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JUSTIÇA
Jorge
Barbosa
Setembro
de
2010
h t t p : / / w e b . m e . c o m / j b a r b o 0 0 /
Introdução
Todos
desejam
um
mundo
mais
justo.
Mas,
em
nome
de
quê?
Da
igualdade?
Do
reconhecimento?
Da
autonomia?
De
facto,
os
princípios
de
justiça
são
contraditórios:
por
exemplo,
será
necessário
privilegiar
a
igualdade
ou
o
mérito?
Existirão
desigualdades
justas?
Será
possível
uma
real
igualdade
de
oportunidades?
As
respostas
a
estas
questões
formam
uma
cacofonia,
por
vezes
difícil
de
suportar.
Quem
não
se
lembra
de
insuportáveis
injustiças,
brutais
ou
não,
vividas
durante
a
infância?
Um
caso
que
ficou
famoso
é
o
de
Jean-‐Jacques
Rousseau,
erradamente
acusado
de
ter
partido
um
pente
de
Mlle
Lambercier.
Cinquenta
anos
depois,
ainda
sentiu
raiva
disso,
ao
escrever
as
suas
Confessions.
Num
corredor
da
escola,
em
casa,
vítimas
de
colegas
ou
de
adultos,
todas
as
crianças
conheceram
as
suas
injustiças
e
a
cólera
que
elas
geraram.
Será
que
nos
curamos
disso?
Não
é
nada
seguro
que
essa
cura
seja
completa.
Há
sempre
uma
criança
em
nós
que
se
revolta,
apesar
da
desilusão
e
do
realismo
que
são
o
triste
privilégio
do
avançar
dos
anos.
A
injustiça
é
uma
questão
básica
que
não
exige
raciocínios
rebuscados,
nem
grandes
construções
teóricas
para
termos
consciência
dela.
Há
injustiças
gritantes,
incontestáveis.
No
entanto,
a
determinação
do
que
é
justo
ou
não
divide
mais
as
opiniões
das
pessoas
do
que
as
põe
de
acordo.
É
o
caso,
por
exemplo,
da
encantadora
questão
dos
impostos.
Será
desejável
reduzir
as
cargas
fiscais
e
limitar
a
redistribuição
social?
Ou
será
mais
justo
manter
ou
aumentar
as
cargas
fiscais
para
beneficiar
os
mais
desfavorecidos
da
nossa
sociedade?
A
questão
põe
os
interesses
particulares
a
falar
uns
com
os
outros,
sem
grande
proveito
para
um
entendimento
comum.
Os
empresários
consideram,
por
via
de
regra,
injusta
uma
carga
fiscal
pesada,
e
não
concebem
como
aceitáveis
os
argumentos
daqueles
que,
com
reduzidos
rendimentos,
clamam
por
mais
ajudas
sociais
para
remediar
desigualdades
insuportáveis.
Todas
as
pessoas
querem
mais
justiça,
mas,
num
terreno
desta
natureza,
parece
bem
difícil
que
possa
ser
construído
um
consenso.
Teremos,
então,
de
nos
contentar
com
a
habitual
cacofonia
que
os
problemas
da
justiça
geram
nos
debates
públicos?
Desigualdades
Justas?
O
sociólogo
francês
François
Dubet,
com
os
seus
colaboradores,
decidiu
levar
a
cabo
um
inquérito
sobre
as
injustiças
no
trabalho
junto
de
um
painel
muito
alargado
de
profissões
–
quadros
de
empresa,
auxiliares,
operários
de
construção
civil,
operadores
de
caixa1,
etc.
Todos,
ou
quase
todos
se
queixam
de
injustiças,
de
que
são
objecto
ou
testemunhas.
É
o
caso
da
vendedora,
originária
do
Togo,
vítima
de
discriminação,
do
funcionário
chocado
por
ver
um
colega,
incompetente
e
pouco
empenhado,
receber
o
mesmo
salário,
da
auxiliar
de
cuidados
de
saúde
que
se
queixa
do
desprezo
de
um
sistema
hospitalar
exageradamente
hierarquizado...
Nem
todos
os
trabalhadores
defendem
a
igualdade
–
longe
disso
–
e,
em
geral,
reconhecem
que
há
desigualdades
justas.
Há
quem
considere
normal
ter
um
salário
menos
generoso,
por
não
ter
um
diploma
de
ensino
superior.
Há
quem
considere
justo
o
estatuto
dos
funcionários
públicos
porque
acedem
a
ele
por
concurso.
Mas
praticamente
todos
apontam
o
dedo
acusador
às
promoções
por
cunhas,
castas
ou
privilégios,
e
à
exploração
e
dominação.
Por
outro
lado,
as
vantagens
dos
outros
são
criticadas,
enquanto
as
próprias
são
julgadas
legítimas.
Como
encontrar
um
sentido
em
semelhante
quebra-‐cabeças?
Por
trás
da
diversidade
das
situações
e
das
explicações
invocadas,
F.
Dubet
salienta
três
princípios
de
justiça
apresentados
pelos
trabalhadores
inquiridos:
• A
igualdade;
• O
reconhecimento
do
mérito;
• O
respeito
pela
autonomia.
Com
efeito,
o
que
indicia
a
denúncia
do
racismo,
do
sexismo,
do
desprezo,
que
não
seja
a
falta
de
igualdade?
Por
seu
turno,
o
não
reconhecimento
do
esforço
contraria
o
princípio
do
mérito.
E
é,
a
título
do
direito
à
autonomia,
que
são
criticados
o
excesso
de
stress,
a
alienação,
a
falta
de
margem
de
manobra
e
de
responsabilidade.
“Quando
deixamos
falar
as
pessoas,
apercebemo-nos
de
que
elas
mobilizam
categorias
filosóficas
muito
elaboradas
para
sustentar
as
suas
afirmações,
como
se
toda
a
gente
tivesse
lido
Aristóteles,
Kant
ou
John
Rawls”2.
No
entanto,
ao
contrário
dos
filósofos,
que
procuram
articular
os
diferentes
princípios
de
justiça,
os
trabalhadores
inquiridos
opõem-‐nos
uns
aos
outros,
sem
procurar
hierarquizá-‐los
ou
compaginá-‐los.
Toda
a
gente
quer
mais
justiça,
mas
de
acordo
com
princípios
diferentes.
Isto
não
quer
dizer
sequer
que
um
certo
indivíduo
defenda
sempre
o
princípio
de
igualdade
e
que
um
outro
o
do
mérito.
Cada
um
de
nós
faz
apelo
a
diferentes
1
F. Dubet
e
al.,
L’Expérience
des
inégalités
au
travail,
Seuil,
2006.
2
Ver
« La
complainte
des
travailleurs,
entretien
avec
F. Dubet »,
Sciences
Humaines,
n° 179,
fevereiro 2007.
concepções
de
justiça
que,
por
vezes,
são
mesmo
contraditórias
entre
si,
mas
coerentes
com
o
contexto
em
que
cada
uma
é
defendida.
Há,
assim,
uma
tensão
inevitável
entre
igualdade
e
mérito,
pois
é
em
nome
do
mérito
que
são
distribuídas
certas
desigualdades,
por
exemplo,
de
salário.
Para
aqueles
que
defendem
a
igualdade,
a
concorrência
dos
méritos
favorece
o
individualismo
desenfreado,
o
egoísmo,
a
corrida
ao
dinheiro,
um
sistema
que
favorece
aqueles
que
tiveram
sorte
na
vida.
Raciocínio
inverso
têm
aqueles
que,
pelo
contrário,
criticam
os
estatutos
abusivos
que
não
reconhecem
o
talento
e
o
esforço
de
cada
um
.
Para
já,
parece,
então,
impossível
renunciar,
nas
nossas
sociedades,
quer
à
igualdade
quer
ao
mérito.
Se
queremos,
portanto,
que
o
termo
justiça
faça
algum
sentido,
temos
necessariamente
de
articular
os
princípios
que
a
definem.
Em
1971,
um
filósofo
americano,
até
então
pouco
conhecido,
decide
com
temeridade
aceitar
este
desafio.
Chama-‐se
John
Rawls
e
assinou
um
livro,
cujo
título
evidencia
toda
a
sua
ambição:
Teoria
da
Justiça3.
Partindo
do
pressuposto
de
que
a
justiça
deve
mandar
calar
os
interesses
particulares,
Rawls
inspira-‐
se
na
teoria
dos
jogos
para
imaginar
uma
ficção:
uma
posição
original,
em
que
os
indivíduos
são
colocados
sob
um
“véu
de
ignorância”,
isto
é,
numa
situação
em
que
não
soubessem
nada
a
respeito
da
sua
condição
pessoal
–
estatuto
social,
sexo,
religião,
aptidões
físicas,
intelectuais
ou
psicológicas.
Que
princípios
de
justiça
seriam
escolhidos
nesta
situação?
Na
verdade,
o
que
ele
propõe
é
muito
idêntico
à
própria
alegoria
da
justiça,
que
a
representa
com
uma
figura
de
traços
femininos,
com
os
olhos
vendados
e
segurando
uma
balança.
Segundo
Rawls,
a
justiça
deve,
então,
ser
imparcial
na
definição
dos
seus
próprios
princípios
e,
portanto,
também
na
sua
execução,
e
respeitar
os
interesses
pessoais,
que
ele
distingue
dos
interesses
particulares
que
correspondem,
estes,
aos
interesses
pessoais
que
estão
de
acordo
com
a
situação
específica
que
cada
um
ocupa
na
sociedade.
Colocados
sob
um
véu
de
ignorância,
os
indivíduos
segundo
Rawls
seriam
levados
a
definir,
por
consenso,
dois
princípios:
um
“princípio
de
liberdade”
e
um
“princípio
de
diferença”.
4
Fonte:
C. Baudelot,
colóquio
em
l’ENS
« Démocratie,
classes
préparatoires
et
grandes
écoles ».
Ano
dos
dados:
Maio 2003.
Ver
www.inegalites.fr/spip.php?article162&id_mot=83