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SUMÁRIO: E XPOSIÇÃO S INTÉTICA DA U NIDADE (33) T EMA : H ERMENÊUTICA F ILOSÓFICA C ONTEMPORÂNEA (34) 1. H ERMENÊUTICA M ETODOLÓGICA OU E PISTE -
MOLÓGICA EM S CHLEIERMACHER E D ILTHEY (34) 2. H ERMENÊUTICA O NTOLÓGICA OU E XISTENCIAL EM H EIDEGGER E G ADAMER (39) 3. C ONTRIBUIÇÕES DE J EAN
P AUL S ARTRE E P AUL R ICOEUR (42) T EMA : H ERMENÊUTICA F ILOSÓFICA NA T EORIA DO C ONHECIMENTO (47) 1. O C ONHECIMENTO (47) 2. N ORMA , C ULTURA ,
V ALOR E S ENTIDO (55) 3. C ONHECIMENTO E I NTERPRETAÇÃO (58) 4. I NTERPRETAÇÃO E F ORMAÇÃO P ROFISSIONAL (62) R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS (66)
Evoluindo para a relação entre conhecimento e cultura, iremos demonstrar que todo
conhecimento é uma atividade interpretativa dos fatos, pela qual buscamos compreender os
acontecimentos e objetos da vida cotidiana e, através de uma análise cultural, atribuímos a estes
os padrões valorativos sociais vigentes. Neste contexto é que surgem a norma jurídica, como
disciplinadora desses padrões, e o Direito como estudo sistemático da norma, ambos essencialmente
vinculados à sociedade e à cultura.
Assim, para que você possa compreender melhor o nosso estudo, faz-se importante conhecer
quais são os objetivos desta unidade:
Objetivo
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Hermenêutica Jurídica
Então, Schleiermacher iniciou o trabalho de elaboração de uma teoria hermenêutica geral, que
não se limitasse a regras e procedimentos práticos de interpretação, mas que também e principalmente
demonstrasse as razões implícitas destes procedimentos, tornando a hermenêutica um estudo acerca
da compreensão em geral. Ou seja, em vez de perguntar “como” se interpreta um texto, ele pergunta
primeiramente o que significa interpretar e compreender e de que modo isso ocorre na nossa mente. Só
depois de esclarecidas estas questões fundamentais, deve-se partir para a parte prática da formação de
regras específicas de interpretação.
Importante
Assim, a atividade da hermenêutica não será mais determinada pelo objeto a ser
interpretado, mas pelas condições subjetivas daquele que faz a interpretação. Ele
desloca a hermenêutica de uma posição essencialmente técnica e científica para
um domínio filosófico argumentativo, relacionando-a com o fenômeno geral da
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Hermenêutica Jurídica
Processo Hermenêutico
apreende descobre
Como visto no esquema, entende-se deste modo que o processo hermenêutico pode ser
distinguido em duas etapas conjuntas e complementares: a interpretação do texto (falado
ou escrito) e a interpretação do seu conteúdo. À primeira vista, a apreensão dos signos e
símbolos linguísticos utilizados pelo autor, ou seja, o aspecto da literalidade; a segunda procura
descobrir o pensamento desenvolvido pelo autor ao produzir aquele texto, os processos mentais
envolvidos na sua produção. A primeira é a interpretação gramatical do texto; a segunda é a
interpretação da genialidade do autor do texto.
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Hermenêutica Jurídica
A ênfase na compreensão de produtos mentais individuais trouxe à tona, então, uma nova
preocupação: a hermenêutica psicológica. Deve-se notar, entretanto, que o tipo de conhecimento
psicológico em questão não se refere ao conhecimento de uma psicologia experimental, baseada em
leis do comportamento, mas de uma “psicologia descritiva” de acordo com a qual a mente, a sociedade
e os processos históricos são aspectos de um domínio psíquico geral. Esta nova visão do problema
hermenêutico teve grande importância na formação da ciência psicológica, até então vinculada à filosofia.
No que diz respeito ao Direito, afirma o Professor Glauco Magalhães (2004, p.34):
“Percebemos aqui um intenso psicologismo no método proposto. Isto repercutiu posteriormente
no Direito, através da ênfase exagerada dada à vontade do legislador como referencial necessário
à interpretação correta da lei (subjetivismo), ensino praticamente já superado pelo objetivismo de
caráter evolutivo e sociológico, o qual procura o sentido da norma jurídica na vontade nela objetivada
e que acompanha a dinamicidade dos fatos sociais.”
Afirma Dilthey que todas as manifestações humanas, e não apenas os textos escritos, fazem
parte de um grande contexto sócio-temporal, que nós chamamos de cultura. O grande empecilho para
que os estudos dos fenômenos humanos fossem considerados científicos era a falta de um método
adequado a eles, já que estes estudos não se enquadravam no método científico clássico, baseado na lógica
matemática, como acontecia com as ciências da natureza. As teorias de Hegel, demonstrando a existência
de uma racionalidade humana própria presente na histórica (razão histórica), já haviam modificado o
conceito antigo de história como simples relato de fatos.
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Hermenêutica Jurídica
Dilthey
Explicação Compreensão
Exemplo: Exemplo:
Evoluindo
Ciências
Ciências
Humanas ou
Naturais
Sociais
Como visto nesse outro esquema, observamos que com o resultado das suas teorias,
Dilthey foi o primeiro pensador a propor a divisão do conhecimento científico entre
ciências da natureza e ciências do espírito, que se distinguem por um método analítico-
esclarecedor (as primeiras) e um procedimento de compreensão descritiva (as segundas).
O ato de conhecimento próprio das ciências naturais é a explicação, enquanto o ato de
conhecimento próprio das ciências do espírito é a compreensão. Esclarecemos por meio de
processos intelectuais, mas compreendemos pela cooperação de todas as forças sentimentais
na apreensão, pelo mergulhar das forças sentimentais no objeto.
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Hermenêutica Jurídica
Uma das ideias que Dilthey procura deixar claro é que tanto o mundo externo afeta o conteúdo
da nossa mente quanto é afetado por ela. Neste sentido, tanto o conhecimento quanto as estruturas
objetivas do mundo (social, cultural, linguística) devem ser concebidos como um processo histórico, e o
papel da filosofia e das ciências do espírito deveria ser o de refletir sobre os pressupostos que estão na
base do desenvolvimento histórico da consciência, de analisar os dados da consciência humana ou, em
outros termos, iluminar o processo da vivência. Isto porque, por um lado, a experiência humana é sempre
formada por vivências, isto é, por experiências de caráter histórico, e, por outro, toda ciência, assim como
toda filosofia, deve se referir à experiência. Foi desta maneira que Dilthey procurou justificar a história
como ciência, sendo considerado o pai do historicismo.
De acordo com Dilthey, a perspectiva na qual a pergunta pela cientificidade da história é feita
é inteiramente distinta daquela na qual se pergunta pela possibilidade da ciência natural. A diferença
está no seguinte: a ciência natural trata de um mundo exterior ao homem e não produzido por ele, daí
que o grande problema da verdade científica é a adequação entre os conceitos e os fatos do mundo
natural. Dilthey chama a atenção para o fato da existência de dois mundos: um mundo “dado”, ou seja,
que não foi feito pelo ser humano, e outro mundo “construído”, ou seja, produzido pelo homem, seja
modificando os aspectos do mundo dado, seja constituído de conteúdos que o próprio homem produz.
Importante
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Hermenêutica Jurídica
Heidegger discordava dos dois mestres anteriores, entendendo que o objetivo da hermenêutica
não era pesquisar regras e métodos para a compreensão, mas aprofundar a própria compreensão, o
compreender em si mesmo, qual a mudança interior que ocorre no ser humano quando ele compreende
algo. Ou seja, ele entendia que a compreensão está diretamente ligada à existência, porque é na vida
concreta que nós a desenvolvemos. Compreender as coisas não é algo que o ser humano pode fazer ou
deixar de fazer, ao contrário, o ato da compreensão faz parte da própria essência do homem, porque é
com base na compreensão que o homem se forma como ser humano e constitui a sociedade.
Assim, a compreensão não trata apenas de regras para melhor entendimento de falas ou textos, mas
por ela é possível penetrar na essência mais profunda do ser humano. Isso significa que a hermenêutica,
para Heidegger, não é apenas uma metodologia de conhecimento, mas um esforço de compreensão do
próprio ser humano. Desse modo, Heidegger transformou a hermenêutica em um estudo ontológico,
relacionado com a existência das pessoas.
Reflexão
Vamos tentar explicar melhor a teoria de Heidegger. Segundo ele, quem quer
compreender um texto não está interessado apenas em técnicas ou regras, mas
antes de tudo o leitor faz certo “projeto” de leitura. Quem lê um texto tem sempre
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Hermenêutica Jurídica
Com isso, Heideger quer significar que toda compreensão que passamos a ter de
algo é antecedida de certa pré-compreensão (pré-opiniões ou pré-conceitos) acerca
daquilo, de modo que o compreender seria exatamente confirmar ou desfazer essa
pré-compreensão. Seria, então, o caso de perguntarmos a Heidegger de onde vêm
essas nossas pré-opiniões ou pré-conceitos, que formam a pré-compreensão?
Esse cenário fornece as expectativas dos nossos conhecimentos futuros e nos prepara para
a aquisição desses novos conhecimentos. A cultura, como produção coletiva dessa racionalidade
humana, é uma forma de manifestação do Ser no mundo, através da existência humana. Desse
modo, em cada compreensão de algo haverá sempre, indiretamente, certa compreensão deste Ser,
pois a compreensão manifesta não apenas o sentido racional presente no objeto conhecido, mas vai
além e alcança também o nível da racionalidade geral, que é o Ser.
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Hermenêutica Jurídica
Evoluindo mais nesta linha de pensamento, Gadamer irá dizer que a compreensão de um texto é
resultado de certo diálogo entre o intérprete e o próprio texto. Não interessa tanto o autor do texto, mas
o próprio texto em si mesmo, o qual tem uma objetividade que permite a busca de um sentido no seu
conteúdo, já que tem existência autônoma. Desse modo, ao mesmo tempo em que o texto “responde” as
perguntas do intérprete, essas respostas se incorporam ao seu campo mental, suscitando novas perguntas
que, ao serem respondidas, novamente se incorporam ao patrimônio mental do intérprete, formando
uma espécie de movimento circular contínuo e interminável.
Importante
Cada vez que nós lemos um texto e colocamos nele a nossa interpretação, estamos colaborando
para que esse horizonte compreensivo se torne cada vez mais ampliado. O resultado disso é que o círculo
hermenêutico não tem a figura de um círculo geométrico, mas de uma espiral, na medida em que a
cada nova leitura e compreensão o seu sentido vai se manifestando em novas formas, de acordo com a
mentalidade dos intérpretes e o momento cultural em que este ato é realizado.
Assim entendida, a compreensão de um texto não seria um simples ato intelectual, racional
que ocorre na mente do intérprete, mas tem uma implicação com a situação concreta em que
isso se realiza, ou seja, a compreensão de um texto não se esgota no ato mental, mas tem sempre
uma aplicação prática no nosso mundo existencial. Essa quase identidade entre interpretação e
aplicação, defendida por Gadamer, veio esclarecer que a atividade própria da hermenêutica não é
apenas uma ação teórica, mas um conjunto integrado de ações teóricas e práticas, uma forma de
atuação da atividade mental na vida concreta da pessoa.
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Hermenêutica Jurídica
Essas teorias de Heidegger e Gadamer acerca da compreensão e da sua estrutura circular, aplicadas
à hermenêutica jurídica, conduzem à necessidade de que, na interpretação legislativa, devemos ter sempre
em referência o texto constitucional e, num plano mais distante, o todo sociocultural. A interpretação
legislativa se faz no horizonte constitucional, onde se delineiam os parâmetros culturais da sociedade que
esta constituição representa. Os princípios constitucionais sempre enunciam valores que devem receber
atribuição de peso correspondente à intensidade com que são vivenciados socialmente.
Desse modo, visto que os valores que interessam ao Direito são valores intersubjetivos, há a
pressuposição de que o jurista, membro da sociedade, terá uma pré-compreensão dos valores culturais
semelhante àquela que tem o restante da sociedade, o que o tornaria um autêntico intérprete dos
sentimentos e anseios da sociedade que ele representa. É nesse entendimento que a Constituição se torna
o ponto de encontro entre o Direito e a Sociedade, reproduzindo, na esfera jurídica, a circularidade do
movimento hermenêutico da filosofia.
Exemplo
Partindo dessa ideia, Sartre critica o que ele chama de visão técnica do
mundo, em função da qual as coisas, antes de existirem, já tiveram sua
essência definida. Por exemplo: ao fabricar uma cadeira, o marceneiro se
serve de certo modelo mental, o qual ele concretiza num objeto. Desde a
antiguidade, esta mesma visão técnica foi aplicada ao homem, de acordo com
a noção de Deus criador, ou seja, os seres humanos foram criados de acordo
com uma ideia que existia na mente de Deus.
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Hermenêutica Jurídica
Sartre combate esse entendimento e defende o existencialismo ateu, dizendo que não existe um
Deus criador, mas o homem é quem cria a si mesmo através de suas decisões e ações durante a sua vida.
Portanto, no homem, sua existência vem antes da sua essência. O homem, de princípio, não é nada; só
depois ele vai se definindo e, por fim, será o que ele fez de si mesmo. O homem é o que ele faz de si
mesmo: este é o princípio do existencialismo.
Importante
Diferentemente de uma pedra ou uma mesa, que já estão definidos, o homem é
aquele ser que se projeta para o futuro e tem consciência disso. Nada existe antes
deste projeto. Isto quer dizer que o homem é responsável por aquilo que ele é,
responsabilidade total pela sua existência. Ser responsável por si é uma tarefa que
não se esgota no indivíduo, porque esta responsabilidade de si se estende a todos
os outros homens. Ao criarmos a nós mesmos, estamos simultaneamente criando
uma imagem ideal de homem tal como julgamos que todo homem deva ser, isto é,
um modelo que se aplica a cada um de nós e a todos também.
Isto significa que a nossa responsabilidade é muito maior do que a que temos por nós
mesmos, porque as nossas escolhas engajam a humanidade inteira. Por exemplo, ao decidir casar-
se, o homem está se engajando numa instituição representativa de uma forma da vida humana sob
o modelo da monogamia. Se sou cristão ou ateu, a minha escolha me engaja numa linha histórica
de compromisso que envolve toda a humanidade.
É verdade que nem todas as pessoas têm essa consciência e essa preocupação, mas Sartre diz que,
muitas vezes, essas pessoas mascaram a responsabilidade para não encará-la de frente. Tais pessoas não
podem ter paz na consciência, porque vivem na mentira e o fato de mentir implica atribuir à mentira um
valor universal, que ela não tem.
Reflexão
O homem se constrói num processo que dura toda a vida, através das decisões que
ele toma no decorrer da sua existência, ao escolher essas ou aquelas situações que
lhe são postas. A escolha é sempre possível, o que não é possível é não escolher.
Eu devo escolher sempre e devo estar ciente de que, mesmo não escolhendo,
assim mesmo eu escolho. Esta escolha/invenção também acontece no campo da
moralidade, onde não há regras prévias. O homem se constrói fazendo a sua
própria moral. É a liberdade como fundamento de todos os valores. Mas isso não
significa fazer o que se quer, porque a nossa liberdade depende integralmente da
liberdade dos outros, assim como a liberdade dos outros depende da nossa.
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Hermenêutica Jurídica
Em outras palavras, isso significa que a vida não tem um sentido a priori. A vida em si mesma não
é nada, é quem vive que deve dar sentido à vida. E o valor nada mais é do que este sentido escolhido.
Assim se explica porque o existencialismo é um humanismo.
As consequências dessa teoria para a hermenêutica são partem da afirmação de que não existe nada
‘a priori’, ou seja, desvinculado das condições concretas da existência. Isso significa que os significados que
as coisas têm estão relacionados com um tempo e um lugar determinados, não existindo ideias absolutas
e desligadas do momento histórico. Com o passar do tempo, as coisas vão mudando de significado, os
valores vão se transformando, e assim a interpretação é dinâmica e está sempre se modificando também.
Ao construir a sua essência no decorrer de sua existência, o homem constrói também os diversos
significados das coisas que ele realiza, isso se reflete nos campos da moral, da filosofia, da vida social, de
modo que não existe um sentido permanente e imutável, mas tudo está em constante transformação. A
interpretação dos fatos, assim, não possui uma regra fixa ou uma fórmula constante, mas vai também se
construindo e se aperfeiçoando ao longo do tempo.
Importante
As influências dessas ideias sobre o Direito são no sentido de que as normas devem
ser entendidas dentro desse constante movimento de mudança e construção da vida
humana na sociedade. Assim, as normas não são realidades abstratas e atemporais,
produtos da racionalidade pura como quer o positivismo, mas elas estão relacionadas
com um momento determinado no tempo e no espaço e o seu significado também
não é fixo, mas evolutivo. Desse modo, a hermenêutica jurídica não é uma simples
operação de lógica dedutiva, mas um esforço produtivo de construção de um novo
significado (valor) a cada vez que a norma deve ser aplicada a um fato concreto,
considerando sempre a dimensão espacial e temporal de ambos.
Paul Ricoeur (1913-2005) foi um pensador francês, contemporâneo de Sartre, que desenvolveu
estudos nas áreas de psicanálise, linguística e hermenêutica, dedicando-se especialmente a textos clássicos
do cristianismo. A sua contribuição à hermenêutica, portanto, situa-se na análise e crítica dos textos escritos.
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Hermenêutica Jurídica
Importante
Portanto, o objeto da hermenêutica é a própria narrativa, o próprio
texto, que precisa ter reconhecida a sua autonomia, devendo o intérprete
concentrar-se nas categorias do discurso, da linguagem e voltar-se sobre
o seu conjunto de significados semânticos. Ricoeur chama isso passar
da “língua” para a “palavra”, ou seja, da linguística para o discurso, a
narrativa. É neste particular que deve ater-se o intérprete.
Nesse sentido, realiza-se uma espécie de diálogo entre o texto e o intérprete, através do qual
as polissemias manifestam seu sentido, pois o hermeneuta investiga a intencionalidade presente na
narrativa, e não os símbolos e signos linguísticos. Com isso, abre-se um novo campo de atividade, onde
interagem o fato narrado, o autor e o intérprete, surgindo daí a sua interpretação. Para que isso ocorra da
melhor forma, Ricoeur considera que é necessário fazer uma despsicologização , uma desistorização
e uma desabsolutização do texto. Desse modo, chega-se à autonomia do texto, pois o seu verdadeiro
significado não se encontra nem dentro nem fora dele, mas num movimento circular compreensivo que
envolve o próprio texto, o autor, o leitor, a história e a sociedade.
Ricoeur chama a isso uma multiplicidade de canais por meio dos quais flui o significado do texto.
Por isso, nunca será possível chegar a uma conclusão definitiva, a uma interpretação completa e terminativa,
mas o que se consegue perceber são sempre mediações parciais que nos dão várias perspectivas da obra,
mas nunca a sua totalidade de significados. Tal como uma obra de arte abstrata que a cada nova visão do
observador manifesta novas formas e percepções, a leitura do texto também confere ao seu intérprete
significados e visões novas em cada nova apreciação.
A hermenêutica de Ricoeur defende uma ideia de significação em que o sentido da obra escrita
não se encontra nem nos mundos físico, psíquico, histórico, social, ou particular do leitor, mas no mundo
próprio do texto, e nesse sentido, o conjunto de significados que ele possibilita encontra-se sempre
aberto e inconcluso. Todas as várias interpretações já produzidas não esgotam esses significados e nem
Despsicologização significa deixar de lado a preocupação com o aspecto psicológico do texto e não levar em conta o
entendimento do autor do texto na hora de interpretá-lo.
Desistorização significa deixar de lado a preocupação com o caráter histórico do texto e não levar em conta as influên-
cias do momento histórico sobre o autor do texto.
Desabsolutização significa considerar o texto escrito como algo que possui um sentido mutável, não um sentido único
que teria sido posto pelo autor ao escrever.
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Hermenêutica Jurídica
levam a uma mesma e imutável conclusão, permanecendo sempre a possibilidade de novas e diferentes
interpretações, dentro da ideia hegeliana da pluralidade e da inesgotabilidade do sentido. Cada interpretação
de um texto é uma espécie de apropriação, pelo leitor, do seu sentido atual, com a consciência de que
sempre novos sentidos são possíveis.
Ricoeur contesta também a famosa divisão feita por Dilthey entre ciências da natureza, que
buscam a explicação dos fenômenos, e ciências do espírito, que buscam a compreensão. Segundo ele, a
hermenêutica é uma atividade que circula entre o modo explicativo e o modo compreensivo, não se
encontrando totalmente nem no primeiro nem no segundo. Tanto a explicação quanto a compreensão são
necessárias e se completam. Sem a explicação, só temos uma compreensão mística; sem a compreensão,
a explicação não alcança seu significado mais adequado. Embora a compreensão tenha prioridade na
hermenêutica, esta precisa da intermediação da explicação.
A importância dessa teoria para o Direito encontra-se em dois pontos. Em primeiro lugar,
na defesa da autonomia do texto, o que vem reforçar a corrente objetivista da interpretação, isto é,
a interpretação segundo a mens legis, pela qual o próprio texto da norma possui um sentido próprio e
autônomo, desvinculando-se da intenção original do legislador e podendo o seu sentido ser encontrado
no conjunto da sua própria configuração linguística. Em segundo lugar, na indicação de que toda
interpretação de um texto é sempre parcial e incompleta, assim a interpretação e aplicação da norma se
renova a cada aplicação ao caso concreto, não havendo um sentido único e imutável para ser aplicado a
todos os casos. A ideia de uma interpretação sempre incompleta e sempre em processo de construção leva
à compreensão da norma como um texto capaz de produzir uma interpretação sempre renovada e sem
repetição, de modo que cada interpretação que já foi realizada servirá como mediação ou instrumento
para as novas interpretações que ainda serão construídas no futuro.
Este novo conceito da hermenêutica produtiva vem superar a noção de hermenêutica reprodutiva,
do positivismo jurídico, pela qual a interpretação era entendida como uma técnica de subsunção do fato à
norma, por um processo lógico racional e silogístico. A hermenêutica produtiva possibilita que, na análise
valorativa, a subsunção do fato à norma se faça por um processo criativo e renovador, buscando sempre
descobrir a melhor realização da justiça.
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Hermenêutica Jurídica
1 O Conhecimento
Todos nós praticamos essa atividade básica humana, que se chama conhecimento. Aristóteles já
dizia, no início de sua metafísica, que “todos os homens desejam ardentemente conhecer” (Aristóteles,
Metafísica, I, 1). Mas, o que é o conhecimento? Para responder a esta pergunta, utilizaremos duas metáforas:
• Conhecimento é a fabricação do ideal sobre a terra.
• Conhecimento é o caminho de busca e de regresso à tenda de convivência com todos os seres.
Dessa forma, como se dá o caminho de busca e regresso à tenda comum? Toda vez que procuramos
conhecer algo, precisamos sair de nós mesmos em busca de novos objetos do mundo exterior. Esta é
a primeira parte do caminho: a busca. Ao encontrarmos o objeto procurado, nós o transformamos em
conceito, ou seja, fazemos o retorno ao nosso próprio interior, ao nosso mundo mental. Esta é a segunda
parte do caminho: o regresso. Ora, conhecer algo do mundo exterior leva sempre a um conhecimento
indireto de nós mesmos, da nossa subjetividade. A tenda de convivência de todos os seres é, assim, a
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Hermenêutica Jurídica
consciência que o homem adquire de si mesmo, toda vez que conhece algo. Quando nós conhecemos
um objeto, percebemos também que ele se distingue de nós mesmos, ou seja, o conhecimento de algo
exterior a nós é também um conhecimento indireto do nosso próprio ser.
Mas como se produz o conhecimento, isto é, de que modo o conhecimento se processa na nossa
mente? Dizemos que o conhecimento se perfaz em etapas sucessivas, denominadas:
• Intuição sensível
• Memória
• Experiência
O primeiro momento é a captação das “coisas”’ (objetos, pessoas, comportamentos, valores,
costumes etc.). A intuição sensível é o ato de apreensão ou de percepção da realidade. Não cria a
realidade, recebe-a do mundo exterior, através dos nossos órgãos sensoriais. Por isso, a intuição sensível
é sempre receptiva e passiva. Por conseguinte, a sensibilidade desempenha um papel de mediação
indispensável entre o nosso interior e o mundo fora de nós.
Importante
Assim, nota-se que este fenômeno chamado de conhecimento ocorre em todos
os seres humanos, através de um exercício espontâneo da inteligência natural,
independentemente de frequência a uma escola ou de leitura nos livros. É o
conhecimento como ato existencial. A vida é um contínuo processo de percepção
1 Expressão: S. Tomás, Summa Theologica, pars prima, quaestio 29, articulum 7 (Suma
Teológica, primeira parte, questão 29, inciso 7).
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Hermenêutica Jurídica
Nesse sentido, coloca-se aqui também a utilização prática do saber popular na produção de
receitas típicas regionais, na produção de medicamentos com raízes, frutos e folhas, na produção do
artesanato, na técnica rudimentar dos sertanejos que atuam na agricultura, sem nunca terem estudado
agronomia, dos jangadeiros que pilotam embarcações sem nunca terem estudado navegação, dentre
outros. Todas essas manifestações exemplares da nossa cultura popular nordestina são confirmações
da existência desse conhecimento espontâneo, que provém do uso natural da inteligência e que, em
todos os lugares e em todas as épocas, os seres humanos sempre foram capazes de desenvolver,
interagindo com o seu meio ambiente.
O primeiro conhecimento produzido pelo homem é o mito, que já foi estudado na primeira
unidade. Dos mitos primitivos se originaram os diversos saberes humanos, inclusive esse tipo especial
de conhecimento chamado de ciência. O conceito original de ciência era bem diferente do que hoje se
tem. Na Grécia, no século VII a.C., a mitologia começou a ser substituída pelo pensamento racional dos
primeiros filósofos, que utilizavam a matemática para explicar os fenômenos do mundo. Naquela época,
ciência era sinônimo de filosofia e assim continuou durante toda a Idade Média.
Curiosidade
Para se ter uma noção do conceito antigo de ciência, quando esta era sinônimo
de filosofia, podemos tomar o exemplo de Tales. É comum os historiadores
da filosofia apontarem Tales de Mileto como o primeiro pensador ao qual
se atribui o qualificativo de “filósofo”. Mas se estivéssemos estudando a
história da astronomia, verificaríamos que Tales foi também o primeiro
“astrônomo” do Ocidente, por ter previsto através de cálculos um eclipse solar
(aproximadamente 585 a.C.). Já nos livros colegiais de geometria, há sempre
a referência a um famoso teorema atribuído a Tales, o que o faz também um
“geômetra”. Tales foi ainda a primeira pessoa a medir a altura das pirâmides
do Egito, e o raio da terra, o que faz dele também um “matemático”.
O que se observa disso tudo é que Tales não era um “especialista” em um determinado
conhecimento, como hoje costuma ocorrer. Na verdade, ao fazer suas extraordinárias descobertas, Tales
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Hermenêutica Jurídica
eram todos integrados: ao exercer astronomia, ele também exercia a geometria, era também matemático
e filósofo, tudo ao mesmo tempo. Somente nos tempos modernos, com a busca de maior precisão do
conhecimento, os estudiosos vieram a particularizar cada vez mais, distinguir sempre mais, diferenciar
cada vez mais os ramos do saber, afastando-se dessa experiência universalizante dos gregos, modificada
científico. Na sua época, era costume atribuir-se a origem dos fenômenos a feitos grandiosos de
heróis e deuses, cujos desígnios escapam ao controle dos homens e são governados por forças
sobre-humanas. Com Tales, inaugura-se uma nova visão desses fatos, que podem ser medidos e
previstos. Com ele, a mitologia foi substituída pela matemática, o irracional pelo racional. A previsão
caracteriza o saber que surge com Tales: o saber medir, que em nossos dias caracteriza mais a
ciência do que a filosofia. Esta mudança de mentalidade introduzida por Tales, que chamaremos de
princípio da medida, foi o grande diferencial histórico que marca o início da filosofia grega e, a
A partir do Renascimento
(século XV)
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Hermenêutica Jurídica
Física ou Filosofia da
Natureza
Metafísica ou Conhecimentos
Atualidade Filosofia das Coisas administram: diferentes e
Sobrenaturais importantes
Ciências Sociais
Ciências Filosóficas
A solução dos
Pelo conhecimento problemas é o
científico Ciências Naturais comum: resultado da
articulação de
Ciências Sociais algum método
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Hermenêutica Jurídica
Nesse sentido, vários métodos têm surgido no decorrer dos séculos, mas há algumas
constantes que sempre aparecem nessa variedade de métodos. Dizemos que o fundamento e a base
de todos os métodos é o bom senso, a razão natural, o conhecimento compartilhado por todos,
aquele que aprendemos no meio em que vivemos e que forma a nossa identidade cultural. Esta é a
fonte do conhecimento mais fundamental, o ponto de partida de toda reflexão. Podemos aprimorá-
lo, mesmo ultrapassá-lo, porém nunca dispensá-lo.
Porém, o bom senso por si só não basta, sendo necessário um suporte para a razão natural, de
modo que seja possível alcançar as evidências das coisas. Todo método sempre se apoia numa evidência.
Evidência é aquela situação em que a nossa mente sente completa segurança diante dos resultados do
conhecimento. Um conhecimento evidente é aquele que está livre de dúvidas.
Exemplo
Quando, por exemplo, medimos uma distância utilizando apenas a visão, temos
um resultado impreciso e inseguro, mas quando utilizamos uma fita métrica,
temos um resultado preciso e seguro. Esta segurança é proporcionada pelo
instrumento utilizado (a fita métrica), que nos traz maior certeza. Isso é resultado
da evidência. Havendo evidência a favor de uma ideia, o pensador assume
a atitude de mantê-la; havendo evidência contrária, a atitude de revê-la ou
rejeitá-la; e na falta de evidência a favor ou contra, assume a atitude de dúvida,
continuando assim na sua busca de dados evidentes.
A busca da evidência através dos processos de raciocínio se realiza através de dois caminhos ou
métodos opostos e complementares. Esses caminhos foram estabelecidos ainda por Aristóteles, no séc.
IV a. C. e são reconhecidos por todos os pensadores desde a antiguidade até hoje. São as duas formas
básicas de o nosso pensamento evoluir:
A primeira, partindo de ideias gerais que vão sendo simplificadas por um processo de divisões
e subdivisões até chegar aos fatos concretos. A isso se chama dedução ou pensamento dedutivo. É o
método comum utilizado nas ciências teóricas, tendo sua aplicação mais perfeita nas matemáticas; e
A segunda forma é aquela que parte dos fatos concretos e, por um processo de generalização
com base nas semelhanças encontradas, procura formular princípios gerais ou hipóteses, que necessitam
de comprovação através da experiência. A isso se chama indução ou pensamento indutivo. É o método
utilizado nas ciências da natureza e ciências aplicadas.
Nas ciências sociais, pratica-se uma metodologia mais complexa, resultado de uma síntese entre
dedução e indução, integrada com referências de caráter histórico e cultural, motivo pelo qual os seus
resultados não são apresentados em termos absolutos, mas sempre dentro de parâmetros flexíveis, onde
predomina mais a probabilidade do que a certeza.
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Hermenêutica Jurídica
No que diz respeito à ciência jurídica, a questão do método ainda é polêmica. Há aqueles
que defendem a estruturação do saber jurídico de acordo com o padrão das ciências da natureza,
atribuindo-lhe excessivo rigor lógico e exagerado formalismo, como é o caso do positivismo jurídico.
Por outro lado, há aqueles que defendem uma maior aproximação entre o Direito e as ciências
sociais, conferindo-lhe maior flexibilidade, com a aplicação de padrões valorativos relacionados com
a cultura, como é o caso da sociologia jurídica. Da nossa parte, dizemos que a ciência jurídica tanto
pode adotar o rigor lógico e formal das ciências da natureza quanto a flexibilidade valorativa das
ciências sociais, dependendo da matéria em questão.
Assim, por exemplo, nas questões tributárias e outras que envolvem conhecimentos técnicos,
deve-se priorizar uma metodologia com maior rigor lógico formal; já nas questões que envolvem direitos
pessoais subjetivos ou coletivos, a prioridade deve ser para a metodologia aberta das ciências sociais,
Diz-se que o conhecimento é um processo, isto é, uma ação que se realiza numa série de etapas
e não se faz de uma única vez. Além disso, sempre que se ocorre um ato de conhecimento, tem-se a
presença de três elementos necessários: o EU (sujeito) que conhece, a ATIVIDADE em si mesma e o
OBJETO a que se dirige a atividade desenvolvida.
O conhecimento é uma ação. Isso quer dizer que não é algo estático, mas essencialmente
dinâmico, em movimento. Já a atividade é o próprio motor do processo do conhecimento. O sujeito
é sempre o ser humano, o eu pensante, a consciência cognoscente, a pessoa dotada de racionalidade, a
realidade subjetiva. E o objeto é tudo aquilo que está ao alcance da atitude consciente do eu pensante,
tudo aquilo acerca do qual se possa elaborar uma explicação, um raciocínio lógico. Resumidamente, o
sujeito é o eu (indivíduo), o objeto é o mundo. Até o próprio eu pode ser objeto da atividade cognoscente,
num processo que se chama de autoconhecimento.
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Hermenêutica Jurídica
Os objetos naturais são os que têm existência no tempo e no espaço e que se apresentam à
nossa experiência, sendo captados pelos nossos órgãos sensíveis. Essa captura se dá por meio da intuição
fundada em critérios empíricos, isto é, a intuição sensível. São os seres da natureza física, tais como
existem no mundo, sem interferência do homem.
Objetos ideais são aqueles que não têm existência no mundo físico, podendo ser apreendidos
apenas racionalmente. São puros conceitos formados pela nossa razão. Por exemplo, os números e as
relações matemáticas (maior do que, menor do que), os conceitos geométricos (esfera, cone, retângulo)
são objetos ideais. São expressões simbólicas, que são representadas em figuras desenhadas ou corpos
materiais, para efeito de comunicação entre os homens.
Os objetos culturais também têm existência no tempo e no espaço e são acessíveis à experiência
sensível. Diferem, porém, dos objetos naturais porque são moldados pela mão e/ou pela inteligência do
homem. Podemos dizer que são aqueles objetos em princípio naturais, mas aos quais a ação do homem
agrega um determinado valor com o seu trabalho muscular ou intelectual. O valor está presente na
essência dos objetos culturais, uma vez que se pode observar neles uma característica supra sensível ou
um sentido que a ação do homem faz aderir a eles. Todas as produções humanas, materiais ou imateriais,
realizadas ao longo da história, formam o acervo de objetos culturais, dos quais hoje somos guardiães.
E os objetos metafísicos, tais como os objetos ideais, também só podem ser alcançados pelo
pensamento racional, todavia diferem destes por serem entes puramente racionais, de representação
material ou gráfica impossível. Existem apenas na mente e não podem ser materializados. Assim são os
conceitos tradicionais de divindade, liberdade, de imortalidade, de verdade, de bondade, equidade, de
justiça, de valor, dentre outros. São entes de pura razão, cujo conteúdo nos é transmitido sociologicamente
e cuja existência se verifica em todos os povos de todas as épocas, razão pela qual outrora eram classificados
como conceitos absolutos, universais e imutáveis. Atualmente, está superado esse entendimento, que foi
substituído por uma visão histórica e evolutiva deles, de acordo com os parâmetros desenvolvidos e
aceitos na sociedade em contínuo desenvolvimento.
Importante
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Hermenêutica Jurídica
Assim se classifica a norma jurídica pelo fato de que ela tem uma forma cultural de
expressão e exprime um conteúdo também cultural de caráter linguístico. Desta maneira, tanto
a norma enquanto regra de conduta, quanto a sua expressão escrita, são objetos culturais. Como
todos os objetos culturais, a ela está agregado um potencial de valor, que é o elemento axiológico
contido na norma. Em consequência disso, o Direito, que tem por finalidade de estudo a norma
jurídica, é também cultural. Não há um Direito eterno e imutável, válido para todo o sempre, mas
é sempre mutável e evolutivo, assim como a sociedade. Mais do que isso, na verdade, ao debruçar-
se sobre a norma, o Direito é cultura sobre cultura, porque é cultura que trata da cultura. Em
resumo, o Direito é uma sobre-cultura ou uma meta-cultura.
Por isso, podemos afirmar que todo processo de interpretação e aplicação das leis corresponde
a uma situação hermenêutica, ou seja, a uma apreensão de um sentido referenciado a um valor, cujo
resultado se expressa no fenômeno da compreensão.
Por conseguinte, toda conduta é axiológica, está ligada a valores, depende deles, e não existe
sem esta ligação estreita e intrínseca a algum tipo de valor. A palavra “conduta” vem do verbo latino
ducere (conduzir) associado à preposição cum (com), ou seja, cum + ducere, através do seu particípio passado
(cum+ductum - conduzido com), assumindo na língua portuguesa a forma de substantivo feminino. Isso
significa que não existe ser humano que não se conduza e não existe homem sem conduta.
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Hermenêutica Jurídica
CONDUTA
se origina de:
através de:
Particípio Passado
cum + ductum
(conduzir com)
Por isso, não há ser humano indiferente ao valor. Se a conduta é axiológica, o homem é um
ser axiológico. Sendo racional, o homem possui em si a aptidão de eleger racionalmente alternativas de
conduta. Mas quando o faz concretamente, isto é, quando se conduz, quando se realiza concretamente,
sempre o faz movido por valorações.
Por outro lado, se a cultura é uma das consequências da conduta, e se a conduta contém
necessariamente valor, afirmamos que os objetos culturais possuem um valor intrínseco, de sorte que
a norma jurídica e o Direito, enquanto objetos culturais, são carregados de valores como consequência
de sua existência social. Em toda norma e em toda conduta regrada, existe sempre um valor subjacente,
funcionando como determinação e matiz da sua natureza. Ao agir, conscientemente ou não, o homem
sempre o faz em função de um valor, que confere sentido a este agir.
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Hermenêutica Jurídica
Toda manifestação de um sentido não se faz ao acaso, mas é orientada por uma espécie de “farol
social” que é tomado como referência para dimensionar graus de intensidade de sua claridade, o que
faz com que algumas coisas apresentem uma variação de luminescência no referencial do sentido que
indicam, tornando-se algumas delas mais atrativas, preferencialmente às outras. Este referencial é o que
chamamos de valor. Isto quer dizer que quanto mais “luminoso” for um determinado fato social, quanto
maior o interesse que ele provoca, quanto mais forte for o seu significado social, maior será o valor que
ele porta. O valor é um conceito indefinível, que representa uma espécie de vivência.
Quanto mais nos inserimos na vida social, mais aprendemos a reconhecer os valores que ali estão
presentes. E, embora não conseguindo definir claramente o que seja, todos nós estamos constantemente
tomando decisões em nossas vidas e o que orienta qualquer decisão é a noção de valor que temos.
Decidir é valorar. Quando decidimos algo, assumimos que a nossa escolha contém um valor de grande
importância. Quanto preferimos uma coisa em relação à outra, estamos reconhecendo naquele objeto
preferido um maior valor do que o rejeitado. Assim, se onde há o homem, há interpretação, da mesma
forma, onde há homem e interpretação, há valor. Toda decisão humana é inerente ao reconhecimento de
uma determinada faceta valorativa, sob a qual o sentido se nos apresenta.
Embora não seja uma definição adequada do valor, podemos reconhecê-lo como uma energia que produz
no homem uma atração irresistível por algo determinado, gerando assim os sentimentos e reações de aproximação,
aceitação, adesão, quando identificamos valores positivos, assim como também os seus opostos de afastamento e
recusa, quando há uma contradição entre o que é esperado e o que nos é oferecido. Inegavelmente, o valor é uma
força de natureza espiritual que o homem não consegue definir claramente com postulados racionais, mas que é
capaz de percebê-lo sem qualquer relutância toda vez que diante dele se apresenta.
É, assim, mais fácil classificar o valor do que defini-lo. Costuma-se classificá-los quanto ao seu
alcance, à sua duração, à sua legitimidade e à sua matéria. Acompanhe cada uma delas:
• Quanto ao seu alcance, há os valores universais, aqueles que exercem sua atração sobre os
homens em qualquer lugar onde estes estejam, e os valores individuais, isto é, aqueles que
uma pessoa elege como diretriz de sua existência. Atualmente, a sociedade tem dificuldade
em aceitar valores que seriam imutáveis e permanentemente válidos, preferindo reconhecê-
los como realidades mutáveis de acordo com o momento cultural. Mesmo reconhecendo a
universalidade de certos valores, admite-se uma relativização histórica e social, considerando-
se os alvitres das variadas culturas e a inevitável influência dos fatores temporais. É a
universalidade possível dentro da historicidade humana.
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Hermenêutica Jurídica
percalços da historicidade. Isso não quer dizer que sejam eternos, porque são humanos. Os
duradouros são aqueles que, mesmo não permanentes, acompanham a humanidade por
longos decursos temporais, exercendo sua influência de forma marcante enquanto persistem.
E há os valores passageiros, efêmeros, de duração mais curta, como os modismos, que passam
muitas vezes sem fincar a sua marca.
• Quando à sua matéria, os valores se classificam de acordo com a área social em que se
situam. Há os valores éticos, jurídicos, religiosos, políticos, econômicos, históricos, nacionais,
regionais e locais, referindo-se todos como desdobramentos dos valores humanos e sociais em
geral, sedimentados na atividade humana e presentes em todas as épocas históricas. Conclui-
se, portanto, que em qualquer lugar onde esteja presente o homem, ali estará também o valor.
3 Conhecimento e Interpretação
A interpretação decorre do livre exercício da razão. A este livre exercício da razão chama-se
pensamento. Portanto, pensar é interpretar. O ser humano naturalmente pensa, por isso, naturalmente
sempre interpreta. Nas rotinas do dia-a-dia, nas relações sociais, familiares, laborativas, o homem está
sempre revelando um sentido. Não é possível a identidade humana sem esta interpretação, porque o
homem só toma consciência de si mesmo interpretando. É por intermédio da interpretação do outro
e de si próprio que o ser humano se apercebe de sua própria realidade e da realidade do mundo. A
interpretação é necessária ao homem, faz parte da sua natureza humana.
Por causa dessa necessidade da natureza humana é que, desde a mais remota antiguidade, o
homem interpreta. As variadas formas de interpretação, criadas pela atividade incessante do homem,
produziram os vários conceitos de hermenêutica, apresentados pelos estudiosos ao longo dos tempos.
Fazemos, assim, uma diferença entre interpretação e hermenêutica, que não são sinônimas. Interpretação
é atividade prática, enquanto que a Hermenêutica é modelo teórico. Os procedimentos interpretativos
fundamentam as várias escolas de hermenêutica e os vários conceitos de hermenêutica orientam formas
diversas de interpretação. Aliás, os próprios conceitos diferenciados de hermenêutica são prova da
capacidade interpretativa humana.
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Hermenêutica Jurídica
Exemplo
Num exemplo mais simples, quando alguém quer aprender andar de bicicleta,
vai precisar que alguém lhe dê orientações sobre os movimentos do guidão, das
alavancas e dos pedais, somente depois irá tentar equilibrar-se nas duas rodas.
Importante
59
Hermenêutica Jurídica
Por seu turno, a sociedade está em incessante movimento evolutivo, com substanciais interferências
sobre a cultura e a mentalidade das pessoas. Aquilo que tem sentido e valor numa determinada época,
pode dali a pouco sofrer mutações. Novos padrões culturais e valorativos estão se manifestando a todo
momento. Disso tudo resulta que a tarefa humana de interpretar é historicamente inesgotável, na medida
em que a interpretação é a busca do sentido e este constantemente se transforma. A hermenêutica,
enquanto ciência e arte da interpretação, é entendida assim como uma atividade perene e incompleta.
Costuma dizer-se que “onde está a sociedade, aí está o Direito”. Em todas as épocas, sempre onde
houve grupos humanos reunidos num mesmo território, houve algum tipo de norma disciplinadora de sua
conduta, por mais rudimentar que tenha sido. De acordo com o Prof. Raimundo Falcão (2004), esta frase
deveria ser “onde está o homem, aí está o Direito”, considerando que não é a sociedade um sujeito concreto
de direitos, e sim a pessoa. A importância da sociedade deriva da importância das pessoas que a formam. A
referência à sociedade tem apenas a vantagem de chamar atenção para o fato de que o Direito se realiza na
convivência social. Melhor ainda seria adaptarmos a frase dentro do contexto delineado nos tópicos anteriores,
no qual demonstramos que a vida do homem na sociedade é um constante exercício interpretativo, para
dizermos “onde está o homem, aí está a interpretação”. O Direito, como todos os objetos culturais, não se
desenvolve sem a atividade do intérprete, não permanece vivo sem o contínuo trabalho da interpretação.
Historicamente, foi assim que aconteceu nas origens do Direito, em Roma. Foi a atividade
interpretativa dos juristas que deu alma e vida ao Direito Romano, cujo legado chega até nós. Os
jurisprudentes romanos foram os pioneiros na ciência e na arte de transformar a norma numa criação
permanentemente viva, fertilizando-a com suas experiências de vida e com seu apurado senso de
percepção da evolução da sociedade do seu tempo. Mesmo sem teorizar a respeito desta vital atividade
jurídica, eles nos deixaram exemplos práticos e concretos de elaboração da ciência jurídica, a partir da sua
capacidade de sempre interpretar de maneira nova antigos costumes e práticas, o que os transforma em
referência permanente para o estudo do Direito em todos os tempos.
Importante
60
Hermenêutica Jurídica
Podemos concluir, então, que a interpretação é um momento constitutivo dessa realidade humana
chamada de conhecimento. A interpretação é o momento dinâmico do conhecimento da realidade, é o
ato de apreendê-la racionalmente, tal qual ela se apresenta à nossa percepção subjetiva. A hermenêutica,
enquanto conjunto de teorias formadas a partir da prática interpretativa desenvolvida pelos estudiosos ao
longo da história, é o momento teórico da atividade interpretativa. Ao estudar a hermenêutica, estaremos
repassando as tentativas e os caminhos seguidos pelos intérpretes no decorrer dos tempos, como etapa
de preparação para o exercício prático diante de casos concretos.
Transferindo essa ideia para o âmbito do direito, dizemos que o ato de interpretar a lei e as
diferentes normas que compõem o ordenamento jurídico, inserido no contexto do que se denomina
Hermenêutica Jurídica, constitui-se neste esforço mental que se perfaz em quatro momentos integrados:
Ao fazer isto, o intérprete estará colocado diante de certo número de possibilidades, dentro das
quais deverá adotar uma posição, de acordo com o seu convencimento e com os objetivos pretendidos.
Noético, derivado de nous, é um termo que em grego significa o espírito humano enquanto atividade pensante e articu-
ladora da relação entre o mundo das coisas e o mundo das ideias (Platão).
61
Hermenêutica Jurídica
Importante
Desse modo, o direito tem como sentido não só os valores representativos da intenção
ou da vontade de quem faz a lei, como também os valores incorporados à tradição
histórica na qual a lei se insere. Por isso, a interpretação jurídica encontra referência
tanto na vontade do autor da lei, quanto na vontade do seu intérprete, enquanto seres
humanos pertencentes a épocas históricas muitas vezes distintas.
Assim, diz-se que o direito tem dois momentos de criação: o primeiro, no ato originário do
legislador; o outro, no ato decisório do juiz. Para aplicar a norma, o juiz precisa assegurar-se da vontade
do legislador, mas também precisa fazer a devida adequação desta ao caso concreto, através do seu
conhecimento e do seu convencimento. O Direito carrega assim um significado de natureza volitiva, que
precisa ser interpretado, exigindo um esforço hermenêutico.
Importante
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Hermenêutica Jurídica
Curiosidade
A hermenêutica jurídica brasileira, de longa tradição positivista, foi sempre permeada por
um reducionismo burocratizante do Direito, de modo que a interpretação dos problemas postos
ao exame do Judiciário esteve sempre tendente a decisões orientadas pela diretriz romanista
medieval. Do mesmo modo, a dogmática tradicional sempre privilegiou os institutos jurídicos
63
Hermenêutica Jurídica
Curiosidade
Notório neste contexto é que, desde o início do século XX, o professor Carlos Maximiliano, em
sua lapidar obra “Hermenêutica e Aplicação do Direito” (1a. Edição em 1924), já chamava a atenção para
os novos desafios que se colocavam para os intérpretes e aplicadores do Direito:
Cumpre escolher os magistrados entre os que bem conhecem as paixões humanas, as causas
próximas e remotas dos fenômenos jurídicos, a finalidade dos institutos e dispositivos,
os fatores sociológicos que influíram na elaboração ou na exegese dos textos. Devem ter
aprendido a substituir o egoísmo, cultivado outrora nos ginásios, pelos sentimentos éticos
inspirados pelos interesses comuns da coletividade e também dos povos, quer isolados, quer
no convívio das nações (MAXIMILIANO, 2006, p.84)
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Hermenêutica Jurídica
Exemplo
Com efeito, uma análise do contexto sociocultural e ideológico brasileiro permite inferir que, a
partir da Constituição Federal de 1988, novas situações fático-jurídicas vêm surgindo em nossos tribunais
e elas exigem uma interpretação mais flexível e consentânea com a realidade social contemporânea, para
que o mundo jurídico propicie tratamento justo aos conflitos que a sociedade lhe apresenta.
Sintetizando esta ideia, afirmou o Prof. Carlos Maximiliano, em sua lapidar obra
“Hermenêutica e Aplicação do Direito” (1a. Edição em 1924), que a interpretação jurídica exige
do intérprete a posse de três atributos cuja concomitância no mesmo cérebro não é, por assim
dizer, muito comum: probidade, ilustração e critério.
A probidade conduz ao esforço tenaz e sincero para achar o sentido e alcance da lei segundo
os ditames da verdadeira justiça. A ilustração auxilia, com uma grande soma de conhecimentos, a
solucionar todas as dúvidas possíveis e atingir os vários motivos de uma decisão reta. E o critério induz
ao discernimento entre o certo e o provável, o aparente e o real, o verdadeiro e o falso, o essencial e
o acidental. “Para ser hermeneuta completo, é mister entesourar profundo conhecimento de todo o
organismo do Direito e cognição sólida não apenas da história dos institutos, mas também das condições
concretas da vida em que as relações jurídicas se formam” (MAXIMILIANO, 2006, p.83).
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Hermenêutica Jurídica
Referências Bibliográficas
CHAUÍ, Marilena et al. Primeira Filosofia. 6. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
GILES, Thomas R.. Introdução à Filosofia. São Paulo: Ed. USP/EPU, 1979.
MELLO, Cleyson M.. Hermenêutica Jurídica e a Filosofia do Novo Código Civil Brasileiro.
In: O Novo Código Civil Comentado. Rio de Janeiro: Liv. Freitas Bastos, 2002.
REALE, M.. Lições preliminares do Direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1979.
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HERMENÊUTICA JURÍDICA
Créditos
processo ensino-aprendizagem.
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