora Abigail Dias, pode ser
considerada, para além de indicar o pertencimento a uma comunidade cristã, o esforço
em “proclamar pessoalmente as verdades da fé e ser instruído sobre as verdades de sua
religião”. (JULIA, 2001, p.25)

Diante da evidência da experiência religiosa dentro do estabelecimento de ensino,


podemos concluir que esse lugar não é somente de aprendizagem de saberes, mas de
inculcação de comportamentos e habitus, que transcendem a formação cristã e
acadêmica, ou seja, com o objetivo de tornar os alunos cidadãos moldados a um tipo
específico de sociedade. (JULIA, 2001.)
Interessa-nos perceber como a cultura escolar que se cristaliza em torno das práticas
religiosas encontra, no seu processo, situações de tensão ou de conformação.
Aparentemente, ao analisar as atas das reuniões, respeitando as limitações deste tipo de
documento, parece-nos haver, por parte da comunidade escolar, um acatamento pleno
das determinações da diretora Abigail Dias no que concerne à conciliação da religião
católica com as atividades pedagógicas do Grupo.

Edward P. Thompson (1998, p.17) adverte sobre circunstância semelhante: “E na


verdade o próprio termo “cultura” como invocação confortável de um consenso, pode
distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições
existentes dentro do conjunto.” Entretanto, não identificamos indícios de resistência às
práticas religiosas tratadas como atividades pedagógicas do GE Dom Benevides. Porém,
numa das atas, a diretora reforça o convite, ou convoca, para as professoras
frequentarem a missa, pois do contrário, a ausência seria notada pelos alunos. Como
segue,

Usando da palavra, a senhora Diretora pediu o comparecimento das


professoras para uma missa às 7 horas, na Igreja de S. Francisco, em
comemoração ao 6º Congresso Eucarístico, realizado em Belém,
esperando que todas comparecessem, porque, também o aluno observa
quando a professora está presente. (Ata da 4ª reunião regulamentar de
sábado, 2º semestre de 1953, 08 de agosto de 1953).
Desse trecho podemos perguntar se havia mesmo um deslize por parte das professoras
ou o nível de exigência da diretora ultrapassava a dedicação religiosa das professoras?
Segundo Taborda, “como movimento a cultura traz a possibilidade de reinvenção, como
também a perspectiva de conformação” (2008, P.153). No que tange ao nosso objeto, é
mais palpável a presença de elementos que nos indique uma conformação a ordem
estabelecida. Não no sentido de alienação, mas sim, como reflexo da presença massiva
da Igreja Católica em todos os âmbitos da sociedade marianense.

Parece-nos, importante, não reduzir a realidade a uma “lógica da conspiração”,


considerando que havia aquiescência por parte do corpo docente e, também, por parte
das famílias que consentiam com a participação de seus filhos em atividades religiosas
dentro e fora da escola. Invariavelmente podemos encontrar, nas atas dos meses de
maio, referências às celebrações religiosas características desse período: as coroações de
Maria. Os trechos abaixo ilustram a movimentação dessas práticas no interior da escola,
denunciando a relação estreita com a Igreja, envolvendo o corpo docente e discente.
Comemorações do mês de maio, designando a parte da coroação as
professoras de canto. Todas as sextas feiras deste mês a hora cívica
será substituída pela coroação. No dia 30 será então a nossa coroação
feita na catedral, conforme determinação do RevnioSnr Cº Oscar. (Ata
da 2ª reunião regulamentar de sábado, 1º semestre de 1948, 24
de abril de 1948.)

Para a festa do dia 30, os andares e altar serão enfeitados como no ano
anterior, porém toda a despesa dividida para as professoras. (Ata da 3ª
reunião regulamentar de sábado, 1º semestre de 1948, 15 de maio de
1948.)

Para a coroação serão escolhidas as meninas da 1ª comunhão, isto é,


as que possuem boa voz. (Ata da 3ª reunião regulamentar de sábado,
1º semestre de 1948, 15 de maio de 1948.)
As práticas religiosas desenvolvidas pelo conjunto escolar implicavam, ainda, em
despesas para o corpo docente, como expressa a ata de 15 de maio de 1948. Outro
elemento que destacamos é que tais atividades extrapolavam os muros da escola:
planejadas e ensaiadas no interior da escola, sua realização se dava em outros espaços,
ou seja, no próprio espaço religioso.

Revnimo Cº Dr. Oscar de Oliveira marcou a coroação dos alunos deste


Grupo para o dia 29 do corrente, festa da Doutrina Cristã. O altar e os
andares serão enfeitados com flores naturais. (Ata da 4ª reunião
regulamentar de sábado, do 1º semestre de 1949, 07 de maio de 1949.)
Além do custo financeiro repartido entre as professoras, havia um sobre-trabalho para a
realização dessas atividades.

Em confeccionarmos enfeites para a ornamentação da Igreja onde


realizar-se-ia a coroação do nosso Grupo Escolar, encerrando assim o
mês de Maria. (Ata da 3ª reunião regulamentar de sábado 1º semestre
de 1952, 17 de maio de 1952)
A participação dos alunos nas celebrações e demais práticas de cunho religioso também
é exigência constante das atas. Na Ata da 1 a. Reunião regulamentar de sábado, do 1 o.
Semestre de 1948, em 14 de fevereiro, dentre os avisos gerais e as admoestações da
diretora quanto às atividades escolares bem como quanto à conduta das professoras e
dos alunos, ressalta: “exigir dos alunos ordem e disciplina no catecismo”. Na ata de 07
de maio de 1949 citada anteriormente, a diretora instrui que os alunos devem
comparecer “uniformizados na procissão”.
Se a educação não pode deixar de ser religiosa, a escola leiga que, por princípio,
ignora a religião, é essencialmente incapaz de educar. Tal é o veredicto irrecusável de
toda sã pedagogiaiv

Retomando a imagem da permeabilidade possível aos muros escolares, compreendemos


que o contexto externo à escola, marcado por uma acentuada religiosidade, pressionava
o muro de forma a torná-lo mais permeável. Sendo que tal movimento transpassava os
portões da escola por meio das experiências dos sujeitos que frequentavam aquele
espaço. Por parte da diretora, associado a uma posição de poder diretor; no corpo
docente, pressionado pelo poder local e externo – dos próprios hábitos, dos laços sociais
e familiares e, da mesma forma, alunos e funcionários.

Assim, compreendemos que para traçar tal quadro foi importante conhecer os dois lados
do muro:

um programa possível para a história das culturas escolares a partir


dos pressupostos de Thompson deveria levar em consideração o
movimento interno de cada unidade escolar analisada em relação ao
contexto social que extrapola os seus muros, por sua vez relacionado
com uma lógica de sistema que preside a organização escolar em
termos locais, nacionais e internacionais. (TABORDA, 2008, p.154)
Considerando que os objetos problematizados nessa pesquisa estão inseridos no campo
da história da educação e, portanto, na história social estamos entendendo cultura como
tensão e experiência, como resultado das relações entre sujeitos no tempo e espaço, de
acordo com as concepções teóricas de Edward Palmer Thompson. Da mesma forma,
trabalhamos na perspectiva dos costumes enquanto elementos constitutivos da cultura.
Experiência, para Thompson, é

uma categoria que por mais imperfeita que seja, é indispensável ao


historiador, já que compreende a resposta mental e emocional, seja de
um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-
relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de
acontecimento.” (THOMPSON, 1981, p.15).
A experiência é, portanto, a ferramenta que localiza o sujeito histórico num determinado
processo histórico; fazendo com que cada um seja inscrito em seu tempo e, daí,
estabelecendo a chave que permite a compreensão mais aproximada do passado.
Cabível a todos, a experiência funciona como uma reguladora para as dicotomias
presentes entre a determinação e a apropriação, entre a estrutura e o processo, entre a
singularidade e a generalização. É, portanto “aquilo que pode estabelecer a conexão
entre o processo histórico e a ação humana individual”. (TABORDA, 2008, p.157)
Marcus Aurélio Taborda, nesse mesmo trabalho no qual discute a propriedade no uso
dos conceitos thompsonianos na escrita da história da educação, lança um desafio:
“Aquilo que parte da historiografia da educação localiza na ação perversa de um estado
demiurgo e dos seus grupos de sustentação, não contaria com o consórcio ativo dos
agentes escolares para o seu sucesso?” (2008, p.158) Foi exatamente esta a nossa
percepção sobre a atuação da diretora Abigail Dias e do corpo docente. A prática
religiosa não foi efetivada senão com o consentimento e operacionalização de ambos,
em conjunto.

Este trabalho procurou mostrar como o ensino religioso ultrapassa os limites de uma
disciplina escolar, ocupando outros tempos e espaços no cotidiano da escola. Esta
afirmativa aponta para o diálogo com as fontes e sintetiza os resultados do trabalho, ou
seja, que o ensino religioso ultrapassa os limites da disciplina para se constituir numa
prática escolar.

A Lei Orgânica do Ensino Primário, no capítulo V, Das instituições complementares à


escola, prescrevia no art. 37, como responsabilidade da escola,

promover, entre os alunos, a organização e o desenvolvimento de


instituições que tenham por fim a prática de atividades educativas; e,
assim, também, entre as famílias dos alunos, e pessoas de boa
vontade, instituições de caráter assistencial e cultural, que estendam
sobre o meio a influência educativa da escola.
Observamos que a apropriação das tradições e manifestações culturais nas quais os
sujeitos estão imersos e as experiências daí advindas são reproduzidas nos mais
variados espaços sociais, como é o caso da escola, à revelia, inclusive, da legislação,
conforme apontamos.

FONTES
BRASIL. Lei Orgânica do Ensino Primário. 1946.
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. 1946.
BRASIL. IBGE. Censo de 1940.
Livro de Atas do Acervo da Escola Estadual “Dom Benevides” (n. 36 e 46)
PONTES, Salvador Pires. A ação católica e os bons hábitos na escola primária. Revista
do Ensino da Secretaria de Educação. Ano XIX – Nº 200, Julho-Dezembro, 1951.
COSTA, Raul de Almeida. Deus no coração da escola. Revista do Ensino da Secretaria
de Educação. Ano XIV, 176/83, 1946.
NEGROMONTE, Álvaro. O catecismo e a vida social. Revista do Ensino da Secretaria
de Educação. Ano XXVI, 19[?].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e
urbana em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: UPF, 2000.
___________________. A legislação escolar como fonte para a História da Educação:
uma tentativa de interpretação. IN: _______________ (org.). Educação, modernidade e
civilização. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. Pp.89-125.
FRANCA, Leonel. Ensino religioso e ensino leigo: aspectos psicológicos, sociais e
jurídicos. Rio de Janeiro: Schimidt, 1931.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de
História da Educação, Campinas, n. 1, p. 9-44, 2001.
MARIANO, Jorge Luís Mazzeo. Educação e religião: a escola pública na Primeira
República. Revista Eletrônica Cadernos de História, vol. IX, ano 5, n. 1, Julho de 2010.
TABORDA DE OLIVEIRA, Marcus Aurélio. O pensamento de E. P. Thompson para a
pesquisa em História da Educação – culturas escolares, currículo e educação do corpo. Revista
Brasileira de História da Educação n° 16 jan./abr. 2008.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
________________. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

i
Ata d 4a. Reunião regulamentar de sábado, 02 de agosto de 1947. Identificamos duas orações que usam
esse título. Uma delas é de autoria de Gabriela Mistral, publicada no Jornal O Povo, em 07 de janeiro de
1937. Outra oração da Mestra é atribuída a Afrânio Peixoto. Na documentação que utilizamos não há
indicação de qual seja.
ii
MARIANO, 2010, p.47.
iii
Ata da 1a. Reunião regulamentar de sábado, 12 de marco de 1949.
iv
FRANCA,1931, p. 25.

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