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Damas de Ferro foi a denominação que demos a algumas diretoras do Grupo Escolar
“Dom Benevides”, de Mariana, Minas Gerais. A escolha do termo recaiu, justamente,
pelas semelhanças com a “dama de ferro” original – Margareth Tchatcher, Primeira
Ministra da Inglaterra entre 1979 e 1990. As diretoras em destaque ocuparam o cargo
por mais de 10 anos e conduziram a escola com pulso firme. Além disso, não nos
escapou o contexto minerador, tão característico da industrialização inglesa como da
exploração extrativa na região das minas na qual se localiza Mariana. Assim, discutimos
neste trabalho um recorte temático e cronológico do projeto Damas de Ferro: as
diretoras do Grupo Escolar “Dom Benevides”.
O Grupo Escolar de Mariana foi inaugurado em agosto de 1909, num prédio alugado,
próximo à Câmara Municipal. Em muitos aspectos se assemelha à trajetória de outros
grupos escolares criados em Minas Gerais após a Reforma João Pinheiro, de 1906. Em
sintonia com o contexto republicano e a missão que se atribuía à educação e, por sua
vez, ao arcabouço institucional que era o grupo escolar, este, de Mariana recebeu, em
1914, a denominação de Grupo Escolar Dr. Gomes Freire, em homenagem ao
republicano marianense mais proeminente durante as três primeiras décadas do século
XX no município.
O corpus documental priorizado para esta análise, constituído pelas atas, nos impõe uma
leitura rigorosa e um cuidado extremo na manipulação das informações ali contidas. Em
princípio, há que reconhecer que o registro dessas reuniões nada mais é do que uma
representação dos debates em torno dos temas tratados. As atas são manuscritas, o que
nos permite identificar a autoria das mesmas a partir das assinaturas dos presentes à
reunião. Portanto, compreendendo que nas atas está registrado o que se quer mostrar,
muitas perguntas emergem. Por que se quer mostrar isso? O quê se quer esconder? Por
quê? Quais eram as intenções daquela que redigiu a ata? Que relações tinham com o
poder personificado na diretora? Ou, a redação da ata era apenas o cumprimento de uma
incumbência? Ou ainda: algo premeditado, obedecendo a um jogo e não meramente
circunstancial?
Em geral, a redação de uma ata não é feita simultaneamente à reunião. Faz-se um
rascunho com o qual se opera gramatical e politicamente. Não há dúvidas que existe
uma seleção criteriosa que antecede o registro oficial. Entender esses critérios é um
desafio quase intransponível para o pesquisador. Porém, esses desafios são os que
movem o investigador, o pesquisador. Não haveria ciência se não houvesse as
perguntas!
Abigail Dias nasceu na cidade de Mariana no dia 05 de janeiro de 1905. Filha de uma
família como tantas outras desse município que traziam consigo um forte traço da
sociedade mineira e, mais especificamente, marianense – a religiosidade. Estudou no
Colégio Providência, em Mariana, instituição que é referência regional no âmbito do
ensino confessional. Este colégio foi fundado em 1849 ii, no contexto do Ato Adicional
de 1834, caracterizado por um movimento de descentralização que delegava às
assembleias provinciais a responsabilidade pela estruturação e investimento nos
empreendimentos educacionais no nível primário e secundário.
De acordo com a legislação em vigor, “Os diretores de escolas públicas primária serão
sempre escolhidos mediante concurso de provas entre professores diplomados, com
exercício anterior de três anos, pelo menos, e, de preferência, entre os que hajam
recebido curso de administração escolar.” (Lei Orgânica do Ensino Primário. Decreto-
Lei no. 8.529, de 2 de Janeiro de 1946. Cap. IV, Art. 36)
Para entender o contexto escolar que substanciava os registros encontrados nas atas,
estabelecemos um diálogo com a legislação pertinente, com destaque para a Lei
Orgânica do Ensino Primário (Decreto-Lei no. 8.529, de 02 de Janeiro de 1946) e a
Constituição dos Estados Unidos do Brasil (De 18 de Setembro de1946). No âmbito
estadual não localizamos nenhuma legislação específica para o mesmo período. Outras
fontes impressas também foram pesquisadas, como a Revista do Ensino, publicada pela
Secretaria de Estado de Educação, além de outros impressos, como órgãos oficiais de
divulgação – Diário de Minas e periódicos correntes. A leitura dessa documentação
atendia a dois objetivos: formar um panorama amplo das questões que estavam postas
para o período em estudo – política, economia, sociedade, cultura em geral –
compreendendo a relação interdependente com a educação, nosso objetivo específico.
Desse modo, o contexto escolar analisado se apresentava como espaço onde as práticas
sociais predominantes eram as da Igreja Católica, contrariando, inclusive as prescrições
legais da época. Por exemplo: “as orações de costume” com as quais se iniciavam as
reuniões de professoras; as datas para a coroação em consonância com a agenda da
paróquia e a comemoração de outras datas festivas da religião católica.
A frequência com que o tema ensino religioso e a relação entre educação e religião
aparece nos artigos da Revista do Ensino, lida regularmente durante as reuniões dos
professores, indicam que tais práticas estavam disseminadas por todo o Estado de Minas
Gerais, quiçá em todo o Brasil, certamente em graus variados. Em especial para este
periódico, é importante nos determos na análise de alguns artigos publicados durante o
período de atuação da diretora em questão, que expressam a centralidade da questão
religiosa nas deliberações envolvendo as práticas pedagógicas.
Assim, é comum nos depararmos com títulos como “Deus no coração da escola” (Raul
de Almeida Costa, 1946. Do gabinete do Secretário da Educação); “O catecismo e a
vida social” (Padre A. Negromonte, 19[?]) ou ainda, “A ação católica e os bons hábitos
na escola primária” (Salvador Pires Pontes, 1951. Do Departamento Nacional da
Criança). Esses exemplos demonstram a clara opção pela doutrina católica para fornecer
as balizas necessárias para a regulação do comportamento moral a ser estimulado nos
estudantes.
Pode se observar que a legislação é ampla: o ensino religioso é facultativo, ou seja, não
obrigatório para as escolas oficiais, as escolas públicas. Em havendo, deveria ministrado
conforme a confissão religiosa do aluno. Porém, quais as possibilidades reais de
aplicação dessa lei? Quais as possibilidades logísticas de que pudesse ser praticada? O
que as atas deixam transparecer é que, na prática, não havia espaço para outra profissão
de fé que não a católica. A ligação entre o ensino religioso e o catolicismo é
incontestável, ainda que, a despeito da legislação, como é explicitado no trecho que
segue:
Faria Filho (1998, p.98), ao refletir sobre o uso da legislação como corpus documental,
alerta para as dimensões da lei. Decorre daí as possibilidades de interrelacionar, no
campo educativo, várias dimensões do fazer pedagógico, às quais, atravessadas pela
legislação, vão desde a política educacional até as práticas da sala de aula.
Acrescentamos: para além das práticas nas salas de aula, o espaço escolar, no estudo em
questão, se mostra com alto teor de absorção das práticas religiosas, como veremos a
seguir.
Iniciando a sessão invocamos o Espírito Santo (...) e a Jesus Cristo (...) para o
desempenho, o melhor possível de nossa dificultíssima missão – de educar e instruir iii
Entendemos, portanto, a cultura escolar como uma elaboração que surge na tensão entre
a legislação e a concepção de educação da diretora, alimentada pelos costumes que
sustentavam tais hábitos sociais. Isso que chamamos de cultura escolar está entrelaçada
com a ideia de cultura apresentada por Julia (2001), que nos mostra que a cultura
escolar é um conjunto de normas decisivas na escolha dos conhecimentos a serem
ensinados, as condutas e práticas essenciais à incorporação desses conhecimentos no
âmbito escolar.
Fica evidente que a função de diretora, revestida de poder, se apresentava nas reuniões
convocando as demais docentes a essa prática religiosa, dando-a como uma prática
comum a todas, algo que as unificava. A frequência dessas práticas religiosas no Grupo
Escolar “Dom Benevides”, especialmente na época da diretora Abigail Dias, pode ser
considerada, para além de indicar o pertencimento a uma comunidade cristã, o esforço
em “proclamar pessoalmente as verdades da fé e ser instruído sobre as verdades de sua
religião”. (JULIA, 2001, p.25)
Para a festa do dia 30, os andares e altar serão enfeitados como no ano
anterior, porém toda a despesa dividida para as professoras. (Ata da 3ª
reunião regulamentar de sábado, 1º semestre de 1948, 15 de maio de
1948.)
Assim, compreendemos que para traçar tal quadro foi importante conhecer os dois lados
do muro:
Este trabalho procurou mostrar como o ensino religioso ultrapassa os limites de uma
disciplina escolar, ocupando outros tempos e espaços no cotidiano da escola. Esta
afirmativa aponta para o diálogo com as fontes e sintetiza os resultados do trabalho, ou
seja, que o ensino religioso ultrapassa os limites da disciplina para se constituir numa
prática escolar.
FONTES
BRASIL. Lei Orgânica do Ensino Primário. 1946.
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. 1946.
BRASIL. IBGE. Censo de 1940.
Livro de Atas do Acervo da Escola Estadual “Dom Benevides” (n. 36 e 46)
PONTES, Salvador Pires. A ação católica e os bons hábitos na escola primária. Revista
do Ensino da Secretaria de Educação. Ano XIX – Nº 200, Julho-Dezembro, 1951.
COSTA, Raul de Almeida. Deus no coração da escola. Revista do Ensino da Secretaria
de Educação. Ano XIV, 176/83, 1946.
NEGROMONTE, Álvaro. O catecismo e a vida social. Revista do Ensino da Secretaria
de Educação. Ano XXVI, 19[?].
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e
urbana em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: UPF, 2000.
___________________. A legislação escolar como fonte para a História da Educação:
uma tentativa de interpretação. IN: _______________ (org.). Educação, modernidade e
civilização. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. Pp.89-125.
FRANCA, Leonel. Ensino religioso e ensino leigo: aspectos psicológicos, sociais e
jurídicos. Rio de Janeiro: Schimidt, 1931.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de
História da Educação, Campinas, n. 1, p. 9-44, 2001.
MARIANO, Jorge Luís Mazzeo. Educação e religião: a escola pública na Primeira
República. Revista Eletrônica Cadernos de História, vol. IX, ano 5, n. 1, Julho de 2010.
TABORDA DE OLIVEIRA, Marcus Aurélio. O pensamento de E. P. Thompson para a
pesquisa em História da Educação – culturas escolares, currículo e educação do corpo. Revista
Brasileira de História da Educação n° 16 jan./abr. 2008.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
________________. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
i
Ata d 4a. Reunião regulamentar de sábado, 02 de agosto de 1947. Identificamos duas orações que usam
esse título. Uma delas é de autoria de Gabriela Mistral, publicada no Jornal O Povo, em 07 de janeiro de
1937. Outra oração da Mestra é atribuída a Afrânio Peixoto. Na documentação que utilizamos não há
indicação de qual seja.
ii
MARIANO, 2010, p.47.
iii
Ata da 1a. Reunião regulamentar de sábado, 12 de marco de 1949.
iv
FRANCA,1931, p. 25.