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O MISTÉRIO DA LUZ AZUL

JOÃO IV

1
A conquista é reservada àqueles que ousam trilhar
novos caminhos.

João IV

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JOÃO IV
O MISTÉRIO DA LUZ AZUL

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D edicatória e síntese.

A todas as pessoas que amam o simples e abominam o


simplório. Este livro é para você que possui a capacidade de se debruçar
sobre as manifestações emanadas diretamente do povo para o povo. É
dedicado a quem tem faculdades distintas capazes de discernir e perceber
as nuance da arte, do talento, do amor e das várias manifestações e
facetas que a Doutrina Espírita distribui a seus filhos provisoriamente
encarnados.

A mineiridade impregnada á narrativa inicial e a forma


intimista e despretensiosa em que o livro foi concebido levam a um
mergulho saboroso as mais doces memórias que o interior oferece ao
nosso inconsciente coletivo. Este mergulho segue aprofundando-se sobre
o cotidiano do personagem Alexandre. Sua vida corriqueira acontece na
fictícia cidade de nome Cristalina e no interior do interior, de uma
comunidade rural chamada Arabizá durante a minimalista década de 90.

O marco separador da trama é o instante em que Alexandre se


depara com um misterioso fenômeno. Desde então surge o seu divisor de
águas, aquele momento em que os eventos, mudanças e os fatos nos
convidam a visitar as encruzilhadas da vida. A refletir sobre nossa zona de
conforto e as novidades e transformações que já não se encontram mais
dentro dela. Alexandre parte em uma investigação no intuito de
desvendar o tal mistério. Porém à medida que avança em suas buscas ele
se depara com algo muito mais importante. Algo que transpõe a própria
vida de Alexandre e vai de encontro com a comunidade do Arabizá. Agora
começa uma verdadeira corrida contra o tempo. Cada decisão, cada
busca, cada atitude de Alexandre no presente, cada volta dolorosa a um
passado distante marcado por paixões viscerais, riquezas suntuosas
adquiridas de formas obscuras e sinistras, em fim, cada elemento da
trama servirá de ferramentas para que Alexandre possa discernir e tomar
as decisões certas para salvar a comunidade do Arabizá.

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N ota do autor.

Aos escritores justifico a concepção deste livro


deixando bem claro que não sou e não tenho a pretensão de me alto
intitular escritor e sair por ai jorrando palavras pelo vasto universo da
escrita. Como todo bom Mineiro sou apenas um grande contador de
causo. É neste estilo que me encontro e justifico o fato de ser e escrever.
Pois escrever é ser, para mim. É o instinto de partilhar vivências, idéias,
experiência, que me arrasta para o universo da escrita. E como não sou
escritor profissional ainda, a forma que abri mão para ir de encontro ao
leitor foi à capacidade que tenho de contar causos.

Nunca subestimei esta capacidade, pois só através deste


dom conseguimos conceber uma obra tão peculiar e inusitada quanto à
vida real o pode ser. Somente através do causo alcançamos a
metamorfose de estilo necessária para retratar as nuances da
personalidade de um adolescente e exemplificar de forma clara e objetiva
todas as estruturas caóticas e fascinantes da vida cotidiana no momento
preciso em que a mesma pulsa. O causo consegue captar a fluidez do rio
da vida, todas as curvas, poças, abismos, pedregulhos, bancos de areia e
remansos. Este rio passará pelo leitor e aquele que nele mergulhar se
identificará com o rio e as perguntas, esperanças e desejos do rio já não
serão mais dele.

Termino deixando minha obra a mercê daqueles que


conseguem entender a dimensão da mesma.

Um abraço a você!

João IV.

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A os amigos de outro plano.

O projeto deste livro foi concebido através do processo de


psicofonia. Embora seja apenas um romance e uma obra de ficção a
forma e os fatos que nos inspiraram foram extraídos de vivencias e
pessoas que já deixaram este plano e outras que ainda estão nesta terra.

Com a ajuda de diversos amigos desencarnados que me ditaram


trechos inteiros e me inspiraram e muito me influenciaram a escrever,
somente assim conseguimos transformar este projeto em realidade. Meu
sonho era escrever um livro, porém somente quando me deparei com
estes Espíritos foi que consegui desenvolver e concluir este projeto.

A vocês minha eterna gratidão!

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O Mistério da Luz Azul

Direitos da obra reservados a João Batista da Silva.

Pseudônimo - João IV.

Obra devidamente registrada na B.N - Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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Sumário.

1 - O Arabizá. 09
2 - O pesadelo. 23
3 - A procura de respostas. 40
4 - De encontro às respostas. 80
5 - A terapia. 92
6 - Primeira sessão. 96
7 - Vidas passadas. 102
8 - O manuscrito de Alexandre. 104
9 - O Poço do Fubá. 137
10 - A missão de Alexandre. 153
11 - A fazenda do Arabizá. 162
12 - O noivado. 193
13 - Ainda nos anos 90. 202
14 - Um vidro de palmito. 212
15 - O fim do mistério. 236

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1 O Arabizá.
12h45min.

--- Mãe cheguei!

Gritou Alexandre e bateu a porta da sala entrando apressado pelo


recinto. O garoto jogou a mochila do colégio em cima do sofá e subiu as
escadas correndo em direção ao seu quarto. Já no quarto Alexandre abriu
o guarda-roupa rapidamente. Estava eufórico! Esperou por aquele
momento o semestre todo. Pegou uma grande mala de viagens e
colocou-a aberta em cima da cama. E foram cuecas, meias, cintos,
perfumes, escova de dente, toalhas, e quase todo o armário de Alexandre
pra dentro de sua mala de viagens:

--- Preciso enfiar tudo isto aqui nesta mala! Tem de caber aqui. O mais
importante eu levo na mochila.

Dito isto, Alexandre continuou enfiando roupas na mala. Finalmente


depois de muito esforço e pressa ele conseguiu arrumar tudo o que queria
e precisava para viagem. Em seguida Alexandre brigou um tempo com o
zíper porque não podia fechá-lo. Alguns instantes depois Alexandre
ganhou a briga com o zíper e olhou para mala estufada e finalmente
fechada em cima da cama.

--- Pronto.

Ele deu um suspiro de alívio, mas lembrou de relance que faltavam


muitos preparativos ainda. Saiu do quarto, correu para o banheiro no
final do corredor, tirou a roupa e quase abriu o chuveiro.

--- Não posso tomar banho aqui, minhas coisas estão no outro
banheiro.

Vestiu novamente a roupa, passou pelo corredor, entrou no quarto


de seus pais, abriu o guarda-roupa de sua mãe e adentrou a porta falsa de
acesso a suíte do casal. Tomou banho, vestiu a única peça de roupa limpa
sua, que não foi pra dentro da mala e desceu voando as escadas.

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--- Mãe, mãe, cadê o uniforme do meu time? Não vi nada lá em
cima!

--- Tenha calma Alexandre vai almoçar primeiro! Tem dois


uniformes passados e arrumados lá na área de serviço.

--- Mãe eu vou levar tudo!

--- Pra quê Alexandre? Quatro uniformes? Leva só dois. Um para


treinar e outro para as disputas de domingo.

--- Preciso levar os quatro! Vou ficar muitos dias no Arabizá, pode
chover, dar barro, poeira, vaca comer.

--- Deixa de ser maluco meu filho. O Arabizá fica só oito


quilômetros da cidade. Se precisar de alguma coisa seu pai coloca no carro
e leva pra você domingo. Já inventou celular, sabia?

--- Mas assim vou ter de treinar sem uniforme até o fim de semana!
Não vou poder esperar este tempo todo.

--- Olha, eu é que não posso esperar mais meu filho. Já fez seu
prato?

--- Sim, mamãe!

--- Então vai almoçar lá na sala de jantar porque eu estou sem


empregada hoje e preciso arrumar esta bagunça na pia.

--- Posso comer na sala de TV mamãe?

--- Não! Não na sala de visitas, nem à sala de som, tão pouco na sala
de estar, nem na varanda em frente à piscina, no escritório, na cozinha, na
despensa, na área de serviço, na garagem, em nenhum destes lugares
Senhor Alexandre. Que mal a sala de jantar lhe fez?

--- Pode deixar mamãe! Mas a senhora vai ver só. Hoje eu sou um
simples reserva do time de futebol de várzea do Arabizá, mas um dia vou
jogar no ataque. Quero ver a Senhora me impedir de comer na sala.

--- Você pode jogar até no Real Madri, mas vai continuar almoçando
na sala de jantar campeão!
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Depois de engolir a comida, quase que sem mastigar Alexandre
correu para a sala de visitas. Lá pegou a mochila com o material escolar e
levou para seu quarto. Chegando ao quarto ele esvaziou a mochila com o
material da escola, em seguida correu para a área de serviço da casa com
ela. Desobedecendo as ordens da mãe Alexandre colocou os dois
uniformes secos do time de futebol na mochila e os outros dois, que ainda
estavam molhados também. Pois os uniformes molhados dentro de sacos
plásticos para não molhar os uniformes secos, não molhar a mochila e o
par de chuteiras e meões que estavam dentro dela.

Tudo pronto o garoto correu para o carro de sua mãe na garagem.


Acomodou a mala no porta-malas e a mochila ficou em seu colo.
Seguiram-se minutos de aflição para Alexandre. Aguardava ansioso dentro
do carro o pai chegar do serviço na câmara de vereadores e a mãe
terminar de embalar quitutes, guloseimas e outros mimos que seriam
entregues para avó de Alexandre no Arabizá.

E assim depois de todos os protocolos, recomendações maternas,


procedimentos de viagens familiares, sermões paternos, verificação de
trancas e portas da casa e demais tramite, finalmente, para alegria de
Alexandre a família Lemos conseguiu partir para o tão sonhado Arabizá.

Dentro do carro de sua mãe, que também era sua professora de


geografia, Alexandre não cabia em si de tão contente. Era um desses
momentos familiar em que todos estavam muito felizes e descontraiam-se
com conversas triviais. À medida que o assunto esquentava a paisagem
urbana ia ao poucos se transformando em paisagem rural. E a viagem de
fusca seguia tranqüila. E como era de costume durante as viagens a família
Lemos começou mais um de seus famosos debates. O assunto principal
deste debate em questão era á comunidade do Arabizá:

--- Nossa meu filho, que felicidade é esta? Até parece que você está
viajando pra Disney!

--- É verdade meu pai! Se dependesse de mim o senhor vendia a


casa na cidade e nós nos mudávamos pro Arabizá hoje mesmo. Eu nem
voltava para Cristalina depois destas férias.

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--- O dia que isto acontecer eu largo do seu pai e ponho vocês pra
morarem na casa da sua Avó Alexandre.

--- Mas verdade seja dita minha querida o Arabizá é um ótimo lugar
para um garoto de 16 anos feito o Alexandre se desenvolver.

--- Concordo Papai! E pro senhor é melhor ainda, pois é de lá que


vem os seus eleitores mais fieis.

--- Não sei qual dos dois é mais criança. Imagina deixarmos a
comodidade de uma cidade estruturada e asfaltada igual à Cristalina pra
nos embrenharmos em estradas que em certos meses são de barro, e em
outros meses são de pó.

--- Mãe! Cristalina é só uma versão mais ou menos, maior que o


Arabizá.

--- O quê você chama de mais ou menos filho? 9.000 habitantes de


Cristalina, contra 965 do Arabizá?

--- Nosso filho tem razão amor! Tudo o que tem em Cristalina tem
no Arabizá.

--- Vocês não estão falando sério, estão? Aqui em Cristalina tem a
fábrica de cimento que emprega quase toda a população da cidade, tem a
Igreja Matriz de frente a uma grande praça, tem o Rio Grande que
serpenteia pelas áreas nobres e planas de Cristalina, tem casebres
bucólicos e limpinhos fincados nos altos dos morros, tem vários bairros,
tem quase seis escolas públicas, um hospitalzinho modesto, mas
funcional, postos de saúde, uns belos casarios antigos, prédios como a
câmara, que foram tombados, nossa malha ferroviária, uma das poucas a
oferecer viagens e passeios de trem, rede hoteleira, antigas fazendas que
se tornaram hotéis, pensões para universitários, a faculdade federal, a
pizzaria, a sorveteria, o fórum, o correio, a delegacia...

--- Veja Alexandre sua mãe quando começa defender Cristalina não
para mais.

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--- Estou apenas enumerando as coisas que minha bela cidade
natal, também conhecida como a Princesinha das Montanhas, que atende
pelo nome de Cristalina, tem. Agora eu lhes pergunto cavalheiros. O quê
que o Arabizá tem?

--- Por onde a gente começa a falar papai?

--- Não sei filhinho! São tantos adjetivos que o Arabizá tem. E estes
adjetivos destacam o Arabizá desta tal Princesinha do fim do mundo cujo
nome é Cristalina. São tantos que eu não consigo nem enumerá-los.

--- Pra começo de conversa mochinhos todos os dois meninos são


Cristalinenses. Os dois nasceram na maternidade daqui. Podem olhar no
registro! Não existem Arabisenses. Todo mundo vem pra cá pra nascer e
também para ser enterrado no cemitério daqui de Cristalina. Mas vamos
lá estou ansiosa para saber pelo menos um atrativo que o Arabizá tem.
Olha estou sendo boazinha hoje em! Podem-me dizer pelo menos um. Só
basta um para mim.

--- Pois bem, que assim seja! Senhor Vereador Meu Pai,
excelentíssima senhora Professora licenciada em Geografia Minha Mãe!
Para começo e fim da discutição, eu, Alexandre filho, vou enunciar os três
principais atrativos da nossa querida comunidade rural do Arabizá.

--- Veja que eloqüência ao falar, com certeza este menino puxou a
mim, seu Pai!

--- Só se for à malemolência, pois até agora não falou nada que eu
precise saber.

--- Então como eu estava dizendo... O Arabizá é mundialmente


conhecido pelo seu famoso Morro do Curió. O morro tem este nome por
causa da abundância de curiós, canários e aves raras da nossa fauna
Brasileira.

--- Muito bem meu filho, mas você esqueceu-se de falar que lá
também é famoso pela sua subida íngreme, terrenos cheios de pedras e
areia onde nada que se planta dá. Sem contar a sua estrada de acesso.

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É uma estradinha mixuruca de terra, que cabe só um carro, sem
acostamento, e é muito sinuosa também. E ainda tem as inúmeras
cobras, lagartos, e aranhas da fauna Brasileira e mundial que habitam o
Morro do Curió.

--- Agora sou eu quem vai falar minha esposa. Mesmo sendo
arenoso e rochoso o terreno, o Morro do Curió tem arbustos, vegetação
rasteira, algumas árvores resistentes e frondosas e um lindo riacho de
água bem clara e pura lá no pezinho dele.

--- É verdade meu pai! E este riacho segue por entre uma pequena
floresta que preserva sua nascente, dá sombra e água fresca aos
estradeiros, e abriga todas as espécies de vida.

--- Certo meus amores, mas onde estão os outros dois atrativos do
Arabizá? Essa conversa de pássaros não me convenceu.

--- Explica para ela meu filho!

--- Querida mamãe! O Arabizá é um grande ponto no mapa quando


o assunto é turismo. Ao chegarmos à comunidade, basta andar apenas uns
trezentos metros a frente que logo encontraremos a famosa Cachoeira do
Fubá!

--- Bem lembrado meu filho! Ela tem este nome devido ao histórico
e preservado moinho de pedra. Embora este moinho basicamente seja
apenas uma casa, minúscula, de um cômodo só, antigo e vazio por dentro,
por fora o moinho está preservado e tem a sua roda girando a mais de
cem anos

--- Correto papai! É Bom lembrar que a frente do moinho tem a


belíssima Cachoeira do Fubá e logo á baixo da cachoeira o famoso, fundo e
grande, Poço do Fubá.

--- Muito bem frisado meu filho. É bom informar a sua mãe que no
verão quase toda a cidade de Cristalina vem para o Arabizá se refrescar
nas águas do Poço do Fubá. Muita gente gosta de nadar aqui no Arabizá.
Principalmente turista e certa Professora de Geografia que não quer dar o
braço a torcer.

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--- Vocês me pegaram nesta. Tenho de admitir. Gosto muito do
Poço do Fubá! Mas nada me faz vir ao Arabizá durante o inverno. Isto aqui
é assim, esfriou um pouco que seja o povo some e não vê mais ninguém
da cidade aqui. Só poeira, mato, e os nativos.

--- Mentira mamãe, eu não estou vindo passar as férias aqui?


Friozinho, beira de fogão a lenha, quase um hotel fazenda a casa da avó.

--- Você e seu pai não contam. São dois fanáticos pelo Arabizá. Eu
estou falando de gente normal. Gente que não tem família ou vínculo com
o Arabizá. Duvido que estas pessoas venham para cá no inverno respirar o
pó da estrada. Eu mesma só estou aqui para trazer você, visitar minha
sogra e acompanhar seu pai. Arabizá, inverno, e eu, não nos damos!

--- Veja Alexandre sua mãe está completamente equivocada


novamente.

--- Então me fala benzinho? Qual o motivo as pessoas tem para vir
ao Arabizá no inverno?

--- Deixa que eu resolvo isto papai!

--- Olha mamãe! O Arabizá no inverno é o centro do universo.

--- Isto mesmo meu filho. Convém lembrar sua mãe que toda a
população ativa, inativa, encarnada e até quem já deixou este plano vem
para o Arabizá no mês de Julho!

--- É uma festa só papai! Toda a comunidade se prepara. Cornetas,


tambores, roupas de festas, venda de churrasquinhos, matança de
garrote, porcos e outros assados, refrigerantes, salgados, doces, balas, e
muitos fogos de artifícios...

--- Já sei o que vocês estão tentando me dizer.

--- É isto ai meu filho. Explica pra ela que Julho sempre tem a final
do campeonato intermunicipal! E o campo dos sonhos do Arabizá é onde
os times sempre disputam à final e as melhores partidas.

--- E por falar em time dos sonhos papai, não se esqueça de lembrar a
Professora que o “Timão de Várzea do Arabizá” é o maior de todos.
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--- Sim filhote. Oito anos seguidos disputando e vencendo o
campeonato intermunicipal. Ninguém é páreo para nós. Pode vir outras
comunidades rurais da região, cidades anexas e aquela gente pé torta de
Cristalina. Todos no fim perdem de goleada para o famoso “Arabizá
Várzea Futebol Clube”

--- Somos várzea com muito orgulho! Viva o Arabizá! O melhor


futebol do mundo! Levamos o caneco pra casa todo ano.

--- Eu ouvi dizer meu filho, que este ano vem até olheiro de São
Paulo assistir a nossa final.

--- Ele vai voltar pra casa com as vista doendo, isto sim meu marido.
Imagina a hora que ele se deparar com metade de Cristalina e cem por
cento do Arabizá se acotovelando pra tentar ver uma simples disputa de
futebol na beira do campo? Sem contar que a partida se resume em
adolescentes e marmanjos correndo juntos dentro de um campo, atrás de
uma bola, sem técnica nenhuma, formando um verdadeiro show de
horror repleto de pernas de pau. E o coitado do juiz? Ele fica no meio do
furacão tomando xingamento de todos os lados.

--- Mãe! Este é o futebol raça, o futebol puro, o futebol arte.

--- Só se for Arte moderna Alexandre. Arte do tipo joelhos


estourados. Seu pai surta e pensa que voltou a juventude, enfia os fins de
semanas neste Arabizá, e depois domingo de tardezinha tenho de
acumular função. De professora passo pra enfermeira cuidando dos
hematomas, torcicolos, dores no corpo e feridas dele.

--- Mas a senhora mesma admitiu Mamãe que as finais do Arabizá


atraem a metade de Cristalina pra beira do nosso campo de várzea.

--- É verdade amor! Nosso filho tem razão. Eu vi você falando. Por
tanto este é o melhor de todos os motivos que uma pessoa comum e sem
vínculo tem para vir pro Arabizá no inverno.

--- A Senhora pode não gostar Mamãe, mas a cidade inteira gosta e
vem pra cá ver o jogo.

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--- E não é só o jogo filhote! Tem também os valores culturais
agregados ao evento.

--- Valores culturais agregados? Sabia que meu filho e meu marido
eram fanáticos pelo Arabizá, mas agora estou ficando com medo de vocês
dois.

--- Valores sim querida! Sempre que ganhamos uma partida. E digo
sempre porque é sempre mesmo! O time e as famílias dos jogadores vão
se reunir no Sítio da Cascata. Muita prosa, muita gente reunida, muita
comemoração. Senhor Flávio, dono do sítio é gaucho, assa o melhor
churrasco do mundo, serve vinho bom e também distribui doses de pinga
para adultos beberem e esquentarem o peito. E também a sua esposa
serve um almoço pro time e todas as famílias dos jogadores. Tem arroz
temperado, maionese completa, frango frito, toucinho, torresmo, angu,
feijão tropeiro, carne de vaca assada e a famosa lasanha que ela faz. E de
sobremesa goiabada com queijo. O manjar dos Deuses! E depois que
todos enchem bem a barriga cada um vai pra sua casa descansar e digerir
a vitória.

--- Não Pai! Isto é para os homens feito o Senhor, que tem de
voltar pra casa se não apanha da esposa! A maioria da turma vai até a
vendinha do vilarejo arrematar a tarde jogando truco, sinuca, contando
causos, rindo e bebericando, cerveja, vinho ou pinga.

--- Nem eu, e nem a sua mãe queremos ouvir falar de você mentido
nesta venda Alexandre. Você está proibido de ir lá pra fazer qualquer
coisa. Eu que sou seu pai não freqüento e não quero que você fique lá. Se
a gente souber que você anda freqüentando a venda cancelamos suas
férias no Arabizá para sempre!

--- Eu só vou lá pra comprar pão quando a vovó me pede. E isto eu


faço durante a semana de dia. Esta hora não tem movimento pai. E eu
vou a um pé e volto no outro!

--- Está certo filho, nossa venda também é nosso armazém! Pode ir
e voltar lá, mas só pra fazer favor a sua avó. Mas freqüentar apenas
quando fizer dezoito. E mesmo assim ao nosso contragosto!

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--- Pai o Senhor esqueceu o melhor. Não falou das quermesses que
o Padre Ernani e as Senhoras da Igreja realizam todos os sábados a noite
durante o mês de Julho!

--- Nossa meu querido filho bem lembrado! Dá água na boca só de


pensar, quentão, canjica, pé-de-moleque, doce de leite, goiabada, milho
cozido com manteiga derretendo encima, pipoca, queijo quente.

--- E têm os leilões de galinha caipira, ovo da roça, queijo fresco,


verduras da horta, quitutes, salgados, garrotes, leitões, cavalos e toda
variedade de coisa boa.

--- Meu Deus do céu! Meu marido e meu filho são dois matutos.

--- E não para por ai pai, tem a queima da fogueira de São Pedro, As
missas de sábado à noite, a novena de São Pedro nas sextas, os bingos no
final da missa, os sorteios das rifas da paróquia, as festas de peão na
fazenda dos Quincas as quinta, as rodas de violas na casa do Senhor Nono
nas quartas, a boa prosa e os comes e bebes servido depois do terço de
São Gonçalo na fazenda da Pedrinha, e as pescarias diurnas e noturnas, as
caçadas...

--- Então estes são os valores culturais agregados? Empolgantes


meninos!

--- Pai não adianta explicar a mãe nunca vai entender nosso jeito de
ser Arabizá.

--- Muito pelo contrário meu filho! Foi graças ao Arabizá que eu
conheci seu pai. Minha única razão para freqüentar esta terra.

--- E sabe filhote! O único, e exclusivo motivo que me faz morar em


Cristalina, estão aqui, bem na minha frente dirigindo um fusca, nas
estradas empoeiradas, sinuosas, de pista única, cheias de lombadas,
pedregulhos, mata-burros de madeira, porteiras de tábua velha, em fim.
Sua mãe enfia no meio do sertão do Arabizá só pra agradar a mim e a
você.

--- Olha filho é pelo seu pai e por você que eu suporto vir, e às vezes até
dormir no Arabizá. Respeito, e amo aqui por causa de vocês.
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--- Veja bem filho são por você e pela sua mãe que eu vivo feliz
todos os dias de minha vida em Cristalina. Respeito e amo aquela cidade
por isto.

--- Ai que nojo vocês dois, pare de fazer isto, pelo amor de Deus! Se
vocês se beijarem novamente dentro deste carro eu vou descer pra casa
da vovó sozinho e a pé!

--- Deixa de ser criança filho! Papai e mamãe se amam!


Respeitamos e admiramos as nossas diferenças e procuramos crescer com
elas.

--- É verdade filho! Unimo-nos pra somar! Para partilhar


experiências distintas e promover o crescimento através da comunhão das
diversidades de nossa cultura e personalidade que possuímos.

--- Mãe, pai, é claro que eu sei disto tudo! Não sou bobo! Entendo a
maturidade construtiva de nossos debates amistosos! No fim não é pra
ver quem são os vencedores e sim para conhecer melhor o outro e a nos
mesmo dentro do contexto familiar.

--- Este é o meu garoto! Eu acho que este menino é super dotado!
Olha as palavras que ele usa? Será quem ele puxou?

--- Não sei. Sendo eu a Professora da família sou meia suspeita pra
falar!

--- Escuta aqui vocês dois! Eu só sei de uma coisa! Já estamos


entrando no Arabizá.

--- Nossa meu filho é verdade. A gente nem viu a paisagem passar
direito! Mas eu pude reparar que a grama do campo está muito verdinha
apesar deste frio de doer que está fazendo!

--- É por isto que as finais de Julho são sempre disputadas aqui meu
pai. Nosso campo está construído encima de uma antiga várzea. No tempo
das águas, dependendo do volume de chuvas ele até chega a alagar, mas
no inverno seca e conserva a terra úmida e fresquinha e a grama é sempre
verde por este motivo.

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--- Verdade filho! Só no Arabizá que tem este tipo de geografia. E
por falar em geografia, nada de andar sozinho nas trilhas da estrada velha.
Nem de bicicleta e tão pouco a pé! Aquela estrada é muito antiga, está há
décadas sem passar carros. Só restou a trilha estreita no meio do
caminho. Eu tenho medo daqueles barrancos enormes desabarem e
fechar a trilha. E quando você e seu primo forem lá olhem bem para o
chão. Prestem atenção. Cuidado, pois pode haver cobras nas moitas de
capim.

--- Seu pai está certo meu filho! Eu morro de medo daquela estrada!
É uma trilha muito estreita, cercada de arbustos altos, e vai adentrando a
uma mata muito fechada, escura e fria. Prefiro que você e seu primo
brinquem em torno da igreja e nas ruas do vilarejo.

--- Isto mesmo que sua mãe falou! E têm mais dois avisos Senhor
Alexandre Lemos! O primeiro é:

--- Quando for ao campo, passe pela estrada nova. Ela é


empoeirada, estreita, mas é muito mais segura que a velha trilha da
estrada abandonada. Suba o Morro do Curió pela estrada e não tome
atalhos!

O segundo aviso é:

--- Você, seu primo e seus amigos podem ir juntos na estrada velha!
Mas quando chegar à altura da curva da divisa não entre na trilha que dá
acesso a represa abandonada do Senhor Tati.

--- Mais pai, a represa se rompeu a mais de 50 anos sei lá! Só


ficaram uns brejos cheios de taboas, minas, pequenas poças de água e
trilhas de animais! Não tem perigo. Lá só tem uma represazinha de nada
no meio disto tudo onde a gente pesca uns lambaris, e o Poço do Bambu
lá perto, mas a gente nunca vai nele.

--- Não quero saber de você indo sozinho na represa do Sr. Tati!
Aquilo é um labirinto muito perigoso. Podem esconder voçorocas, galerias
de água subterrâneas. Eu nasci e me criei aqui. Cansei de ver a terra ceder
e nascer poços da noite pro dia lá.

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--- Nunca vá ao Poço do Bambu. Ninguém até hoje achou o fundo
daquilo. Nem com adulto você pode entrar lá. Tem muita árvore ao redor,
quem nada lá corre o risco do pé se prender nas raízes se afogar e o corpo
sumir. E jamais nadem na represinha do senhor Tati também, não vá lá
com seu primo ou amiguinho. Se por acaso resolver pescar na represinha,
vá acompanhado do meu irmão. Ele é adulto e responsável. Conhece bem
a região. Nasceu e mora aqui todos estes anos. Por tanto ele entende do
que eu estou falando a respeito desta represa abandonada.

--- Acabou papai? Mãe? A Senhora também tem algum sermão pra
me dizer?

--- São recomendações necessárias para o seu bem meu filho. E eu


concordo com seu pai. Não dê trabalho a sua avó.

Enquanto o protocolo de recomendações seguia a todo vapor o


carro corria serpenteando pelas estreitas estradas do Arabizá levantando
uma nuvem de poeira por baixo de suas rodas. Minutos depois avistaram
o pequeno vilarejo do Arabizá. Havia ao todo umas cinqüenta casas
distribuídas ao longo de três ruas. O restante da população, que eram a
maioria, estava esparramado pelas pequenas fazendas vizinhas ao vilarejo.
As maiorias das casas do Vilarejo eram de telha curva, parede de adobe e
tinham quase as mesmas distribuições de cômodos. Geralmente eram
compostos por pequena sala de visita, dois ou no máximo três quartos e
uma cozinha modesta. Em todas as casas havia fogão a lenha! Mesmo
quando se fazia adaptações, reformas, ou nas poucas construções novas, a
regra era que a casa deveria ter um fogão à lenha.

A avó de Alexandre era mãe de seu pai. Ela tinha dois filhos homens,
um o pai de Alexandre e outro era o caçula que morava em uma casa
vizinha a dela no Arabizá. O tio de Alexandre era casado e tinha três
filhos, Uma filha na idade de 12 anos, que morava com eles, outra com 21
que se casou e foi morar em São Paulo com o marido, e o filho do meio
Herbert de 15 anos. Herbert não só era primo de Alexandre como também
seu melhor amigo.

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Outra curiosidade das casas do Arabizá era que em suas velhas
construções não havia banheiro interno. Os banheiros vieram depois.
Provavelmente começaram a partir da década de 70. As maiorias dos
banheiros ficavam anexados a casa, com a porta virada para o lado de
fora. Isto era quase uma regra. Abria-se a porta da cozinha para sair no
terreiro e lá estava a porta do banheiro. A casa da avó de Alexandre e de
seu primo Herbert não era diferente. Mas a casa da Avó de Alexandre e a
de seu primo ficavam no centro do Arabizá. Chamavam de centro porque
bem no meio havia uma grande floresta. Quem visse esta mata bem
fechada e com as copas das árvores enormes, poderia imaginar que ali,
algum dia, houve uma praça. Porém, aquele lugar não tratava de uma
antiga praça, e sim das ruínas abandonadas de um imenso e misterioso
casarão. Bastava observar mais de perto. O formato da mata era redondo,
por este motivo a última Rua do Arabizá era uma rua oval que
acompanhava o formato desta pequena floresta. Do lado interno não
havia casas, as casas estavam do outro lado da rua. Eram as mais antigas,
com grandes alicerces de pedras e quintais imensos separados por cercas
de bambu. Do velho casarão o tempo só deixou sobreviver às partes
pequenas de o alicerce circular do jardim. Ninguém se atrevia tomar
posse daquelas terras, cortarem suas árvores ou se quer entrar lá.
Embora fosse cheio de natureza e vida, o local vivia cercado de mistério,
lendas, verdades e superstições. Quando um ou outro morador atrevia-se
a entrar lá, nada de extremo ou grandioso acontecia. Mas muitas pessoas
evitavam por causa das sensações e sentimentos estranhos que tinham ao
adentrar esta mata. Uns sentiam dor de cabeça, outros eram tomados
por calafrios, alguns por melancolia ou simplesmente tinham fortes
intuições e cismas. E no mais a comunidade aceitou aquela mata no meio
da rua como quem recebe uma praça coletiva. Era propriedade comum.
Assim determinou os moradores. Dentro da mata havia sucos, e morros
nas terras, e muitas pedras grandes esparramadas. Isto dificultava que
alguém cortasse caminho pela mata. Por isto não houve quem se
atrevesse abrir uma trilha por lá também.

22
Devidamente instalados no Arabizá a família Lemos deixou seu
único filho aos cuidados de sua avó e retornou a cidade. No pouco tempo
que teve do entardecer até a noite Alexandre percorreu quase todas as
imediações na companhia de seu primo. Foram na única escola da
comunidade, visitaram o Poço do Fubá, e terminaram a noite atrás da
Capela, com um pequeno grupo de amigos, contando causos e se
aquecendo em torno da fogueira. Alexandre tinha a vida de um
adolescente normal até aquele momento. Claro que tanto ele quando
seus pais não conseguiam entender o apego que o garoto tinha pelo
Arabizá. Deixar o conforto de uma casa grande e imponente na cidade,
para se abrigar na limpa, modesta e pequena casa da avó. E não era
apenas isto. Os atrativos da cidade eram muito mais empolgantes para
um jovem do que os da pequena comunidade do Arabizá. Por muitos
anos o próprio Alexandre se perdia em pensamentos inconclusivos a
respeito deste apego tão arraigando que ele sentia pelo Arabizá.

***************

2 - Pesadelo.
Em silêncio olhando para o teto, Alexandre tentava pegar no sono.
O cansaço físico e mental era muito e isto o impedia de desacelerar,
repousar e dormir. Sempre que vinha para o Arabizá era assim. Alexandre
se via arrebatado por um misto de vários sentimentos.

Então ele se lembrou do entardecer daquele dia e remergulhou na


melancolia nostálgica que imediatamente transportou seus sentimentos
aquela tarde morna. Contemplou em pensamento o sol se por atrás da
montanha vendo a penumbra se aproximar aos poucos, enquanto
pássaros, voando aos bandos, procuravam abrigo nos horizontes daquele
vilarejo pouco iluminado. Uma saudade monótona e ao mesmo tempo
aconchegante, sempre tentava se aproximar de Alexandre quando ele se
via sozinho nas tardes ou nas noites do Arabizá. Estas sensações vinham
feito um fantasma. Mistérios de algo que um garoto de 16 anos não
conseguia sondar. Tão pouco dimensionar este apego arraigado, quase
uma obrigação da alma que o levava ao Arabizá.

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Durante o dia Alexandre preenchia a vida com atividades juvenis.
Andava e vivia cercado de amigos, em companhia do primo, ou as voltas
ajudando e aproveitando a amizade atemporal que tinha com sua querida
avó.

Porém ao cair da noite, quando o silencio é táctil e a meia luz da lua


era sua única fonte morna de claridade a vazar pelas frestas do telhado
antigo e nos vão das portas e janelas. Quando este clima de isolamento
invadia o pequeno quarto de Alexandre era que ele se sentia um estranho
no ninho. Vinha o deslocamento. Uma sensação de que estar ali com a
freqüência e apego que ele estava não fazia sentido. Mas se não é razão
sua estadia, pois todas as coisas na cidade lhe eram muito mais atraentes
e abundantes que no Arabizá, o que lhe atraia aquele lugar? Pensava,
questionava, e tudo lhe parecia vago. Menos a estranha sensação de
deslocamento e a sede de resposta que angustiava e fazia divagar em
pensamentos agora cada vez mais inconclusivos e acelerados. Nada de
sono. Alexandre queria uma resposta. A imaturidade tem pressa, e o
tempo tem as suas razões. O atrito disto gerava uma busca agonizante.
Alexandre tentou distrair as idéias. Procurou pelo mugido das vacas, pios
de coruja, um uivo do que quer fosse, mas nem os grilos cantavam
naquela noite. Tudo era silêncio. Não havia se quer os estalos da madeira
se delatando no assoalho. Antes, quando tinha estas sensações, as
banalizavam e logo dava um jeito de se distrair. Dizia a si mesmo que isto
passa, toda noite é assim mesmo aqui no Arabizá, ou simplesmente se
consolava dizendo:

--- Relaxa Alexandre! Você só está estranhando a casa e o ambiente.


Sozinho a gente sempre pensa besteira.

Em seguida começava a bombardear a cabeça de idéias agradáveis,


e fazia planos de atividades de férias e logo em seguida conseguia pegar
no sono. Mas hoje era diferente. Os placebos psicológicos não estavam
surtindo efeito. Alexandre se sentia atraído por aquela correnteza de
pensamentos. Tentou de início livrar-se deles, mas isto só trouxe mais
pensamentos e questões.

24
Talvez fossem sintomas da maturidade, vontade de enfrentar os
dilemas da vida e partir em busca de respostas mais satisfatórias a
respeito de si mesmo e das razões que compõe seu mundo. Também
havia o encantamento por aquelas questões. Ele mesmo ficou
deslumbrado de ver que sua mente era capaz de compor raciocínios tão
profundos, coerentes, e se relacionar com perguntas existenciais tão
maduras e complexas. Alexandre viu-se diante do adulto que havia dentro
dele e não conseguiu entende por onde ele entrou. Como ele estava
pronto? E por que só se manifestou naquele momento? Se fosse expor em
palavras Alexandre não conseguiria expressar. Estava embasbacado,
como ele com aquela pouca idade tinha este dom tão peculiar?

E foi no meio desta empolgação que Alexandre não se conteve.


Quebrou o silêncio da noite, perguntando a si mesmo:

--- Por que eu gosto tanto daqui?

Sentiu envergonhado com a pergunta, pois temeu que sua avó, que
dormia no quarto ao lado pudesse ter ouvido. Depois ele voltou à torrente
de pensamentos.

Agora parecia que sua cabeça era um lugar de todos. Um lugar


aonde se vinha fragmentos de respostas de todas as direções. Cada
fragmento tinha um som específico tal qual a voz de estranhos. Cada
fragmento de voz entrava e saia com uma resposta em sua cabeça, e às
vezes se quer conluia um raciocínio dando espaço à outra voz com outra
resposta ou outra pergunta.

Estes sons de pensamentos pincelavam coisas do tipo:

--- Olha Alexandre isto é um vício!

--- Não Alexandre é genético. Seu pai também ama o Arabizá.

--- Você é roceiro, e daí?

--- Pensa bem garoto você gosta daqui porque está de férias! Duvido
que você fosse gostar daqui se de estudasse ou trabalhasse no Arabizá!

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--- Admite mocinho você está apaixonado pela Naiara dos olhos
verdes...

--- No fundo você acredita que vai transformar em um grande


jogador de futebol e acha que vai ser descoberto aqui no Arabizá.

--- Não, isto se deve ao fato da sua família ser pequena, seus primos
e sua avó estão aqui, por isto...

--- Quando você casar nem vai lembrar que existe Arabizá...

--- Você tem aqui uma dívida de outros tempos.

--- Amanhã deve acordar cedo pra pescar...

--- Seu primo também pensa coisas deste tipo... Deve ser da idade...

--- Você precisa rezar...

--- Para de pensar, se não vai ficar doido, deixa essas questões pra
lá, isto não chega a nada...

--- Trata-se de questões antigas, pendências oriundas de vidas


passadas.

--- Você tem é de se benzer... Procurar um padre...

Alexandre mergulhava cada vez mais na busca de uma resposta


satisfatória. Na verdade já havia encontrado, porém relutava em não
aceitar a resposta que lhe parecia mais coerente. E foi ai que ele sem
querer quebrou o silencio outra vez dizendo:

----- Dividas de outras vidas, não!

Negar era preciso. Ele não entendia, acreditava, ou se quer aceitava


esta resposta. Em seu íntimo Alexandre estranhamente pressentia que
aquela era a mais coerente das respostas. Porém na superfície, sua
formação religiosa, seu medo de enlouquecer mergulhando em questões
complexas e a desconfiança implantada em torno da Doutrina o fazia
temer a simples hipótese de considerar este pensamento.

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Mas não teve jeito. Sua cabeça ferveu e o sono fugiu para outro
País. Alexandre estava convicto de que a loucura o havia arrebatado de
vez. Ele, que apesar de freqüentar a Igreja católica, não entendia de
experiências e vivencia religiosa. Para Alexandre Religião era como uma
matéria escolar. Algo que se estudava, praticava e seguia sem muito se
preocupar. Ele era assim. Dogmático. Aceitava e não questionava muito,
buscava sempre a zona de conforto evitando aprofundar-se.

Este fato se deve em parte a sociedade que nivela por baixo o


potencial intelectual dos Adolescentes. Os coloca na categoria de
espectadores, julgando-os incapazes de transcender questões que vão
além das grades curriculares.

Alexandre tinha isto arraigado em seu comportamento. Achava que


ser religioso estava simplesmente associado a ser bom e também era
simplesmente ser obediente aos pais e professores. E ser religioso era
uma questão mecânica que se resumia em freqüentar e participar no que
lhe fosse solicitado. Ele imaginava que um garoto da idade dele tinha de
seguir o bando e se preocupar com a marca do Tênis, com a roupa nova, o
perfume, as provas e em aproveitar mecanicamente a juventude, pois
todos diziam que ela ia passar rápido. Alexandre acreditava no caminho
prático, trabalhar, estudar, divertir. Achava que este tripé era o segredo
da vida feliz.

Mas de onde vinha aquele Alexandre? Este adulto? Este que


acredita em coisas que o garoto achava ser perigosa? Por que ele quer
quebrar tabus internos? Aonde ele quer chegar? Pra quê? De nada
adiantou. Alexandre estava preso em um remanso de pensamento. E por
mais que ele tentava fugir com outras idéias e assuntos a palavra “vidas
passadas” latejava em sua mente. Mas forte e intensa era a sua negação
sobre o tema, tão forte que seu organismo manifestou.

Começou latejando bem de leve, e aos pouco foi aumentando, até


que quase sem perceber Alexandre se deparou com uma intensa dor de
cabeça.

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Pronto, estava salvo. Agora toda a atenção do garoto esta voltada
para dor. A dor o fizera esquecer tudo. Ele agora está concentrado em
apenas livrar-se dela neste instante.

Assim Alexandre saltou da cama, seguiu em direção a mochila,


abriu-a e retirou uma cartela de comprimidos em um de seus muitos
compartimentos de zíper. Abriu a porta do quarto, caminhou até a
cozinha, pegou um copo de alumínio, encheu de água do filtro, engoliu o
comprimido e tomou em seguida a água do copo. Voltou para o quarto,
ajoelhou-se próximo a cama e puxou um penico de plástico de cor branca.
Fez xixi no penico, guardou penico em baixo da cama novamente, e deitou
na cama. A avó de Alexandre sempre trancava a porta da sala e da
cozinha deixando o banheiro da casa fechado do lado de fora. Se fosse
preciso ele a acordava, mas para fazer xixi, não tinha precisão. Alexandre
usava o penico. Ou “Suíte de pobre”, como ele costumava brincar com
avó.

Acomodado novamente na cama Alexandre só tinha um desejo.


Aguardar a dor ir embora. E aos poucos a dor foi se afastando da cabeça
do garoto. E à medida que ela se afastava lentamente o sono se
aproximava. E foi assim que Alexandre finalmente conseguiu dormir. O
medicamento abaixou um pouco sua pressão, e o sono também ajudou
neste processo. Relaxado, o corpo se entregou ao merecido descanso
reparador. Em alguns minutos, após a dor passar Alexandre estava
mergulhado em um sono profundo e pesado.

E foi então que veio o pesadelo.

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Em seus sonhos Alexandre sentia cheiros.

Por milésimos de segundo teve a sensação de saber estar sonhando.


Isto lhe ocorreu mais rápido que um flash.

Inspirou bem fundo e sentiu novamente o cheiro entrar em


suas narinas. Era cheiro de comida e bebida. Der repente se viu no meio
de uma grande festa.

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Começou a ouvir som de instrumentos, uma profusão de vozes a
cantar, falar, gritar e sorrir. Os sons se misturavam tornando-se
indecifráveis os diálogos, tal qual acontece em grandes bailes. Deu para
perceber que as luzes vinham de velas. Eram luzes amareladas,
trepidantes que pareciam dançar ao sabor dos ventos e vultos que
circulavam na casa. Sabia-se que era uma casa, pois via de relance,
paredes amareladas, telhas curvas, cumeeiras, assoalhos e grandes portais
vermelhos e grossos. Outro pressentimento invadiu Alexandre. De relance
entendeu que estava no Arabizá. Percebeu se tratar de coisas antigas. De
tempos e pessoas de outra época. Mas lhe intrigava o fato de não
reconhecer aquela casa onde estava em questão. Pois todas as casas do
Arabizá eram antigas e algumas até centenárias. Mesmo em um sonho
Alexandre saberia reconhecer qual delas ele estava. Mas aquela casa não
era familiar. Estava no Arabizá. Tinha uma forte intuição. Tão forte que lhe
passava a mais convicta das certezas. Mas não reconhecia aquela casa
grande e estranha.

O som foi aumentando. Alexandre tentava reter as informações.


Tudo em vão. Via pessoas, mas não via rostos, só vultos. Ouvia sons, mas
não entendia as palavras. Tudo aparecia e desaparecia feito fumaça.
Cenas se construíam e desconstruíam dando lugar a outras em um passe
de mágica. As únicas coisas que se mantinham fixas eram as certezas que
Alexandre tinha. Ali era o Arabizá, estava ele em uma festa, e as pessoas
não se vestiam,comiam, ouviam música ou dançavam como as pessoas de
1997. Tratava-se de outro tempo bem remoto.

Alexandre viu vultos de saias rodadas compridas e encardidas, viu


blusas de manga longa, viu homens de botas pesadas, calças de pano, e
camisas cheias de bordados e arremates, viu cabelos compridos, dentes,
alguns tortos, outros careados e quase todos amarelados. Via tudo isto se
dissolver e se construir na sua frente e estranhava-lhe o fato de ter
certezas. Uma delas era que estas pessoas tinham algumas posses e certo
prestigio social.

Der repente todos os vultos e vozes entraram em desespero e


começaram a gritar e correr por todas as direções.

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Começou a chover cacos de telha, ripas, rebocos, tijolos e um
grande clarão de fogo cresceram feito um raio. Quando deu por si
Alexandre se viu sentado no chão assistindo todo aquele caos. Não
conseguia se mexer e o pavor tomavam conta de seu corpo. Com muito
esforço olhou para cima e viu um enorme caibo vir em sua direção.

Já em outra cena de seu sonho Alexandre estava completamente


em pânico e não conseguia se mexer. Escutava uns gemidos, e pedidos de
socorro, mas aos poucos as vozes iam cessando. Sentia água subindo pelo
seu corpo lentamente. Isto lhe causava muito pavor. Não sabia onde
estava. Estava tudo escuro, frio, e os restos de construção pareciam
envolver o seu corpo feito um cobertor. Der repente à água subiu de uma
só vez cobrindo toda a sua cabeça. Em um surto de fobia e desespero
Alexandre puxava o ar e ele não vinha. Esforçava, debatia, tentava em vão
respirar, gritar por ajuda...

Com grande susto Alexandre acordou deste pesadelo.

-----------------------------------

E foi assim que o garoto acordou do sonho. Agora com a


consciência retomada Alexandre percebeu que tudo não passou de um
grande e nítido pesadelo. Ele se assustou tanto que quando acordou
estava sentando na cama. Pensou em gritar pela avó pra saber se ela o
escutara sonhando. Mas não o fez. Imaginou que se ela tivesse ouvido
teria vindo em seu quarto lhe perguntar pelo ocorrido. E foi então que
Alexandre começou a sussurrar para si mesmo:

--- Calma Xandi, tudo não passou de um sonho moleque. Ninguém


te escutou sonhando medroso. Viu! A dor de cabeça já passou e meu sono
ainda continua. Volta a dormir porque amanhã você tem história pra
contar para o primo Herbert e pra vovó.

Quando estava sozinho Alexandre gostava de conversar baixinho.


Chamava este habito de loucura do bem. Dizia ser do bem, pois já flagrara
seu primo, avó, pai, mãe e amigos agindo assim também. Por isto chama
de loucura do bem. Algo estranho, mas bom e que não causava mal
alguma e muita gente que ele conhecia praticava.

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Alexandre se levantou da cama. Foi até a cozinha bebeu um copo de
água. Olhou pelo basculante da cozinha o terreiro da casa. Era a única
janela de vidro desta residência. Um basculante pequeno, mas por ele
Alexandre viu a luz doce da lua dar contorno às formas do terreiro. Sentiu
um calafrio correr pela sua coluna. Aquele terreiro iluminado e silencioso
parecia cenário perfeito para mistérios e causos antigos. Estava tudo
muito quieto e um ar de cisma sinistra sondou os sentimentos de
Alexandre. Em seguida Alexandre deu de ombros para este medo que
sentira e voltou para o quarto. Deitou na cama enfiando-se debaixo dos
cobertores e procurando um lado aconchegante no colchão e no
travesseiro. Logo, logo ele voltou a dormir.

E outro sonho lhe pegou de relance.

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Em seu novo sonho Alexandre percebeu que a escuridão era


intensa. Também reconheceu estar no Arabizá. Sim, ele sabia até o local
onde se encontrava. No Morro do Curió. Estava subindo o Morro do Curió
à noite. Era uma noite muito escura, sem lua, sem estrelas, e não havia
lanterna ou luz iluminando o caminho. Alexandre não via seu corpo,
apenas via as siluetas pouco definidas de si mesmo e de uma pequena
trilha de terra. Também tinha a sensação de estar caminhando, pois sentia
a cadência do corpo feito quem caminha morro abaixo. Tentou
incessantemente ver o próprio corpo, mas não conseguiu.

Em um dado momento de seu sonho Alexandre viu os braços, suas


mãos e elas seguravam um objeto que parecia ser um chicote.

Em sua frente surgiu um vulto ainda mais negro que a escuridão.


Este vulto tinha contornos de um menino. Parecia esquelético curvado e
frágil. Alexandre começou a chicotear este vulto. O vulto caia pelo chão.
Dava para ouvir o barulho de seu corpo caindo sobre o cascalho da trilha.
Quanto mais o vulto se defendia com as mãos, se agachava ou tentava se
esquivar mais Alexandre o chicoteava.

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Alexandre sentia um prazer mórbido em chicotear este vulto.
Sentia muito ódio por aquela criatura. Tanto que a raiva lhe despertava
grande euforia e prazer. Causar dor no vulto lhe dava razão de estar ali. E
ele chicoteava para evitar pensar e para dar vazão aos sentimentos.
Pressentia que o vulto merecia o sofrimento e ele tinha motivos para se
vingar do vulto. Só não entendia as bases destes motivos.

De rápido relance o cenário do sonho mudou novamente.

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O que mais ele estranhou nesta cena foi à nitidez intensa e clara
com que via e enxergava as coisas ao seu redor. Imediatamente Alexandre
trocou de sonho. Agora estava em um barco no meio de um lago
gigantesco. Uma incrível sensação de conhecer aquele lugar lhe tomou
por inteiro. Era um lago maravilhoso! Imenso e a paisagem ao redor deste
lhe parecia muito familiar. Outra vez Alexandre reconheceu, em seus
sonhos, estar no Arabizá. Aquela era sem sombra de dúvidas a região
onde estavam à estrada velha e a represa abandona do Senhor Tati. Só
que em seus sonhos a represa não era abandonada. Muito pelo contrário.
Era um grande lago, com suas margens límpidas e águas bem
transparentes. A distância viu uma bela e bem cuidada estrada de terra. A
estrada acompanhava a margem esquerda do lago formando um grande
“S”. Avistou de longe, quase se misturando no horizonte, o que lhe
parecia ser um imenso muro de pedra. Deduziu que aquela estrutura
gigantesca seria a comporta daquele imenso lago. Ele também entendeu
que por baixo das águas deste lago estavam o Poço do Bambu e seu
sumidouro, as dezenas de minas e açudes e na parte mais funda a
represinha. Tudo isto devia estar dormindo abaixo daquele monumental
espelho d água.

Alexandre ficou espantado quando olhou o próprio corpo. Ele


parecia ser outra pessoa. Era muito branco. Sua pele tinha tonalidade
pálida. Acariciou o próprio braço e viu que era tão pálido que conseguia
ver os contornos de suas veias sob sua pele. Depois estranhou suas
roupas. Eram limpas, engomadas, elegantemente discretas.

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Percebeu que estava de sapato preto de cano longo e couro groso.
Logo pressentiu se tratar de alguém importante e rico. Notou também que
as roupas eram de outros tempos. Sabia que estava em outro corpo, mas
pressentia que este estranho ao mesmo tempo era ele. Tinha a mesma
idade, mas a cor, os movimentos, a personalidade e maneira de pressentir
as coisas eram distintas. Foram alguns segundos de espanto e admiração.
Quase um estado de êxtase. Mas tão breves eram as imagens, mais
fugazes eram as sensações. E em tudo Alexandre punha atenção e tentava
reter a intensidade de toda aquela informação. Inspirou novamente e
sentiu um cheiro forte e agradável vindo de seu corpo. Era o odor de seu
perfume. Um odor amadeirado com toque adocicado de uma flor que ao
mesmo lhe era familiar, no entanto o nome se fazia desconhecer.
Conhecia o cheio. Novamente estranhou o fato de entender estar dentro
de um sonho. Ficou maravilhado e confuso por estar sentindo cheiro
novamente. Então tudo se desfez outra vez. E como sonhos não têm nexo
e nem tão pouco regras o garoto mudou de cenário novamente.

Agora Alexandre estava dentro de um barco maior no meio do


próprio lago. Parecia uma noite muito clara e as imagens eram nítidas.

Der repente Alexandre ergue um imenso enrolado de pano branco e


corda. Debaixo destes panos parece haver um rapaz com a mesma
estatura que ele. Este moço reluta, e tenta em vão se mexer. A boca desta
criatura não emite som, apenas um grunhido abafado, agonizante e
fundo. Sem dó nem piedade Alexandre joga este corpo amarrado na água
e fica assistindo atônito o corpo afundar. O corpo afunda lentamente e à
medida que vai afundando nas águas os lençóis e cordas vão se
desenrolando. De súbito Alexandre vê o seu próprio rosto refletido no
espelho d água. É o mesmo rosto pálido, e esbranquiçado da cena
anterior. Alexandre toma um baita susto. O corpo que afundava retorna
a superfície com grande fúria e velocidade. Ele salta para cima de
Alexandre tentando puxá-lo para o fundo das águas com ele. Mas o que
mais intrigou e deixou Alexandre em pânico foi o fato de o corpo estar
livre dos lençóis e o rosto desta criatura era o mesmo que ele viu refletido
no espelho d água.

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Ou seja, Alexandre e o corpo eram a mesma pessoa, ou seriam seres
diferentes? Um forte estado de agonia e pavor tomou conta de Alexandre.

Foi que de relance ele ouviu um grito forte, seco e muito


sinistro. Um grito tão agudo e carregado de dor, mas tão estranho e
monstruoso que parecia vir de dentro da sua alma. Aquele som se
misturou com tudo e dominou por completo todo o ser de Alexandre. O
susto e a confusão ganharam espaço. Tudo era tão real que Alexandre
acordou assustado novamente.

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Alexandre ergueu o corpo na cama em uma velocidade


admirável vindo a ficar sentando na nela outra vez. Por vários segundos
ficou ali estático, com o olhar voltado para o nada, tentando distinguir o
real do imaginário. O grito fora tão claro e visceral que Alexandre não
conseguia entender se veio do fundo de seus sonhos nítidos, ou fora
alguém real que berrara desta forma agonizante, naquela madrugada fria
do Arabizá de 1997.

Aos poucos Alexandre fora digerindo a situação. Assim a consciência


foi se retomando lentamente até fazê-lo compreender que tudo não
passara de um pesadelo outra vez. E foi então que ele disse:

--- Meu Deus do céu! Que pesadelo! Deve ser por causa do remédio.
Será que já são cinco horas da manhã? Que foi isto meu pai? Agora
pesadelos têm segundo tempo igual a jogo de futebol?

Alexandre olhou as horas no celular que estava na cabeceira da


cama. Eram três e quarenta e cinco. Logo em seguida Alexandre deitou
novamente na cama, puxou as cobertas e levou a mão sobre o calção do
pijama tomando um baita susto:

--- Nossa não acredito que isto está acontecendo comino! E agora?
Era só o que me faltava! Não bastasse toda esta sonharia acabei urinando
na cama!

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Alexandre verificou novamente com cuidado seu corpo. Sentiu
certo Alívio em constatar que não havia molhado a cama e sim apenas
parte da cueca e do calção:

--- Ainda bem! Ufa! Foi só um jato que escapuliu. Ninguém nem vai
ficar sabendo disto.

Alexandre começou a bolar um plano para não deixar ninguém


saber que ele havia feito xixi nas calças. Igual ao que aconteceu com a dor
de cabeça este fato lhe tirou a atenção dos sonhos. Antes Alexandre
estava cabreiro com a nitidez e com a capacidade de sentir cheiro durante
os sonhos. Agora ele só se preocupava em resolver o problema do xixi.

Como todo Adolescente ele era muito vaidoso e não queria virar
motivo de piada em todo Arabizá. Isto ele não ia permitir. E sendo ele um
dos jogadores do time dos sonhos do Arabizá havia sua legião de meia
dúzia de meninas. Suas fãs e futuros namoricos. Este era sem dúvida a
sua principal fonte de vaidade e pudor e a principal razão para ele se livrar
das evidencias do ocorrido tal qual um criminoso se livra das pistas de um
crime.

O plano fora traçado. Alexandre teria de fazer grandes sacrifícios.


Primeiro ele saltou da cama e tirou toda a roupa do corpo. Ficou
completamente nu no meio do quarto sem acender a luz para não acordar
avó. Depois ele pegou uma sacola plástica na mochila e colocou a roupa
nela. Deu um nó na sacola. Em seguida escondeu a sacola no fundo da
mala. A idéia era levar para Cristalina a sacola com a roupa e quando a
empregada se distraísse colocaria a roupa na máquina junto com as
outras. Sua avó não poderia lavar aquelas peças, porque ela separava as
roupas uma a uma. Como ele nunca lavava roupas também estranharia se
ele lavasse aquela. Tinha de ser do jeito que ele planejou. E esta fora a
parte mais fácil do plano.

Alexandre começou a tremer de frio. Tentava controlar para não


bater o queixo e não fazer barulho com toda a tremedeira. A segunda
parte do plano era mais ariscada. Ele precisava se lavar sem usar o
banheiro. Não poderia pedir a chave para a avó.

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Ela tinha boa memória e certamente estranharia o fato dele trocar
de roupa sem esperar a noite terminar. O cheiro de xixi poderia levantar
suspeitas, pensou Alexandre. Ele precisava se livrar daquelas evidências
sem a ajuda de ninguém. Caso contrário seus planos de não ser
descoberto iriam por água abaixo.

O jeito era se lavar no terreiro. E foi o que Alexandre fez.


Abriu a janela de madeira do quarto com muito cuidado para evitar
rangido, e saltou para o terreiro. Seria rápido e simples. Já que era jovem,
estava de noite, e sua avó não criava cachorro por causa do gato de
estimação na casa. Por este motivo Alexandre poderia entrar e sair pela
janela de seu quarto sem levantar suspeita. E ele já fizera isto várias vezes
nas noites quentes de verão quando perdia o sono e caminhava no
terreiro aproveitando a brisa da noite. A única diferença era que aquela
noite estava muito fria e ele estava nu. Apesar de não estar ventando o ar
estava frio feito a gaveta de verduras de uma geladeira. Era noite de lua
cheia e o terreiro se encontrava claro e dava pra ver com nitidez a direção
das coisas. Alexandre correu despido para o tanque de cimento próximo
a casa. Não quis se enrolar na toalha temendo transferir o cheiro para ela.
Foi até o tanque e cobrindo as partes com as mãos. Tremia feito uma vara
verde e seus lábios estavam ficando roxos de frio. Ia retirar um farto
balde de água para limpar abaixo da cintura quando se lembrou de um
detalhe:

--- Se eu retirar à água da caixa a bóia vai ligar para repor outra.
Não posso fazer isto. Esta velha bóia faz mais barulho que um avião! Até
avó que tem o sono pesado pode acordar com o escândalo que esta
maldita bóia faz. E agora o que eu faço? Não posso voltar e deitar sem me
lavar, meu cheiro no dia seguinte vai me denunciar.

Alexandre era todo rompante e confusão. Estava tão preocupado


com o fato de se limpar e se livrar daquele ocorrido sem deixar suspeita.
Tão preocupado que começou agir sem muito pensar. Cometeu vários
erros grotescos e primários. Coisa que se tivesse parado para pensar
melhor não necessitaria nem ter saído do quarto. Mas naquele momento
Alexandre não agia movido pela razão. Agia movido pela vontade. E sendo
assim acatava a primeira idéia que aparecia em sua mente.
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De súbito teve uma idéia. Correu em direção ao paiol de milho da
casa de sua avó. Atrás do paiol havia a entrada de uma mata. E pouco
antes de adentrar esta mata tinha um pequeno riacho. Alexandre
agradeceu o fato de sua avó não possuir cachorro. Se tivesse faria um
grande escândalo. O cão mais próximo era o da casa de seu primo
Herbert. Mas este animal era tão velho que jamais se atreveria sair de sua
casinha para percorrer o terreiro naquela friagem toda. Nem o cão e nem
o resto do Arabizá sairia de casa naquela madrugada fria. No mais os
animais do Arabizá estavam familiarizados com o cheiro de Alexandre.

Enquanto pensava estas coisas Alexandre tentava se lavar o mais


rápido possível. Sentia muito frio, a água estava mais gelada ainda e pra
piorar ele teria de ficar um tempo atrás do paiol aguardando a água secar.
Era um tempo que não passava nunca. E quanto mais tremia mais
Alexandre sonhava como o travesseiro macio, o colchão quentinho e o
conforto de suas três cobertas aconchegantes. Alexandre tremia
encolhido atrás do paiol. O tempo parecia remar contra a maré. A
sensação era que isto não ia acabar jamais. Em um rompante Alexandre
olhou na lateral do paiol e planejou sua volta para o quarto. Parte do seu
corpo estava úmida, porém nada de mais. Isto terminava de secar na
cama. E como era apenas água não traria nenhum transtorno. Então
Alexandre começou a conversar consigo mesmo pra passar o tempo e
planejar sua estratégia de retorno ao quarto:

--- Pronto Xandi, seco, seco, não vai ficar não! To meio úmido, mas
não vai molhar o lençol. Isto seca sozinho sem deixar rastro. Ainda bem
que o terreiro da vovó é muito bem varrido. Se não fosse eu poderia sujar
o pé. Tanto faz também, se eu sujar falo que saí pra ver alguma coisa
suspeita. O importante é ninguém ficar sabendo que fiz xixi na cama.

Terminado o diálogo consigo mesmo Alexandre deu o primeiro


passo em direção a casa. Este foi o primeiro e último passo que ele
conseguiu dar.

37
Ao virar repentinamente para voltar á casa Alexandre viu de
relance a mata. O que ele viu lá o deixou completamente petrificado.

O que era Aquilo?

Um medo intenso percorreu todo o corpo de Alexandre. Este pânico


desceu pela sua coluna provocando mais tremedeira, frio e arrepiando
todos os seus pelos. Seus olhos se arregalaram, as pupilas se dilataram o
máximo que puderam. Ele perdeu o domínio sobre o corpo. Não
conseguia correr, e se esforçava para que a tremedeira não o jogasse no
chão de vez. Permaneceu de pé, paralisado, e agonizando de medo. O
estomago revirava, o coração parecia que saltava pela boca, a cabeça
fervia de pensamentos acelerados. Alexandre permanecia ali. Parado,
tentando involuntariamente ficar imóvel. Tinha a impressão que seu
corpo queria ficar ali e passar despercebido aos olhos daquela criatura, ou
seja lá o que aquilo fosse.

O que se plantou diante dos olhos de Alexandre naquele momento


foi um fenômeno. Um evento de natureza desconhecida por muitos e por
ele. Não há nada mais nocivo para o homem do que a sua própria
ignorância. Por este motivo o assombro de Alexandre diante deste
ocorrido por pouco não extrapolou a linha tênue da razão e da loucura.
Não fosse a sua juventude, sua saúde de ferro e coração forte há esta hora
ele poderia até ter desfalecido de tanto susto. Alexandre, naquele
momento sofria os prejuízos da falta de conhecimento científico e colhia
os frutos de uma busca espiritual superficial. Ao depara-se com aquele
fenômeno sua mente buscou compreensão para definir o ocorrido. Porém
tudo o que sua cabeça conhecia estava relacionado a assombrações,
demônios, almas perdidas, lobisomens, criaturas sinistras de filme de
terror, extraterrestres que seqüestravam pessoas e as matavam, e todo
tipo de coisa ruim. Estes preconceitos agravaram seu medo e acentuaram
profundamente o assombro diante o que ele viu.

Na verdade o que Alexandre viu, e que quase o matou de medo, foi


uma grande bola de fogo azulada. Tinha uma luz pouco luminosa, a
coloração de suas chamas era a mesma coloração que tem o fogo dos
fogões a gás.

38
Era mais ou menos do tamanho de uma bola grande de fisioterapia.
Seu formato oscilava entre cilíndrico, oval e outras formas arredondadas.
Parecia consumir a si mesma pela própria luz. Uma luz fraca como já foi
dito. E o mais assombroso era que esta bola flutuava livremente no
espaço sem nenhuma base de sustentação ou ponto de origem de suas
chamas. Esta luz surgiu no repente vindo do fundo da mata. Flutuou em
linha reta na direção da mina, dando a entender estar indo de encontro a
Alexandre. Chegando à mina a luz acompanhou o curso d água por alguns
metros, em seguida fez uma curva em torno de si mesma e terminou sua
aparição embrenhando-se na mata novamente até que Alexandre não
enxergasse mais sua luz.

Quando a luz misteriosa se foi de vez Alexandre recobrou o


domínio de seu corpo, conseguiu, entre o pânico profundo que sentia um
pouco de controle e forças nas pernas. Rapidamente sem pensar em nada
retornou para o seu quarto na velocidade de um vulto, saltou a janela
feito um puma, fechou a janela, enfiou-se debaixo das cobertas e lá ficou.
Debaixo das cobertas Alexandre era uma tremedeira só. Tremia de frio,
tremia de medo, achava que ia morrer pois seu coração batia cada vez
mais acelerado, e sua cabeça não distinguia o que era sonho, realidade, o
que viu o que não viu. Tudo estava muito confuso.

Para solucionar o problema do medo Alexandre começou a rezar


como nunca havia rezado na vida. Tentou bloquear qualquer
pensamento, fobia ou sensação. Engatava uma Ave Maria atrás da outra,
recitava um Pai nosso Atrás do outro. Franzia a testa, e apertava a pele da
face rezando cada vez mais rápido. Não poderia deixar brechas para
pensar em outra coisa. Precisava sentir que algo ou alguém superior o
protegeria de tudo aquilo. Tinha de fugir do desconhecido, tinha de ter de
volta a vida normal e corriqueira. Precisava fazer daquele evento um fato
isolado e que nunca mais aconteceria outra vez.

Deu certo rezar. Alexandre começou a ficar mais calmo depois de


alguns minutos. Ficou tão calmo que aos poucos foi parando de rezar e
retomando o curso normal de seus pensamentos. Às vezes sentia a fobia
querer dominá-lo novamente, mas bastasse o medo vir que ele começava
a rezar de novo e tudo se atenuava.
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Depois de muito rezar, e pensar, Alexandre começou a organizar
suas idéias corretamente e a se sentir mais calmo e equilibrado. Evitava
pensar no que viu. Ainda estava recente e poderia desencadear todo o
medo novamente. Por isto ele procurava se distrair, já que o sono não lhe
seria mais possível aquele resto de noite. O jeito era procurar coisas que
lhe causassem bem e lhe trouxesse de volta a velha vida. Sendo assim
Alexandre arriscou a falar sozinho novamente:

--- Que bobagem a minha! Se eu tivesse ido até a cozinha, pegado


um copo com água, um punhado de papel toalha, eu poderia ter limpado
aqui mesmo no quarto. Jogava tudo no penico e de manhã levava o penico
pro banheiro e dava a descarga. Não precisava ter saído lá fora.

Alexandre mergulhava no mundo do si, tentando resolver


problemas de fatos já ocorridos. Na verdade ele só queria pensar em
coisas que o livrasse daquela noite e fizesse o tempo passar de pressa.
Sendo assim ele voltou ao vício de conversar consigo mesmo:

---- Nunca mais eu durmo sozinho aqui de novo! Só não vou embora
hoje mesmo pra Cristalina porque ninguém vai compreender e a vovó vai
ficar muito triste. Está de noite não tem jeito de partir. Mas uma coisa eu
tenho certeza. Amanhã eu não durmo aqui na casa da vovó!

***************

3 - A procura de respostas.
Finalmente a noite turbulenta terminou. Logo no primeiro cantar
do galo Alexandre se pós de pé. Saiu do quarto onde havia esperado o dia
chegar e foi até a cozinha da casa. Ao chegar à cozinha subiu na beira do
fogão a lenha e lá ficou aguardando sua avó acordar. O gato da casa
procurou abrigo em seu colo e Alexandre o abrigou. Os dois esperaram
por mais ou menos meia hora até que avó de Alexandre levantasse e fosse
fazer café.

--- Bom dia meu netinho querido! Dormiu bem? Puxa o pezinho
para traz pra eu acender o fogo! Vou fazer aqueles biscoitos de polvilho
que você tanto adora!

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A avó de Alexandre tinha o sono de pedra. Não percebera toda a
movimentação de Alexandre no quarto. A única coisa que notou foi que o
menino estava com olheiras e meio macambúzio.

--- Estou notando que você não dormiu direito! Está com olheira e
meio abatido o que aconteceu? Ta precisando de mais cobertor?

--- Não vovó, esta tudo bem! Eu não preciso de cobertor não! É que
tive dor de cabeça, e depois que a dor passou dormi e tive um pesadelo
daí não consegui dormir mais. Por isto estou com esta cara.

--- Que isto Alexandre! Por que você não me chamou?

--- Não foi nada vovó. Pra falar a verdade eu nem lembro mais o que
sonhei. Só sei que fiquei sem sono a noite toda! Daí eu levantei e vim pra
cá ver o dia amanhecer.

Por dentro Alexandre era uma confusão só. Sua cabeça parecia
ferver. Os pensamentos todos embaralhados. Ele não conseguira digerir
tudo o que aconteceu. Tentava manter as aparências para ganhar tempo.
Mas sentia que ia enlouquecer ou ter uma crise. Precisava de imediato
resolver dois problemas.

--- Vovó? Posso lhe pedir uma coisa?

--- Claro meu querido se tiver ao meu alcance.

--- É que esta semana eu gostaria de dormir na casa do tio, no


quarto do meu primo Herbert. Faz tempo que a gente não faz isto. A tia
tem reclamado que eu não durmo mais lá. E também o Herbert comprou
um novo cartucho de vídeo game.

--- Por mim tudo bem! Você deixa as coisas aqui e de noite leva só o
que for precisar. Mas você vai jantar aqui ou lá?

--- Eu vou dividir vovó! O dia que jantar aqui eu almoço lá, e o dia
que almoçar eu janto aqui! O primo Herbert pode vir comer aqui
também?

--- Mas é claro que pode Alexandre! Vou gostar de cozinhar para
meus dois netinhos queridos.
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--- Vovó na outra semana eu posso trazer o Herbert pra dormir aqui
na sua casa? A senhora Poe o colchão no chão pra ele no meu quarto...

--- Olha Alexandre! Você até pode trazer o Herbert pra dormir aqui.
Eu vou achar bom. Mas tem de ver com a mãe dele e principalmente com
ele. Será que ele vai gostar de deixar o quarto arrumadinho dele logo aqui
do lado para dormir em um colchão no chão aqui em casa?

--- Ele vai sim eu tenho certeza e se precisar eu durmo no chão e


deixo a cama para ele.

--- Tudo bem meu querido faça como bem entender! Só estou
achando tudo muito estranho e repentino. Posso saber o porquê de tudo
isto?

--- Nada não, vovó. É que estão chegando às finais dos jogos do
Arabizá e a gente precisa ficar na concentração. De noite a gente pode
discutir uns passes de bola, criar umas jogadas e também contar uns
causos, pois de dia tem tanta coisa pra fazer que nem dá tempo de
conversar com o primo.

À medida que Alexandre ia tentando se explicar, menos avó dele


acreditava. Ela sabia que alguma coisa não estava em ordem. Não
conseguia entender qual era esta coisa. E por outro lado Alexandre
também tinha certeza que suas desculpas não estavam convencendo em
nada sua avó. Mas continuava a contá-las. No fundo o que ele estava
tentando era pedir para sua avó que acatasse seus pedidos como súplicas
e não lhe questionasse muito sobre a razão de seu comportamento
estranho. Pois nem ele sabia lidar com isto no momento. Por tanto discuti-
los ou expor antes de entendê-los seria em vão. Alexandre queria era
voltar a ter os momentos de paz que tinha antes de todos estes ocorridos.
Precisava descansar primeiro e só depois tocar o dedo nestas feridas.

Anos de experiência prática tornou a avó de Alexandre uma grande


observadora e sagaz ouvinte. Dona destes dois adjetivos aliados a sua
grande sabedoria a fez perceber que seu neto estava com problemas e
pedia indiretamente para resolver-los sozinho. Sem a intromissão dos
mais velhos.

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Ela supunha que o menino tivera algum pesadelo e estava com
medo de dormir no quarto desacompanhado. Como ele não era mais
criança ficou com vergonha de pedir ajuda a ela e inventou esta desculpa
de dormir na casa do primo para não admitir o medo. A avó de Alexandre
já fora uma adolescente um dia e entende bem que nesta idade qualquer
coisa é extremamente importante e séria. Ela sabia da instabilidade e do
excesso de importância que os garotos daquela fase davam a respeito das
pequenas atribulações da vida. E mesmo sendo semi-analfabeta avó de
Alexandre compreendia muito da vida e das pessoas. Às vezes até mais
que muita gente estudada que tem por ai. Por este motivo avó de
Alexandre reconheceu qual seria seu papel na vida de Alexandre. Ela
ficaria de fora do evento. Acompanharia de longe o garoto. Observaria se
ele estava perdendo o medo e como ele lidava com a situação. Jamais ela
iria intervir, pois ele deveria crescer tentando resolver o problema
sozinho. Só haveria intervenção se este medo evoluísse ou estagnasse a
vida do garoto. Sendo assim ela o acompanhava de longe, porém atenta e
sem perder de vista o desenlace deste drama juvenil.

O que a avó de Alexandre nem suspeitava era que o medo e os


problemas de seu querido neto iam muito mais além de um simples
pesadelo ou um simples medo de escuro.

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Um dia inteiro se passou na vida e nas férias de Alexandre no


Arabizá. E depois deste dia, veio outro, e mais outro, e entre, treinos,
campeonatos, pescarias, passeios a pé e a cavalo a vida seguiu seu curso
quase que normal.

Todos notavam que Alexandre havia mudado. Ele tentava agir e


seguir com a vida o mais natural possível, mas por dentro era só
inquietação e dúvidas. Sobraram resquícios do ocorrido. Devida a ocasião
Alexandre não ingeria nenhum tipo de líquido depois que anoitecia
temendo repetir a situação daquela noite fatídica. Também evitava
dormir e ficar desacompanhado dentro de casa a noite. Às vezes tinha
pesadelos e quando não tinha dormia um sono inquieto e acordava
cansado como se não tivesse repousado.

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Alexandre percebera que quanto mais ele caminhava no sentido de
tentar esquecer o ocorrido mais ele era atormentado pelos pensamentos
e sentimentos. Cansado de ficar pensando e sentindo estas coisas decidiu
seguir na contra mão. Alexandre decidirá que já era hora de enfrentar a
situação e buscar respostas. Não sabia onde, não sabia quando e nem
como. Mas já concluirá que tudo ficaria melhor se pelo menos dividisse o
problema com alguém. Havia uma semana, depois do acontecido e
Alexandre dormia na casa de seu primo. Os pais do primo de Alexandre
improvisaram um colchão no chão próximo a cama de Herbert.

Neste exato momento era uma noite de sexta feira qualquer e os


meninos tiveram um dia de pescaria. Eles não treinaram no campo, pois
domingo haveria jogo e sexta era dia de descanso. Por este motivo os
garotos pescaram durante o dia, e depois de noite foram na quermesse
local e chegaram tarde e animados. O dia seguinte seria sábado e
ninguém teria de acordar cedo. Sono nem pensar. Em razão disto os dois
primos e amigos ficaram conversando até tarde no quarto. E neste clima
de descontração e amizade Alexandre aproveitou para engatar o seu tão
temido assunto:

--- Herbert eu tenho de lhe contar um segredo!

--- Não precisa contar Xandi, todo mundo já sabe! Não é mais
segredo. Até o doido da Casa Verde já percebeu que você está
apaixonado pela Bia.

--- Não to apaixonado não! O palhaço da família é você Herbert.


Você que ficou uma semana levando fora da Naiara dos olhos verdes.
Mandou cartinhas apaixonadas, gastou com tele mensagens, comprou
violetas, e quando chegou na hora “H” levou um fora na quermesse atrás
da Igreja! E pra piorar ela ainda ficou com o João Pedro cantor de moda
caipira. Agora você quer continuar falando de mim?

--- Não to nem ai Xandi! A Naiara se quiser que vá morar com o Jeca
Tatu do João Pedro. Ela e Ele podem até aproveitar e formar uma dupla
caipira. Mas pelo menos eu criei coragem e declarei o que sinto. Agora
você fica enrolando com a Bia.

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--- Não estou enrolando. Estou conversando com ela pra estudar o
terreno. Se ela der um sinal eu avanço. Não sou doido desesperado igual
a você. Não quero torrar minha mesada em vão.

--- Desde quando mulher virou semáforo pra esperar sinal Xandi?
Chega nela, fala o que pensa e do chão você não passa, ou é sim ou é não.
Agora você parece que quer viver no talvez! Amanhã de tarde ela vai ao
amistoso lá no campo. A Regina sua prima e a Paula me falaram. Elas
também vão...

--- Por isto Hebinho que eu trouxe quatro uniformes. Vou estar
sempre limpinho e arrumadinho nos jogos e nos treinos.

--- Limpinho arrumadinho e bobinho puxado pela mão Xandi.


Mulher não é ponto turístico pra gente arrumar e ficar vendo de longe
não.

--- Falou a voz da experiência! O Doutor Herbert! O Don Ruan das...


Quantas mesmo? Há esqueci! Nenhuma! O cara que de cada dez mulheres
que ele faz a corte, onze lhe dizem não.

--- Fazer a corte? De onde você tirou isto Alexandre? É assim que
você vai conquistar a Bia?

--- Pra falar a verdade Hebinho eu nem sei se eu vou neste jogo! É
só um amistoso e a gente ta na reserva mesmo.

--- Vai amarelar Xandi?

--- Não Hebinho, Elas também vão à quermesse amanhã à noite seu
besta! E a Naiara e o João Pedro também vão! Porque você não leva uma
espada pra duelar com ele? Quem sabe assim você reconquista sua
princesa?

--- Quem gosta de duelos é você. O senhor é que solta estas


palavras antigas que fica falando de vez em quando por ai. E você ainda
esqueceu que a noite vamos à casa da Dona Aparecida no terço? A vovó
vai também e depois do terço terá quitutes.

--- Acho que é você que está amarelando.

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--- Pelo contrário Xandi, eu acho que é você que gosta da Naiara.
Porque você vira e mexe vive falando dela. Porque eu já to em outra há
muito tempo.

--- Posso saber o nome desta vítima Hebinho?

--- Claro que sim! E se você voltar para os anos 90 até você pode
conseguir ficar com uma também. Porque elas são duas e são idênticas.

--- Não to entendendo nada Hebinho? Da pra falar as coisas com


mais clareza?

--- Dá sim é só você voltar pro mundo real. Estes dias parece que o
seu corpo está aqui no Arabizá, mas Sua cabeça esta em outro planeta
Xandi. Mas deixa-me lhe explicar. Amanhã no terço lá na casa da Dona
Aparecida vão estar presente as netas gêmeas dela a Tico e a Roberta.
Entendeu? A gente chega junto. Eu fico com uma e você com outra! Já
pensou nisto Alexandre?

--- Amanhã eu não posso ir ao treino amistoso Hebinho. Preciso ir à


estrada velha, entrar na mina, e chegar perto do Poço do Bambu!

--- Que conversa sem rumo é esta Xandi? O pai vai estar na roça e
ninguém pode nos acompanhar até lá! E eu estou falando do teço a noite
e não do treino! Xandi você está bebendo? Usando drogas? Está mais
doido que de costume, isto está me preocupando meu primo!

--- Tudo bem se você não quiser ir comigo eu vou sozinho mesmo.

--- Olha se você não quer ficar com uma das Gêmeas, com a Bia ou
se você está apaixonado pela Naiara ok. A gente discute assim, mas você
sabe que é só de brincadeira, não sabe?

--- Sei, mas o que eu preciso fazer não é brincadeira. Agora é sério!
Não dá mais pra esperar! Quanto mais eu adio mais eu sofro e mais a
minha consciência me tortura. Eu preciso seguir! Não sei por onde. Por
isto vou começar visitando os lugares! Algum sinal vai surgir de algum
lugar pode ter certeza que sim.

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--- Pelo Amor de Deus Alexandre que prosa sem rumo é esta? To
ficando com medo! Vou bater na porta do quarto do Pai com a Mãe se
você não parar com isto ou me explicar o que está acontecendo.

--- Eu vou parar quando você parar de tagarelar feito doido. Eu


comecei esta prosa pra ver se você desconfia. Hebinho eu tenho algo
muito sério pra lhe contar e não pode ficar pra manhã. E nem pode
demorar se não eu posso não conseguir falar. É coisa importante caso de
vida ou morte.

--- O que pode ser mais importante que mulher?

--- Ta vendo, Hebinho, eu preciso que você me leve a sério. Não é


hora de brincar. E pelo amor de Deus o que eu vou lhe falar é segredo de
vida ou morte.

--- Sangue de Jesus tem poder Xandi! Será que você vai me falar o
que eu estou pensando? Nossa Senhora da Cruz que me proteja!

--- Não existe Santa com este nome Hebinho! E para de teatro. É
claro que eu não vou falar o que você está pensado porque da sua cabeça
não sai pensamento só sai besteira.

--- Pelo menos eu expresso o que sinto, não fico rodando igual
remanso de rio feito você.

--- Eu vou falar quando você me deixar falar Hebinho!

--- Deixemos a palhaçada de lado Xandi. Pronto! Acabou a criancice.


Eu sei ser sério quando precisa. Pode começar, não vou lhe interromper
Alexandre. Fala que eu te escuto!

--- Eu vi uma coisa do outro mundo?

--- Pelo amor de Deus Alexandre. Me ajuda vai! Manda coerência


nesta prosa sua, por favor!

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--- É serio! Eu juro por Deus Hebinho! Porque você acha que eu
inventei de dormir no seu quarto, e de pedi a vovó pra você ir dormir
comigo na casa dela? Porque eu fiquei três dias sem sair de casa a noite e
parei de ir à quermesse ou ficar de bobeira nas ruas do Arabizá à noite
com a turma?

--- Sei lá! Eu pareço maluquinho e meio desgovernado, mas bobo eu


não sou Alexandre. Somo-nos Adolescentes, às vezes temos recaídas e
voltamos a ser criança de novo. Normal. Achei que fosse medo de escuro
por causa de algum pesadelo ou coisa assim.

--- Eu tive um pesadelo sim! E acordei assustado e como o sono não


me vinha pulei a janela e sai no terreiro. E foi ai que eu vi esta aparição.

Alexandre omitiu a parte de ter urinado na roupa e de ter sido este


o motivo que o levou para fora do quarto. Achou que isto era irrelevante,
e não contaria para o primo, pois com certeza o primo usaria isto contra
ele em momentos de conflito entre os dois.

--- Meu Deus do céu é sério isto que você está falando?

--- Claro que sim Hebinho, olha meu braço! Basta apenas lembrar-
se do ocorrido que os pelos do braço se arrepiam.

--- Mas a quaresma já passou! Por tanto mula sem cabeça e


lobisomem não é. O que foi que você viu Alexandre?

--- Já disse que estou lhe falando sério. É coisa de outro mundo de
verdade. Não é lenda não!

--- Mas Alexandre eu acredito em mula sem cabeça e lobisomem,


aqui no Arabizá tem cada história. É de arrepiar os cabelos. Pergunta pra
vovó pra você ver! Tem gente aqui que já viu até disco voador.

--- Quem viu disco voador foi o doido da Casa Verde, pelo menos
fala que viu. E também quem diz ter visto Lobisomem e Mula Sem Cabeça
é o mentiroso do João Paulino. Hebinho o que eu vi é coisa séria e antiga.
Não é deste tempo e não é deste mundo.

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--- Você está me assustando Xandi. De inicio achei que você queria
pregar uma peça em mim. Mas estou vendo que a coisa é séria. Aqui no
Arabizá tem cinco lendas que os mais antigos e sérios do vilarejo contam.
Sabia que aqui já foi assombrado de verdade?

--- Não! A vovó nunca tocou neste assunto. Nem a vovó, nem o tio a
tia, e também meus pais nunca me falara nada sobre as cinco lendas do
Arabizá. Agora até eu fiquei curioso. Porque será que ninguém me falou
sobre as cinco lendas do Arabizá?

--- Porque quando você era criança poderia ficar com medo e depois
que começo ou a ficar grandinho você nunca se interessou por estas
histórias.

--- Deve ser por isto mesmo Hebinho. E também eu sempre


debochei de quem queria me contar alguma coisa deste tipo. Toda minha
vida fui muito desconfiado. E estando eu de férias tinha tanta coisa pra
fazer durante o dia que quando chegava à noite só tinha tempo de dormir.

--- Não é isto não Alexandre. Quer saber a verdade? Deixa eu lhe
contar primeiro um segredo sobre sua vida! Dos seis anos de idade até os
treze sua mãe o levava no pediatra, Lembra?

--- Lembro sim Hebinho era aquele velhinho turco de fala


engraçada. O Doutro Faridh. A gente até chegou a consultar juntos uma
vez Bibinho. Lembro que na saída você levou todos os pirulitos do pote. Eu
fiquei morrendo de vergonha.

--- Pois é eu já era esperto naquela época e você não. Mas este
médico suspeitava que você tivesse algum tipo de problema cardíaco. Não
sei direito o nome técnico das coisas, mas era uma doença conhecida pelo
povo como sopro no coração!

--- Não me lembro de nada disto! Ninguém me falou nada sobre


isto! A única coisa que eu me lembro de achar estranho foi que durante
um tempo eu fiz muitos exames cardíacos e tirei sangue. Mas nunca
suspeitei de nada.

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--- Mas Alexandre é por isto mesmo. Ninguém poderia lhe contar.
Você não podia tomar muito susto, ficar impressionado, ou seja, quanto
menos preocupação melhor. Assim estas histórias fortes e coisas deste
tipo lhe foram evitadas.

--- Mas eu vi filme de terror, joguei bola, corro e brinco, pulo e nada
me acontecem.

--- Sim e nem vai acontecer. Porque depois que você cresceu um
pouco mais, sua mãe o levou em outro médico.

--- Eu me lembro deste Hebinho. Era o tal de Doutor Wellington. Eu


até me lembro de não gostar do consultório dele porque não tinha aquele
papel de parede irado dos super heróis que outro consultório tinha. Claro
que eu era criança na época.

--- E ainda é Xandi. Mas isto não vem ao caso. E por falar nisto
Bibinho é a sua outra Avó. Aquela que não é a minha avó viu? Não gosto
que me chame deste apelido. Soa muito estranho.

--- Não enrola Hebinho me conta logo o que aconteceu.

--- Este médico descobriu que você não tinha sopro no coração. O
outro suspeitava, mas também não tinha certeza. Porém o Doutor
Wellington lhe curou. Seu problema eram gazes.

--- Agora me lembro! Eu vivia-me queixando de fincadas no peito e


ninguém resolvia o problema. Só o Doutor Wellington me curou disto.

--- Sim. Elementar meu caro Alexandre! E até provar que focinho de
porco não era tomada ninguém lhe contava nada! Porque você acha que
só entrou para o time de futebol do Arabizá aos treze? Todo mundo sabia
do problema assim também como todo mundo depois ficou sabendo que
seu problema eram gazes.
--- Cambada de gente fofoqueira! Nunca mais eu volto aqui! Eu não
tenho problema com gazes eu tive e daí?

--- Esquece isto todo mundo já esqueceu! Bicho de pé, lombriga,


piolho, pulga, carrapato percevejo todo mundo já pagou mico com doença
algum dia.

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--- É verdade agora que você falou estou me lembrando daquela dor
de barriga que você teve na missa do galo...

--- Palhaçada Xandi. Eu tentando lhe consolar e você


esculhambando comigo!

--- Desculpa Herbert foi mau.

--- Mas mudando de assunto. O que foi que você viu de tão
assombroso no terreiro da vovó Alexandre?

--- Algo que não sei explicar direito. Mas de uma coisa eu tenho
certeza. Eu vi! Era uma bola de fogo gigante. Do tamanho da
circunferência dos braços. Um fogo meio azulado, não era intensa igual
fogueira não. Parecia um fogo meio parado. Não sei explicar direito. Só
sei que esta bola de fogo azulada andava de um lado para o outro.
Primeiro ela veio do fundo da mata, depois parecia que ela ia me pegar.
Nesta hora quase borrei nas calças, sorte que eu não estava usando calças
na hora.

--- Você estava sem calça Alexandre? Como assim? Você saiu pelado
no terreiro?

--- Não sua besta é modo de falar. Eu estava com o calção do


pijama.

Alexandre mentiu novamente sobre estar vestido para o primo. Ele


percebeu que teria de ficar esperto se não poderia deixar vazar
informações desnecessárias e vexatórias do ocorrido.

--- Entendi. Então termina de contar o resto da história Alexandre.

--- Está certo, mas desta vez vê se não me interrompe. Então a bola
de fogo veio em minha direção, mas depois ela virou e seguiu o curso do
riacho. Em seguida ela deu uma virada rápida e foi entrando na mata até
desaparecer. Foi o pior dia da minha vida. Nunca mais eu quero passar por
isto.

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--- Que História em Alexandre! Agora sou eu que estou arrepiado!
Eu sei o que você viu! É mais comum que você imagina. O que você viu foi
à Mãe de Ouro.

--- Mãe de quê? Que lorota é esta Hebinho?

--- Seu tonto não é lorota. Se você não tivesse problemas com gazes
a esta altura você devia saber deste assunto.

--- Eu não tenho problema com gazes Bibinho.

--- Eu não sou Bibinho! Você é que não assume que quer ser o
Xandão da Naiara!

--- Mas que História é esta de Mãe de Ouro?

--- Foi isto que você viu Alexandre, o meu Pai também viu. A avó do
pai também viu, e outras pessoas do Arabizá também viram. Esta é a
maior de todas as Lendas do Arabizá. O Arabizá é conhecido por isto.
Muitos pescadores, caçadores e estradeiros já viram esta luz estranha.

--- Você usou a palavra certa Hebinho! Luz estranha! É exatamente


o que ela é! Mas pra que ela aparece pras pessoas?

--- Isto eu não sei Alexandre! Tem um monte de causos sobre estes
assuntos. Mas todos dizem que não é coisa boa. Se você ver esta luz tem
de fugir dela. Se ela te pega você some.

--- Some? Por quê? Como assim?

--- Já lhe disse o povo antigo é que conta. Dizem que é coisa ruim
que anda pela terra à noite. Mas também dizem que onde ela aparece
geralmente tem ouro.

--- Então é uma coisa boa Herbert! É um sinal. Vamos cavar no


terreiro da avó. Estamos ricos.

--- Não é bem assim não Xandi. Ela leva a pessoa para onde está o
ouro.

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--- Não estou entendendo. Primeiro ela mata e some com a gente se
a gente não fugir dela. Depois se a gente seguir ela encontra ouro. Que
coisa confusa!

--- Olha Alexandre isto são coisas que os antigos contam. São lendas
e lendas não tem filtro cada um conta de um jeito e ai a cada dia tudo fica
mais diferente.

--- Mas eu vi. Eu sei o que eu vi! Eu tenho certeza que vi! Se eu vi,
meu Tio viu, e as pessoas do Arabizá viram! Então, ou todos estão ficando
doidos ou isto realmente é verdade.

--- Alexandre bota uma coisa na sua cabeça de uma vez por todas.
As aparições são verdadeiras. Estas pessoas que viram são sérias. Elas
também viram de verdade. Nenhuma delas tinha motivos para mentir.
Você acha que estas pessoas iam correr o risco de virar chacota a toa? Elas
não receberam pra contar isto, e tem até quem duvidou da palavra delas.
Então porque elas contariam uma coisa desta? Só pra se
comprometerem?

--- Verdade esta parte eu entendo e literalmente eu entendi na


prática igual a São Tomé. O que eu não entendo é o motivo desta tal Mãe
de Ouro aparecer para as pessoas?

--- Mas é daí que surgem as lendas a respeito deste assunto.


Ninguém sabe de verdade qual o motivo destas aparições. E também
ninguém sabe por que ela aparece. Só existem especulações e tudo
aponta para o lado do mal. Da ambição, do apego do homem pela
matéria. A maioria das pessoas acha que a Mãe de Ouro é coisa do Diabo.

--- Credo Hebinho você está me dizendo que eu vi um Demônio?

--- Tudo indica que sim! Pois não é o Demônio que gosta de fazer
pacto com as pessoas? Então! Deixa eu lhe contar a História toda.

53
--- Reza a lenda que uma pessoa honesta, de bem, trabalhadora, ou
seja, qualquer pessoa comum pode ver a Mãe de Ouro. Ela aparece à
noite, e sempre quando a pessoa está à só em lugar ermo. O correto é
sair correndo desta aparição. Não se deve falar com ela, e nem tocar nela.
Foge! Porém, existem cabras muito machos e corajosos. Estes sujeitos
quando vêem a Mãe de Ouro não tem medo. Pelo contrário. Eles até
procuram pela Mãe de Ouro.

--- Procuram? Pra quê? Estes sujeitos não são machos coisa
nenhuma. Eles são idiotas.

--- Bom isto eu não sei. Só sei que existe gente corajosa ou doida se
preferir que entra na mata com um punhal virgem e uma folha contendo
uma oração antiga

--- Deixa-me ver se entendi? Eles são os caçadores de Mãe de Ouro?

--- Xandi, você viu mesmo a Mãe de Ouro? Porque não parece.
Quem vê estas coisas não fica debochando do que viu e nem
desrespeitando histórias antigas.

--- Desculpa Herbert. Eu estou brincando assim é porque estou


aliviado. Há dias que eu queria contar pra alguém o ocorrido. Parece que
quando fiz isto senti um alívio tão grande que o medo e o receio que
estava em mim foram embora. Tudo ficou mais leve. Contar o problema
parece que me fez enxergar as coisas com mais clareza e otimismo. Por
isto estou brincando com isto é que parte do medo e receio desapareceu.

--- Eu compreendo Xandi. A vovó fala que quando a gente quer


saber se está seguindo o caminho certo basta olhar para os sentimentos.
Se os sentimentos forem bons, então você está no caminho certo.

--- Olha só! Meu primo está filosofando! Parece até o pai falando!
Tem certeza que você é meu primo? Vai ver você é meu irmão Hebinho.

--- Eu bem que gostaria de morar naquele casarão em Cristalina.


Não sei por que você gosta tanto de passar as férias aqui Alexandre. Eu é
que devia ir pra lá nas férias pra gente se jogar nas noites da cidade.

54
--- Olha Herbert isto é uma coisa que eu cansei de tentar entender.
Já decidi. Gosto do Arabizá e ponto final. Mas continua a contar o causo.

--- Não é causo Alexandre é fato. Tem pessoas que entram mesmo
na mata com um punhal virgem e uma oração antiga a procura da tal Mãe
de Ouro.

--- Pra que? O que elas fazem quando a encontram?

--- Dizem que primeiro elas vão à noite para o fundo da mata. De
preferência na quaresma que é a época mais perigosa. Nesta época tudo
de ruim está à solta. Então elas vão pro meio da mata, no lugar onde
outras pessoas dizem ter visto a Mãe de Ouro e ficam por lá aguardando.

--- Só isto? Elas ficam lá aguardando o que?

--- Elas aguardam o coelhinho da páscoa! É claro que é a Mãe de


Ouro seu bocó. Então! Quando a Mãe de Ouro aparece, elas fazem a tal
oração antiga. Esta oração mantém a Mãe de Ouro parada. Sendo assim
logo em seguida elas pegam o punhal virgem e cortam um pedaço do
dedo com ele. Depois a pessoa joga o punhal sujo do próprio sangue no
meio da bola azul de fogo. Reza a lenda que a Mãe de Ouro carrega o
punhal e sai com ele pro meio da mata. A pessoa deve ir atrás dela. Depois
de andar por certo tempo a Mãe de Ouro simplesmente desaparece
deixando o punhal fincado sobre a terra.

--- Só isto? Os caras fazem este circo todo pra ver isto?

--- Não Xandi. Deixa-me terminar de contar. Quando o punhal


estiver sobre a terra à pessoa deve rezar o credo de traz para frente e
oferecer a alma dela pro Diabo e falar que o sangue que escorre no punhal
é a garantia. Depois é só arrancar o punhal da terra, marcar o lugar onde
ele estava fincado e no dia seguinte voltar e cavar.

--- Pra quê tudo isto?

--- Porque você acha que ela chama Mãe de Ouro? Porque quem
cavar onde ela fincar o punhal vai encontrar um veio de ouro e ficar rico.
Entendeu?

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--- Entender, eu entendi! Mas não acredito em nada disto. A parte
que isto seja coisa ruim, ligado a ambição humana faz sentido. Mas esta
história de quaresma, Diabo, pactos de sangue não me desce.

--- O Xandi? Você viu, ou não viu a Mãe de Ouro?

--- Juro por Deus Hebinho eu vi sim. Juro pela minha mãe que é a
coisa mais sagrada pra mim nesta vida. Eu vi. O que eu não acredito é no
resto.

--- Olha Xandi se você me disse eu acredito. Acredito porque o pai


também viu. E o pai é sistemático, é das antigas, não gosta de mentiras. Se
ele diz uma coisa é porque ele tem certeza. E você também está muito
convicto.

--- Então Hebinho a certeza que eu tenho é esta. Eu vi algo que por
enquanto não sei explicar o que é. Mas só por enquanto porque em breve
eu vou desvendar este mistério.

--- Já eu Xandi aprendi que existe coisas ruins e Diabos sim. E eles
andam nesta terra desde os tempos de Cristo a procura de almas pra levar
pro inferno. Inclusive quem faz este tipo de pacto com a Mãe de Ouro não
vive mais que sete anos. E a vida que vive vira uma desgraça. A pessoa
tem todo tipo de prazer e luxuria no começo, mas depois termina por ficar
doida e doente e a maioria se mata ou morre de forma dolorida e
estranha.

--- Pois eu acho Herbert, que as pessoas antigas e algumas pessoas


de hoje em dia tem é medo de sondar as coisas que elas não conhecem.
Por este motivo mistificam muito o desconhecido pelo simples fato dele
ser desconhecido. Assim elas evitam questionar os fenômenos e buscar
respostas mais precisas sobre assuntos temidos.

--- Você não acredita em nada Alexandre? Mas você vai à missa todo
domingo! Como assim?

56
--- É complicado Herbert, por isto que eu tenho de desvendar. Eu
preciso descobrir a mim mesmo! Eu acredito em Deus, acredito no amor
de Cristo, mas tenho dificuldades de acreditar no mal eterno. Pensa
comigo! Por pior que seja matar uma pessoa. Se um homem mata uma
única vez ele vai pro inferno pagar eternamente por este único erro?

--- Não Xandi, é pra isto que tem o perdão.

--- Mas ele pede perdão e fica por isto mesmo? Pronto? Ele vai pro
céu assim de graça?

--- Não sei Xandi, na próxima Missa a gente pergunta o Padre. Eu


acredito que ele deve se confessar, pagar pelo erro e só depois ser
perdoado. Mas isto em vida. Se ele morrer sem pedir perdão aí é inferno
na certa.

--- E o céu? Não gosto do céu! Tenho medo! O que a pessoal fala
sobre o céu é muito estranho. O céu parece mais um asilo. A gente sobe e
fica lá eternamente à toa? Só rezando, rezando, cantando louvor, dando
glórias a Deus, andando de um lado para o outro eternamente?

--- Xandi eu não sei estas coisas não. O que eu sei é que na casa de
Deus há várias moradas e que nos somos apenas dois garotos. Temos de
brincar, namorar, estudar e viver. Se a gente ficar focado nestas coisas
podemos até enlouquecer. Lembra daquele menino filho da dona Lílian
que vivia rezando e que...

--- Herbert, a gente não pode deixar o mistério e as coisas nos meter
medo. Esta é a única verdade que eu aprendi com este aperto que passei.
O povo antigo também dizia que estudar de mais enlouquece. Nossa
geração arrebenta de tanto estudar e nem por isto deixa de viver ou fica
doida. Pelo contraio quanto mais à gente estuda mais a gente fica
antenado.

A gente vai continuar treinando pro campeonato, vamos continuar


indo nas quermesses, e eu vou ficar com a Bia antes de você ficar com, a
Tico ou a Roberta. Mas paralelo a isto nos podemos buscar respostas para
estas questões.

57
--- Nossa mãe! Já começou a ficar doido.

--- Ta vendo? É disto que eu estou falando.

--- Alexandre você está me deixando confuso. Do que você está


falando afinal?

--- Estou falando disto. De a gente procurar respostas para o


ocorrido sem precisar viver na gastura. Sem ter de ficar sofrendo ou
querendo resolver tudo de uma só vez. Você me ajuda Herbert?

--- Ajudar no que? Vamos virar caçadores de Mãe de Ouro? Tipo


caça fantasmas?

--- Não! Agora é você que está debochando do desconhecido seu


maluco!

--- Xandi com estas coisas não se brincam! Quem procura acha! Eu
não vou sair por ai de noite com punhal na mão procurando estas coisas
não.

--- E quem falou em procurar Mãe de Ouro? Se Deus quiser não


quero ver aquilo tão cedo ou nunca mais. O que eu quero lhe dizer é que
eu tive uns sonhos estranhos também, e tive pensamentos que estavam
em minha cabeça, mas parecia a voz de outras pessoas e umas intuições
fortes...

--- Alexandre você está confuso, e cheio de minhoca na cabeça. Mas


isto é normal. Faz parte! Você teve este ocorrido que lhe deixou nervoso,
mais a nossa idade que é uma explosão de hormônios e conflitos e mais a
sua loucura natural. Tudo lhe parece estranho, mas não é. Deixa estar
vamos nadar, pescar, esquecer isto. Logo passa!

--- Não adianta lhe explicar Herbert! Pra falar a verdade nem eu sei
explicar o que estou sentindo direito. É muito mais que conflito juvenil. E
pra lhe ser sincero eu só tenho certeza de uma coisa. Eu preciso e quero
seguir minha intuição.

--- Xandi quem tem intuição é mulher. Vai ver você está de T.P.M
então.

58
--- Então vamos dormir por que já vi que com você não dá pra falar
sério.

--- Até que em fim você teve uma boa idéia.

Dito isto cada um dos meninos virou para um canto de suas camas e
foram dormir. Alexandre percebeu em conversa com seu primo que não
adiantava tentar dialogar ou explicar nada a ninguém. Havia muito mais
coisas envolvidas em sua busca. Ele aprendera que cada um tem a sua
maneira de entender, pensar e acreditar nas coisas. Ninguém estava certo
ou errado. Eram apenas diferentes. Outra descoberta de Alexandre era o
fato dele estar cansado de viver na superfície das coisas e querer sair em
busca de respostas que lhe fossem mais convincentes, não lhe dava o
direito de convencer e nem mudar a vida de ninguém. Seu primo era feliz
acreditando nas coisas do jeito que lhe fora ensinadas. Ele não tinha o
direito de moldar ou induzir o primo a buscar outras coisas. Esta era uma
necessidade dele e de mais ninguém. Ele é que se sentia realizado cada
vez que aproximava ou tentava alcançar alguma resposta mais
convincente. Logo cedo Alexandre aprendera que a verdade é como um
prisma. E cada pessoa enxerga uma cor. E cada cor simboliza um estágio
de sua evolução intelectual. E novamente encantado com estes
pensamentos Alexandre exclamou em voz alta:

--- Eu vou desvendar o mistério da luz azul, vou sim ou não


me chamo Alexandre Lemos!

Alexandre esqueceu que seu primo dormia no meso quarto


que ele. E foi ai que ele ouviu a voz do primo murmurar:

--- Doidoooooooooooooo!

E os dois caíram em uma gargalha só e voltaram a conversar


novamente. Herbert puxou outra vês o assunto dizendo:

--- Xandi agora falando sério! Eu vou te ajudar nesta busca sua atrás
de resolver este tal mistério da luz azul.

59
--- Você é quem sabe Hebinho! Mas não precisa me acompanhar só
pra ser educado comigo não. E tem mais, eu não vou fazer nenhuma
besteira ou enlouquecer não pode ficar tranqüilo.

--- Bom! Enlouquecer mais do que você já está não tem jeito
mesmo. E pra falar a verdade eu não estou lhe ajudando, por favor,
dinheiro, medo e nem porque acredito nestas coisas não.

--- Agora fiquei curioso Hebinho! Então porque você vai me ajudar
então?

--- Muito simples. Vou ter Histórias pra contar pros meus netos, eles
pros netos deles, e assim até o tataravô do tataravô do meu neto vai
lembrar que em nossa família teve um tal de Alexandre “ O Doido’’. Eu te
conheço Xandi. Não vou perder esta oportunidade por nada deste mundo.
Agora estou até mais empolgado que você pra desvendar o tal ‘’ Mistério
da Luz Azul”

--- Pode ir tratando de tirar este sorriso do canto da boca Bibinho.


Isto é uma busca séria, e às vezes requer muito estudo e dedicação. Não
vai pensado que vai ser uma aventura qualquer desembestada não.

--- Tudo bem! Não está mais aqui quem estava sorrindo. Só me
deixe te acompanhar de perto nesta empreitada rumo ao desconhecido. E
não pense que eu não escutei, Bibinho é a sua Vovozinha.

--- Vou gostar de ter a sua companhia Herbert. Apesar de correr um


sério risco de virar chacota na sua boca. Eu gosto da sua companhia. E
agora vamos tratar de dormir que amanhã começa a primeira etapa da
nossa busca.

--- Mal posso esperar primo. Mal posso esperar! Boa noite, e dorme
com Deus.

--- Amém Herbert dorme com Deus também!

Logo em seguida o sono arrebatou os dois garotos. Em poucos


minutos eles dormiam o mais profundo dos sonos. Depois de muitos dias
de sono perturbado e cheio de pesadelos, finalmente Alexandre pode ter
uma noite tranqüila.
60
Naquele dia ele voltou a dormir bem. Tão bem como há muito
tempo não sentia. Teve uma noite extremamente agradável. Dormiu
profundamente e não sonhou e ou teve pesadelos. No dia seguinte
acordou tarde. Por volta das nove horas da manhã. Tivera uma verdadeira
noite de sono reparador. Acordou leve, e tranqüilo. Parecia que havia
flutuado em nuvens a noite toda.

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E lá se foi mais um dia. Era uma tarde de sábado por volta de duas
horas. Os meninos estavam no quintal do tio de Alexandre. Sentados na
soleira aproveitando a luz morna do sol para se aquecer e jogando
conversa fora Herbert e Alexandre se distraiam com a paisagem bucólica
do Arabizá e as conversas paralelas e triviais da juventude. Alexandre
estava mais calmo e voltara à velha forma de antes. De certa maneira ele
até se sentia mais importante, pois tinha em mãos uma experiência de
vida que poucos tiveram e uma missão a ser cumprida na vida. Porém,
apesar de todas estas coisas ele tinha algo que lhe deixava com a pulga
atrás da orelha. Não fazia idéia do que exatamente ele estava procurando,
muito menos onde ele deveria procurar e qual a finalidade de tudo isto. O
garoto não entendia que estava no início do processo. E tão pouco
dimensionava que esta era uma estrada eterna. Uma estrada de evolução
contínua. Ele não tinha consciência de que teria de abandonar velhos
caminhos e até recomeçar do zero se for preciso. Quer-se sonhara ou
tomara conhecimento da presença de amigos e inimigos desencarnados
que nos influencia. Embora fosse fruto de várias encarnações, nesta
Alexandre estava no início da retomada de sua missão. Ele já começava a
perceber que certos pensamentos eram tão distintos de seu vocabulário e
de sua forma estrutural de raciocino. Eram tão distintos que ele não
encontrava outra explicação se não a de que eles vinham de outras
esferas, ou pessoas alheia a ele lhe diziam aquilo tudo. Também notara
que algumas intuições lhe pareciam mais nítidas e exatas, tão nítidas e
exatas que extrapolava o contexto de simples intuição. Alexandre estava
no estágio de amadurecimento espiritual. Em breve ele, mesmo sem saber
disto, perceberia e entenderia tudo.

61
As coisas viriam à tona de estalo. E como ele assumiu uma missão
antes de retornar ao plano físico Alexandre contava com a ajuda indireta
de vários companheiros de jornada. Mas tudo lhe seria revelado e
apresentado no momento certo. Nada poderia sobrepor seu livre arbítrio
ou desrespeitar sua cultura e sua encarnação na terra.

Assim o mundo espiritual envolvia a alma de Alexandre sutilmente


e de forma extremamente discreta. Nada poderia sobrepor à vontade e a
capacidade de discernimento do garoto. E paralelo a isto havia também
as barreiras culturais que impediam a conexão de Alexandre com a própria
mediunidade. E também Alexandre tinha uma freqüência vibratória muito
oscilante. Isto se devia não apenas a adolescência e a sua personalidade,
mas também a sua alma. Alma que começava a entrar no estágio de
reparação e reconhecimento dos próprios erros. Alma que ao se deparar
com a vida carnal novamente entrou em conflito. Hora esta Alma prima
por querer um prazer mais físico e a realização pessoal através de
conquistas materiais, mas ao mesmo tempo esta alma anseia algo que não
está neste caminho. E é este caminho que Alexandre deseja descobrir e
experimentar. Alexandre queria muito começar sua jornada rumo ao
conhecimento de si mesmo. Ansiava por respostas. Acreditava que o véu
estava rasgado e que agora ele tinha um dom. E com este dom ele
chegaria mais além. Achava que tudo seria mágico e fluídico. Trazia a
inexperiência da juventude aliado a pressa que a mesma traz. E foi
motivado por estas duas forças que ele teve de rompante uma idéia e fez
a proposta para seu primo:

--- Herbert? A gente não está fazendo nada mesmo. Vamos à casa
da Dona Quitéria?

--- Assim do nada? Pra quê? Não tem nada lá pra gente. É uma
senhora rabugenta que mora sozinha. Ela nem gosta de criança. O que
vamos fazer lá na casa daquela bruxa?

--- Cuidado em Herbert! Ela mora sozinha, mas tem aquele neto
metido a peão que sempre vem disputar os rodeios aqui.

62
--- Então Xandi. Mais um motivo pra gente não se meter a besta
com ela. E tem mais ela mora com aquele tanto de cachorro. E tem dois
gansos bravos também.

--- Nossa Herbert! Só faltaram vassouras e poço de jacaré na casa


dela.

--- Pois é. E pra quê a gente vai se meter a besta com esta senhora.

--- Hebinho a gente não vai lá procurar briga não. A gente vai saber
das coisas. Ocorreu-me uma idéia. Lembra quando éramos bem
pequenos? Então, a vovó sempre nos levava nela pra benzer de cobreiro e
vento virado.

--- Ela parou de mexer com isto! Depois que o marido dela morreu
nunca mais ela benzeu ninguém.

--- Mas a gente não vai lá pedir pra benzer. A gente vai pra
conversar com ela. Ela deve saber destes mistérios. Pode até ter uma
resposta séria sobre o motivo das pessoas verem a Mãe de Ouro, pode
adivinhar sonhos, estas coisas.

--- Sei não Alexandre!

--- Eu vou você vem?

--- Não perco isto por nada deste mundo Alexandre. Vamos lá
então.

Dito isto os moleques partiram em direção a casa de dona Quitéria.


Sua residência ficava em um canto do Arabizá próximo a pequena venda.
Os meninos bateram palmas, enfrentaram as latidas dos cachorros e
foram atendidos por Dona Quitéria, que com muita cisma e se esforçando
para não ser tão hostil os acomodou ma pequena sala de sua casa. Depois
de alguns segundos de silêncio constrangedor entre os três, Dona Quitéria
quebrou o gelo com a pergunta que todos gostariam que ela fizesse:

--- Então meninos! O que vocês querem comigo?

63
--- Dona Quitéria! Eu sou Alexandre, a Senhora já conhece a mim, ao
Herbert e a nossa família! Então o que a gente quer é um pouco da sua
experiência de mulher vivida.

Alexandre tentou ser educado, e usar palavras que acreditava ser


elegante. Mas o tiro saiu pela culatra. Dona Quitéria que já estava cismada
com a visita inesperada se sentiu invadida com a forma de abordagem de
Alexandre. Sendo assim ela reagiu dizendo:

---Que isto menino? Vivida? Você está me chamando de mulher da


vida? Perdeu o respeito é? Seu pai, sua mãe, sua avó não lhe ensinou nada
não em?

Herbert arregalou os olhos de susto e Alexandre ficou deslocado


sem saber o que falar. Percebendo o transtorno que Alexandre havia
enfiado os dois Herbert tentou corrigir o mal entendido seguindo com a
conversa como se nada tivesse acontecido:

--- Então dona Quitéria! O que meu primo Xandi está tentando lhe
dizer é que a Senhora é das antigas....

Ao ouvir a última palavra Dona Quitéria ficou colérica. Interrompeu


Herbert aos berros e bufando de raiva:

--- Cambada de moleques atrevidos. Antiga é a avó dos dois que


tem dez anos a mais que eu! Que abuso! Escuta uma coisa eu vou ao
terreiro apanhar uma vara de marmelo. Quando eu voltar aqui não quero
ver ninguém. Quem estiver aqui quando eu voltar vai apanhar de vara.
Onde já se viu isto?

A ameaça da coça era só uma ameaça para se livrar dos dois


garotos. Após a morte do marido Dona Quitéria nunca mais foi à mesma.
Mudou de Senhora solícita para mulher reclusa, sistemática e misteriosa.
Sempre usava da hostilidade para obter respeito, paz e o tão almejado
isolamento. Mas de forma alguma ela realmente seria capaz de agredir os
garotos. Era só um susto. Um truque que deu resultado.

64
Herbert e Alexandre voltaram correndo para a casa da avó deles.
Os garotos passaram direto para o quarto que Alexandre estava
hospedado no dia que viu a Luz Azul. Fecharam a porta, sentaram na
cama, e Herbert começou a falar:

--- Xandi eu vou lhe ser sincero. Se continuar neste ritmo não vai ter
mistério pra desvendar. Ao invés de busca espiritual a gente vai virar só
espírito. Já pensou na hora que a Dona Quitéria contar pro neto dela
sobre a nossa visita? É morte na certa.

--- Eu precisava começar por algum lado. Nada saiu como planejado.
Mas não me arrependo não.

--- Insanidade tem limite Xandi. Deste jeito a gente não vai chegar a
lugar nenhum. Você vai ficar batendo a cabeça igual mosca na lamparina.

--- Tive outra idéia!

--- Eu to fora. No começo achei que ia ter coisas pra contar pros
meus netos. Mas se eu for acompanhar sua cabeça não vou viver se quer
pra ter filhos o que dirá netos.

--- To falando sério Hebinho. Dorme aqui na casa da avó hoje?

--- Isto é fácil de fazer! Pode deixar eu venho sim. Vejo que está
recuperando o juízo. Quer minha ajuda pra perder o medo de dormir
neste quarto depois do que aconteceu?

--- Já lhe disse não tenho medo do ocorrido. Eu estou superando


isto. Mas vou precisar de outro favor seu. A gente vai ao terço de São
Gonçalo com a avó. Mas depois nos não vamos ficar na quermesse ou
atrás da Igreja hoje com a turma.

--- Mas é claro que não seu destrambelhado! Esqueceu que o jogo é
amanhã às nove horas?

--- Pior que esqueci sim. Mas não tem problema.

65
Herbert e Alexandre foram ao terço com a avó dos dois. Os três
chegaram cedo à casa da avó dos meninos. Ela já havia preparado um
colchão com bastante cobertas, travesseiro e lençol no chão para Herbert
dentro do quarto onde Alexandre dormia.

Antes de dormir os três se encontravam na cozinha da casa. Os


rapazes estavam sentados no rabo do fogão a lenha se aquecendo. A avó
de Alexandre havia preparado um leite com canela. Alexandre tomava o
leite e se sentia orgulhoso de ter superado mais um trauma. Não havia
mais medo de tomar liquido depois que o sol se punha. Estava curado de
mais um empecilho que a aparição lhe trouxe.

Depois do ocorrido na casa da Dona Quitéria, Alexandre


desacelerou com a afobação. O menino tivera o que ele chamava de
pensamento distinto. Sim uma idéia que ele acatou por sentir que ela era
coerente e sensata, e também por pressentiu que esta idéia vinha de
outra esfera alheia as suas idéias comuns e conhecidas. E foi seguindo
nesta direção que Alexandre começou a puxar assunto com sua Avó:

--- Vovó? Agora que eu já estou bem crescido a senhora pode nos
contar uma das cinco lendas do Arabizá?

--- Claro que sim meus netinhos queridos! O Herbert já conhece


todas. Mas qual você quer saber primeiro?

--- Uai vovó se der tempo eu quero saber de todas as cinco.

--- Então tenho de começar logo.

Primeiro eu vou contar do saci que mora no Morro do Curió. O


povo antigo conta que há muito tempo, mas muito tempo mesmo. Neste
tempo ainda existia escravos, senhores de engenho, damas que eram
carregadas pra baixo e para cima em liteiras. Pois é. Neste tempo também
tinha o Saci que ficava no Morro do Curió.

--- Conta pra ele vovó como era o Saci.

--- Pode deixar Hebinho. Este Saci era negro, tinha uma perna só, e
andava pulando, e vestia uma tanga vermelha e usava um gorro igual ao
do Papai Noel.
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--- Então vovó o Saci que morava no Morro do Curió era igual ao da
história de Monteiro Lobato?

--- Mais ou menos Xandi. Porque o Saci do Morro do Curió também


tinha um chicote nas mãos e era muito feio, triste, e não ria como o Saci
do filme. Pelo contrário ele dava uns gritos muito agonizantes e sinistros.
E muita gente que diz ter visto ele afirmava que ele possuía duas pernas as
vezes.

--- Agora estou confuso vovó!

--- É assim mesmo meu primo. Estas coisas ganham a forma que
querem ter e fazem as coisas do jeito delas. São os mistérios do mundo!
Ninguém consegue entender tudo de uma só vez.

--- É verdade Hebinho, mas como eu estava dizendo! Quem viu disse
que a coisa era feia. E ele não tinha medo de nada o tal Saci do Morro do
Curió. Ele aparecia de dia com o sol quente. E quando ele não aparecia
costumava dar chicotada nas pernas de quem por lá passasse.

--- Mas todo mundo via ele vovó?

--- Não Alexandre. Algumas pessoas abusadas, outras que


duvidavam. Era assim, saci é assombração. Por isto ele só aparecia ou
batia em pessoas que passassem sozinhas. E também estas coisas
escolhem quem vai assustar. Escolhe do jeito delas. Às vezes passavam
meses, dias, e até anos sem ninguém ver ou apanhar do saci. E às vezes
acontecia dele aparecer com muita freqüência. E também tinha gente que
não via de jeito nenhum, e tinha gente que via direto, bastava passar lá.
Até pouco tempo o povo passava pela estrada abandona. Quase ninguém
passava pelo Morro do Curió. Mas isto foi quando eu era bem pequenina.
Faz tempo. Agora o saci parece que sumiu.

--- Sumiu porque vovó? Ele aposentou?

--- Não Hebinho! As coisas do mundo têm um tempo e uma causa.


Nada dura pra sempre. Nem as assombrações.

--- Por que vovó? O que aconteceu com o saci?

67
--- Isto, Alexandre meu filho, só nosso Pai Eterno quem sabe. Faz
parte dos mistérios. Mistérios dos povos antigos. Está aqui desde o
começo do mundo.

--- Vovó isto é historinha de criança. Conta para o Alexandre aquela


da casa que afundou no lago.

--- Muito bem lembrado Hebinho. Esta é a minha preferida. Meu


pai contava pra mim e pra minhas irmãs. A gente escutava atenta,
sentadas no rabo deste fogão igual a vocês dois. Esta é muito antiga.
Passada de geração a geração. Dizem os mais velhos que há muitos anos
atrás, ainda nem existia o Arabizá e nem as fazendas da região. Neste
tempo havia lá pelas bandas da represa do Senhor Tati, depois da curva da
divisa bem encima do Poço do Bambu. Então bem antes de tudo. Neste
lugar havia uma casa.

--- Mas avó? Como alguém pode construir uma casa encima de um
poço de água grande e sem fundo?

--- Ai é que está! Naquela época o Poço do Bambu não existia.


Onde hoje está o poço era terra firme e seca. E por ser próximo a uma
várzea onde tinha laguinhos e água farta alguém achou que seria bom
construir uma casa ali.

Dizem que foi a primeira casa construída no Arabizá. Eram


iguais as nossas casas mesmo, porém um pouco maior e mais alta. Falam
que quem construiu esta casa se quer morou nela. Sendo assim ficava a
maior parte do tempo fechada e abandonada. Contam que certa vez um
viajante e sua comitiva resolveram se hospedar lá. Era um povo bruto, e
bem rude. Mas tinham muito dinheiro. O povo fala que estes viajantes
acharam um veio de ouro. Estavam de passagem e pretendiam seguir
para Cristalina, que na época era um vilarejo, e depois eles seguiriam para
capital. Mas a noite estava chegando. Eles eram muitos e estavam
precisando de pouso. Quando passaram perto da casa decidiram bater pra
ver se alguém atendia. Acharam a casa fechada. Bateram, chamaram e
como não havia ninguém nas redondezas então resolveu arrombar a
porta. Abriram a porta e encontraram móveis e utensílios. Começaram a
beber e descarregaram as malas.
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Puseram as coisas dentro da casa e como havia muito mantimento
e sacos de ouro pra carregar decidiram passar a noite ali e depois seguir
viagem direto sem passar por Cristalina. Os mais velhos falam que eles
fizeram uma baita festa. Tinha muita gente, mais cavalos, mulas, e alguns
animais vivos pra consumo. Um destes animais era um bezerro. Eles
mataram o bezerro e fizeram um churrasco. A farra correu a noite toda.
Tinha um sanfoneiro tocando e quase perto da meia noite corria um baile
bem animado. E foi então que uma das moças da festa se lembrou que era
sexta feira da paixão. Ela procurou o dono da festa e lhe contou sobre
isto. O dono, que bebia e comemorava com os amigos lhe responde:

--- E daí se hoje é sexta feira da paixão? Quem morreu na cruz não
foi eu e sim Jesus.

Dito isto ele mandou o sanfoneiro tocar mais alto. Bateu com força
a bota no chão, puxou uma morena pela cintura e saiu dançando pela sala
da casa. A festa tava animada. Tinha uma fogueira no terreiro, e muita luz
de vela acesa. A música ecoava pela floresta adentro. E foi bem na
madrugada quando todo mundo estava distraído dançando dentro da casa
que aconteceu uma coisa estranha. Veio um vento forte e apagou a
fogueira no terreiro, as velas da casa e depois bateu e fechou todas as
portas e janelas. O vento começou a soprar e uivar feito lobo. O povo de
dentro da casa parou com a festa e ficou quietinho morrendo de medo. O
vento soprava sem parar. E logo em seguida dizem que a casa deu um
grande estralo e todos começaram a gritar, e correr de um lado para o
outro. Teve gente que morreram pisoteadas, outros machucaram e
ninguém conseguia sair da casa. Então a casa afundou de uma só vez.
Desceu pro fundo da terra deixando um grande buraco. Dizem que a casa
foi engolida inteirinha e foi parar direto no inferno. Depois que a casa foi
engolida ficou um buracão. Como havia muita água por perto a água
entrou no buraco e encheu ele. Assim formou o Poço do Bambu.

Até hoje as pessoas conta que quem for lá à sexta feira da paixão e
ficar esperando até a meia noite, vai ouvir o barulho da festa e as músicas.
E se a pessoa neste dia colocar os pés na água vai notar que ela está
quente e tem cheiro de enxofre.

69
--- Credo avó eu fico arrepiado só de pensar nestas coisas.

--- Você tem medo de tudo Hebinho.

--- Avó conta pro Xandi aquela do Zé do Pacto. Um homem


que vendeu a alma pro Diabo e ficou rico e depois se matou La pras
bandas do Morro do curió. Ele aparecia lá, pois tinha de convencer alguém
a fazer um pacto com o Diabo pro tinhoso deixar ele em paz.

--- Hebinho você já contou todo o miolo da história agora não


tem mais graça contar.

--- O Hebinho é mesmo um estraga prazeres vovó. Onde já se


viu! Mas tem outra que a senhora sabe?

--- Tem a do vulto que aparece a meia noite na quaresma na


Curva da Divisa indo pra lagoa do Senhor Tati. Dizem que foi um irmão
gêmeo que matou o outro afogado por causa de um peixe.

--- E as aparições da Mãe de Ouro?

--- Mas tudo isto fica pra outro dia. Agora está ficando tarde
meus netinhos, e os dois tem de dormir. Amanhã é a final do campeonato.
Até eu vou lá ao campo espiar um pouco a partida. Mas antes vou passar
no Sítio da Cascata e ajudar a Dona Diva prepara o almoço dos
vencedores.

Certamente Alexandre não iria conseguir dormir aquela noite.


Estava muito feliz, e ansioso. Finalmente chegara a final do campeonato,
e a presença do olheiro já estava confirmada. Todos os garotos do Arabizá
sonhavam em jogar profissionalmente. Embora o time fosse bom para os
padrões de uma várzea ainda não havia despertado o interesse dos
profissionais do futebol. E esta era a chance. Não apenas por uma vida de
dinheiro e mimos que os jogadores têm, mas também os meninos do
Arabizá sonhavam em entrar para a história do futebol de Cristalina e do
Arabizá. Afinal quem conseguisse se profissionalizar ali seria o primeiro. E
todos queriam se tornar um ídolo regional de fama nacional ou até
internacional quem sabe.

70
Mas estes devaneios estavam na cabeça de Herbert e de todos os
jogadores. Naquela noite deitado em sua cama os planos de Alexandre,
que também sonhava com o futebol, começaram a pender para outra
direção.

Alexandre estava encantado e confuso. Com toda pressa que teve


não consegui contar os sonhos para ninguém. E agora ficava matutando e
comparando seus sonhos com as histórias que sua avó contara. A esta
altura do campeonato Alexandre já entendera que o que sua avó dizia era
lendas. Causos que “passaram de geração por geração e por tanto seguia
aquele ditado. Quem conta um conto sempre aumenta um ponto. E por
isto hoje as lendas do Arabizá ganharam um enfeite e foram
completamente distorcidas dos fatos originais. Isto se deve ao tempo e a
falta de registro formal destas coisas. Como eram apenas relatos locais,
sem interesses maiores eles foram sendo moldados e mudados à medida
que alguém contava ou e que o tempo passava. Para Alexandre tudo isto
era um diamante bruto. Ele acreditava em coincidências, mas aquilo tudo
era demais. Não havia como ser tudo coincidência. Afinal de contas uma
ou outra coisa tudo bem, porém as coisas estavam muito claras. Todos os
sonhos que Alexandre tivera iam de encontro ao conteúdo das lendas
relatadas no Arabizá. E assim como ele viu uma luz e tem certeza do que
viu agora Alexandre tinha certeza de que o tempo fizera da verdade
parecer uma colcha de retalhos. Bordada, colorida e fragmentada, mas ele
sabia que tudo aquilo não era uma colcha de retalhos e sim um imenso
quebra cabeça. Não restavam dúvidas Alexandre havia entendido que
realmente nada era por acaso naquela ocasião e que ele de alguma forma
fazia parte das lendas do Arabizá. Com isto ele deduziu que havia vidas
passadas e que sua vida e sua história estavam diretamente ligadas a vida
e a história do Arabizá.

Ainda havia muita aresta para aparar, e o garoto tinha um longo


caminho a percorrer. Porém agora Alexandre possuía duas certezas que
lhe apontavam um horizonte e uma direção. Sim ele acreditava e queria
descobriu, porque viveu no Arabizá, porque gosta do Arabizá hoje em dia
e qual é a sua missão nestas terras tão queridas.

71
Volvido por estes pensamentos Alexandre estava tão bem e
confortável em sua cama. Sentia uma estranha sensação no peito e um
calor humano presente em seu quarto tão intenso e agradável que ele
dormiu feito um bebê. Havia muita paz e segurança em seu sono. E assim
os meninos dormiram como nunca e acordaram alegres e dispostos para o
tão sonhado campeonato.

-------------------------------

--- Já são 08h25min Xandi a gente vai chegar atrasado ao jogo! A


culpa é sua que não colocou o despertador para funcionar e dormiu feitou
um urso hibernando.

--- Calma Hebinho a gente cortará caminho pela estada velha! Ainda
a tempo de chegar, e se a gente atrasar não tem problema ninguém
precisa de reserva no começo do jogo mesmo.

--- Esqueceu do olheiro? Nossa chance de mostrar alguma coisa está


no aquecimento.

---- Esqueci! Mas tenho uma boa notícia pra te dar! Quer passar
uma semana na minha casa em Cristalina?

--- Lógico que sim! Mas antes quero saber como que a gente vai
fazer para passar pela estrada velha sem ser visto. Porque nem o meu e
nem o seu pai deixa a gente passar por aquelas trilhas próximo a Curva da
Divisa e perto do Poço do Bambu sozinhos.

--- Todo mundo já está no campo, e quem não está segue


caminhando a pé pela estrada nova pra ver se consegue carona pro
campo. E a vovó, sua irmã e sua mãe já foram cedo pro Sítio da Cascata
preparar o almoço. Ou seja, ninguém vai nos ver passar pela estrada velha
porque ninguém vai estar lá Hebinho. Entendeu?

E assim os meninos passaram pela estrada velha. Quando chegou à


altura da Curva da Divisa, perto do Poço do Bambu Alexandre quase teve
uma sincope.

--- Hebinho você está sentindo este cheiro?

72
--- Nossa é um cheiro muito gosto. Isto vem do campo ou é seu
perfume? É você que está usando Xandi?

--- Não Hebinho, vamos embora daqui isto é coisa de alma do outro
mundo. Eu sonhei com este cheiro. Eu estava aqui no meu sonho e este
cheiro também estava em mim.

--- Pelo amor de Deus Xandi não brinca com estas coisas não. Você
sabe que aqui é assombrado. É aqui que aparece o fantasma da Curva da
Divisa a meia noite. E este cheiro só começou agora que a gente está aqui.

--- Vamos correr Hebinho antes que apareça alguma coisa.

Os meninos saíram em disparada pela trilha. A correria foi terminar


direto no campo de futebol. Correram como nunca haviam corrido em
toda sua vida. E finalmente chegaram ao tão sonhado campo do Arabizá.

Sentados no banco do reserva os meninos conversavam e assistiam


à partida que acabara de iniciar.

--- Nossa nunca mais eu passo por lá. Que cheiro era aquele? Não
tinha flor lá e eu nunca vi este cheiro nas flores ou perfumes daqui.
Reparou que o cheiro acabou depois que a gente saiu da curva?

--- Viu Hebinho, to te falando! Tem um mistério me rondando! Eu


preciso descobrir o que estas coisas querem me dizer.

--- Acho que você está precisando rezar mais, abusar menos e
procurar um benzedor.

--- Não vou lhe falar mais nada sobre o que eu penso deste assunto
Hebinho! E presta atenção no jogo.

--- Nem pensar que eu vou fazer isto. Pra quê? Pra ver o exibido do
João Pedro? Olha ele! La vai o metido correndo com suas pernas tortas.

--- Ele só joga no time Hebinho porque é canhoto e dribla mais ou


menos. Por ser canhoto ele consegue enganar os jogadores. Apenas isto. É
um tremendo perna de pau. Se tivesse uma chance eu fazia melhor que
ele.

73
Os meninos conversavam distraidamente quando neste momento
Naiara sentou perto de Alexandre e começou a falar:

--- Concordo com vocês rapazes. Todo mundo consegue fazer


melhor que o João Pedro.

Ao ouvir isto os meninos tomaram um baita susto e não


entenderam nada.

--- Nossa se até você que é a namorada dele esta falando.

--- Eu não sou a namorada daquele canalha Hebinho. A gente ficou


algumas vezes. Ele é quem criou esta história de namoro só pra contar
vantagens. Eu dei o fora nele e ele também está com o filme queimado no
Arabizá.

--- Filme queimado porque Naiara?

--- Lembra o dia que vocês foram pro terço e depois foram pra casa?

--- Sim e daí?

--- Então, neste dia eu também fui pra casa. O João Pedro e a turma
foram esquentar fogueira atrás da Igreja. Então mais tarde depois que
saíram do terço a Tico ou a Roberta foi pra lá também. Eu confundo as
duas, mas eu só sei que o João Pedro tomou em tapa na cara de uma
delas.

--- Que isto Naiara! Porque ele apanhou? Ele tentou beijar alguma
delas a força?

--- Não Hebinho, ele chegou a ficar com uma delas. Estava ficando
as escondidas de todo mundo porque o pai delas é muito bravo. Tudo
estava bem com os dois até que ele confundiu e chamou a que ele estava
ficando pelo nome da irmã.

---- Nossa Naiara que vacilo que o João Pedro fez! E pelo que você
está me contando ele deve ter ficado com a Roberta. Ela é a mais
estressadinha das irmãs e detesta ser confundida com a Tico. Veste
diferente, usa bijuteria, tudo que for preciso pra não parecer com a irmã.

74
--- Mas então porque elas não cortam o cabelo diferente Alexandre
isto iria ajudar.

--- A mãe delas fez promessa. Elas só podem mexer no cabelo


depois que fizer dezoito anos.

--- Eu só sei que com o tapa que ele levou todo mundo ficou
sabendo, e eu que estava quietinha em casa também fiquei sabendo. E
assim resolvi terminar o que a gente nem tinha começado direito.

Ao acabar de pronunciar estas palavras Naiara saiu correndo em


direção a uma amiga que insistentemente lhe chamava.

--- Você está pensando o que eu estou pensando Hebinho?

--- Claro que sim Alexandre, aquele dia no terço de São Gonçalo eu
deveria ter investido na Tico ao em vez de ter perdido tempo com a
Roberta.

--- Não seu tonto! Não é isto não! É outra coisa. Por que você acha
que a Naiara veio contar essas coisas aqui pra gente?

--- Alexandre isto eu já sei, e já lhe falei outro dia o que o Arabizá
inteiro já sabe. Você está afim dela, dá pra perceber, ela percebeu e veio
aqui tirar satisfação com você entendeu?

--- Você acha isto mesmo Hebinho?

--- Claro que sim! Pensa comigo, porque ela sentou do seu lado e
não no meio da gente pra conversar ou do meu lado? Acorda Xandi a
menina sentou na pontinha do banco pra ficar perto de você.

--- Mas porque ela não me disse nada?

--- Porque quem tem de se declarar é você Xandi. Ela já fez a parte
dela, veio aqui falar pra você que não tem compromisso e que o caminho
está livre.

--- Você acha?

--- Eu não acho nada Xandi eu tenho certeza. E quer saber de uma
coisa? Eu se fosse você colava nela depois do jogo lá no Sítio Cascata.
75
Logo em seguida o treinador do time fez um gesto para Herbert.
Os meninos nem haviam percebido que o atacante torceu o tornozelo e se
contorcia de dor no campo. Herbert correu para a beirada do campo
começou a se aquecer e em seguida. Com a orientação do técnico Herbert
entrou no lugar de João Pedro que foi parar no ataque substituído o
atacante machucado.

Ao entrar no ataque João Pedro virou um leão e um pavão ao


mesmo tempo. Foi com tudo para cima do time adversário e o resultado
disto fez com que o Arabizá terminasse o primeiro tempo vencendo de
dois a zero o time adversário. Já no segundo tempo o pai de Alexandre
pediu para sair do jogo alegando não estar se sentindo muito bem. Claro
que tudo não passou de uma estratégia já que o único que poderia
substituí-lo era Alexandre seu filho. Desta forma todos puderam jogar um
pouco e mostrar seu trabalho para o olheiro.

No segundo tempo o time adversário reverteu à partida. O jogo


terminou empatado e para resolver o problema foram para disputa de
pênalti. Para alegria do time do Arabizá e despeito de Alexandre, Herbert
e Naiara, João Pedro arrebentou nos pênaltis. Sua habilidade com as duas
pernas e a força que tinha na perna esquerda gerou verdadeiras bombas
que voavam descoordenadas em direção ao gol. O garoto era um
verdadeiro ataque surpresa. E naquele dia ele se tornou o salvador da
pátria do Arabizá. A comemoração seguiu fervorosa até o Sítio Cascata.
João Pedro foi carregado do campo até o sítio por uma multidão que
gritava e cantava:

--- É campeão! É campeão!...

A galera jogava o garoto pra cima e erguia um lustroso caneco


foliado a ouro que passava de mão em mão e era beijado pelos jogadores.
Neste ritmo, jogadores do time do Arabizá, a família dos jogadores,
algumas pessoas que assistiam a partida e todo o time adversário invadiu
o quintal, a casa, e todas as dependências do Sítio Cascata. O olheiro
também não teve como recusar, e tão pouco relutou para fazer isto. Por
tanto o centro das atenções no sítio era o olheiro. Todos queriam
conversar com ele. Ele representava um time de Belo Horizonte.

76
Só viera mesmo ao Arabizá para acompanhar sua esposa que
gostava de se hospedar em um hotel fazenda da região para fugir do
mundo e ter o marido só pra ela. Como ele não tinha muita coisa para
fazer e não gostava da vida rural decidiu trabalhar em quando ela
descansava. Anunciou no jornal local que visitaria sem compromisso o
time do Arabizá, e se por acaso gostasse de alguma coisa que visse talvez
daria uma força para o jogador. Bastou isto na rádio e no jornal local para
fazer do olheiro a maior celebridade de passagem já vista por aquela
Cidade. Sendo assim lá estava o olheiro. Dava entrevista e respondia a
diversos assuntos ligados ao futebol. Falava dos garotos que se perdiam
nos vícios, dos que não conseguia realizar o sonho, da competição
acirrada, da carreira curta no mundo do esporte, do funil, do nepotismo,
dos baixos salários que a maioria ganhava, da falta de patrocínio e
divulgação de times pequenos. Em fim ele falava de todos os lados da
moeda que a T.V não consegue mostrar.

Apesar de todo o choque de realidade que o olheiro passou para os


jogadores do Arabizá, tinha uma luz no final deste túnel. Ele havia se
interessado pelo talento do garoto João Pedro. Estas eram suas palavras a
respeito do menino:

--- O bom deste garoto é que ele é novo e ainda dá tempo de tirar
os vícios que o futebol amador deu pra ele. E ele tem uma boa
desenvoltura em campo. Sabe trabalhar em equipe e consegue ao mesmo
tempo ter iniciativa no ataque como eu posso perceber. Mais tarde
depois de tudo isto eu vou a casa dele conversar com os pais e com o
garoto. Nada oficial, mas é quase certo que se eu levar ele e apresentar
para o time de BH com certeza, ainda este ano, ele entra na segunda
divisão do clube e pode até ser contratado permanentemente.

Aquilo era música aos ouvidos dos jogadores. Anos disputando e


ganhando um futebol de várzea e João Pedro era o primeiro fruto da
árvore. Com certeza depois dele outros sairiam dali para conquistar o país.
Esta era a esperança de todos e quase todos torciam para João Pedro.

E foi então que Dona Diva chamou todo mundo com um grito

--- Chega de conversa minha gente é hora de encher a pança.


77
Imediatamente duas grandes filas se formaram. Nelas havia uma
multidão feliz e faminta segurando copos, pratos e grafos. As mulheres se
revezavam servindo a comida que estava fumegando dentro de tachos
enormes. O cheiro seduzia a todos e a fila andava na velocidade da fome.
Com os pratos cheios as pessoas se viravam como podia a procura de um
lugar cômodo para saborear a refeição. Agora parece que havia um
silencio total. Só se escutava o barulho de talher e o tilintar nas louças.
Um, ou outro, que murmurava alguma coisa próxima ao vizinho, mas
imediatamente voltava à atenção para a comida.

Herbert andava desnorteado pelo quintal segurando um copo cheio


de suco de laranja e um prato tão cheio de comida que mais parecia uma
maquete do Morro do Curió. O menino acabara de fazer o seu prato e
procurava uma sombra qualquer para sentar e saborear a refeição. Era
uma tarefa difícil dado ao fato de todos os bons lugares já estarem
reservados. Então Herbert desceu para o pomar. Chegando lá viu Naiara
sentada ao lado de seu primo Alexandre. Os dois almoçavam
tranquilamente sentados em um banquinho debaixo de uma mangueira.
Enquanto contemplava esta cena Herbert sentiu uma mão tocar o seu
ombro. Virou-se para ver o que era e se deparou com Bruno que também
olhava para Naiara e Alexandre e dizia:

--- Finalmente seu primo se desencantou Hebinho.

--- É verdade Bruno! Mas eu só quero achar um lugar para almoçar.

--- Olha ali em cima Herbert apareceu um lugar na varanda pra


gente. Vamos lá.

--- Vamos de pressa antes que apareça alguém! E então? O


pessoal vai hoje à barraquinha depois da missa?

--- Tudo indica que sim Hebinho! E que sorte o João Pedro deu a
você e o Alexandre em?

--- Não entendi sorte por quê?

--- Ué, se ele sair do time você deixa o banco de reserva, e se ele sair
do Arabizá a Naiara fica com seu primo.

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--- Não seja tosco Bruno, a Naiara nunca esteve afim do João de
verdade. Mas de certa forma você tem razão. Pra ser sincero agora vou
até torcer pela carreira dele.

Correu uma tarde de domingo agradável no Arabizá. Embora


estivesse bastante frio não estava ventando. Terminado o almoço
Alexandre foi para a casa de sua avó arrumar as malas e depois descansar.
Herbert chegou em sua casa e fez o mesmo. Porem foi tomado por um
cansaço tão grande que resolveu ficar em casa de noite para dormir cedo
e se preparar para viagem a Cristalina no dia seguinte.

Alexandre foi à missa, depois ficou para a barraquinha,


encontrou Naiara e os dois ficaram mais afastados da turma conversando.
A noite foi passando e começou a ventar muito. Estava frio e a sensação
térmica provocada pelo vento tornava a noite ainda mais fria. Todos
foram ficando desanimados por causa do frio. E um por um a turma foi se
dispersando. Restou Naiara e Alexandre. Então Alexandre convidou Naiara
a se retirar e como bom cavalheiro a acompanhou até a sua casa.

Como acontece nas cenas dos filmes chegando ao portão da casa


de Naiara o garoto teria que se despedir da moça com um beijo.

Tudo dava a entender que a menina esperava pelo tão sonhado


beijo. Mas a timidez de Alexandre o deixava aflito e travado. Ele queria
executar tudo como acontece nos roteiros previsíveis dos filmes. E Naiara
torcia pra que este clichê acontecesse com ela aquele momento em frente
aquele portão. Mas a vida não é filme. Alexandre timidamente levantou a
mão para se despedir de Naiara com um acanhado aperto de mão.

Naiara de súbito entrelaçou sua mão direita na cintura de


Alexandre, e com a esquerda puxou o pescoço do garoto para próximo a
boca dela. Tascou lhe um beijo na boca sem se quer deixar o garoto
respirar. Alexandre se assustou de início, depois abriu a boca e em
seguida começou a beijar Naiara também. Foi um longo e demorado
beijo, e depois deste veio mais um, e mais dois, e só depois de muito se
beijarem foi que o novo casal se despediu.

79
Alexandre aguardou Naiara entrar em casa e depois enfiou a
mão no bolso e correu para a casa de sua avó completamente feliz, estava
pisando em nuvens.

Quando chegou ao quarto Alexandre percebeu que Herbert


estava dormindo. Então resolveu fazer o mesmo. Mas como o sono não
vinha, pegou o celular, escondeu-se debaixo da coberta para a luz não
incomodar o primo e começou a enviar mensagens de amor para Naiara.
Naiara viu e respondeu as mensagens. Assim os dois ficaram trocando
mensagens até o final dos créditos. Então Alexandre finalmente dormiu e
sonhou com Naiara.

***************

4 - De encontro às respostas.
04h35min Da tarde, segunda feira, mês de junho, cidade de Cristalina.

A casa de Alexandre ficava na parte baixa da cidade e próximo ao


centro. Na verdade era apenas uma rua atrás da rua principal da cidade.
E no momento os dois primos caminhavam pelas ruas do centro.

--- Olha a hora Hebinho, você enrolou de mais!

--- Por mim eu nem saia de casa hoje Alexandre. A casa da tia é
muito bonita e confortável. E também não estamos atrasados coisa
nenhuma! A entrevista é às cinco e meia.

--- Eu sei, mas se você não tivesse inventado de tomar banho de


banheira feito um rei a gente poderia sair mais cedo pra bater perna e o
pai ia dar mais dinheiro pra gente tomar sorvete e café na rua.

--- Deixa de ser fominha Alexandre, você parece que puxou seu pai
só pensa em guloseimas. E eu nunca usei hidromassagem na vida. Tenho
de aproveitar a oportunidade.

--- É uma bobagem, entrar debaixo de uma cachoeira no verão surte


o mesmo efeito.

80
--- Pode apostar que não Alexandre, e pra ser sincero se a gente
tivesse no verão eu me atirava naquela piscina da sua casa e não sai mais.

--- Pois eu prefiro o Poço do Fubá lá no Arabizá, não gosto de cloro.

--- Já falei que a gente devia trocar de casa. Vamos?

--- Vamos sim! Vamos procurar uma lojinha pra gente comprar
crédito pro celular. Preciso mandar mensagem para minha amada. Minha
doce Naiara.

--- Xandi o pai me deu duzentos reais para gastar neste fim de
semana. Se a gente comprar perfume naquela loja ali será que vai
desfalcar muito?

--- Perfume sim Hebinho, mas se você comprar desodorante é mais


barato e surte o mesmo efeito.

--- Então vamos lá comigo Xandi?

--- Vamos sim é bom que eu aproveito pra ver uma coisa.

--- Que coisa?

--- Na hora certa você vai saber.

Os dois entraram na loja e Herbert experimentou alguns


desodorantes masculinos nas paletas e escolheu um que lhe custou 15
reais. Mas o que Herbert não entendeu foi à atitude de Alexandre, ele
experimentou todos os perfumes, cremes, sabonetes, colônias,
desodorantes, e demais produtos. Experimentou tudo das linhas
masculinas e femininas. E enquanto a moça embrulhava o desodorante de
Herbert veio dos fundos da loja uma moça que parecia ser a mais nova
dali trazendo um pacote de sabonete. A moça colocou o pacote encima do
balcão e abriu para que Alexandre pudesse experimentar:

--- Olha moço este é o último produto que temos na loja. Esta é uma
linha especial de sabonetes franceses feitos a base de lavanda.

Alexandre cheirou, e cheirou o perfume, mas nada era similar ao


cheiro que ele sentiu em seus sonhos e lá no Arabizá.

81
Herbert entendeu finalmente qual era o plano de seu primo e
tentou chamá-lo para a realidade dizendo:

--- Alexandre, a gente vai perder a entrevista! Lembra da


entrevista? Então temos hora marcada. Vamos embora, por favor. E você
não precisa comprar credito?

Herbert saiu da loja com uma sacola pequena de desodorante e


Alexandre saiu de mãos vazias. Logo em seguida os dois entraram no
camelô da cidade. Sempre que via algum perfume ou coisa parecida
Alexandre parava e experimentava. Compraram um fone de ouvido para
usar depois no gravador de mão. E saíram do camelô sem encontrar a tão
desejada fragrância. Der repente Alexandre olhou para o outro lado da
rua. Viu uma placa de cartão de recarga estampada em um pequeno
cartaz. Automaticamente ele arrastou seu primo para loja. Tratava-se de
uma loja de artigos místicos. Era uma loja minúscula, composta por
apenas uma portinha estreita. Havia mercadorias espalhadas por todo
interior da loja. Gnomos pendurados no teto, bruxinhas de pano
montadas em vassoura, incensos de toda qualidade, pedras e todo tipo de
coisa voltada para este mercado. Herbert chegou ficar com pesar no
peito. Ele logo percebeu as essências e incenso e deduziu que ficaria ali
por uma hora até que seu primo encontrasse o tal “perfume fantasma”
como ele meso costumava a brincar com o primo. Viu que a procura ia ser
grande. Porém logo ao entrar na loja os dois garotos encontraram
exatamente o que Alexandre estava procurando.

--- Está sentindo este cheiro Xandi?

--- Sim Hebinho e não estou louco porque você também está
sentindo. Só pode ser este...

Do fundo da loja surgiu uma moça alta, magra, dona de um corpo


escultural e de um sorriso cativante. Vestia uma blusa sem sutiã e rente ao
corpo, usava uma grande sai ripe que acentuava ainda mais as suas
curvas. Ela veio na direção dos meninos e respondeu o que eles ainda nem
havia perguntado:

82
--- Este cheiro maravilhoso é de essência de lavanda. Eu adoro!
Sempre ponho um incenso deste para queimar na minha loja. Ele é muito
bom para espantar... Interrompendo a fala da moça Alexandre retrucou:

--- Mas não pode ser! Na loja ao lado a moça me trouxe um


sabonete de lavanda e não tinha este cheiro.

--- Qual o seu nome?

--- Sou Alexandre.

--- Prazer sou Keira. Então Alexandre é que os sabonetes têm uma
fórmula que mistura muitas coisas e combina várias essências. Aqui não!
Eu estou usando só a essência de lavanda pura. Até em certos perfumes
ela costuma se destacar.

--- Você tem pra vender

--- Tenho sim, possuo na forma liquida em vidrinhos de 50 ml e em


forma de incenso.

--- Eu vou levar o vidrinho com o liquido, e comprar um cartão de


recarga.

Os meninos saíram da loja satisfeitos e correram para entrevista. E


Herbert que estava tão receoso de ver seu primo demorar na loja
lamentou que ele tivesse saído tão rapidamente. O menino se encantou
por Keira. Enquanto seu primo conversava sobre essências, lavandas e
estas coisas ele só tinha olhos para as siluetas, e para o decote de Keira.
Ficou hipnotizado, mal conseguia disfarçar. Saíram da loja e caminharam
por algumas quadras até chegarem ao local da entrevista.

--- Xandi, amanhã de tarde a gente vai voltar no centro? Vamos? Eu


me esqueci de comprar uma coisa que tem na loja da Keira! E pra ser
sincero acho que lá você vai encontrar respostas para o que você tanto
procura.

--- Deixa de ser tarado Hebinho! Vamos? O prédio da entrevista é


este aqui. Aperta o interfone pra você aprender usar isto! O apartamento
é o 315. Quantas horas?

83
--- Pronto Xandi, já está chamando! São cinco e vinte e cinco. O
gravador tem pilha? Você já sabe o que vai falar?

--- Claro que sei Bibinho!

--- Bibinho é a sua vovó mãe da sua mãe que não é minha avó
Xandinho! E quero só ver em! Não vai meter a gente em outra enrascada
com este plano maluco de entrevista.

--- Não é maluco. Vamos dizer que precisamos fazer um trabalho de


ensino religioso. O tema são as Doutrinas Religiosas do Brasil. E pra ele
não ficar perguntando muito ou desconfiar a gente fala que ele é o
primeiro entrevistado do nosso trabalho.

Uma voz feminina deu a ordem de entrada no interfone. Logo em


seguida ouve um pequeno estralo no portão e a aporta abriu
automaticamente. Os meninos passaram pela porta do prédio fecharam e
subiram as escadas estreitas até o apartamento do Sr. Ariel. Chegando ao
local bateram na porta e foram atendidos por uma jovem de aparência
simpática, olhar doce e sorriso cativante. A moça os convidou a sentar no
grande sofá de couro preto que havia no meio da sala.

--- Só um momento que meu pai já está vindo.

Dito isto ela saiu em direção a o interior do apartamento deixando


os dois meninos livres para admirarem a sala. Alexandre estava
estranhando o local. Esperava encontrar mobilhas pesados, móveis
luxuosos ou uma decoração moderna e cara com quadros abstratos ou
coisas do tipo. Mas o apartamento de Ariel era justamente o contrário. A
mobília era simples e o chão ainda era de taco. Tudo muito conservado,
com bastantes coisas e muitas plantas, mas nada que se pudesse ostentar
em termos de status ou riqueza.

--- Xandi olha para aquela estante! Nossa! Quantos livros! Será que
ele empresta ou vende?

--- Deixa de ser besta Hebinho com certeza isto deve fazer parte dos
estudos dele. Mas o que eu mais gostei foi daquele baú ali. Ele está cheio
de vinil e fita cassete.

84
--- Mas isto tudo é da minha filha. Ela faz mestrado em Psicologia e
esta defendendo uma tese. Por isto juntou todas estas parafernálias. Se
dependesse de mim este apartamento só tinha os móveis usuais, as
plantas que tanto estimo e minha família que amo, mais uma tartaruga
que foi da minha avó e hoje vive na área de serviço do prédio.

Ariel entrou der repente na sala surpreendendo os garotos e


respondendo suas perguntas. Ele usou esta estratégia para quebrar o
gelo, pular protocolos e rituais de apresentação e deixar os garotos mais
curiosos e descontraídos.

--- Prazer sou Alexandre, o que vai lhe entrevistar. Mas me fala uma
coisa se o senhor é o dono e fundador do Centro Espírita de Cristalina não
devia ter muito livros também?

--- Sim e eu os tenho! Estão todos retidos dentro da minha cabeça e


na minha alma. Eu os compro nas feiras espíritas, leio, e depois releio até
aprender o que for preciso e logo em seguida me livro deles.

--- O Senhor joga fora? Por quê? Não pode ter livros espíritas em
casa?

--- Claro que pode! Conheço amigos meus que fazem coleção! Mas
eu prefiro emprestar, doar para a biblioteca do centro ou para alguém que
me pede e não pode comprar. Gosto de ver o conhecimento circulando e
não acho que estante cheia seja sinônimo de sabedoria. Sabedoria é
evoluir, aprender e usar o conhecimento adquirido. Acredito na dinâmica
da vida, onde não se podem apegar demais as coisas, pois não dá pra alçar
vôo com excesso de bagagem. Devo ter apenas uns vinte livros que trago
sempre comigo. Estes eu estou constantemente relendo ou estudando. O
dia que não tiver mais nada pra se extrair deles eles também vão embora.

--- Foi o senhor quem criou o Centro Espírita de Cristalina?

--- Não, e também não sou dono de nada! Faço parte da equipe de
coordenação apenas. Em nosso centro todos temos a mesma importância
e o mesmo valor.

85
--- Às vezes a entrada de um membro pode ter muito mais a nos
acrescentar e nos ajudar em nossa evolução do que milhões de palestras,
reuniões mediúnicas ou grupos de estudo ao longo dos anos que estamos
aqui. Cada irmão que nos procura abre uma vereda de luz. É uma dádiva
do criador em nossas vidas.

Encantados com a simpatia e a sabedoria do Senhor Ariel Herbert e


Alexandre acompanhavam atentos seus ensinamentos. O que os meninos
não sabiam eram que antes mesmo de Alexandre chegar Ariel já previa
sua visita. Há dias que sua filha Luciana o alertara para a visita de dois
jovens. Luciana vira dois vultos de luz um tempo atrás em seu quarto.
Estava acostumada com estas aparições devido ao fato de ser
extremamente sensitiva. Os vultos apareciam, mas não lhe diziam nada.
Porém! Luciana tinha um dom incrível de dedução e interpretação dos
fatos. Logo percebera que se tratava de vultos masculinos, pois a silueta
era de dois homens. Ela também percebera que os vultos eram jovens,
pois as estaturas dos dois eram propositalmente medianas e as sensações
transmitidas pelos vultos através da sintonia dela com eles a fazia ter
certeza disto. Tinha certeza que se tratava de vultos de luz e de paz e que
vinha de esferas superiores. Não só pelas cores brancas de suas auras ou
por sua luz e brilho, mas também pela paz e serenidade que esta aparição
trazia a Luciana no momento em que eles se manifestaram. Por isto tinha
certeza de se tratar de um sinal sério e positivo, pois Luciana não se
deixava influenciar por espíritos antagônicos as suas vibrações positivas.

Luciana estava acostumada com seu pai recebendo várias pessoas


de várias doutrinas quase todos os dias em sua casa. Por isto viu que a
visita dos meninos era muito especial e trazia nela uma missão que
pudesse envolver a todos. Sendo assim foi preciso àquela aparição. Para
que ela alertasse Ariel. O deixasse mais preparado do que o de costume
para ajudar os jovens em seu propósito coletivo. Luciana entendeu que
isto seria de suma importância não só para o Centro no qual sua família
pertencia como também a toda Cristalina e região.

Quando os vultos foram embora do quarto de Luciana, ela


sentiu no ar um cheiro agradável de perfume. Luciana sabia qual era
aquele perfume. Era lavanda.
86
Sendo assim ela ficou atenta aos outros sinais. Dia após dia foi ela
quem fez a vez de secretária de seu pai. Sempre atendendo a porta.
Sempre observando as visitas de longe a procura de uma pista que a
indicasse sobre a aparição. Foi quando apareceram os dois meninos.
Minutos antes de eles tocarem o interfone Luciana os viu na porta do
prédio. Ela estava na sacada de seu apartamento. Pode ver os garotos
conversando, e observou que eles traziam sacolas. Foi quando Alexandre
retirou o gravador de uma das sacolas que Luciana pode ver um vidro
verde que lhe era muito familiar. Aquele era o vidro da loja de sua amiga
Keira. Um vidro que ela usava para embalar suas essências. Sabia muito
bem, pois já trabalhou como ajudante da loja no começo dos estudos para
perder a timidez e aprender a lidar com as pessoas. Luciana e Keira
passavam horas e horas conversando sobre tudo na loja. E com isto
Luciana conhecia bem os tramites daquele comércio e por tanto ela sabia
que sua amiga sempre colocava as essências de lavanda nos vidros de
coloração verde. Era uma forma de padronizar ou coisa assim. O que
importa era que naquele vidro tinha lavanda e eram dois garotos. Bastou
isto. Pronto. Luciana correu para o quarto de seu pai e o avisou sobre a
visita e em seguida foi até a cozinha e liberou a entrada dos dois através
do interfone.

Indiferente de terem ou não uma missão, Ariel os recebeu


com muita cortesia e como lhe era de costume jamais negara informação
a quem quer que lhe peça. E os dois pediram. Tinha cede de saber sobre a
doutrina. Tamanha era a cede que eles se querem disfarçaram deixando
bem claro ao senhor Ariel que esta história de entrevista era apenas uma
fachada. Um pretexto mesmo, e o propósito disto era conseguir um
tempo ao lado do Senhor Ariel e usufruir de seus ensinamentos. Ariel não
só percebera, pois os meninos não ligaram o gravador e não lia as
perguntas por escrito como costuma fazer repórteres, com isto ele ficou
muito honrado com o interesse autêntico de duas almas juvenis em
aprender. Só não entendeu o porquê do pretexto da entrevista.

Tudo que foi necessário foi ensinado aos dois naquele momento.
Ariel falou sobre os quatro principais livros do Espiritismo.

87
Falou sobre as mesas giratórias, sobre Alam Kardec, sobre grupos
de estudo, palestras, teatros, reuniões mediúnicas, obsessões,
zombeteiros, umbrais, furnas, colônias, evolução, Karma, Dharma e tudo
que eles precisavam saber ou lhe perguntavam eram devidamente
respondido.

-------------------------------------

Ariel procurou ser o mais esclarecedor possível. Mas ele havia


avisado Luciana dias antes quando ela o procurou com este assunto de
sonho e missão coletiva. Ariel foi bem enfático com Luciana lhe dizendo

--- Veja Bem Luciana! Por mais importante que seja a missão destes
garotos não é justo que eu ajude apenas eles. Pra eu ajudá-los desta
forma esta teria de ser a minha missão e eu teria de ajudar a todos assim.
Nunca interferi no destino das pessoas que me procuram. Não é esta a
minha missão. Eu apenas lhes apresento a Doutrina. Acredito muito em
expor o indivíduo ao conhecimento, porém não cabe a nos manipular a
decisão deste indivíduo em relação a Ela. E como lhe disse antes a minha
missão é outra.

--- Eu sei papai. Mas este menino é filho de um político importante


nesta cidade, sua família é muito católica e influente. Justo ele nos
procurando? Só isto não é o suficientemente incomum?

--- Não! Isto é extremamente natural. Mostra que seus pais o


educam muito bem deixando o garoto livre para procurar por aquilo que
acredita. E no mais, Luciana, isto pode ser apenas devaneio juvenil.

--- Não papai! Eu sei que não é! Lembra dos sinais? Pai, eu lhe falei
sobre isto! Nada é por acaso, estes vultos não iam aparecer apenas por
aparecer.

--- Filha tome cuidado com isto! Já te expliquei tanto sobre este
assunto. Estes fenômenos mediúnicos são complexos e alguns muito
subjetivos. Tudo pode cair em várias interpretações erradas. Por isto a
nossa doutrina os reconhece, os estuda e até se beneficia deles. Mas a
nossa fé e nosso cainho não podem ser guiados por eles. Devemos sempre
nos guiar pela razão e basear nossa fé nos ensinamentos de Cristo.
88
--- Às vezes esperamos de mais da mediunidade e esquecemo-nos
de experimentar os milagres que se podem obter pelo simples fato de
praticarmos a caridade.

--- Entendo perfeitamente seu ponto de vista Papai. E não estou lhe
pedindo que ajudem eles de outra forma. Apenas faça a sua parte e deixe
o resto comigo.

--- Luciana minha filha. Novamente eu lhe peço encarecidamente.


Tome cuidado! Pagamo-nos um preço por usar indevidamente nosso livre
arbítrio, mas quando interferimos no livre arbítrio de outras pessoas o
preço é muito maior.

--- Pai pode ficar tranqüilo. Esqueceu que sou formada em


psicologia? Não posso aconselhar ou sugerir nada a meus pacientes, assim
também é a forma com que eu me procedo diante dos eventos desta
natureza. E por se tratar de um assunto tão sério e que envolve muitas
vidas em curso não tenho o direito de interferir na rota destas pessoas.

--- Então o que vai fazer?

--- Se me veio um sinal não é por acaso. Eu não quero negar este
fato. Não quero ignorar meu dom e deixá-lo atrofiar com a falta de uso. E
se me veio foi porque alguém está contando comigo. E eu vou ajudar
fazendo a minha parte. A decisão fica a critério dos dois. E não se
preocupe papai vou ser muito sensata, coerente e sutil.

--- Sendo assim eu confio em você querida.

----------------------------------

Enquanto explicava para os garotos Ariel relembrava desta conversa


com Luciana. No fundo ele estava muito curioso para saber qual seria a
forma e de que jeito Luciana ajudaria os rapazes. Ariel conhecia bem sua
filha. Sabia que era voluntariosa e que não acatava ordens sem ver as
razoes das mesmas. Mas também ele conhecia o coração de Luciana.
Reconhecia nela uma alma boa, dispostas sempre a ajudar o próximo.
Mesmo que metesse os pés pelas mãos, às vezes, ela sempre fazia tudo
com a intenção de ajudar.

89
Então a estratégia de Ariel para com Luciana era o diálogo. Eles se
concordavam, discordavam e às vezes discutiam. Mas sempre mantinham
um elo de amor entre pai e filha. Por este motivo Ariel agia e atuava nas
decisões da filha de forma positiva. E no caso dos meninos não seria
diferente. Ele logo percebeu que se deixassem tudo a critério de Luciana
ela agiria movida por intuição, instinto, impulso e encantamento que a
juventude sente em relação às descobertas. Assim sendo a sua missão era
aconselhar. Ariel o fazia da melhor forma possível. Ele sempre colocava as
razões de seus conselhos e os resultados que as decisões gerariam se
fossem tomas de forma errônea. Assim Luciana percebia melhor o seu
dom, pois tinha a opinião de seu pai que era externa a sua. Mas Luciana
também percebera que a opinião de seu pai às vezes vinha com excesso
de zelo e insegurança. Ela tinha plena confiança no que estava fazendo e
os conselhos do pai só serviram para ela repensar a forma com que devia
agir.

-----------------------------------------

Herbert e Alexandre vieram apenas para passar um simples fim de


semana em Cristalina. Porém os dois meninos ficaram lá mais que um
simples fim de semana. Ocorreu que Alexandre ficou extremamente
encantado com tudo o que ouviu no apartamento de Ariel. Tão encantado
que decidira freqüentar o Centro Espírita de Cristalina. Alexandre
mergulhou de cabeça na Doutrina. Comprou os principais livros da
Doutrina, leu vários romances espíritas, livros psicografados, relatos
contados por pessoas, viu filmes, participou de reuniões e tudo que lhe foi
possível vivenciar naquele período de tempo.

Os pais de Alexandre até chegaram a se preocupar um pouco com a


atitude do garoto. Mas resolveram não intervir. Afinal de contas eles
acreditavam que esta era mais uma das muitas fases da adolescência.
Tinha a impressão que tudo isto ia passar, e que também não deviam
intervir, pois o conflito poderia aumentar a inclinação do garoto gerando o
efeito contrário ao esperado. No mais a mãe de Alexandre apanhara
emprestado do filho um romance espírita.

90
Embora ela não acreditasse ou aceitasse a Doutrina, achou tudo
muito sensato e não viu nada que pudesse ser nocivo a um garoto daquela
idade ou a quem quer que fosse. Muito pelo contrário seu filho
finalmente estava lendo livros por conta própria e não por imposição das
aulas de literatura. Isto a deixou tranqüilizada. Isto e o fato de Alexandre
estar mais calmo e feliz.

Paralelo as sua busca espiritual e ao desvendamento do mistério


que antes o afligia, a vida de Alexandre ia de vento em poupa. O namoro
com Naiara havia engatado. Os dois se correspondiam através de MSN,
longas e caras conversa em celular e nos fins de semana Naiara vinha pra
Cristalina e ficava na casa de uma tia. Naiara já fora apresentada a família
como namorada de Alexandre. Alexandre também dormira um dia no
Arabizá só pra jantar e pedir aos pais de Naiara a filha em namoro. E
quando não estava na companhia da Namorada Alexandre saia com a sua
turma de colégio, e com seu primo Herbert que estava hospedado em sua
casa. Para a família de Herbert, para a família de Alexandre e
principalmente para Herbert esta nova fase Cristalinense de Alexandre era
uma maravilha. Herbert sempre quis se hospedar em Cristalina, mas antes
não tinha jeito porque seu primo vivia enfurnado no Arabizá. E por outro
lado a mãe de Alexandre gostava de receber visitas e tinha em Herbert o
irmão que não pudera dar a Alexandre. Ela tratava Herbert como se fosse
um segundo filho. Quando Alexandre saia em companhia de Naiara o
primo não queria ir junto. Nestes dias, geralmente nos fins de semana,
Herbert aproveitava a companhia dos tios. E eles aproveitavam para
apresentar Herbert aos amigos, e lugares que o garoto não conhecia.
Estas férias estavam sendo uma verdadeira festa para a família Lemos. À
noite quando finalmente estavam a sós em seu quarto. Os pais de
Alexandre conseguiam tempo para por a conversa em dia:

--- Estou vivendo um sonho! Meu filho desenvolvendo o habito de


leitura, passando as férias em casa, namorando uma menina que parece
ser boazinha e meu sobrinho querido hospedado aqui. Nossa! Queria que
este tempo não passasse nunca! Tomara que tudo fique assim com está.

--- E por falar em mudanças acho que já é hora de acompanharmos


mais de perto esta faze Espírita de nosso filho. O que você acha?
91
--- Tem toda razão meu amor! E já sei como fazer isto! Está semana
tem feira do livro no Centro e eu li que há vários eventos. Quarta feira tem
uma psicóloga amiga da Luciana que vai dar uma palestra esclarecedora
sobre terapia de vidas passadas. Ela veio de São Paulo só pra isto. É filha
dos Guimarães e vai ficar uma temporada aqui. Sabe como é cidade
pequena!

--- Sei sim meu amor. Então! A gente marca de irmos nesta palestra.
Eu, você, os meninos a namoradinha de Xandi, e depois a gente ainda
pega um cinema e arremata a noite na pizzaria.

**************

5 - A terapia.
Em quinze dias a vida de Alexandre mudou mais do que nos últimos
dezesseis anos. Os pais de Alexandre cada vez mais se interessavam pela
Doutrina Espírita. O sentimento de desconfiança deles se desfez
completamente. Agora era a mãe de Alexandre que cobrava do garoto
quando ele deixava de ir a algum evento no Centro. Na estante da casa
havia livros e títulos espíritas antes nem sonhados pela família Lemos.
Para Alexandre tudo isto já estava se normalizando. Ele sentia estar no
caminho certo. Sentia que agora ele não pertencia a uma instituição no
qual ele deveria seguir certos protocolos e rituais. Não, agora Alexandre
tinha uma Doutrina que estava em sintonia com as suas necessidades,
dúvidas, e anseios. Ele não conseguia explicar a paz de espírito e a
afinidade que sua alma sentia ao freqüentar o Centro. Alexandre tinha a
consciência que esta paz pode ser encontrada dentro de qualquer Religião
ou lugar que se busca a Deus. Porém ele se identificara mais com a
Doutrina Espírita.

92
Sua intuição estava ficando aguçada à medida tornava-se mais
maduro e consciente de si mesmo. Por isto Alexandre sabia no íntimo que
ainda faltava alguma coisa. E esta resposta ele só encontraria se
aprofundando ainda mais no estudo da doutrina e na busca do
conhecimento próprio. E a esta altura do campeonato Alexandre já
percebera que as duas coisas estavam interligadas e que descobrir a razão
desta ligação seria descobrir o sentido de tudo isto. Agora Alexandre ainda
tinha as mesmas dúvidas de antes. Ele queria saber qual era o mistério da
luz azul, porque apesar de viver em Cristalina, estar namorando, ter
amigos e familiares ele ainda sentia como se devesse algo ao Arabizá, qual
o propósito daqueles sonhos, e o cheiro de lavanda, porque ele e seu
primo sentiram? Embora tivesse freqüentando o Centro Espírita, sentindo
e vivendo um período de paz e serenidade, Alexandre percebera que
precisava responder estas perguntas a si mesmo. Claro que agora ele
estava muito calmo e feliz. Não tomava mais decisões movidas por
rompantes e não sofria mais de estresse por causa dos eventos e
sentimentos. E apesar de toda a calmaria Alexandre entendeu que era
preciso seguir e questionar estas coisas. Só que desta vez ele queria fazer
tudo do jeito certo. Com descrição, segurança, e principalmente com uma
pessoa bem esclarecida. E foi Luciana quem apresentou esta pessoa para
o garoto.

Luciana viu que Ariel seria muito útil no início do processo e na


formação e direção espiritual do garoto. Este era o dom de seu pai. Assim
ele agia e ajudava as pessoas de Cristalina. Porém Luciana entendera que
o menino precisaria de alguém que lhe fosse mais íntimo e ao mesmo
tempo tivesse a sabedoria de seu pai e conhecesse métodos científicos
para poder ajudar Alexandre em sua missão de maneira mais objetiva.
Para isto ela contou com a ajuda discreta de sua amiga de faculdade
Matilde. Matilde veio à Cristalina a convite de Luciana. Sua amiga já
clinicava e optara por seguir uma corrente que lhe dava condições de
trabalhar com hipnose e terapia de vidas passadas. Claro que a terapia de
vidas passadas era um trabalho paralelo. Ela só incluía no tratamento se
houvesse aceitação do paciente e se sentisse que este caminho seria
salutar para a pessoa.

93
Matilde veio ministrar uma palestra sobre este assunto no Centro
de Cristalina. Como estava de férias prêmio da prefeitura de São Paulo
resolveu ficar na cidade por seis meses.

Na verdade foi uma permuta. Matilde precisava de tempo para


escrever seu livro e estar reclusa em Cristalina iria lhe cair bem.

--- Mas Luciana como vai fazer para entrar na vida de Alexandre sem
interferir no livre arbítrio dele?

--- Simples Matilde, como você está de férias por seis meses, você
pode clinicar não pode?

--- Poder até que eu posso sim! Mas....

--- Nem mais nem menos Matilde. Você está escrevendo um livro
sobre milagres e sinais? Então? Este garoto é a sua fonte de inspiração!
Vai por mim! Ele tem uma grande missão! Eu pressinto isto...

--- Mas Luciana eu não posso começar um tratamento e


interromper.

--- Se o psicólogo morrer? Não tem de interromper o tratamento?


O paciente vai ter de buscar outro profissional se não tiver alta. E no mais
você vai usar seus conhecimentos no campo da Doutrina. É mais uma
direção espiritual específica, não um tratamento propriamente dito.

--- Não sei não Luciana!

--- Sabe sim Matilde. Acredite-me não sou mais aquela garota
impulsiva e voluntariosa de antes. O que eu estou lhe querendo dizer é
que não dá pra ser ortodoxa a vida toda. Podemos ajudar este menino. O
pouco que fizermos por ele é melhor do que nada.

--- Certo, me deixa pensar um pouco e depois lhe dou a resposta.


Claro que tenho interesse em saber boas histórias para meu livro. E a
deste menino me parece...

--- Não Matilde! Não é um relato pronto e findo. Estamos dentro do


desfecho e somos um de seus personagens.

94
--- Somos agentes e nossas decisões vão interferir na vida dele e de
toda uma comunidade. E agora a decisão e o nosso futuro estão em suas
mãos!

--- Bom Luciana! Digamos que eu escolha ajudar. Como vamos fazer
para que Alexandre venha até a mim, e tem mais deve haver afinidade
entre paciente e terapeuta. Se ele não me escolher de livre e espontânea
vontade nada posso fazer para ajudá-lo.

--- Eu já sei de tudo isto Matilde. E é por isto que incluí sua palestra
na agenda dos eventos do Centro. Em anexo no cartaz você vai divulgar
seu trabalho e vem clinicar em Cristalina.

--- De jeito nenhum Luciana você está louca? Não posso fazer isto!

--- Calma Matilde! Na verdade quem vai clinicar sou eu! Esqueceu
que já me formei? Então! Pretendo atender dez pacientes de graça para
retribuir tudo que a vida me deu.

--- Não estou entendendo nada Luciana.

--- Simples. Vamos divulgar juntas que o Centro espírita de Cristalina


vai oferecer atendimento psicológico gratuito. Explicaremos que serão
atendimentos clínicos ou apenas simples visitas individuais ao consultório
para quem quiser esclarecimento a respeito da Doutrina, da terapia de
vidas passadas ou saber sobre o cotidiano da nossa profissão. Claro que as
vagas serão limitadas, se não a gente não consegue conter a demanda!

Deixaremos bem claro que o tratamento clínico tem um prazo que


vai de uma semana a seis meses para começar a convocar os pacientes, e
o processo de visita também funcionará por sorteios e ocorrerão também
neste tempo. Então até o período eu já vou estar de consultório montado.
Sendo assim começo atender estas pessoas.

--- Entendo seu raciocínio. Mas onde Alexandre entra em tudo isto.

--- Ele vai a palestra sua, disto eu tenho certeza. E quando ele
souber que pode fazer terapia de vidas passadas certamente vai querer
este tratamento.

95
--- Daí ele se inscreve junto com outras pessoas e eu atendo apenas
ele e os outros são encaminhados para seu consultório sem ninguém
desconfiar de nada certo?

--- Isto mesmo Matilde! Não estamos enganando ninguém.

--- Olha você ainda é a mesma Luciana maluquinha que eu conheci


na faculdade.

--- E você é muito curiosa e gosta de resolver uma boa trama assim
como eu! Então vai me ajudar nesta?

--- Você não sabe ouvir não. Sabe Luciana?

--- Eu só não ajudo Alexandre pessoalmente porque você tem mais


experiência em campo que eu. Mas se você disser não eu vou achar um
jeito de ajudá-lo eu mesma.

--- Nem pensar eu te conheço bem Luciana! Pode deixar eu vou


ajudar Alexandre. Não prometo nada, e farei tudo dentro do possível.

--- Eu confio em você!

As amigas se entenderam e Matilde topou ajudar a Luciana em seu


propósito com Alexandre. De início achou tudo meio coloquial e confuso,
porém estava acostumada a lidar com o ser humano e conhecia a fundo a
Doutrina Espírita. Sabia que Deus age de forma natural e espontânea.
Nada precisa ser o tempo todo sério, sofrido e profundo. Muitas coisas
belas, simples e até engraçadas também fazem parte do processo de
evolução do ser humano. Por este motivo ela viu ali uma oportunidade de
ajudar à amiga.

----------------------------------

6 - Primeira sessão.
Alexandre ficou um pouco frustrado com Matilde no consultório. Ele foi à
palestra. Viu Matilde relatar suas experiências clínicas e os resultados dos
tratamentos. Claro que Matilde como todo profissional ético narrava os
eventos, mas preservava o anonimato de seus pacientes.

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Alexandre assistiu à palestra embasbacado. Grande era seu fascínio nas
histórias que Matilde contava. Aliás, todos no Centro, naquela noite
gostaram muito de Matilde e seu trabalho.

Após a palestra Matilde divulgou que o centro ofereceria


tratamento psicológico clínico, porém limitado e também aqueles que
quisessem saber mais sobre terapia de vidas passadas ou sobre a profissão
de psicólogo poderiam preencher uma ficha na secretaria do Centro e
aguardar a secretaria entrar em contato. Alexandre preencheu a ficha,
aguardou ser chamado. Foi chamado, e agora Lá estava ele. Meio
frustrado e deitado no divã.

O que ocorre foi que Alexandre chegou a mil no consultório.


Contou tudo de uma vez a Matilde. Falou com detalhes sobre o dia em
que viu a tal Luz Azul, sobre o grande somatório de sonhos que teve, e do
tal cheiro de lavanda que ele e seu primo sentiram na curva da divisa lá no
Arabizá. E quando ele perguntou a Matilde o que ela achou de tudo que
ele dizia, obteve esta resposta:

--- Veja Bem Alexandre! A hipnose e a terapia de vidas passadas


são parte do tratamento. Mas elas não são o tratamento propriamente
dito. Existem vários recursos e procedimentos mais eficazes e que eu não
abro mão dos mesmos para auxiliar o paciente. E no mais não existe
almoço grátis. As pessoas acham que vão chegar ao meu consultório e ir
de encontro com o passado obtendo respostas e passando a vida a limpo
sem precisar interferir em mais nada. Muito pelo contrário. Às vezes voltar
ao passado aumenta os problemas do presente. Pois é preciso ter muito
critério. Deus criou as reencarnações justamente para nos redimirmos e
ter uma segunda chance. Começar do zero entende? Há pessoas que
enlouqueceriam apenas por pensar no que fizeram em vidas passadas. Há
outros que se confundiriam tanto que correriam o risco de agravar o
Karma.

--- Então porque as pessoas voltam ao passado e existe a terapia de


vidas passadas? Como vamos evoluir se não nos lembramos do que
aprendemos em outras vidas?

97
--- Desculpe Alexandre antes de lhe responder eu preciso fazer uma
correção a mim mesma.

--- O termo certo é lembrar o passado. Porque ninguém volta a um


tempo que já passou. Nem mesmo o espírito. Nosso tempo é o agora. E só
existe o agora, pois o espírito é eterno.

--- Disto eu sei Dra. É que a gente acostuma a usar o termo voltar ao
passado. Mas eu entendo que na verdade trata-se de apenas de recordar
as vidas passadas. Pois já foram vividas e não há como voltar lá.

--- Isto mesmo Assim como não há morte propriamente dita,


também não há a menor possibilidade de voltar ao passado, pois o tempo
não passa para o espírito uma vez que este é eterno. Estamos sempre no
presente porque não fomos e nem seremos, apenas somos e estamos.
Esta é a dádiva do nosso Criador a nos. Quanto a suas perguntas! Bem
Alexandre, assim como há pessoas que enlouqueceriam por saber das
vidas passas também existem pessoas evoluídas e capazes de lidar com
estas questões. Para elas o processo é natural e a descoberta pode ajudar.
Mas a terapia de vidas passadas se aplica aquelas pessoas que sofrem no
presente por conta de situações que viveram em outras vidas. Estas
pessoas buscam e passam por toda forma de tratamento convencional. E
não obtendo resultado, a terapia de vidas passadas é mais uma das muitas
possibilidades que pode vir a auxiliar esta pessoa. Por exemplo, quem tem
medo de altura. Pode ter sido em outra vida um suicida que pulou em um
abismo por exemplo. Ele vem nesta vida com um medo e este medo não
tem uma lógica. Ele não sofreu nenhum abuso ou situação nesta vida que
justifique este medo. Mas o medo existe é forte e interfere na vida e no
processo de evolução do individuo. Daí a terapia de vidas passadas pode
auxiliar ele a descobrir a causa deste medo. Causa que ele só vai encontrar
se entrar em contato o seu passado. Mas descobrir é só uma parte do
tratamento, cabe ao paciente lidar com este medo no presente. Tem
paciente que não precisam descobrir a origem do problema para aprender
a lidar com ele. Elas simplesmente vão aos poucos e com boa orientação
se expondo ao problema ou a fobia, claro com o auxilio terapêutico, e
assim enfrentam e solucionam seus problemas sem precisar encontrar a
fonte.
98
--- Agora respondendo a sua segunda pergunta Alexandre.
Precisamo-nos esquecer certas coisas para que seja absorvido apenas o
essencial.

--- Isto eu não entendi! A vida inteira ouviu dizer que devemos
aprender de tudo e que o conhecimento é muito importante, e quando
mais a gente lembrar melhor.

--- Na sua escola tem recreio?

--- Claro que sim, por quê?

--- Você já brincou de pique pega com seus colegas de escola?

--- Claro que sim.

--- E você consegue-me dizer pelo menos uma vez destes piques que
você brincou a ordem exata?

--- A ordem exata? Como Assim?

--- É a ordem exata do pique. Com quem ele começou, quem foi o
segundo a ser pego, o terceiro, o quarto, e com quem terminou o pique?

--- Claro que não! Era só uma brincadeira! No momento do pique a


gente só quer saber com quem o pique está para não ser pego. Ninguém
precisa guardar com quem o pique esteve ou consegue prever com quem
o pique estará. A gente só precisa saber com quem está e como fugir dele
para não ser pego.

--- Mito bem. Assim também se dá no processo de reencarnações. A


língua, os veículos, os modelos de moradia, tudo isto são apenas códigos
necessários ao espírito em quanto encarnado naquele tempo e espaço
específico. Depois ele precisa se adaptar a outras formas de se relacionar
com o tempo, pessoas e espaço para continuar a evoluir. Isto significa que
o aprender é uma constante sim. E que nada se perde de uma encanação
a outra. Quem em outra vida foi um exímio piloto de moto, nesta vai ter
afinidade e facilidade para tirar carteira e se equilibrar. O que acontece é
que as pessoas pensam que o conhecimento é algo que se acumula
apenas.

99
Muito pelo contrário o conhecimento é algo que se pratica, está
mais relacionado a um organismo vivo que necessitar ser alimentado, mas
também precisa ser aparado em suas arestas e lapidado em seus excessos
e às vezes até jogar fora algumas sujeiras inúteis acumuladas ao longo dos
tempos. É preciso conhecimento para voa e para entender que não se voa
com excesso de bagagem. O Sr. Ariel vive dizendo esta metáfora ela
encaixa perfeitamente neste contexto. Enfatiza bem o raciocínio.

--- Entendo! E quanto a Luz Azul? Meus pesadelos, Este apego que
sinto ao Arabizá? E o “cheiro fantasma” que eu e meu primo sentimos na
Curva da Divisa? Tudo isto não é um sinal? Alguém não está me dizendo
alguma coisa?

--- Vá com calma Alexandre. Embora tenha amadurecido bastante


nestes últimos dias, você ainda é muito jovem. Está muito afobado,
maravilhado e envolvido nesta história toda. Procure analisar as coisas por
todos os ângulos. E comece usado sua razão em todos.

--- O que a Senhora quer dizer com isto?

--- Quero dizer, por exemplo, que o tal “cheiro fantasma” pode ter
vindo no vento até vocês no momento em que passavam por lá. É um
perfume comum e algum caminheiro pode ter derramado ele em algum
arbusto e o vendo levou o cheiro até vocês.

--- Mas e os sonhos que eu tive?

--- Como você mesmo disse são sonhos. Seu inconsciente absorveu
estas informações ao longo de sua vida, mesmo sem você ter tomado nota
disto. Pode ser isto ou pode ser outra coisa. Mas a princípio são apenas
sonhos.

--- E a Luz Azul?

--- Olha Alexandre, não é minha intenção duvidar ou acreditar nas


coisas que você me conta. Eu estou aqui para lhe auxiliar. E por isto eu
preciso que você comece do início e vá com muita calma e critério. Não
podemos migrar pro campo da crendice e querer acreditar nas coisas só
porque queremos que elas sejam do nosso jeito.

100
--- Olha Dra. a senhora está me confundindo.

--- Desculpe não era minha intenção. O que eu estou querendo lhe
dizer Alexandre é que se trata de um trabalho, ou seja, um processo. E a
primeira parte deste processo é reunir material para que possamos
estudar e analisar os fatos. Não pense que vai chegar aqui com uma
pergunta e eu vou lhe dar uma resposta. Esta função é sua. Eu apenas vou
lhe auxiliar e lhe fornecer estruturas para chegar à resposta.

--- Certo! Agora as coisas começam a fazer sentido pra mim.

--- Fico feliz em saber disto! Vou lhe indicar uns livros para leitura.
Mas o seu dever de casa vai ser aproveitar ao máximo as férias escolares e
buscar a felicidade.

--- Pode deixar Dr. Isto eu farei com muita satisfação.

--- Certo, agora devemos ir, pois seu tempo acabou moçinho! E
fique sabendo de uma coisa. A missão do terapeuta é a mesa do médico.

--- Como assim?

--- Seja qual for o processo que o profissional aplique no paciente o


objetivo é proporcionar alívio, bem estar, e auxilio na busca de uma vida
plena e feliz.

Após ouvir estas palavras Alexandre se levantou do divã, quis se


espreguiçar, mas achou que seria deselegante de sua parte. Então
caminhou até a porta e saiu deixando-a aberta como Matilde havia lhe
pedido.

***************

101
7 - Vidas passadas.
--- Leia isto Luciana!

--- Mas do quê se trata estes manuscritos Matilde?

--- Estes manuscritos são do Alexandre.

--- Mas isto não é antiético?

--- Não foram escritos no divã! Alexandre os escreveu em casa. E foi


ele quem pediu para quê você e seu pai os lessem. Ele está escrevendo um
livro. Assim como eu também vim para cá com este intuito.

--- Matilde você e ele vão escrever um livro a quatro mãos?

--- Não Luciana! Vá com calma foi o que eu disse a Alexandre


também! Primeiro ele começou escrevendo um diário, isto foi eu quem
sugeriu. Este exercício seria bom para ele acompanhar progresso do
tratamento e ter um registro de lembranças para o futuro.

--- Estes manuscritos são fragmentos do diário de Alexandre?

--- Muito pelo contrário Luciana. O diário Alexandre o mantém em


caráter de sigilo. Isto que está em suas mãos são as experiências de vidas
passadas do Alexandre.

--- Você precisou aplicar este método nele?

--- Sim, mas foi ele quem sugeriu. O garoto estava caindo de
maduro.

--- Não entendi Matilde como assim?

--- Veja bem Luciana. À medida que o tratamento seguia mais


tranqüilo, feliz, e realizado Alexandre ia se sentindo. No início seguimos a
corrente tradicional e os métodos eram todos tradicionais. E Alexandre
evoluía no tratamento a passos largos. Porém comecei a notar um fato
intrigante.

102
--- Qual?

--- Ele estagnava ou regredia quando o tratamento não se vinculava


a Doutrina Espírita. No inicio achei que era fogo de palha, por ele estar
empolgado com a Doutrina e por isto não fui por este caminho.

--- Lógico! Doutrina é uma questão, tratamento é outro!

--- Porém meses se passaram! As coisas se normalizaram e o


tratamento tendia ir por dois caminhos. Estagnar ou aplicar a regressão a
vidas passadas.

--- Então o menino estava pronto?

--- Olha Luciana isto é seu pai quem vai dizer, pois eu vejo tudo pela
ótica profissional. O que eu entendi é que não deveria brigar com a crença
do garoto. Muito pelo contrário, busquei analisar e entender a sua ótica
vista por este prisma. E sendo assim conseguimos mais um caminho para
seguirmos em frente evitando a estagnação e o retrocesso que eu lhe falei
antes.

--- Eu entendo muito bem. As ferramentas de análise quem traz


para o divã são os pacientes. Eu lhe pergunto novamente Matilde. O que
são estes manuscritos e porque eles estão fora do divã?

--- Trata-se do esboço de uma obra ainda em andamento. Por isto


eu lhe peço muita descrição e critério. Nada disto ganhou corpo ainda, e
nem se quer tem uma direção definida.

--- Matilde se o objetivo é explicar agora você está complicando.

--- Fique tranqüila! Ao ler você vai entender tudo. Eu só estou de


ante mão lhe dizendo para prestar bem atenção às coisas escritas neste
manuscrito.

--- Entendi Matilde, e acho que você entendeu o que eu e Alexandre


já sabíamos. A missão deste rapaz vai além da própria vida e vai interferir
no destino de Cristalina não vai?

103
--- Por isto lhe peço calma, Luciana. Tem lógica o que você me dizia,
mas temos de ter provas primeiros. E estamos no processo de
investigação e não de conclusão.

--- Então o que você espera de mim neste momento Matilde?

--- É simples! Quero que você leia isto e dê a sua opinião, pois
preciso de sua ajuda para seguir em frente. Estes manuscritos são o
resultado das regressões de Alexandre as vidas passadas. Após a análise
ele sempre ia pra casa e registrava tudo no papel.

Ouvindo isto Luciana pegou os manuscritos e começou a ler em voz


alta ignorando o fato de Matilde já ter conhecimento do mesmo.

***************

8 - O manuscrito de Alexandre.
--- Não sei exatamente a data e o dia do ano em que isto se passa.
Tudo que sei é que a escravidão é tão normal nestes tempos quanto os
cavalos o são para o transporte desta época. À medida que avanço em
minhas recordações começo a entender que este estranho vilarejo onde
eu me encontro trata-se de Cristalina nos primórdios de sua existência.
Noto em mim um vocabulário estranho, que oscila entre chulo e erudito.
Também vem a mente palavras esquisitas e difíceis de entender, mas eu
as pronuncio livremente pelas ruas deste vilarejo antigo. Vejo admirado
este lugar tão pequeno, mas também tão impregnado a minha alma. São
no total quarenta casas sendo a maioria casebres. No centro tem uma
praça mal cuidada e cheia de árvores antigas. No final da praça está a
mesma Igreja que hoje habita a Praça de Cristalina. Porém ela tem outra
cor, e parece menor e seu passeio não é de cimento e sim de grandes lajes
de pedra. Agora ouço alguém chamar meu nome, e por este motivo sei
que me chamo José. Na verdade todos me chamam de Zé. E seguido desta
abreviatura vem sempre um adjetivo maldoso. Zé cachaceiro, Zé do
porre, Zé vagabundo, Zé bocó, Zé bobo.

104
Sou forte, parrudo, devo estar na casa dos quarenta anos. Também
sou branco e meu cabelo é liso e meus olhos são claros. Mas apesar de
ser, livre, branco e forte isto não bastou a esta gente do vilarejo. Aqui
ninguém me respeita. Nada sou para este povo se não um motivo de
chacota e distração destas almas inúteis e vazias. Sou branco sim, mas sou
tão miserável financeiramente que de nada me vale a minha liberdade e
minha brancura.

A infância toda foi na barra da sai de minha mãe. Ela me criou


sozinha. Fez o que pode para que não caíssemos em miséria total. Mas
nem isto foi possível. À medida que eu crescia, mais a gente ia
empobrecendo ao ponto de ter de vender nosso miserável casebre e
morar de favor no porão de uma casa na Vila de Cristalina. Logo no início
da juventude perdi minha mãe que morreu de tuberculose, e com isto o
desprezo e a rejeição por mim começou aumentar no Vilarejo. Cresci
mendigando e fazendo pequenos serviços braçais a troco de comida,
pouso ou qualquer coisa do tipo. Às vezes ganhava e pedia esmolas. E com
o passar do tempo descobri no Álcool o único aliado para anestesiar e
tornar suportável minha maldita existência. Aos trinta eu já era o
andarilho oficial do vilarejo. O que eu mais lembro neste período é de ver
brotar em mim um ódio muito forte e também um imenso sentimento de
alto-piedade. Nesta época também comecei a ouvir e falar com vozes que
manifestavam em minha cabeça. Já não me importava mais com a
opinião alheia e até comecei a gostar, pois o estigma de louco às vezes
assustava e afastava um pouco o assédio das pessoas.

Quando cheguei à casa dos quarenta beirava a condição de


farrapo humano. E foi em um destes dias de agosto onde o sol de nada
serve e o vento uiva por toda fresta, que eu cheguei ao limite de minha
existência.

Na época, como de costume, logo cedo sai à procura de qualquer


coisa pra subsistir e encontrei trabalho ardo e braçal em uma grande
fazenda nas imediações do vilarejo. Passei o dia solitário à beira de uma
estrada de terra qualquer roçando um pasto ruim entre pedregulhos,
suor, bolhas nas mãos e pensamentos confusos de toda natureza.

105
Ao terminar o trabalho a noite já trazia seus contornos nas
montanhas e o frio dava o ar de sua graça. Procurei pelo feitor da
fazenda, ele me pagou em miseráveis moedas e fartas ofensas.

--- Maldito andarilho molambento. Esta casa tem quase cem


escravos, não precisa destes braços fracos e inúteis. Fique sabendo que só
trabalhas aqui por caridade de Sinhá. Agora some da minha frente Zé
ordinário!

Pouco me importei com as ofensas deste infeliz naquele dia. Estava


começando minha abstinência do álcool e o dinheiro me seria útil pra
comer, beber bastante e me deitar com uma rapariga. Finalmente eu ia
ter um dia de rei. E foi o que fiz. Procurei o riacho, lavei meus pés e me
banhei em suas águas, logo em seguida vesti uns trapos mais limpos que
trazia dentro de uma bolsa de pano maltrapilha. Em seguida segui a
estrada principal do vilarejo por uma hora como quem vai sentido a sair
do vilarejo. Depois foram mais meia hora em uma trilha estreita até
chegar à taberna. A taberna se resumia a uma grande tapera que
funcionava como, casa, armazém e taberna. Anexados a casa havia um
curral abandonado, que o dono aproveitou para transformar em varanda
onde ele improvisava mesas. Era noite de sexta para sábado e quase todos
os homens da cidade se encontravam lá. A maioria estava ali mais para
beber, contar causos, e se distrair do que para deitar com as duas únicas
prostitutas do local. Era só isto. A taberna se resumia no dono, Um Italiano
magricela, mal encarado fanfarrão e brigão, um escravo forte e submisso a
este dono, duas escravas que foram compradas com o propósito de se
prostituir e o filho do escravo, que era um adolescente esquelético e
amedrontado vivendo nas proximidades do pai. Logo que me viram os
olhos de todos se iluminaram. Os sorrisos se abriram em flor e as
provocações sobreporão ao som dos instrumentos musicais.

--- Olha lá o Zé cachaça chegando!

--- Que será que este infeliz veio fazer aqui?

--- Dá meia volta vagabundo, ninguém aqui ta pra caridade hoje


não.

106
Mesmo diante de vaias, risos, e excomunhões eu adentrei o recinto.
E fiz mais. Eu enchi o peito para dizer a que vim:

--- Hoje eu vim pro serviço completo! Tenho dinheiro pra beber,
comer, e me deitar com uma destas rameiras negras.

Senti um grande prazer em ofender as mulheres e escravos do


local. As vozes na minha mente vibravam e gritavam. Eu me sentia
importante colocando os escravos abaixo de mim. Sentia que aquele era o
seu lugar de condição e não o contrário.

Coloquei as moedas em cima da mesa e logo em seguida o Italiano


dono do local pediu para que uma de suas escravas me servisse. Vendo
que eu tinha dinheiro, e temendo retaliação do Italiano todos me
deixaram em paz e voltaram pras suas panelinhas em outras mesas. Os
dois instrumentos musicais voltaram a tocar e a escrava veio me servir. Ela
usava uma saia comprida e de barra suja, pois as sais arrastava-se ao chão.
Seu busto também estava bem coberto.

--- Quem quiser ver tem de pagar!

Esta era a frase que o Italiano mais usa e este truque de vestir muito
suas beldades eram pra aumentar a expectativa e o suspense em torno
delas.

A escrava veio cabisbaixa e emburrada como sempre. Tinha a feição


cansada e triste. Mas ninguém ali se importava com seus sentimentos ou
suas vontades. O que todos viam era apenas um corpo. Um corpo jovem a
circular entre as mesas e que não podia fazer nada além de acolher o
assédio de quem quer que fosse à hora que eles bem entendessem.

Ela curvou-se até a minha mesa, encheu de vinho meu caneco, e me


serviu um bom prato de arroz, feijão e carne de onça abatida. Quando ia
deixar a mesa agarrei os braços da mulher com uma das mãos enquanto a
outra foi ao seu seio. Apalpei e alisei com a técnica de quem escolhe um
gado. Finalmente eu teria alguém para servir todos os meus caprichos. Em
seguida soltei o pulso da jovem e retirei a mão dos seus seios.

107
Estava bem dado o meu recado. Ela teria que se deitar com um
andarilho, sujo, imundo, cheirando a bebida, com mau hálito e teria de
fazer de tudo e aceitar a tudo. Esta idéia me excitava muito. Tanto que a
deixei ir para refletir e esperar por esta hora. Voltei minha atenção à
comida. Fartei-me e bebi muito feito um rei. Sinhá tinha sido generosa
naquele dia. Eram poucas as moedas, que me pagara, mas era o
suficiente para ter tudo de que eu precisava naquela noite.

Depois de me fartar muito, fui até o balcão da taberna onde o negro


ficava no caixa e seu filho ajudava a servir bebidas aos fregueses no balcão
perto do pai.Cheguei perto do escravo, paguei pelo jantar e lhe dei uma
ordem logo em seguida:

--- Estas moedas ai são pra pagar o jantar, e a outra dá e sobra pra
alugar o quarto dos fundos e a negra que me servil. Arruma tudo que eu
to indo pra lá e vai ser a noite toda. O escravo ia dar ordem para o seu
filho arrumar o quarto, quando o Italiano interveio no assunto dizendo:

--- Não vai arruar nada não. Volta pro balcão pra servir as pessoas.
Acabou a festa, já comeu, já bebeu, agora toma aqui esta garrafa de
cachaça pra pagar o restante. Vai procurar seu rumo Zé fedido.

--- Não Senhor Italiano, eu quero me deitar com a rapariga que me


servil.

--- Só se for por cima do meu cadáver Zé bafo de onça. Eu não posso
me dar ao luxo de comprar mais escravas e você vai passar doenças pra
elas. Elas não vão deitar com mendigo não.

--- Elas vão sim. Eu sou branco, tenho dinheiro, o que me proíbe?

--- Escuta aqui Zé ninguém. Primeiro vem o homem, depois vem à


mulher, em seguida vem os animais de estimação, depois vem os escravos
ai vem os vermes e só depois disto tudo é o seu lugar entendeu?

Ao dizer estas palavras a música parou, os ânimos se exaltaram e


todos voltaram à atenção para o Italiano e o Zé. E foi ai que o Italiano deu
o tiro de misericórdia dizendo:

108
--- Prestem atenção todos vocês, quem tocar no Zé vai se ver
comigo. Ele vai apanhar muito, mas vai ser do meu escravo e do filho
dele. Já passou da hora deste moleque amedrontado virar homem.

Terminado esta frase o Italiano deu a ordem ao escravo e este veio


com muito gosto e esmero.

Em resumo de tudo Zé apanhou muito, uma surra inesquecível e


uma humilhação completa. Todos se deleitavam vendo as duas escravas
humilhar Zé verbalmente com palavrões de toda espécie. O escravo
esmurrou muito Zé, bateu em seu rosto de tirar sangue, deu um murro em
seu estômago que ele vomitou quase todo o jantar. Logo em seguida ele
deu um golpe no Zé que o homem foi ao chão.

Vendo Zé caído no chão tentando se recuperar do golpe o filho do


escravo aproveitou a oportunidade para mostrar seu brio. O adolescente
chegou bem próximo ao rosto de Zé que se mexia meio atordoado no
chão e deu-lhe uma cusparada seguida de um escarro. Foi à glória de
todas as pessoas do local. A taberna ferveu e os olhos do Italiano
brilhavam, pois promovera aos seus convidados um show que agradava a
todos. As pessoas vibravam e aplaudia o filho do escravo. Este se sentia
um homem feito em quanto seu pai orgulhoso o abraçava e era
cumprimentando pelos fregueses.

Aos poucos Zé foi recuperando a consciência, limpou o escarro do


rosto, levantou com muita dor do chão, foi até o balcão e pegou a bebida
que havia pagado. O medo e a humilhação eram tanto que nem deu
tempo de sentir outra coisa se não vontade de se recompor e fugir
daquele lugar. E foi o que Zé fez. Andou, por uma trilha, segui por outra, e
entrou na mata o mais fundo que pode.

A noite seguia mata adentro. Zé acabou indo parar em uma trilha


onde hoje é a estrada do Morro do Curió. No início chorava feito criança.
Bebia fartamente no gargalo da garrafa na vã esperança do álcool aliviar a
dor. Quando se viu no alto do Morro do Curió deu um grito forte e sofrido.
Precisava berrar e extravasar toda a raiva. A Raiva fervia seu sangue e era
o que mais lhe aquecia.

109
As vozes em sua cabeça viraram uma multidão e falavam todo tipo
de coisa ruim. Então Zé começou a ditar suas blasfêmias.

--- Ódio eu tenho de tudo e de todos esta noite. Maldito seja a peste
deste Vilarejo. Não escapa nem o padre daquele lugar ruim. Não gosto
destes infelizes, maldito seja minha mãe que me pariu neste mundo,
maldito seja meu pai que nos abandonou, maldita seja Sinhá e sua
caridade pretensiosa e maldito seja Deus que ama os falsos em sua capela
e abandonam a má sorte os frascos descamisados iguais a mim. Sim
maldito seja tu Deus dos infernos, pois até os escravos valem mais que eu
para ti.

Enquanto berrava estas blasfêmias Zé bebericava em sua garrafa e


servia a todos os caprichos das vozes em sua cabeça. Eram elas que
estavam no comando neste momento. Zé assim determinou e permitia. O
que ele não sabia era que tudo se tratava de obsessões e zombeteiros. E
como não havia conhecimento da Doutrina estes espíritos usavam a pouca
formação religiosa de Zé para manipular sua fé e feri-lo através de sua
mediunidade e freqüência vibratória baixa.

Zé continuava a gritar blasfêmias:

--- Diabo! Capeta! Satanás! Venham em meu socorro! Quero ser seu
filho, pois não tenho pai, nem na terra e nem no céu! Venha, pois o seu
inferno não é pior que a desgraça e o inferno da terra! Venha eu quero
vingança, eu quero sangue, eu quero matar, roubar e destruir esta maldita
Vila de Cristalina. Salvem-me deste Deus inútil.

A freqüência vibratória de Zé sintonizava aos mais obscuros lugares


onde abrigavam espíritos desencarnados mais e cruéis que se possa
imaginar. E foi um destes espíritos doente que aproveitou da mediunidade
de Zé para se materializar em sua frente.

Ele usou a forma de uma gárgula que vira na idade média, pois
sabia que desta foram Zé pensaria se tratar de um Demônio. E foi em
forma de uma gárgula horrenda que um Zombeteiro se materializou bem
diante dos olhos de Zé.

110
Zé espremeu os olhos, sentiu um frio tomar seu corpo dos pés a
cabeça. Tremia de medo, e seu coração batia forte e descompassado.
Porém estava bêbado e não tinha mais nada perder nesta vida. Tamanha
era a sua ira que Zé retomou a coragem e rompeu o silêncio sepulcral
perguntando a criatura que ele achava ser o Demônio.

--- Eu te chamei, eu não vou fugir, mas porque você veio Demônio?

--- Eu vim comprar sua alma Zé! Sou um poderoso Demônio e posso
tudo que você pedir! Pede e eu te dou, mas lembre-se ao morrer sua alma
será minha.

--- Eu quero tudo! E quando falo tudo, falo de todas as vidas do


vilarejo. Quero esta gente rastejando aos meus pés.

O Zombeteiro ria uma gargalhada pesada. Ele sabia que Zé seria


seu escravo quando morresse. Sua ignorância o faria acreditar que o
zombeteiro era o Demônio. Zé seria forçado a cometer um erro atrás do
outro e assim aumentar seu Karma e permanecer por muito tempo
debaixo das vontades de seu zombeteiro ligado a ele por uma afinidade
sinistra.

--- Pode rir Demônio, mas eu quero rir por ultimo. Eis aqui o seu
servo em que posso lhe servir?

O Zombeteiro disfarçado de Demônio respondeu:

--- Escuta bem seu infeliz. Vou lhe fazer patrão nesta vida, e em
outra será meu escravo. Assim me foi permitido e assim será. A legião que
me representa vai lhe ajudar a chegar onde você quer. Então vá e siga os
sinais.

Dito isto o Zombeteiro desapareceu. Em seguida Zé caiu no chão.


Suas pernas bambearam estava fraco e tonto com o ocorrido. Mas logo
ele teve de se levantar porque apareceu um vulto muito branco e
luminoso nas bandas do riacho. Zé desceu o morro em que estava, e
entre escorregões e passos desnorteados ele chegou a onde o vulto
apareceu.

111
Era um vulto branco, de um branco bem nítido e tinha a silueta de
um ser humano. Sua luz era fraca e misteriosa. Logo que Zé se aproximou
do vulto o mesmo desapareceu. Em seguida o vulto reapareceu mais ao
fundo da grota. Zé se deslocou outra vez até o rumo do vulto. Outra vez o
vulto desapareceu ao ver que Zé se aproximava dele. Outra vez o vulto
reapareceu, e Zé entendeu que ele estava levando-o a margem do riacho.
E assim Zé chegou até a cachoeirinha.

Era um trecho de mata fechada, seguido de um grande paredão de


terra dura e pedra de onde pendia uma farta queda d água. O vulto fez Zé
descer este paredão indo parar a margem de um poço raso que ficava
abaixo desta cachoeira. Zé sentou-se a margem deste poço em um banco
de areia. Ficou olhando a queda de água, e começou a beber novamente
para manter a coragem e o calor do corpo. Outra vez o vulto reapareceu e
desta vez bem a sua frente. O vulto entrou no poço e seguiu rumo à
cachoeira. O vulto deu uma parada diante da queda e logo em seguida
entrou na queda d água e desapareceu no paredão de pedra por onde as
águas caiam incessantemente.

Zé atirou-se na água e segui até o paredão. Chegando lá só


encontrou água e pedra. Lutou para permanecer de pé e se equilibrar
dentro do poço. E foi der repente que um braço sinistro e de forma
monstruosa surgiu do nada e puxou a mão de Zé enfiando-a por entre os
véus de água da cachoeira. A mão estranha puxou a mão de Zé por baixo
do véu da cachoeira encostando ela em um trecho onde ao invés de rocha
havia terra macia.

--- É pra cavar ai!

Zé ouviu uma voz quase sussurrando isto em seus ouvidos. Notou


que a havia terra macia em um trecho atrás daquelas águas e começou a
cavar debaixo da cachoeira.

Zé cavou até abriu um buraco da largura de suas mãos. Parecia um


buraco de cobra no cupim. Ninguém podia imaginar que entre os
paredões de pedra daquela cachoeira havia uma fissura de terra macia.

112
No fim disto tudo ele encontrou uma pedra do tamanho de uma
jabuticaba. Trouxe a pedra para fora e saiu do riacho. Zé deitou na areia
as margens do riacho. Bebeu toda a garrafa, e não sabe se desmaiou ou
dormiu.

-----------------------------------

A única coisa que Zé se lembrou foi de sentir calor no dia seguinte


e acordar por volta de duas horas da tarde, com uma forte dor de cabeça,
uma garrafa vazia, as unhas ensangüentadas e doloridas e a mão esquerda
dormente, fechada e segurando uma pedra. Zé começou a se lembrar de
tudo. Do bar, do negro lhe batendo, da escrava humilhando ele, e do filho
do escravo cuspindo em seu rosto. Isto fez o sangue de Zé ferver
novamente. Porém o resto do ocorrido, Zé não conseguia distinguir se foi
sonho ou realidade. Lembra de ter saído sem rumo, e de ter bebido
muito. Sua intenção era acabar com a própria vida aquela noite mesmo.
Mas tão grande era sua frustração de não ter morrido e de ter de voltar ao
vilarejo e enfrentar de novo aquelas pessoas que Zé apertou as mãos de
raiva. Foi ai que ele percebeu que a mão esquerda estava fechada e
segurava uma espécie de pedra.

Neste momento ele trouxe a mão esquerda próximo ao rosto e a


abriu. Naquele instante Zé entendeu tudo. Aquela era uma pepita de
ouro.

-----------------------------------

A falta de Zé no vilarejo foi percebida por alguns dias, porém não foi
sentida. Quem foi ou ficou sabendo da noite fatídica na taberna entendeu
as razões de Zé para se ausentar de Cristalina. Os poucos que não
souberam contentaram-se com as próprias justificativas.

Passaram-se dois anos sem que nada de novo acontecesse no


vilarejo de Cristalina. Os moradores locais esqueceram-se da existência de
Zé mais rápido que um doente esquece a dor das próprias feridas
cicatrizadas. Afinal para a Cristalina da época Zé era só isto uma simples
ferida aberta que era digna de pena e repulsa.

113
Agora nem as mentes mais desocupadas e atentas a vida alheira
tinha em suas bocas maledicentes o nome de Zé. Para Cristalina ele se
fora, e isto bastava para ser enterrada viva toda sua existência.

No terceiro ano da ausência de Zé começaram a se hospedar


forasteiros esporadicamente na taberna do Italiano. Os hospedes não
tinham critério algum em suas aparições. Às vezes eram dois, três, um
casal ou simplesmente vinha sozinho. Apareciam de todas as bandas e
cada qual tinha um motivo e tempo para se hospedar. Para uma taberna
que até então nunca recebia forasteiro, era de se estranhar a mudança,
pois em prazos esporádicos que oscilavam entre três semanas a dois
meses, o Italiano podia até prever que chegaria alguém pedindo pouso em
suas instalações.

Novamente o tempo passou e outras coisas também foram


acontecendo a o vilarejo de Cristalina. Houve de inicio uma grande geada
naquele ano em Cristalina. O frio matou todos os pés de café, cana-de-
açúcar e pasto das regiões baixas nas fazendas locais. Muitos animais
também morreram e foi inevitável a crise se instalar no município.

Para sorte dos Cristalinenses apareceu na taberna do Italiano um


senhor bem abastado de nome Robert.

Robert era um Senhor bem vestido e aparentava ter traços de


nobreza. Quando Robert ficou sabendo da crise logo se interessou pelo
assunto. Robert foi mais além. Ele procurou os fazendeiros locais ouviu
suas queixas sobre a crise provocada pela geada e se compadeceu por
eles.

Na verdade o que Robert fez foi se aproveitar da oportunidade. Ele


viu na necessidade alheia um motivo para fazer bons negócios. E foi o que
fez. Robert saiu de Cristalina levando um grande lote de escravos. Ele os
comprou a preço de banana. O tramite e a negociação durou um mês.
Claro nada seria feito da noite para o dia. Envolvia a logística do
transporte, que Robert fez pessoalmente mandando vir de longe seus
capangas, jagunços e demais funcionários. Terminado o transporte e as
negociações Robert deixou Cristalina levando com sigo um quarto da
população de cativos do Vilarejo e da sua região.
114
Aos Cristalinenses restou o alivio de ter um capital pra recuperar o
fôlego da crise, e menos bocas para sustentar e também uma dúvida. Esta
dúvida era o novo assunto da região. Pois todos tentavam entender
porque Robert não comprara família de escravos. Ele não fez uma única
compra de entes e também não ligava para os cativos solteiros sem filhos.
Sua compra sempre implicava em desfazer vínculos. Separar pai de filho,
marido de esposa, avós de netos, irmãos de irmãs e assim por diante. Foi
preciso reforçar as seguranças das senzalas e aumentar os castigos, pois
os cativos que ficaram choravam e se revoltavam com a separação de seus
entes. Em quanto isto a única preocupação da população branca de
Cristalina era entender qual a lógica lucrativa do comportamento de
Robert.

Cristalina começava a reagir da crise. Mas as coisas não parecia


querer melhorar na região. Muito pelo contrário. As coisas iam de mal a
pior na vila. Aos poucos cada fazenda foi sofrendo pequenos e estranhos
atentados. Hora o gado adoecia e morria, hora desapareciam algumas
cabeças. Às vezes sumia um ou outro escravo e de vez em quando grandes
fileiras de café amanheciam completamente mortas e também havia
muitos incêndios criminosos em lotes de cana-de-açúcar. Os fazendeiros
não tinham reservas para suportar tantas adversidades sendo assim foram
abrindo não de jóias, bens pessoais e principalmente escravos.

Os forasteiros continuavam a freqüentar a taberna. E entre estes


hospedes sempre aparecia um disposto a comprar aquilo que algum
Cristalinense precisava vender a preços bem abaixo do mercado por
necessidade. Neste ritmo a população chegou a ter apenas um quarto dos
escravos que tinha antes da Crise, e não era só isto alguns fazendeiros
quebram, perderam parte de suas terras para bancos, agiotas e vizinhos
mais espertos. Algumas famílias deixaram Cristalina, e os que ficaram
precisavam tirar leite de pedra pra sobreviver. Como se não bastasse tudo
isto a população vivia em constante estado de alerta. As pessoas
desconfiavam umas das outras e volta e meia havia brigas e acusações
entre os moradores.

115
E foi neste ambiente de penumbra e decadência que Robert
retornou a Cristalina. Retornou comprando tudo. Arrematou pra si o
Morro do Curió, a região dos lagos, e todas as terras improdutivas do
Arabizá. Alias aquela região tem este nome por causa dele. Ele inventou
esta palavra pra comparar a região ao oriente médio e seus desertos. Foi
ele quem batizou aquelas terras.

A compra foi barata, pois se tratava de um lugar longe,


montanhoso, de solo arenoso e cheio de pedras.

Tirando o Arabizá Robert fez grandes negócios em Cristalina.


Comprou muitos acres de terras produtivas vindo a se tornar o principal
latifundiário da região. Robert resgatou e perdoou dividas, emprestou
dinheiro a juros mais acessíveis que ajudaram muitos a se recuperarem.
Mas nada que vinha de Robert era de graça. Ele preparou o terreno para
que tudo ficasse pronto para sua instalação. E assim por último ele
comprou a Fazenda Sobral. Tratava-se de um grande casarão nas margens
do principal rio de Cristalina. A fazenda tinha uma paisagem
deslumbrante, e seu jardim era monumental. Porém o terreno era muito
acidentado, frio e úmido por causa do rio e cheio de montanhas em volta.

Robert reformou toda a fazenda, mobilhou tudo com moveis e


madeira de lei. Pintou as paredes fez ampliações nas varandas e salões da
casa, mandou vir da Europa um piano de calda e um cravo Alemão.
Construiu uma capela modesta e confortável, e bem longe da fazenda
próximo ao rio fez um cemitério.

Com tudo isto Robert se mudou para lá e trouxe de longe seus


empregados e escravos. Isto intrigou a população, pois não havia entre os
escravos da Fazenda Sobral nenhum escravo dos que ele tinha comprado
em Cristalina algum tempo atrás. Robert era coerente e bom em fazer
negócio. Mas às vezes tomava decisões que não eram passíveis de ser
compreendias vinda de alguém tão esperto nos negócios. Uma destas
decisões foi o fato de Robert comprar o escravo do Italiano.

116
--- Deus Santo! Senhor Robert, eu não posso abrir mão deste cativo!
Está comigo há anos, e tem o filho dele também, não posso separar um do
outro.

--- Preciso dele Senhor Italiano! Tenho uma quinta na Serra Gaucha!
Ele sabe cuidar de uma casa e sabe preparar bebidas, sabe tocar
instrumentos, e é forte vai proteger a casa que fica mais fechada e sozinha
do que tudo.

--- Não, este eu não abro mão!

--- Pois eu estou disposto a pagar Senhor Italiano! Pago por ele o
equivalente a uma dúzia de escravos fortes como ele.

--- Bem neste caso... Sou forçado a vender, pois preciso de dinheiro.
Perdi muito, se não fossem os visitantes eu estaria falido. Cristalina me
abandonou. Mas como todo bom Cristão eu não posso separar pai de
filho. Vendo por este preço e lhe dou de graça o filho que deve ir junto.

--- Neste caso sou obrigado a deixar o senhor com seu Cristianismo
e seus dois escravos, pois não preciso e não quero este moleque no meu
patrimônio.

O Italiano pediu á Robert um tempo para dormir em cima do


assunto. Passado três dias os cavalheiros se encontraram na Igreja e aos
cochichos dentro da casa de Deus o Italiano tomou sua decisão:

--- Veja bem Senhor Robert eu vendo o pai separado do filho. Não
tem muito movimento na taberna mesmo. E o moleque vai dar conta de
me ajudar. E no mais terei dinheiro se precisar comprar outro escravo.
Mas tenho uma condição. Para ficar com o garoto eu cobro o equivalente
a mais dois escravos jovens de dentes bons.

--- Negocio fechado Senhor Italiano! À noite passo na taberna. O


senhor não vai se arrepender.

--- Muito obrigado Sr. Robert que Deus lhe abençoe!

Foi um grande sofrimento pai e filho foram separados para nunca


mais se verem nesta vida.

117
Dias depois Robert comprou as duas escravas do Italiano. Pagou
por elas o que daria pra comprar dez acres de terras boas. O
comportamento de Robert na região despertava muitos comentários a seu
respeito. Não se sabia se ele era viúvo, leigo solteiro ou de onde ele vinha
e porque se instalou em Cristalina. O que se sabia era que ele foi um
salvador para o Vilarejo e que era muito nobre na forma de falar,
gesticular e agir e também tinha uma grande fortuna. Mas ninguém sabia
a origem desta fortuna, a qual família ele pertencia e porque escolheu
aquele lugar pra morar. E mais estranho ainda era sua fazenda. Havia
apenas cinco escravas bem velhas na Fazenda Sobral. Eram mucamas,
arrumadeiras e responsáveis pelo trabalho doméstico. Na senzala, que era
debaixo da fazenda em um porão escuro, havia dezenas de escravos
homens. Estes eram jovens e solteiros. Era de se estranhar a quantidade
de braço, pois a fazenda só praticava agricultura pra consumo próprio. Os
escravos eram muitos por isto os serviços ficavam leves. Eram coisas
como, zelar pela estrutura física do local, manter a horta, o pomar e o
jardim arrumado, roçar trilhas e manter a estrada limpa, cuidar de
cavalos... Também havia muitos jagunços para por ordem no contingente
de escravos. Robert mantinha distancia dos escravos e nunca se
relacionava diretamente com eles. Seu principal capataz era seu
intermediário. E na sede de sua fazenda somente as mucamas eram
permitidas entrar para fazerem os trabalhos.

Quanto Robert trouxe as duas escravas do Italiano ele deu a ordem


a seu obediente capataz:

--- Estas duas são para o deleite dos escravos. Não posso deixar
estes homens que trabalham o dia todo sem um pouco de prazer. Ficarão
apenas na senzala e elas não trabalharão de dia, mas a noite terá de servir
aos escravos. Não se preocupem elas estão acostumadas a este serviço e
tem resistência. No mais se não agüentarem são apenas escravas. Cuide
para que minhas ordens sejam cumpridas.

---------------------------------

118
Depois de bem instalado na fazenda Robert deu um baile
inesquecível. Convidou toda Cristalina. Todos foram com, exceção do
Italiano que não pode ir. O Italiano estava desfalcado de empregados. Só
restara ele e o filho do escravo, e não podia deixar a taberna, pois havia
um hospede nela. No mais, o baile correu as mil maravilhas. Todos
puderam conhecer melhor a Robert. E ele pode explicar o motivo de seu
comportamento. Assim Robert ia bebendo, festejando, e respondendo a
perguntas:

--- Separo os escravos para que eles não criem em suas cabeças
expectativas e esperanças. Estes precisam ser lembrados o tempo todo
que não são humanos e sim animais. Veja a minha senzala. Não tem
família, irmão ou coisa assim. Só peças, unidades e força braçal. Quando
não mais me servir aqui eu vendo ou mando a outras fazendas minhas.

Robert também explicara que a compra das escravas foi pra


satisfazer a instinto. Pois este era o único direito que seus cativos tinham.
Alimentar, trabalhar e satisfazer os instintos.

Todos riam, bebiam e festejavam. Mas a festa teve seu clímax


quando Robert anunciou o motivo da mesma. Enquanto todos
rodopiavam alegres pelo salão, a orquestra tocava em ritmo acelerado e
algumas senhoras, e cavalheiros habitava os sofás, as ante-salas e alcovas
da casa. Neste auge festivo Robert pegou uma taça de champanha
francesa e buscou no bufê uma colher de sobremesa de prata. Tilintando a
colher na taça Robert improvisou um eficiente cininho que fez cessar a
música e reter pra si a atenção de todos. Neste momento em quem os
convidados se voltavam para Robert ele fez seu pronunciamento:

--- Meus caros Amigos! É fato que encontrei em Cristalina mais do


que um solo fértil pra fixar raízes. Arrisco em dizer que nestas terras
encontrei amizades que me são mais úteis e necessárias que a de um
familiar. Sendo assim nada mais posso fazer a este vilarejo se não
demonstrar minha eterna gratidão.

119
Neste momento todos aplaudiram a Robert de pé. Ele foi
ovacionado feito um ator no final de sua peça. Em seguida Robert tilintou
novamente a colher na taça pra chamar pra si a atenção de todos que
sutilmente começavam a se dispensarem.

--- Só um momento, por favor. O que tenho a dizer vai de encontro


ao interesse de todos.

Robert explicou em seu discurso detalhes de uma nova empreitada


econômica. Ele abreviou dizendo:

--- Como todos podem perceber, olhando em sua volta, que a


fazenda em que vivo não é uma fazenda preparada para ser produtiva em
nada. Também já é fato que sou bom em negociar vender e comprar
coisas. Porém não tenho tino para cultivar a terra. E sei que todos estão
questionando então porque investi em Cristalina e comprar tantas terras?

Certamente esta era a pergunta mais esperada da noite. Pois o fato


de Robert ter uma fazenda maravilhosa, extremamente confortável e
totalmente feita só para abrigar Robert em um cenário que mais parecia
uma pintura já estava explicado. Assim Robert prosseguiu:

--- Sou um homem de visão e logo que pus os pés nesta terra vi um
grande potencial humano nesta região. E por este motivo logo investi não
apenas parte da minha fortuna, mas também uma parcela do meu tempo
e vida nesta que será a melhor e mais lucrativa de todas as empreitadas
que já vivi. Proponho cavalheiros formamos uma cooperativa.

Ao pronunciar a última palavra o murmurinho e as conversas


paralelas tomaram a sala:

--- Por favor, senhores deixem-me esclarecer as coisas. É fato que


todos vocês em Cristalina tiveram grandes perdas, principalmente de
capital e terras. A produção de um ou mais fazendeiros não tem
condições de tornar os produtos competitivos no mercado. Por este
motivo se formarmos uma cooperativa seremos um grande bloco de terra
produtiva.

120
--- Já pensamos nisto antes Senhor Robert, mas dada as
circunstancias mesmo com toda nossa união ainda assim seria pouca terra
para se plantar pois a maioria das terras férteis estão de posse do Senhor.
E como o Senhor não é um homem de plantar como mesmo afirmou
Cristalina não teria como plantar em larga escala.

O homem quem interrompeu Robert era O Coronel Prudêncio. Sua


fazenda era aquela em que o Zé trabalhara antes de ser praticamente
expulso de Cristalina.

Robert retomou a palavra:

--- Entendo sua preocupação Senhor Prudêncio, mas para isto eu


tenho a resposta. Eu serei o presidente da cooperativa. Caberá a eu
determinar quando, aonde e o quê vai se plantar em Cristalina. Quem
acatar esta proposta poderá contar com a venda de sues produto antes
mesmo de eles nascerem. Já as terras que são minhas, plantaremos a
meia. Eu entro com as terras, o fazendeiro próximo a elas entra com a
mão de obra e tudo mais. No fim eu fico com um terço do que for
produzido em minhas terras, e a cooperativa comprará os outros dois
terços.

Depois do pronunciamento de Robert a noite varou a madrugada


em alegres festejos. Finalmente Cristalina via uma luz no fim do túnel.
Robert recebeu muitos cumprimentos, conversou com os poderosos de
Cristalina e principalmente valsou muito com a filha do coronel Prudêncio.

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Naquela mesma madrugada, pontualmente às três da manhã


chegou mais um forasteiro na taberna do Italiano. O Italiano perdera o
sono e ficou na varanda vendo o crepitar de uma fogueira e deixando o
fogo consumir seus pensamentos em devaneios nostálgicos. Mas teve de
súbito retornar a realidade de sua taberna para receber o forasteiro no
adiantar daquelas horas mortas.

121
A carruagem do forasteiro era tão negra e lustrosa que nem a noite
funda e sem lua conseguia envolve-la em suas trevas. Dois faróis
oscilavam errantes pelas curvas da estrada tal qual um par de vaga-lumes.
O suntuoso carro, feito de madeira de lei, e adornado com detalhes
dourados, parou próximo a taberna do Italiano. Por fora a carruagem
consistia em dois cavalos negros como a noite, um cocheiro branco e
pálido cujas roupas e o biótipo aparentavam ser Frances. Por dentro dela
não dava para ver quantos ou quem estava lá. As cortinas negras de renda
só permitiam transparecer vultos na escuridão interna do móvel. Foi
quando a porta se abriu assombrando o proprietário da taberna que
exclamou:

--- Deus do Céu! Mas não é possível! Nossa Senhora! Que


brincadeira é esta? Não acredito em que meus olhos estão vendo!

--- Pois pode acreditar Senhor Italiano! Eu estou de volta! Vim


resgatar o que é meu por direito!

--- Pensávamos que estivesse morto!

--- Por um acaso hospeda defuntos em sua taberna? Não estou


morto! E sou eu mesmo o Senhor José, ou Zé, como todos me chamavam
antes da minha partida.

--- Está tão mudado! Por onde andou? É você mesmo?

--- Já lhe disse Italiano sou eu mesmo o Zé. Eis me aqui em carne,
osso, rendas, casimira e ouro, muito ouro. Agora por favor, se isto ainda
for uma estalagem para de fazer perguntas e mande seu negrinho levar as
malas para o meu quarto.

--- Imediatamente Senhor! Farei isto, e me desculpe por incomodar


com tantas perguntas. Porém a ocasião faz necessário que eu lhe
pergunte só mais uma coisa.

---Não se preocupe Italiano, eu o pagarei em moedas de ouro,


ficarei uma semana nesta taberna. Meu cocheiro volta com o carro
amanhã de onde não lhe cabe saber. Como disse estou de volta.

122
--- Seja muito bem vindo José! Vou lhe proporcionar uma agradável
estadia em minhas modestas instalações. Está com fome? Já jantou?
Posso lhe preparar um café.

--- Apenas faça o que eu lhe pedi. Prepare-me um quarto e muito


silêncio para que possa descansar sem ser incomodado.

------------------------------

E lá se foi mais um ano em Cristalina.

A chegada de Zé causou muito espanto e incomodo na pequena


Vila de Cristalina, mas ele viera com muito dinheiro e disposto a gastar
tanto que tão logo os cidadãos Cristalinenses arrumaram um lugar de
destaque para Zé no quadro social. Em um ano apenas de sua volta Zé fora
promovido a ilustre cidadão Cristalinense. Sim ilustre! Era este mesmo o
adjetivo que Cristalina dispensava ao se referir a Zé. Agora também
conhecido como Zé do Ouro.

Zé construiu sua fama de pobre lavrador que partira de mãos vazias


e voltara para terra natal abastado, generoso e sem rancor. Zé chegou
patrocinando tudo em Cristalina. Pagou reformas na paróquia, calçou
ruas, consertou estradas e até reinaugurou a taberna para os cidadãos
locais trazendo três jovens escravas e uma bela índia. Também deu ao
Italiano mais quatro braços negros masculinos para ajudar nos arrumes da
taberna. Em gratidão o Italiano deu de presente a Zé seu escravo. Aquele
cujo pai o italiano vendera para Robert. Este foi o único pedido que Zé
fizera ao Italiano.

Zé permaneceu na taberna mais que uma semana. Ele ficou tempo


o suficiente para comprar de Robert toda a região do Arabizá e mandar
construir bem próximo a Curva da Divisa uma casa. Era uma casa alta um
metro a mais que as casas comuns da época. Porém não se tratava de
uma grande sede de fazenda. A casa estava mais para uma casa bem
confortável, com poucos cômodos, mas muito bonita e isolada. Bem
isolada.

123
Foi Zé que contratou empregados e mandou construir a estrada
que atualmente foi abandonada pelo Arabizá. A estrada vinha da cidade,
serpenteando por grandes barrancos de terra, fazia uma grande curva
próxima à casa de Zé e seguia até terminar nas bandas onde hoje é o Poço
do Fubá. Zé construiu tudo com muito luxo. As paredes eram feitas de
grandes adobes, rebocadas e pintadas de amarelo ouro, as portas internas
e externas da casa eram grandes, de cor vermelho da china e de
carpintaria muito bem talhada e a madeira era de lei. O assoalho também
era impecável, tabuas corridas bem grossas e muitas janelas também
vermelhas. Tantas janelas que davam a impressão da casa ser maior vista
por fora. E para arrematar sua obra prima a casa havia um forro de
madeira de lei. Feito de tabas pesadas e isto diferenciavam dos forros das
casas locais, pois todas as outras tinham forros de palha.

Zé adornou tudo com moveis luxuosos, pesados e caros.

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Robert continuava dono da cooperativa. Nas fazendas


continuavam acontecendo imprevistos de ordem tanto naturais, quanto
desconhecidas e suspeitas. Porém ninguém parecia mais se importar com
os ocorridos. Todos estavam tranqüilos e acomodados com o sistema de
compras de Robert. Ele pagava por um lote antes de vender. Pagava por
100 sacas de cafés, por exemplo, mas os imprevistos no final o faziam
receber apenas 23. E mesmo assim Robert continuava com este sistema
sem dar importância aos prejuízos. Os fazendeiros atribuíram tal lapso de
competência ao fato de Robert está apaixonado pela filha do Coronel
Prudêncio. Mas o que real mente ocorria era que os fazendeiros estavam
acomodados ao dinheiro fácil e garantido que vinha das mãos de Robert.
Tão acostumados que passaram a produzir cada vez menos, foi um
processo gradual e lento, mas todas as fazendas se tornaram medíocres
em suas produções.

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Corria uma tarde de verão qualquer. Um bem-te-vi piava no galho


de uma paineira rosa florida e o sol morno do entardecer respingava sua
luz nas copas das árvores.
124
Afundado em seu romantismo contemplativo, Robert aguardava na
varanda a chegada da doce noite onde o tardar das horas o levaria direto
ao banquete na casa do Coronel. E lá Robert poderia desfrutar da
companhia de sua já amada e noiva Judith.

Seus sonhos e suas expectativas foram bruscamente interrompidos


por uma silueta que adentrou a estrada voando em um cavalo pardo.
Robert reconheceu de longe quem era o vulto antes mesmo que seu rosto
ganhasse contornos definidos. Quando finalmente um homem montado
em seu cavalo se plantou na escada próxima a varanda da Fazenda Sobral
foi quem Robert exclamou em tom de murmúrio:

--- Eis que chega o Diabo para tomar de mim a parte que lhe cabe!

--- Boa tarde amigo de longas datas!

--- Boa tarde Zé, seja bem vindo a esta pitoresca fazenda, seria
redundante dizer-lhe que a casa é sua! Venha, reúna-se a mim nesta
vespertina hora.

--- Não me tomes de ironia, e, por favor, não consuma meu tempo
na discrição de seu sarcasmo. Há apenas entre nós um simples acordo de
cavalheiros. Nunca se perca deste fato.

Após pronunciar estas palavras Zé apeou do cavalo, subiu as


escadas e instalou na varanda em uma cadeira próxima a que Robert
estava.

--- Não era preciso fixar esta questão José. Veja só! O velho Zé
andarilho Cristalinense está vindo à tona emergindo de sua couraça de
marfim?

--- Não me ofenda Robert! Um gesto meu e todo seu castelo de


cartas vem ao chão! Coloquei-lhe na condição de rei do tabuleiro, mas
nunca perca de vista o fato de que não é o dono do xadrez. O dono de
todo o tabuleiro sou eu.

--- Como já lhe disse não se faz necessário informar minha condição.
Disto eu tenho plena consciência! O que não consigo compreender são as
pedras que a mim se dirigem neste momento.
125
--- Sua ignorância só amplia meu descontentamento. Como não
consegue entender algo que toda Cristalina já entende?

--- Então é isto? Não há coerência na sua gastura! Estou noivo de


Judith, darei o anel e farei o pedido oficial hoje à noite. Será um belo e
intimista jantar, tudo adornado aos mais distintos rituais ditados pela
sociedade. Muito me espanta logo tu se preocupares com este fato.
Minha vida íntima não vai interferir em sua empreitada sinistra.

--- Esqueceu que temos um pacto?

--- Não acha que foi longe de mais com esta história Zé? Espalhou
por todo pais os escravos desta maldita cidade arrebentando com os laços
de sangue. Graças a ti, pai está longe de filho, marido está longe de
esposa, irmão está longe de irmã e assim por diante. E como se não me
bastasse fez comprar a peso de ouro as duas escravas daquele maldito
Italiano. E pra que? Pra jogá-las no fundo de uma senzala suja cheia de
escravos machos sedentos. E qual foi o resultado? Elas foram torturadas,
estupradas até a morte, sofreram por dias, quase um mês até que uma se
matou e a outra se entregou a fadiga definhando até vir a óbito.

E os hospedes? Meu Deus! Só os céus sabem o trabalho que me


dava e ainda dá contratar, e ensaiar aqueles bugres. Por traquejo a um
bandido, ensinar uma rameira a se portar feito Senhora distinta ou moça
donzela. Tudo isto pra que? Pra estes malditos se hospedarem naquele
covil de pulgas que é a pensão do Italiano. O pior de tudo é ensinar esta
gente burra a agir com destreza para fazer negócios, envenenar
plantações, afanar, ou incendiar roçados. E como se não bastasse tudo
isto ainda vivo em constante estado de alerta cirando e justificando fatos
para evitar que estes fofoqueiros levianos não associem minha riqueza e
minha pessoa a vossa. Este é o maior fardo, pois as suspeitas são
constantes e crescentes.

--- Já lhe disse Robert! Este acordo é provisório. Esta sendo bem
pago para isto e no fim sairá muito rico.

--- Não gosto de proporcionar sofrimento desnecessário a escravos


e tão pouco aprecio arruinar pessoas que jamais me fizeram mal.

126
Neste momento Zé se levanta da cadeira no qual estava sentado e
teve um ataque de cólera. Aos berros e com a boca espumando de raiva
ele esbraveja em direção de Robert feito um sargento irado dando pito na
tropa em pleno campo de batalha:

--- Quem era Robert antes de me conhecer? Deixa eu lhe contar a


sua triste trajetória seu asno. Até parece os escravos burros, pai e filho
que comprei do Italiano. Será que precisa ser constantemente lembrado
do seu lugar nesta maldita vida? Eu lhe tirei da lama. Veja só! Era o quinto
filho de um fazendeiro remediado, porém sua família estava longe de ser
abastada, não estou correto?

--- Zé? Não é necessário...

--- Não me interrompa Robert, ou quer que eu lhe chame pelo


nome de batismo? Ao contrario de você quando eu começo tenho de ir
até o fim. Pois bem, como eu estava lhe dizendo... Havia um Barão nas
proximidades onde sua família morava. Este Barão teve o azar de possuir
apenas filhas mulheres. Muitas, umas dez ou nove, não me lembro
direito. A única coisa que eu me lembro bem é que dentre as flores do
Barão havia um horrendo espinho que atendia pelo irônico nome de Flora.
Deus concedeu a todas as filhas do ilustre Barão a benção do casamento.

Porém a última a se casar foi Flora. Deus sabe o quanto este


Barão investiu no dote desta menina. O lance chegou a valer metade das
posses do Barão. E nem assim a cobiça e o interesse fora despertadas nos
ricos, remediados ou pobres mancebos da região. Ela estaria entregue ao
celibato ou encalhada nas bocas de Matilde, se não fosse por um corajoso
cavalheiro. Foi a primeira vez que uma família pobre se opôs e tentou
impedir que o filho fizesse a corte a uma moça abastada. E contrariando
todas as restrições das alcovas familiares e se tornando chacota regional
este insano de nome Ernesto, que hoje se chama Robert, arrematou para
seu leito a medonha criatura de nome Flora.

Casaram-se e os pombinhos viajaram para a Paris. A esperança


de Robert era que a fortuna e a beleza da cidade o compensasse da feiúra
de sua esposa.

127
Dois anos depois o jovem casal voltou de Paris. Eles foram à casa
grande em quanto aguardavam a construção da nova fazenda. Em poucos
anos a Baronesa adoeceu e morreu, depois foi à vez do Barão sofrer um
acidente com cobra e também morrer. Mas até ai tudo foi natural. Nada
havia de criminoso. O crime veio depois, os filhos fizeram a partilha,
quitaram muitas dividas até então desconhecidas. No final Robert se viu
na mesma condição de seu pai. Lá estava ele, um novo nobre, pobre e
casado com Flora. A que só tinha flor no nome.

Mas Robert era jovem e ambicioso! E o que ele fez? Aplicou o


golpe na esposa. Fugiu e andou pelo mundo, falsificando documentos,
dando pequenos golpes, furtando e enganando a todos! Um bandido no
frigir dos ovos. Elegante sim, de grande garbo e esmero sim, mas um
golpista. E quando lhe vi naquela Geena a beira do porto na corte, logo
percebi que me seria útil.

--- Chega! Chega Zé das favas! Basta! Não sei de que inferno tirou
este ouro. Sou eternamente grato por me trazer de volta a vida social.
Mas não lhe devo satisfação da minha intimidade, você depende de mim
pra manter seu segredo a salvo e dar continuidade ao seu plano idiota.
Não tente me sabotar ou impedir, sou seu sócio, e não o seu escravo!

--- Não sou seu sócio Robert! Ou melhor, nobre de uma figa. Não
estou lhe condenando por bigamia ou pelos seus erros. Estou lhe
alertando para sua burrice. Quando eu terminar minha vingança tudo isto
aqui ficará destruído. Serei como as sete pragas do Egito. Não haverá
cristalina, e ninguém pra contar história. Não quero que se envolva, e você
tem de me obedecer.

--- Não lhe obedecerei meu coração é livre.

--- Jagunço! Jagunço, um maldito jagunço de luxo! Entendeu seu


papel nesta estória Robert? Não tem sentimento, vontade ou desejo. Não
faça gênero. Se eu disser mate, você mata, chicoteie e você faz,
entendeu?

--- Tente ferir meu amor! Não permitirei ninguém entre Judith e eu!

128
--- Não banque o imbecil! Eu tenho meus olheiros, meus capangas e
minha gente. Não sabes tudo de mim. E acho que não sabe coisa alguma.
Você é só o reflexo do meu ouro. Se eu tira-lo de ti o pai da moça
imediatamente proíbe o noivado. Como pode ser tão ignorante a ponto
de não saber de nada?

--- Sei sim, sei latim, falo Frances, me porto bem a mesa, e sei
transformar asnos em cidadão, você mesmo é prova viva disto.

--- Então vá em frente! Fique noivo, marque a data do casamento.


Faça isto, e eu acabo com sua vida. Mostro a toda Cristalina quem é
Robert.

--- E eu mostro qual é a real intenção do Zé do Ouro!

--- Em quem eles vão acreditar? Em um bígamo farsante ou em um


ilustre filho da cidade que venceu na vida garimpando ouro
honestamente?

--- A índole desta gente curva-se sempre na direção do metal.


Desde princípio vi em ti um adversário e aliado mais forte que eu. E foi
este desafio que me fez querer aproximar-me de ti.

--- Um pandega! Veja só estou diante de um bufão! Não consuma


meu tempo com estas artimanhas argumentativas. Não pense que vai
conseguir me manipular através de justificativas baseadas em...

--- Porque não posso levar apenas Judith comigo? Qual a


incoerência nisto? Em que isto interfere em seu plano? Vingue-se de
Cristalina. Mas não se vingue de mim, não sou Cristalinense sou seu braço
direito nesta obra.

--- Seu trouxa, seu asno, palerma, estafermo inútil. No começo


precisava sim de ti para ter algum traquejo social e preparar minha
chegada. Mas não há coisas impossíveis pra quem tem dinheiro. Não fosse
você, eu acharia outro. Não pense ser tão importante assim. Agora que
tudo está pronto posso seguir sozinho daqui por diante.

--- Porque foge da pergunta? Porque não devo levar Judith?

129
--- Não preciso justificar minhas ordens. Você é quem deve
obedecê-las sem questionar.

--- Pois não preciso mais questionar nada! Já entendi tudo! Está
amando Judith.

A ira toma conta de José e ele esbraveja:

--- Não é Judith minha questão! É a mãe dela! Aquela maldita, com
sua caridade falsa. Graças as suas esmolas tudo aconteceu. Ela foi o
começo da minha ruína. Se não fosse...

--- Se for este o motivo Zé, está tudo resolvido. Eu tenho um plano
melhor para se vingar de Sinhá.

--- A mim só interessa o meu plano! E ele está chegando ao final. Já


esparramei esta raça de praga pelo país um longe do outro que é pra
sofrer a vida toda. Já empobreci os esnobes desta região levando-os a
boca da miséria. Aquele demônio que me surrou eu comprei a peso de
ouro, e ele pode sentir o peso da minha ira até a morte. Agora é a vez de
Sinhá, de Cristalina e o filho do escravo sofrerem as conseqüências.

--- Mas que mal a Sinhá lhe fez?Ela o ajudou.

--- Não! Ela deu esmola, é diferente! Ela fez o que toda Cristalina
fazia. Dava esmola pra se sentir bom e superior a mim. Falsos. Ninguém
nesta maldita vila me ajudou. Ninguém me deu oportunidade ou
acolhimento. Só esmola e passa fora. Vou me vingar de Sinhá através de
sua filha. Assim como vou me vingar do filho daquele escravo maldito
fazendo-o acreditar que um dia verá o pai. Pai que eu torturei e matei
pessoalmente. Veja como é perfeito meu plano. Hoje toda a Cristalina
depende da minha esmola para existir. O jogo inverteu. Todos vivem sobe
a eminência de minhas decisões. E está chegando o tempo das eternas
vacas magras. Perceba que você Robert está enredado nesta trama. Se
quiser mesmo o bem de Judith vá ao jantar e termine este noivado.

--- Essa gente mesmo sem recurso financeiro tem outros atributos.
Quando passar o baque e as intempéries eles vão seguir o destino.
Cristalina vai sempre existir José.

130
---- Não seja tolo Robert. Agora não é uma ordem é um conselho.
Pelo seu próprio bem fique do meu lado. E acredite cristalina vai afundar
para sempre!

----------------------------------

O chicote estalou pesado e acertou em cheio seu ombro nu. As


lágrimas umedeciam os olhos. Não tinha o direito de demonstrar
fraqueza. Diga-se de passagem, não lhe era concedido o direito de
demonstrar nada. Apenas obediência e sofrimento eram os seus guias
nesta jornada. Mais uma chicotada atravessa suas costas e desenha com
sangue um pequeno suco. De súbito ele cambaleia, sente o bambear das
pernas, quase vai ao chão. A dor e o choro insistem em dominá-lo, porém
ele se ergue e novamente entrega sua coluna ereta pronta para o deleite
do algoz.

Em sua alma já não há mais ódio, sua vontade não mais se submete
aos devaneios da fuga ou da loucura. Sua força e fé vêm de uma
esperança triste que move seu espírito e lhe deixa seguir sem se entregar
aos desejos mais obscuros de sua existência. Segue-se cativo, desce a
ladeira do Morro do curió, calado e cabisbaixo. Não há correntes, cordas
ou amarras que o mantenha ali. Apenas um único fio condutor o deixa
ligado ao seu Algoz. A esperança de voltar para os braços do seu pai.

Uma rápida e forte lambada estala nas constas de suas pernas.


Perde o equilíbrio e vai de joelhos ao chão. Suas rotulas se esfolam ao
entrar em atrito com os cascalhos da trilha. Tenta se levantar novamente,
humilhado e cansado apóia suas mãos no chão para se reerguer e voltar a
sua sina.

--- Isto seu maldito! Agora você voltou a sua origem. Fica nesta
posição de quadrúpede que eu vou lhe dar uma lição inesquecível.

Zé desceu o chicote com toda ira no filho do escravo. Ele movia


rápido e forte o chicote.

131
O escravozinho rolava no cascalho da trilha tentando se esquivar
das lambadas constantes. Mas tudo era em vão. Quanto mais ele se
esforçava para fugir, ou usava seu corpo e suas mãos para se defender
mais ele era acertado pelo chicote.

--- Maldito, maldito, maldito.

Zé berrava e batia no escravo como se esta fosse à única razão de


sua vida. Quando terminou o escravo não resistiu. Entregou-se ao choro e
a dor e lá permaneceu no chão sangrando até a alma e tendo o corpo
tremulo e encolhido na posição fetal.

Zé sentou em um barranco acompanhado de seu chicote e sua


arma, sua velha amiga de sempre a cachaça. Tomou um gole triunfante de
água ardente e olhou para o chão onde estava seu torturado e disse:

--- Fica deitado ai! Não se levante nem se limpe seu corpo! Quer ver
seu Pai novamente? Quer sair deste inferno? Então tem de agüentar até o
fim. Eu sempre cumpro o que prometo. Disse que ia pagar caro por ter
escarrado em mim e está pagando. Seu pai está bem em uma bela casa na
serra próximo ao litoral. Vai gostar de unir-se a ele. E hoje é seu último
dia nesta terra maldita. Em breve irá se juntar a seu querido pai.

O escravo percebera que Zé estava mais estranho que de costume


por aqueles dias. Voltara a beber constantemente, e andava
resmungando, blasfemando e conversando sozinho o tempo todo.
Freqüentemente Zé dizia que tudo estava chegando ao fim.

--- Levanta do chão maldito. Vamos descer este Morro do Curió e


seguir pela margem das águas até a cachoeira. Hoje eu vou lavar a alma.

Os dois desceram o morro do Curió pelas trilhas. Já no pé do morro


eles encontraram o pequeno córrego e seguiram seu curso até a queda
d’água. A água estava fria, mas Zé entrou e ordenou que seu escravo lhe
acompanhasse. Caminharam até o paredão, bem próximo da cachoeira.

132
--- Fique aqui do meu lado.

Ao dar esta ordem Zé começou a enfiar a mão por detrás da


cortina de água e de lá retirava cascalho e pedregulhos com as mãos. Em
seguida Zé puxou com força a cabeça de seu escravo e enfiou ela por
entre os véus de água.

--- Entra agora nesta fenda!

Zé deu uma ordem tão colérica que seu escravo nem teve tempo de
se assustar e entender o que estava acontecendo. Ele apenas percebeu
que havia um túnel estreito debaixo da cachoeira. O escravo arrastou-se
pelo túnel e logo atrás dele Zé vinha acompanhando-o. Terminado o túnel
o escravo adentrou em uma grande galeria de rocha. Logo atrás dele vinha
Zé. José ascendeu vários candeios que estavam fixados nos paredões de
pedra e assim o escravo pode perceber a dimensão da caverna.

--- Aquela fenda por onde entramos já foi um grande veio de ouro e
terra. Retirei tudo sozinho. Aquilo foi o início da minha fortuna.
Veja que capricho da natureza a fenda foi porta de entrada para esta
caverna escondida e protegida da água e das pessoas por estes densos
paredões de rocha maciça. Uma obra prima da natureza. O miolo da
caverna é formado por cascalho e ouro, muito ouro. Tanto ouro que nem
foi preciso criar uma mina e por escravos mineiros. Era muito, eu mesmo
fazia grandes retiradas sozinho. Jogava o cascalho na cachoeira e a
natureza terminava meu trabalho. As vozes me guiavam e mostravam os
veios onde eu deveria cavar aqui dentro.

Enquanto Zé falava o escravo olhava para aquela grande galeria, e


percebera duas coisas, uma é que havia a fenda da entrada, a galeria e
outra fenda o resto era rocha maciça e não dava para cavar. Outra coisa
que ele percebeu foi o fato de não haver ouro nenhum ali. Neste instante
Zé pareceu adivinhar seus pensamentos dizendo:

--- O ouro acabou! O ouro maldito acabou como também a maldita


Cristalina vai acabar.

133
As vozes querem assim! Elas mandam no ouro e sabem que ele só
vai voltar quando eu terminar minha missão. A sua missão também
chegou ao fim. Por isto eu lhe trouxe aqui. Amanha vou viajar e levar
você para os braços de seu pai. De hoje em diante não lhe torturo mais,
está livre. Agora fique de pé e não se mexa. Um movimento seu em
qualquer direção e eu mudo de idéia e você nunca mais verá seu pai.

O escravo ficou imóvel e obediente. Estava assustado e


confuso, porém estava tão acostumado a todas as formas de tortura do Zé
que não se hesitou em obedecer. E mesmo que ele não quisesse
obedecer qual seria seu recurso? Zé era muito mais forte que ele, e ainda
estava armado. O escravo permaneceu de pé e logo em seguida sentiu
uma forte dor em sua nuca e esta fora a sua última lembrança.

----------------------------------

Passou-se dois dias após o grande conflito entre Robert e Zé na


Fazenda Sobral.

Na varanda da fazenda Robert contemplava o adiantar da noite que


seguia na profunda calmaria. Era uma noite sem nuvem, de lua minguante
e ar parado, pouco se ouvia dos sons dos bichos. E Robert permanecia
estático a espera de um evento que só a madrugada lhe traria.

--- Com amor não se brinca!

Robert pronunciou estas palavras ao vento, deu um profundo


suspiro e contemplou o breu da noite mergulhando seu olhar a ponto de
deixar perde-lo na escuridão. Havia mais que mistério no comportamento
taciturno de Robert. Ele possuía uma certeza de que algo aconteceria.
Desta espera vinha sua esperança. Assim à madrugada chegou, e com ela
vieram as, mas notícias trazidas por um jagunço de Robert que entrou
rasgando a noite na fazenda Sobral montado em um cavalo branco.

O jagunço apeou fatigado do cavalo, subiu aos tropeços a escadaria


da varanda, e foi ter com Robert:

134
--- Explodiu tudo patrão, não sobrou nada de nada! Uma tragédia,
toda Cristalina já sabe. Foi Deus quem impediu que o sinhô fosse até lá lhe
dando esta indisposição.

--- Pare com esta afobação e me explique direito o que aconteceu!

--- A fazenda do Zé do Ouro afundou! Foi engolida por um grande


sumidouro e depois a água cobriu tudo.

--- Nossa como isto foi acontecer?

--- Não sei direito, tava tudo muito escuro e os poucos


sobreviventes estão confusos.

--- Você estava lá! Deve saber sobre o ocorrido!

--- Não sinhô quando eu cheguei para avisar o Zé sobre o motivo


pelo qual o sinhô faltaria da festa o acidente já estava feito.

---- Melhor assim.

--- Porque sinhô?

--- Estaria morto esta hora só por isto! Mas me conte o que você
sabe com detalhes.

--- Ninguém sabe direito! Todo mundo estava muito bêbado! Mas
os poucos sobreviventes contam é que as portas e janelas da fazenda do
Zé estavam fechadas.

--- fechadas? Por quê? Como assim?

--- Tinha muita gente no lugar Sinhô! O italiano, as mulheres dele, os


escravos, e quase todos os fazendeiros e homens de Cristalina estavam lá.
Todo mundo dançava, festejava, e farreava com a mulherada! Ninguém
pôs sentidos nos detalhes! E todo mundo estava muito bêbado! Mas
muito bêbado mesmo!

--- Como concluiu isto

135
--- Senhor eu deduzi pelo estado dos poucos sobreviventes. Estavam
com um bafo terrível e a fala muito molenga, típico de quem enche a cara.
As janelas fechadas não eram o mais estranho!

--- Então não faça suspense conte – me logo o que era mais
suspeito que isto.

--- Tinha um forte cheiro de pólvora no ar, e os sobreviventes


falavam de um estouro!

--- Provavelmente o Zé guardava barris de pólvoras no porão e isto


entrou em combustão espontânea ou coisa assim. A terra era úmida e
macia e com certeza já havia este sumidouro lá, o incidente abalou a
estrutura e a terra cedeu! Nunca entendi porque Zé construiu naquele fim
de mundo e não sei por que ele resolveu fazer esta festa.

--- De certo Sinhô e o senhor Antônio sobrevivente a tragédia era o


menos bêbado dos outros e contou com mais detalhe. Falou que Zé estava
comemorando a volta do ouro. As lavras haviam parado de fornecer o
ouro, mas Zé disse ter feito um grande sacrifício e isto lhe garantiria a
volta do mesmo. Ele disse que o Zé era o mais bêbado de todos. Parecia
o Zé de antigamente. Gritava, farreava, e falava sozinho o tempo todo.

--- A cidade vai estar de luto amanhã! Você sabe os nomes de quem
morreu?

--- Tudo não, ainda está muito tumultuado. Onde era casa surgiu
um grande lago, um poço fundo. Nem os escravos conseguem encontrar o
fundo e tudo desceu junto de uma vez só. Uma desgraça Sinhô. O dia vai
ter de clarear pra conseguir resolver as coisas. Tem água, pedaço de
construção, alguns corpos começam a boiar, e pode ser que algumas
pessoas estão vagando perdias em estado de choque por ai. Mas tudo
indica que a maioria foi pro fundo das águas.

--- Meu Deus!

136
--- Sinhô não dá pra explicar, amanhã o sinhô tem de ver pra saber.
Dizem que a casa caiu de uma vez nesta galeria subterrânea e logo em
seguida a água dos riachos mais a água do fundo desta galeria começaram
a encher o buraco. Tudo muito rápido. Não acredito que haja sobrevivente
e tão pouco que vão encontrar os corpos todos. Zé, Os fazendeiros, o
Italiano, as mulheres com certeza estão no meio dos mortos. E com eles
muitos jagunços também se foram. A sorte que não hera uma festa de
família se não há esta hora as damas de Cristalina, as crianças, os
rapazinhos e o padre também estariam mortos.

--- Entendo, Agora vai embora, por favor! Eu quero ficar sozinho!
Não tenho coragem de ir até lá pra ver isto! Amanhã eu crio forças e tomo
as providencias!

Após ver o jagunço sumir de suas vistas Robert murmurou


novamente em voz alta:

--- Com amor não se brinca! Eu avisei!

****************

9 - O Poço do Fubá.
Luciana terminou de ler o manuscrito sentada no sofá de couro do
apartamento de seu pai. Logo em seguida Matilde entrou na sala trazendo
duas grandes xícaras de chocolate quente, dando uma para Luciana e
sentando-se ao seu lado.

--- Estou impressionada Matilde. A vida toda eu ouvi várias versões


destas histórias do Arabizá, mas nunca imaginei que houvesse uma liga
entre uma e outra e que fossem realmente fatos. Até em tão achei que
tudo não passava de lenda.

--- De certa forma são Luciana. Ao longo do tempo as pessoas foram


passando as informações boca, a boca e isto fizeram com que os fatos se
perdessem ou ganhassem novas versões de acordo com as opiniões ou
até interesse de alguns oportunistas.

137
--- Mas, Matilde, você não acha que estes manuscritos são
inconclusivos? Eles me dão a impressão que antes estava tudo escuro. E
nós sabemos que o escuro é uma folha em branco onde colocamos o que
a nossa imaginação manda. Agora ao ler estes manuscritos fiquei com a
sensação de estar diante de um vidro embaçado.

---- E vai ser assim Luciana! Embora o Alexandre seja o pivô de um


carma coletivo. A missão é única e exclusivamente dele. O foco é voltado
apenas nas encarnações do garoto. Pois carmas coletivos são complexos,
muitas histórias e missões se misturam. Deves-se focar apenas no menino
e em suas vidas para melhor entendimento da história.

--- Você Já sabe qual é a missão do Alexandre nesta trama divina?

--- Como seu pai costuma sempre nos dizer Luciana. A missão dele
é a mesma de todos nos, ser feliz, e este estado de espírito é alcançado
através da busca constate do conhecimento e da prática do mesmo em
todos os aspectos da vida principalmente na esfera espiritual.

--- Ei, Matilde, esqueceu que eu sou filha do senhor Ariel? Não é isto
que eu quero saber amiga! Eu sei destas coisas, também sei que se o
Alexandre não assumir sua missão nesta vida de outras formas nossos
desencarnados e as pessoas de Cristalina e do Arabizá vão encontrar em
outra pessoa, ou outro jeito de chegar ao objetivo.

--- Claro que sim Lu, pois ninguém segura o progresso. Ele pode
até ser adiado, mas uma hora ele vem.

--- Também percebi que o garoto oscila entre a primeira e terceira


pessoa ao escrever. Isto tem de ser corrigido não é?

--- É só um Manuscrito Lu, Alexandre copiou rápido para não


perder o raciocínio. Coitadinho ele saia das sessões com os olhos
brilhando voava para casa tentando não perder um detalhe.

--- Mas me fala uma coisa qual a contribuição que o Alexandre tem
para dar a comunidade do Arabizá?

--- Dra. Luciana onde está a sua mediunidade?

138
--- Dra. Matilde! Ela serve a humanidade e não a minha curiosidade.
E tem, mais o telefone toca de lá pra cá e não de cá pra lá.

--- Que bonito esta metáfora do telefone é sua ou do seu pai Ariel?

--- Nem um, nem outro é Chico Xavier!

--- Veja como Deus é perfeito, ele nos ensina com esta condição
que viver é mais importante que relembrar. Do passado temos de trazer
só as experiências e contatá-lo quando for preciso e não quando o
interesse carnal nos faz acreditar que é preciso.

--- Posso lhe pedir um favor Matilde?

--- Claro que sim Lu.

--- Eu gostaria de entender o porquê desta encarnação de Alexandre


como Zé, e o que aconteceu com o Escravo, o pai dele, e Robert.

--- Isto é muito interessante Luciana, pois foi daí que surgiram os
fenômenos que mais tarde viraram lendas no Arabizá. Depois que levou
uma pancada na cabeça o escravo desmaiou e Zé o acorrentou dentro da
caverna. Zé fechou a caverna e deixou o escravo lá para morrer.

--- Santo Deus por que ele fez isto?

--- Movido por puro ódio e extremo desejo de vingança! Zé tinha


uma mediunidade aguçada e mal direcionada. Isto foi à porta de entrada
para vários espíritos trevosos. Vícios, ambição, materialismo e ódio pelo
mundo e por si mesmo. Por fim Zé se tornou uma marionete nas mãos
destes obsessores.

--- As tais vozes, não é mesmo?

--- Sim, Luciana, na cabeça de Zé aquilo eram as vozes da legião do


demônio. Ele acreditava estar no caminho certo. Zé saiu de Cristalina por
ordem destas vozes, ele voltou a Cristalina depois da grande geada, por
ordens das vozes, ele articulou os planos e encontrou Robert com a ajuda
das vozes.

139
--- Faz sentido Matilde. E com certeza ele acreditava que
sacrificando o filho do escravo dentro da caverna os “Demônios”
aceitariam este sacrifico e voltariam a lhe dar ouro e a ajudá-lo em seu
projeto de vingança. Mas eu fico pensando! Cristalina na época não teve
ajuda dos espíritos de Luz?

--- Um grande contingente deles tentou ajudar sim. E sem a


intervenção deles o plano de Zé teria sido um sucesso.

--- É que dá a sensação de que o mal está vencendo sempre e


conseguindo tudo que quer.

--- Não seja imatura Luciana, releia o manuscrito e veja como era o
caráter da maioria das pessoas de Cristalina. O comportamento
materialista, ambicioso, preconceituoso e o passado daquelas almas
contribuíram para que tudo culminasse naquelas inevitáveis tragédias.

--- É verdade o filho do escravo na primeira oportunidade que teve


de ter compaixão por um ser que todos julgavam ser inferior a ele se
deixou levar pelo ódio e pelo prazer da vingança.

--- A maioria das pessoas daquele lugar era boa apenas quando lhe
cabiam interesses. E todos incluindo os escravos, feriram o Zé de alguma
forma similar em outras encarnações.

--- Nossa foi o que você falou no início se a gente não focar no
Alexandre que era o Zé a gente se perde mesmo.

--- Então como eu estava lhe dizendo Luciana. O pai do escravo em


outra vida foi um soldado romano que usou do abuso de poder para
molestar e tortura uma filha que Zé teve em outra época.

--- E o filho do escravo?

--- Era a primeira vez que reencarnava em Cristalina e a primeira vez


que conhecerá Zé.

--- Pobrezinho Matilde ele não merecia passar por isto! Era divida de
vidas passadas com o Zé?

140
--- Com o Zé não Luciana, mas ele já foi um homem muito vingativo
e nunca teve compaixão por quem ele julgava ser inferior a ele. Embora
tenha sido um excelente pai, por isto encarnou em Cristalina como filho
do seu pai para receber e aprender com os resultados deste amor. Ele
mesmo escolheu a condição de escravo antes de encarnar. Queria redimir
os erros do passado. Mas uma vez encarnado não consegui lidar com a
condição de escravo e logo o espírito vingativo falou mais alto.

--- Entendi Matilde, provavelmente ele já vinha sentindo-se


superior, e melhor que o Zé andarilho.

---- Isto mesmo, mesmo com os conselhos do pai, por dentro o


Escravo nutria este ódio e o alimentava torturando animais, plantas,
colegas etc.. Claro que não fazia nada explicito, pois era muito covarde,
tímido, fraco e medroso.

--- Ainda bem que ele era fraquinho Matilde, pois ia matar o Zé
então naquela noite.

--- E por isto que seu pai era forte, pois em outra vida o escravo filho
o protegeu e cuidou dele.

--- Amor com amor se paga!

--- E ódio com amor se paga também, se a humanidade


compreendesse isto não teríamos escravidão e nem todo este sofrimento
perpetuo.

--- Resumindo que fim levou o escravo, o pai do escravo, e Robert?

--- O filho do escravo definhou e morreu na caverna de sede e fome.


Desencarnado seu pai tentou várias vezes resgatá-lo e chamá-lo a razão.
Mas o ódio, a frustração e o desespero o levaram a loucura. Ele
permaneceu no Morro do Curió perambulando em espírito por aquela
região. Não entendia o desencarne e perdeu a total noção de qualquer
forma de realidade tornou-se ódio puro. Rondava as margens do riacho e
subia e descia várias vezes ao dia e a noite o Morro do Curió.

--- Então foi daí que surgiu a lenda do Saci do Morro do Curió.

141
--- Certamente Luciana, quando por lá passava alguém com
mediunidade desenvolvida e que se afinasse com ele a pessoa ou via ou
sentia sua presença de alguma forma.

--- Mas e as chicotadas de que tanto os antigos falam nesta lenda?

--- Sua inferioridade era tanta que ele erradamente acreditava que
tudo e todos tinham de estar a baixo dele. E a forma que ele encontrou
para expressar isto dentro da sua loucura era chicotear a todos os
tratando como se fossem seus escravos.

--- Ou seja, Matilde, to passando no mato, me aparece um vulto


negro, porque tudo é muito rápido, me dá uma lambada nas pernas, eu
saio correndo.

--- E como as pessoas não entendiam a Doutrina Espírita, se apegavam


a primeira lenda que tinha similaridade ao fenômeno.

--- Isto mesmo Luciana. E antes que você me pergunte vou lhe
contar sobre a casa que afundou e o tal fantasma do Zé do pacto.

Tinha que afundar. Aquelas pessoas e o Zé em outra vida


saquearam, explodiram um navio que naufragou e matou Robert que na
ocasião não sabia nadar.

--- Então foi o Robert quem causou o acidente?

--- Sim Luciana, mas não pense que foi apenas um ciclo de

Karma que se sucedeu não. O incidente na fazenda do Zé teve de ocorrer


justamente para evitar um mau maior.

--- Mal maior? Como assim Matilde?

--- Imagine se o Zé não morresse? Se os espíritos não o afogassem


depois da explosão? Os espíritos não ressarciriam o mal feito a Robert e
acreditariam estarem no caminho certo se tornando pessoas cada vez
piores. Elas escolheram reparar o mal desta forma.

--- Isto eu nunca entendi Matilde. Estes eventos já estavam traçados


antes das pessoas nascerem? E o livre arbítrio?

142
---- Não Luciana, aquelas pessoas optaram por evoluir e escolheram
passar pelo mesmo sofrimento que submeteram Robert. Deste jeito elas
concluíram que seria mais fácil perdoarem a si mesmas. Mas o lugar, à
hora, o dia, a forma isto vai sendo moldado à medida que vão surgindo
oportunidades e sempre respeitando as decisões pessoais e o tempo de
cada um. Tudo foi feito para que não se chegasse a isto, porém não teve
jeito. Aconteceu o incidente desta proporção para evitar uma tragédia
maior.

--- E que tragédia seria esta Matilde?

--- Zé não tinha limites mais. Estava fora de controle. Ele acreditava
ser o dono de tudo, mas não passava de um escravo nas mãos dos
trevosos. Se ele sobrevivesse seu plano de vingança não teria mais fim. Zé
não tinha mais o ouro da mina, porém sua riqueza era imensa, ele gastaria
tudo eliminando, um por um dos Cristalinenses. Certamente levaria a
todos a falência fechando à cooperativa, provocaria mudanças, fugas,
mortes acidentais, emboscadas, envenenamentos e todo tipo de loucura
que seus obsessores mandassem. Ele mataria Robert, acabaria com todas
as famílias de Cristalina, incluindo as poucas pessoas verdadeiramente
boas. Daria fim a estas almas generosas , A Sinhá, A Sinhazinha, O negro
Prudêncio, a Anastácia benzedeira, O Senhor Ramon que era um
fazendeiro bom e justo, e o Jagunço Lucas, que de jagunço não tinha nada,
sempre ajudou negros a fugirem, nunca os castigava apenas ameaçava na
frente dos patrões para manter o emprego, e também sempre auxiliava
tramites para que as famílias ficassem juntas, o Frei Rodrigues que
celebrava casamentos dos cativos as escondidas sem que o Padre tomasse
conhecimento.

--- Entendi Matilde, com certeza Zé acabaria com tudo, e quando


não restasse mais nada ele partiria pra outra comunidade em busca de
saciar sua cede de vingança.

--- Sim, a vingança saciava seu ódio mais que o álcool saciava seu
vício. Após o desencarne Zé desceu direto para o Umbral.

--- Mas e o fantasma do Zé do pacto?

143
--- Foi tudo invenção de Robert. Após o acidente Robert tomou
todas as providências. Falsificou documentos, criou um testamento
imitando a letra do Zé, e como tinha muito dinheiro comprou muita gente
e legitimou tudo, transferindo as propriedades de Zé para ele.

--- Mas o Zé não estava falido?

--- Não, ele estava sem o ouro, mas havia fazendas, o dinheiro das
vendas de escravos, e todas as jóias e pertences que ele comprou e
guardou da população, também tinha vários títulos, notas de créditos,
obras de arte, e muito dinheiro espalhados pelos bancos do mundo.
Depois das transações práticas Robert tratou de reconstruir sua imagem.
Fez várias doações a igreja, reformulou a cooperativa para dar lucro pra si
e para os fazendeiros cooperados, e criou uma lenda em trono do Zé.

--- Por que ele fez isto Matilde?

--- Fez para evitar que as pessoas fossem para o Arabizá! Robert
vinha desconfiando há muito tempo que as viagens de Zé eram pretexto.
Zé era muito esperto, Robert já havia contratado gente para segui-lo até o
tal veio de ouro, mas nunca obteve sucesso. Também vasculhou a região
do Arabizá às escondidas e nunca encontrou se quer um buraco escavado.
Ele não entendia, mas tinha uma cisma sobre o ouro vir do Arabizá. E esta
cisma cresceu, cresceu tanto que Robert espalhou estas histórias. Dizia
que a alma do Zé não teve sossego no inferno, e que ele tinha de voltar,
principalmente na quaresma para convencer novas pessoas a fazerem um
pacto com o Demônio.

--- Mas o Zé morreu no Poço do Bambu, porque ele aparecia no


Morro do Curió.

--- já lhe disse que ele não apareceu em lugar nenhum. Robert que
inventou que ele perambulava pelas bandas do Arabizá. Com o passar do
tempo as coisas foram sendo distorcida até chegar à versão atual.

--- É mesmo Matilde, minha já falecida bisavó falava que o Zé do


pacto tinha vendido a alma para o saci do Morro do Curió.

144
--- E com certeza você tinha medo na época. Pois foi este o
resultado que Robert queria. Gente supersticiosa, com medo, e longe do
Arabizá, com isto Robert cavou por toda parte sem obter sucesso. Mas
teve sossego para fazer isto. Porém ele encontrou outra coisa. Encontrou
uma natureza selvagem, cercada de belas montanhas, com uma geografia
única e muita abundancia de água. Nesta época Robert já havia se
adiantado e casado com Judith e seu espírito após recuperar a fortuna que
fora sua por merecimento em outras épocas começou a ambicionar coisas
mais elevadas que a matéria. Com o tempo Robert se transformou, e
tentou a sua maneira se redimir com o passado e com as pessoas a quem
feriu a mando de Zé. Robert também pediu a um de seus homens de
confiança para que procurasse Flora, e este a convenceu a se mudar para
uma cidade distante. Flora mudou-se para esta cidade e assumiu a
condição de viúva. Através de um intermediário de Robert ela recebia
uma pensão e isto a mantinha em uma posição confortável. A ordem de
Robert com o jagunço era bem clara. Flora seria ajudada sempre até na
ausência de Robert ele teria de continuar mandando recurso para Flora.

--- Mas ela sabia que era ajudada pelo Robert?

--- Não e morreu sem saber qual era o estranho que a ajudava e
porque ele fazia isto. O amor redimiu Robert, porém ele não estava inseto
de pagar pelos erros que cometera naquela vida. Viveu ao lado de seu
amor por alguns anos. Mas no íntimo era um homem dividido e culpado.
Esta culpa consumia sua alma, pois queria ser bom, mas não tinha
coragem de assumir e pagar pelos erros cometidos. Temia muito as
conseqüências. Rio dividido perde a força de suas águas e corre o risco de
evaporar antes de chegar ao mar. Por anos Robert consumiu sua alma em
um profundo sentimento de culpa até que esta mágoa profunda começou
a consumir sua carne em forma de um câncer que lhe ceifou a vida em
uma tarde de verão na Fazenda Sobral.

--- Nossa que história Matilde!

--- E eu tenho de ir agora. Já anoiteceu e preciso passar no


consultório ainda.

145
--- Espera ai amiga você não vai sair daqui sem antes terminar
umas coisas.

--- Lu, eu tenho de ir sim, mas o resumo de tudo foi que Robert se
apaixonou pelo Arabizá. Trouxe carroças e carroças de terra boa, e
construiu um imenso alicerce.

--- Então foi ele quem fez a Fazenda Arabiza?

--- Sim! Aquela floresta no meio do vilarejo, que mais parece uma
praça redonda e abandonada, era na verdade um grande alicerce, cercado
por um muro de pedra. Aquele gigantesco alicerce não era a fazenda.
Dentro dele foi construído outro alicerce e nele foi feito a Fazenda do
Arabizá. A terra era um capricho exigido pela esposa do Robert. Ela queria
um jardim, e a terra do Arabizá não contribuía para o tipo de flor que ela
gostava de plantar. E também tinha a idéia de se criar um jardim
suspenso, e dentro dele colocar a casa grande.

--- Nossa deve ter sido uma fazenda muito bonita.

--- Outro dia lhe conto esta história Lu. Mas de fato era muito
bonita a fazenda, não só a fazenda, mas todas as dependências. Robert fez
uma imensa represa que uniu o Poço do Bambu e as minas do Sr. Tati em
um único espelho d água, construiu o moinho no Poço do Fubá, construiu
outras fazendas anexas, e também construiu a estrada nova que corta
pelo Morro do Curió. Fez isto porque logo cedo ele percebeu que a
estrada velha alagava muito no tempo das águas, o mato crescia bastante
e era escura, e fria, havia o receio das pessoas que temiam tocaias ou
serem assombradas pelas pessoas do casarão que afundou.

--- É mesmo Matilde! E a lenda da casa que afundou surgiu nesta


época?

--- To vendo que não vou embora hoje. Não foi nesta época que a
lenda surgiu porque envolvia os parentes de pessoas vivas e o trauma era
grande para os moradores. Ninguém quase comentava. Só depois de
alguns anos que a nova geração foi comentando abertamente o ocorrido e
ele foi mudando e ganhando a forma que hoje tem.

146
--- Mas alguma coisa ficou impregnada ali não ficou?

--- Neste caso, naquela época não, todos passaram imediatamente


para outro plano após o desencarne. O que ficou foi à superstição
mesmo, ou um e outro zombeteiro que se aproveitou do ocorrido para
pregar peças nos médiuns que por lá transitavam e se sintonizavam a sua
vibração. Isto também aconteceu no Morro do Curió, por anos vários
zombeteiros assumiram a forma e se passaram por Zé ou pelo Escravo ou
a assumia a forma do saci só pra assustar os vivos.

--- A crenças aliada a sintonia, atrai este tipo de espírito para estes
fenômenos infelizes. Já li algo sobre isto.

--- E resumindo tudo, Lu, porque moro longe e La vem chuva,


Robert comprou de volta boa parte dos escravos que espalhou, reuniu os
laços familiares, encontrou uma forma de indenizar tudo que Zé afanou
dos Cristalinenses locais, e ainda usou os conhecimentos e traquejos
sociais que tinha para montar uma escola rural. Juntamente com sua
esposa Robert ensinava escravos, lavradores e quem quisessem aprender
a ler e escrever de graça. À medida que ele procurava se redimir mais a
vida lhe dava a oportunidade de fazê-lo.

--- E mesmo assim ele morreu? Não acha isto meio injusto,
Matilde?

--- Lu, por mais que Robert praticasse o bem e a caridade, por mais
que ele pedisse perdão aos outros, ele não conseguia livrar-se da culpa
que sempre o consumia. Mas como você mesmo o disse agora estava no
caminho certo. Antes ele também estava cercado de espíritos trevosos
por causa de Zé, e não raciocinava por si só. Porém ao lado de Judith ele
conseguiu encontrar a paz e retomar sua missão na terra.

--- E justamente neste momento ele vai e morre! Que justiça é esta
Matilde?

147
--- Se não fosse assim logo ele perderia o interesse em praticar o
bem e viver um grande amor ao lado de Judith. A culpa o levaria de volta a
vida pregressa. Robert não estava em paz consigo mesmo e todo amor
que recebia de Judith e toda a caridade que praticava ainda sim não eram
o suficiente para fazê-lo feliz. Ser amado e praticar o bem lhe davam
grande alívio e lhe trazia muita alegria. E foi esta felicidade que o atraiu
para o processo de redenção. À noite o espírito de Robert visitava esferas
superiores. E foi tendo com estes espíritos que Robert pediu para deixar o
plano terreno, se redimir com Flora no futuro e principalmente ter uma
nova chance. Pois ele mesmo percebera que se continuasse vivo, ia se
sentir frustrado por não conseguir ter paz mesmo estando no caminho
certo. E isto o levaria a achar que não valeria a pena viver um grande amor
e fazer o bem, pois isto não dava a ele a paz interior e por e fim voltaria à
velha vida de crimes, e golpes preenchendo a alma com as ocupações da
carne e fugindo de enfrentar a própria consciência.

--- “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância.”

--- Exatamente minha amiga! Seu desencarne o levou a processos


que culminaram em duas encarnações uma onde ele pagou pelos erros
cometidos a Flora e todos que ele feriu, e outra atual aonde ele veio
totalmente redimido e pronto para seguir evoluindo e vivenciar o amor
verdadeiro com Judith.

--- O tempo é o remédio de todas as almas. Mandei pedir pizza, tem


toalha limpa no lavabo, um Rob de ceda quentinho, lhe empresto minhas
roupas e você está proibida de sair daqui hoje. Vou abriu aquele vinho
branco que você tanto gosta. Proíbo-lhe de recusar minha chantagem.

--- Festa do pijama quase na casa dos trinta? Que retrocesso


Luciana. Sou uma terapeuta de renome. Tenho compromissos.

--- É aquela pizza de frango com tomate seco que você tanto gosta, e
junto com a pizza vem um filme daquele ator que você ama que eu sei.
Um filme novo que você ainda não viu.

--- Que poder tem a coerência diante as chantagens da Dr. Luciana?


Ok! Este é um daqueles casos típicos onde a emoção vence a razão.

148
--- Então é sim?

--- Eu fico Dra. Luciana, pra minha felicidade e para felicidade geral e
de toda nação diga o povo que eu fico.

--- Acho justo Dra. Matilde. Até porque você não tem escolhas neste
caso. E nunca mais repita este boato de que estamos na casa dos trinta.
Não sei você, mas eu pretendo ter 27 até os noventa se é que você me
entende.

--- O que eu entendo Dra. Luciana é que sua amizade é meu Dharma
e sua curiosidade é o meu Karma. Vamos lá pergunta logo! Eu sei o que
você quer saber.

--- O que eu realmente quero saber você não pode me contar. E eu


compreendo isto.

--- Quem são os encarnados daquela época que estão hoje no


Arabizá ou Cristalina? Não vou mesmo. Quer saber? Tem de descobrir por
si, só quando estiver preparada pra isto.

--- Já entendi Matilde, não precisa puxar minha orelha neste


assunto. Ao contrário do que você me subestima eu só queria mesmo
saber era sobre a lenda da casa que afundou. Como e porque foi tão
destorcida.

--- É simples Lu. Já lhe falei do trauma ocorrido na época. As pessoas


não comentaram sobre o assunto. Robert alagou tudo para construir a
nova represa. Então toda aquela região desapareceu por baixo do espelho
d’água. Quase um século depois que a represa estourou foi que o Poço do
Bambu voltou a ser visto. E com isto ressurgiu o mistério em torno
daquele sumidouro. Como a região estava abandonada, muitos viajantes
costumavam acampar próximas as terras do Senhor Tati. Ai o preconceito
e superstição deram uma roupagem nova à lenda que hoje todos contam.

--- Tudo para por medo nas crianças e afastar as pessoas de nadarem ou
pescarem naquela região. Meus Deus coitados dos estradeiros vieram
parar em uma lenda do Arabizá.

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149
Sol a pino em pleno o horário de verão. Os dois meninos deitados
um ao lado um do outro em uma pedra próximo ao Poço do Fubá, com
seus calções de banho, contemplando a copa de uma frondosa árvore e o
céu azul sem nuvens.

--- Que calor Hebinho! Ainda bem que a gente trouxe o lanche da
tarde, assim não foi preciso voltar pra casa da avó no meio da diversão.

--- Nadei, nadei, mergulhei, entrei, sai da água, e este calor não vai
embora.

--- A água deste poço parece até que está meio morna.

--- Tem de está mesmo, antigamente ela vinha da serra entre as


árvores. Agora o pessoal tirou tudo pra virar pasto. Ela vem escaldando no
sol.

--- Por falar em pessoal será que as meninas vão voltar?

--- Você está cada vez mais apaixonado pela Naiara em!

--- E você? Desencantou da Keira? Parou de falar nela der repente,


de mandar cartas, flores, telegramas e oferecer músicas na rádio. Até não
se oferece mais pra passar os fins de semana lá em casa. O que
aconteceu?

--- Aconteceu o inferno do João Pedro!

--- Não entendi Bibinho!

--- Deixa pra lá primo! Esta Cristalina é pequena mesmo, em breve


você vai acabar sabendo das coisas.

--- Vai me deixar no vácuo primo? Por que você não me conta agora
que começou o assunto?

--- Eu não tenho estomago pra isto primo. Nunca imaginei que a
minha amada, idolatrada, deusa deslumbrante, fosse se tornar uma Maria
chuteira.

--- A Keira com o João Pedro? Meu Deus do céu!

150
--- Não Poe Deus no meio desta estória dos infernos não primo. Pra
que gente. Olha a biografia deste João bocó.

Era uma vez um jogador de futebol de várzea, metido a cantor de


musica caipira que flertava com Naiara, hoje futura namorada do meu
primo. Um dia por obra do acaso um olheiro estrábico vê talento no infeliz
e leva o João Pezão para jogar em um time de segunda divisão em BH. Em
um único ano ele sai deste time, vai parar na primeira divisão, se destaca
nesta divisão, sai de BH, é contratado por outro grande time, vira atacante
deste timão, e ganha rios de dinheiro. Volta pra Cristalina, vende a casa no
Arabizá, compra uma casa em Cristalina, alegando que sua mãe, seu irmão
caçula e sua irmã Danumbia, precisavam morar na cidade e só não fora
para a capital porque a mãe do João Fubá não curte cidade grande. E
como se não bastasse tudo isto. Ele passa a freqüentar Cristalina todo o
final de semana com seus coleguinhas jogadorezinhos famosos. Toma a
atenção de todas as poucas mulheres namoráveis da região, e depois de
beijar todas as bocas femininas beijáveis da cidade ele compra um
apartamento encima da loja onde trabalha a Keira, compra o apartamento
e pede Keira em namoro! Dá pra acreditar nisto?

--- Claro que dá Herbert, lembra das sessões de regressão? Então, o


João Pedro de hoje era o Robert e a Keira é a tal Judith. Eles pagaram os
erros em outras vidas e agora estão prontos para viver finalmente um
grande amor. Nesta vida o João Pedro vai recuperar a fortuna que lhe foi
afanada em outros tempos e poder desfrutá-la finalmente. Desta vez ele
vai conquistar e adquiri-la através de seu talento e jogo de cintura, sem
prejudicar ninguém. Vai viver ao lado de Keira um grande amor e vão
envelhecer juntos, e toda a riqueza que ele possui vai ser administrada por
Keira que nesta vida é mais velha e experiente que ele. Ela vai administrar
bem a juventude dele e conduzir com maestria sua carreira. Tão logo João
Pedro se aposente, porque esporte aposenta cedo, eles vão estar muito
ricos e estáveis, viajar muito, conhecer o mundo e depois vão se envolver
em causas humanitárias e abrirem um escolinha de esporte com bolsa
gratuita para crianças carentes de baixa renda que tiverem boas notas na
escola.

151
--- Claro que boa parte disto eu estou supondo porque eles têm livre
arbítrio e podem melhorar ainda mais esta trajetória ou por tudo a perder.
Só dependem deles. Mas tudo indica que vão ser muito felizes juntos.

--- E eu vou fazer o que? Dar um tiro na minha cabeça?

--- Não! Não faça isto primo Herbert! Não atira na cabeça não
porque pra morrer tem de atirar em órgão vital.

--- Palhaço eu estou sofrendo por amor e você brincando com meus
sentimentos.

--- Tem de rir para não chorar Bibinho. Não dou uma semana pra
você esquecer a Keira e encontrar outra criatura pra amar. Isto ai que você
chama de amor, a humanidade chama de instinto.

--- Engraçadinho! Falou o sábio da montanha! O espírita do ano! O


Chico Xavier do Arabizá! Quero ver se fosse você encalhado, solteiro e B.V
como eu se você ia ficar filosofando.

--- Tudo tem suas razões e seu tempo meu amigo! Acredite sua hora
vai chegar mais cedo do que você imagina!

--- Virou vidente agora? Isto é uma previsão?

--- Não! É só um conselho! Espera, continua tentando e


principalmente aprende com os erros.

--- Acabou o jogo pra mim Primo, vou entrar para um convento ou
coisa assim. Chega ninguém me ama.

--- Eu é que perdi a paciência destes seus chiliques e rompantes de


alto-piedade. Vou cair na água e depois cair fora. Fui primo, o sábio da
montanha vai mergulhar.

***************

152
10 - A missão de Alexandre.
--- teck, teck, teck.

Alexandre atirou três pedras na janela de madeira no quarto dos


fundos da casa de sua tia onde Herbert dormia. Já passava das dez, o
horário era de verão e o tempo fazia um céu estrelado com lua cheia e
calor sufocante de noites sem brisa.

--- Hebinho abre a janela!

--- Hebinho é a sua vovó Xandoco, calma que eu to destravando esta


tramela. Para de me chamar e aguarda porque estas janelas antigas de
madeira rangem se não tiver cuidado ao abrir.

--- Até que em fim! Anda pula ai e vamos sentar atrás do paiol da
vovó. Lá você me conta tudo.

Os garotos foram para trás do paiol onde em outra ocasião


Alexandre vira o fenômeno da luz azul. Chegando ao local eles se
acomodaram sentando-se em algumas pedras soltas que havia por lá e
começaram a por a conversa em dia. Alexandre puxou o assunto:

--- Se existe uma coisa que se propaga na velocidade da luz em


cidades pequenas esta coisa se chama boatos. Herbert você é louco!
Como você foi capaz de fazer aquilo?

--- Xandi to de castigo por três dias. À noite não posso sair do
quarto pra nada e durante o dia eu só tenho permissão pra andar apenas
dentro de casa. Até para ir ao banheiro meu pai ou minha mãe me levam
até a porta e ficam vigiando do lado de fora. E estou proibido de falar com
as pessoas fora da minha família. E isto vai durar por quatro dias.

--- Mas depois do que você fez! Eu no lugar dos seus pais lhe
internava em um hospício ou doava você para um circo.

--- Pois eu não me arrependo de nada! Faria tudo de novo, acho um


desaforo o que o João Pedro me fez. Nas condições que eu estava,
qualquer pessoa faria a mesma coisa.

153
--- Herbert isto é furto, e fora o constrangimento que o rapaz
passou.

--- E o que eu passei Alexandre? Não conta? O cara toma a Keira de


mim, a minha eterna musa, deusa, amante, amiga, alma gêmea e como se
não bastasse vem até o Poço do Fubá no meu território ficar se exibindo?

--- Achei que você tinha superado este amor platônico pela Keira
primo.

--- É amor verdadeiro Xandi! Nunca vai passar! Ela não me quer, eu
perdi, e agora estou encrencado! Deve ser meu Karma. Eu vou ter de
amargar solidão e desgosto o resto da minha vida.

--- Karma uma ova! Isto que você vem fazendo com você se chama
burrice seguida de loucura mesmo. Não tem nada a ver com vidas
passadas e sim com as coisas que se passam nesta sua cabecinha de
vento.

--- Presta atenção Xandico. Depois que você mergulhou, saiu da


água, e foi embora, passou um tempo o João Pedro chegou ao Poço do
Fubá onde eu ainda permanecia tranqüilo no meu território cuidando do
meu coração destroçado pela Keira. Você sabe como ele é. Todo exibido
chegou dentro de um carrão importado botando banca. Apeou do veículo
com o narizinho em pé. Ridículo, usava um cabelo do tipo pica-pau todo
arrepiado com gel, óculos grande com uma lente que mais parecia um
arco-íris, uma camiseta baby-luke grudada no corpo, calça jeans apertada
tipo cantor de dupla caipira e um tênis multicolorido de marca.

--- Nossa Hebinho você reparou mesmo no cara em? Fiquei até com
medo agora!

--- Eu estava estudando o inimigo! Ele desceu botando banca.


Sentou perto de mim e ficou olhando para o horizonte como se eu fosse
amigo dele sabe. Daí ele disse assim: “--- Beleza Hebinho! Vou dar um
mergulho aqui, você vigia minha roupa?”

--- Sério? Ele te chamou de Hebinho?

154
--- Pra você vê a audácia do infeliz. E pra piorar ele começou a tirar a
roupa perto de mim. Foi amontoando tudo. Nem quis saber se eu estava
de saída, se eu podia vigiar roupa de marmanjo, nada disto foi jogando as
coisas.

--- Não estou lhe dando razão, mas ele deveria ser mais
educado com você sim.

--- Eu só sei que meu sangue ferveu na hora. Lembrei da


Keira, do amor que eu perdi pra este narcisista. Eu admito que fiquei cego.

--- Cego surdo e burro, não é primo? No seu lugar eu inventava uma
desculpa e saia de lá e pronto. Pra que cassar encrenca?

--- Na hora eu achei que deveria me vingar! Não poderia perder a


oportunidade, estava cansado de ficar apenas sofrendo sem fazer nada. E
foi ai que eu comecei por em pratica meu plano maligno. Depois que o
João tirou a roupa ele foi para a beira d água fazer os rituais dele. Molhou
o pulso e ficou espreguiçando e criando coragem pra entrar. Neste
momento eu intervir dizendo: Você vai nadar com este short branco João
Pedro? Pensa bem, além de encardir a peça não vai lhe tampar nada, pois
ao mergulhar vai ficar transparente.

--- Você é doido Herbert pra que fez isto?

--- Porque minha maldição tinha de ser bem maligna. Ele


estranhou, mas como era muito exibido e só havia nós dois de homem no
local ele acatou a idéia. Deixou o calção junto com as outras roupas e foi
novamente para beira do poço.

--- Daí ele mergulhou e deu no que deu.

--- Não, antes eu usei o orgulho dele contra ele mesmo. O fiz provar
do próprio veneno.

--- O que você fez?

--- Eu falei para ele que você saltou de cima da árvore de óleo, no
tronco mais alto que estende por cima da parte funda do poço.

--- Meu Deus isto é mentira Herbert.


155
--- Eu sei, mas ele não sabia! E como ele é muito competitivo, ele
subiu. Daí enquanto ele estava de costa subindo na arvore eu recolhi as
roupas dele e fugi.

--- O que você fez com as roupas dele Herbert?

--- Deixei dentro do mangueiro do Sr. Paulo.

--- Não lhe adiantou nada esta bagunça sua! Seu pai lhe pós de
castigo, o Sr. Paulo reclamou com sua mãe, o irmão do João Pedro disse
que vai te bater se você for a Cristalina, E a Keira a esta altura deve está
achando você um adolescente infantil e encrenqueiro. Qual foi o lucro que
você obteve com sua vingança?

--- Muito simples a cidade inteira está chamando o namoradinho da


Keira de João Peladão! Claro que pelas costas, mas com certeza ele vai
precisar ficar longe de Cristalina por um bom tempo. Dizem que ele
procurou a roupa, não achou, entrou no carro e foi voando pra cidade.
Saiu correndo do carro, e tentou abrir a porta externa do prédio no centro
da cidade completamente sem roupa. Não achava a chave, o molho caiu
no chão, começou a juntar gente, e por pouco não foi fotografado. Em
menos de uma hora todo mundo de Cristalina e aqui no Arabizá já estava
sabendo do ocorrido. Aqui a noticia chegou pela boca do Nelsinho
Leiteiro. E eu fui muito bonzinho, pois levei apenas as roupas deixando as
chaves para ele.

--- Olha a bagunça que você fez. O João Pedro veio aqui, reclamou
com seus pais, a mãe e o pai dele passaram um sermão em seus pais, e
eles ficaram tristes com você, e também agora você está ameaçado pelo
irmão do João Pedro. Nunca mais vai ter sossego pra andar em Cristalina.

--- Eu não volto mais naquela cidade mesmo! Trabalho no Arabizá e


minha escola é aqui, a única pessoa que vou ver daquela família é a
Danumbia que o ano que vem vai estudar na minha sala. Eu não tenho
medo nem dela nem dos irmãos dela aqui no Arabiza. E daqui a pouco
todo mundo esquece esta história.

--- Mas me fala, esta vingança resolveu seu problema?

156
--- Pior que não! Só o tempo é que vai me ajudar nesta, eu acho!
Tem horas que eu acho bom ter vingado, e tem horas que me dá remorso
e eu me sinto bobo e inferior por ter feito isto. Será que quando a gente
crescer estas confusões pára?

--- Viu?

--- Alexandre, falando sério, você acha que sou burro?

--- Claro que não primo! Errar é humano, burrice seria você seguir a
vida toda cometendo o mesmo erro. Não é o seu caso, pois vejo na sua
expressão de preocupado que está verdadeira mente arrependido do que
fez. Eu aprendi que quando um homem se arrepende verdadeiramente
ele tem a dimensão exata do erro que cometeu e isto ajuda a não repetir
o mesmo erro. Olha para mim, no começo eu só queria desvendar um
mistério. Provar e entender o funcionamento daquele fenômeno que
vivenciei aqui neste lugar nas férias de inverno. Lembra as encrencas que
a gente cometeu tentando desvendar o tal mistério da luz azul?

--- Nem me fale Xandi, nem me fale!

--- Na época eu fiz o que acha certo! Não tinha recursos intelectuais
para sondar este fenômeno. Daí deu início por onde achei pega, na
superstição, nas historias até ir lapidando e chegar aonde cheguei.

--- Verdade Xandi! Tanta água já passou por baixo do moinho do


Poço do Fubá de lá pra cá!

--- Tudo começou com um fenômeno desconhecido, depois eu saí


procurando respostas em tudo em quanto é canto. Aos poucos fui
acalmando, e aprendendo a caminhar e distinguir as coisas. Vieram o
Centro Espírita, a terapia, os livros, e alguns outros fenômenos, a
mediunidade começou a aflorar e a ser canalizada para o propósito certo.

--- Mas você não quer ver mais a luz azul?

157
--- Agora eu entendo que o fenômeno é só uma parte do processo. E
não sou eu quem determina se vou ou não ver estes fenômenos. Mas a
resposta é não! Agora eu prefiro o método tradicional, aprender, estudar
e vivenciar. Na hora certa vou acabar sabendo que fenômeno foi aquele e
o porquê de sua aparição.

--- Primo? Qual é a sua mediunidade?

--- Todos têm mediunidade Hebinho, basta querer desenvolver e


trabalhá-la que ela se manifesta adequadamente. Com o auxilio de
Matilde e demais pessoas encarnadas e dos planos mais evoluídos eu
venho trabalhando e obtivemos progresso em alguns campos. Tive sonhos
sensitivos e olfato e a visão também está mais bem apurada como você
mesmo pode perceber. Quando necessário tudo isto entra em sintonia
com o outro plano e o fenômeno se manifesta para que eu possa colher os
seus ensinamentos através da interpretação de sua mensagem.

--- Mas qual você gosta mais e tem mais facilidade?

--- No começo a intuição, o olfato, a visão e os sonhos me davam


mais ferramentas, porém agora com a Ajuda dos mestres e da Matilde
estamos evoluindo mais rápido através da terapia de regressão mesmo.
Mas este é outro departamento.

--- E você vai ser escritor mesmo?

--- Eu pensava isto também, mas Matilde me alertou pra a


importância real do dom da mediunidade.

--- E qual seria esta importância primo?

--- A mediunidade tem de servir a um propósito maior que


transcende os interesses pessoais. No meu caso esta manifestação toda
veio por causa da missão que tenho. Esta missão envolve todas as vidas do
Arabizá por isto não posso abandonar este foco. Sempre que penso só em
mim as coisas desandam. O mais importante é que eu estou em paz e me
sinto feliz seguindo por esta estrada. Não tenho pressa de chegar ao fim.
Antes quero aprender tudo sobre o caminho que estou!

158
--- Primo quem te ouvir falar agora vai achar que tem um adulto de
cinqüenta anos conversando comigo. Posso saber qual é a sua missão com
a gente aqui no Arabiza ou é segredo?

--- Muito pelo contrário, não é segredo e é notícia boa! Minha


missão é trazer prosperidade ao Arabiza!

--- Oba! Todo mundo aqui vai ficar rico primo? Como? Vai sair mais
Jogadores famosos daqui? Eu estou na lista? Tem de seguir a Doutrina pra
enriquecer?

--- Não tem lista seu doido! E fala baixo se não a gente vai é ficar
encrencado! Prosperidade nem sempre está ligado à riqueza material.
Passa por ela, mas é mais importante, mais profunda e envolve fatores
que não são necessariamente materiais.

--- Vai direto ao ponto Xandi, sem aulas, por favor!

--- Estou andando na estrada, mas não cheguei ao fim ainda. A


resposta pode estar depois da próxima curva, mas eu não sei quando,
onde e como, só me foi revelado que a minha missão é trazer
prosperidade ao Arabizá.

--- Mas porque você e porque o Arabizá?

--- Olha Herbert sou eu por causa do karma coletivo que lhe falei. Já
lhe contei a minha encarnação como Zé do Pacto várias vezes, já lhe
expliquei que você foi o escravo que mais tarde morreu e ficou vagando lá
pras bandas do Morro do Curió...

--- Primo eu li os manuscritos. Sabe a minha opinião! Eu não


acredito em reencarnação. Respeito a Você a Tia, o Tio, e até aprendo
algumas coisas lendo os livros que você me emprestou, e com as suas
experiências, mas eu prefiro não misturar as estações.

--- Não estou tentando lhe converter a nada meu primo, até porque
espiritismo é Doutrina e não Religião. O que eu quero lhe mostrar são as
peças do quebra a cabeça que estão encaixando e apontando a direção.

--- Não respondeu minha pergunta Alexandre!

159
--- Trata-se de uma nova chance que a vida me deu! Terei a
responsabilidade de administrar e conduzir pessoas rumo a uma vida mais
plena para ressarci-la de todo prejuízo que causei a população de
Cristalina e que hoje boa parte está encarnada no Arabiza. Olha ao nosso
redor Hebinho! O Arabiza está vivendo seus últimos dias. Ninguém mais
para aqui. Os jovens não encontram emprego aqui, não querem trabalhar
a terra, não vêem futuro nesta região. Não tem casa nova por aqui! Muita
gente está vendendo e outros só vêm aqui nos finais de semana e olhe lá.
Só os aposentados e uns poucos gatos pingados feito seu pai que vão pra
lida e tiram o sustento no Arabiza.

--- Mas eu trabalho aqui! E isto não dá pra evitar. O prefeito fala em
asfaltar a estrada e se acontecer aqui vai virar um bairro. Viu? Vai
demorar, mas vai chegar aqui o progresso.

--- Se acontecer desta forma o Arabizá vai se tornar um bairro de


periferia. Vão acabar com os casarios, jogarem esgoto nos córregos, e a
população vai ficar mais empobrecida. Vai ser um bairro qualquer no fim
do mundo e não uma prospera comunidade rural. Quanto você acha que
vai valer um lote a oito km da cidade?

--- Mas qual é a saída? A gente tem de comer, todo mundo que faz
18 sai daqui pra trabalhar na fábrica de cimento. Só temos estes
caminhos, a fábrica, a roça, ir pra capital ou fazer faculdade e procurar
emprego longe porque aqui não tem. Até o João Pedro que agora é rico se
mandou com sua família pra Cristalina.

--- Por isto lhe falei da diferença de prosperidade e riqueza. A


mudança tem de começar por dentro, resgatar a alta estima do pessoal.
Mostrar a essa gente o quanto a suas vidas já são boas e que estas coisas
que a cidade considera simples e às vezes até desdenha é uma verdadeira
fortuna incalculável.

--- Xandi, este foi o sermão do Padre Ernani na missa da semana


passada. Muito bonito, mas como descobrir riqueza interior que pague as
contas exteriores?

160
--- Deixando de olhar só pra matéria, e enxergando o próprio
potencial. Mas não se preocupe tem muita gente trabalhando ao mesmo
tempo para que isto aconteça. O Sr. Ariel e sua filha, a Matilde, minha
mãe, meu pai na câmara, o povo do Arabizá indiretamente, e uma legião
de espíritos mais evoluídos tramitam dia e noite sem cessar com idéias e
formas de encontrar a solução. Não se preocupe Hebinho, cedo ou tarde a
resposta virá, e com ela a prosperidade sairá desta terra mais cedo que
você imagina. Basta ter fé.

--- É tão difícil ter fé quando não se tem nada de real pra se agarrar!

--- Não misture as estações primo! Você está deixando seu amor
não correspondido pela Keira e sua frustração de estar de castigo lhe
cegar. Presta atenção milagres acontecem todos os dias.

--- bla, bla, bla,bla,bla, o sol nasce, a borboleta voa, o ar está


puro, estas coisas que você vai me falar?

--- Também primo, a obra de Deus por si só já é um milagre


constante. Mas eu estou falando de sinais mais claros e precisos. Tome
como exemplo o time do Arabizá. Ano passado ninguém sabia onde ficava
Cristalina. Quem poderia imaginar que destas várzeas incrustadas nas
montanhas poderia sair um Jogador de nível internacional?

--- Não gostei deste exemplo de milagre não primo!

--- Deixa de dor de cotovelo Herbert depois que o João


estourou vieram vários olheiros aqui, o campo está mais lotado, a
prefeitura deu até uniforme pro time, passou a máquina na estrada e na
lateral do campo.

--- O que eu não entendo é o fato de você ter me matado em


outra vida e hoje eu ser seu primo e amigo, e o João Pedro que foi seu
comparsa não ser nada seu e infernizar minha vida sem eu ter feito nada a
ele.

161
--- Ué? Não foi você quem disse que não acredita nestas coisas? Não
mistura as estações? Que pena porque eu tenho aqui um manuscrito que
explica justamente isto! Fala de dois primos que foram irmãos em outras
passagens e um tinha dividas a acertar com o outro. Desta história triste
nasceu a lenda do vulto branco que assombra lá pras bandas da represa
do Senhor Tati. Vou ter de achar outra pessoa pra ler estas psicografias.

--- Me dá este manuscrito aqui primo.

--- Dr. Herbert! Mas o senhor não é espírita!

--- Presta atenção no que eu vou lhe falar Xandi. Eu não sou espírita,
mas a minha curiosidade é.

Os dois garotos deram uma risada alta, e logo se conterão para não
acordar a família.

Herbert ascendeu uma lamparina velha que estava guardada


nas tranqueiras próxima ao paiol. Ele começou a ler o manuscrito e a
compreender a lei de causa e efeito.

***************

11 - A fazenda do Arabiza.
Dona Sara foi a primeira a adentrar o casarão. Foi ela quem girou a
chave mestra do grande portal de madeira azul colonial empurrando as
duas portas gigantes talhadas em estilo barroco. A luz entrou no
ambiente revelando a amplidão da sala e deixando a família Sousa
admirada com o espetáculo de suntuosidade e luxo que a fazenda Arabizá
guardava em seu interior. Havia uma ante-sala pequena e sem portas
com dois grandes afrescos logo na entrada, em seguia caminhava-se até o
centro da sala onde a vista se perdia no deslumbre daquele ambiente.

Sr. Rodrigues foi logo retirando os panos brancos que cobriam os


moveis e descobrindo com isto um valioso mobiliário todo feito a mão
com madeira nobre.

162
A fazenda estava desabitada, porém preservada até a presente
data de 1896. Em uma hora a família percorreu todos os cômodos da
casa. Descobriram que ela era composta de uma ante-sala com dois
afrescos, em seguida vinha à sala principal que ocupava a altura de dois
pavimentos e havia várias portas grandes que davam acesso aos cômodos
internos do primeiro pavimento da casa. No primeiro pavimento havia
duas salas de estar, um salão de festas, uma saleta de musica e saraus
com cadeiras, palco, piano de calda, esta sala lembrava um pequeno
teatro. Também havia um salão de jogos, uma imensa sala de jantar,
quatro saletas mobiliadas como escritório e uma biblioteca já com livros.
Seguindo pela ala leste da casa encontrava-se um grande corredor escuro
e sem janelas que se bifurcava. Quem seguisse reto chegaria à outra sala
de jantar e depois encontraria uma imensa e bem iluminada cozinha com
todo mobiliário e dois fogões a lenha em seu interior. Seguindo o
corredor e virando a esquerda da bifurcação chega-se até uma escadaria
de madeira onde a subida dava para o segundo pavimento da casa. No
segundo pavimento havia um corredor com seis portas na lateral da
esquerda e seis portas laterais à direita. Elas davam acesso aos quartos,
eram quartos grandes e dois deles havia uma porta interna que ligava um
cômodo a outro. Toda a fazenda tinha forro de madeira e o piso eram
assoalho de tabas corridas. As portas e janelas eram na cor azul e as
paredes externas dos cômodos da casa eram formadas por muitas janelas
o que fazia a fazenda parecer por fora maior do que realmente já era.

De mudança vieram Sr. Rodrigues marido de Sara, que eram


pais de Martins e Miro. Dos filhos só Miro acompanhou o casal Martins
estava fechando os estudos de fim de ano em um seminário em São Paulo.
O primeiro comentário conclusivo sobre a casa surgiu de Sara:

--- Veja meu Marido, notei que esta casa não tem uma capela, não
acha isto estranho?

--- Não minha esposa, perfeitamente normal. O último morador


desta mansão foi ancestral dos donos e construtores dela. Ao me passar a
escritura ele me deixou a par de toda a história desta fazenda.

--- E qual seria esta história?

163
---- A ultima vez que ela foi habitada foi no tempo dos cativeiros,
Por um Senhor chamado Robert. Ele era dono de outras fazendas na
região e nelas havia capelas em seus interiores. Porém na fazenda Arabizá
ele fez diferente.

---- Esta fazenda ficou este tempo todo abandonada? Será que é
assombrada? Ou pode haver demônios?

--- Não minha esposa, Sr. Lucas, o antigo proprietário, manteve um


caseiro morando nela. Só estes últimos anos é que ela ficou
completamente fechada. Mas me deixe explicar sobre a capela. Senhor
Robert não quis construir uma capela na fazenda. Porém logo ali na frente
próximo ao moinho de fubá ele mandou construir uma modesta, porém
ampla e arejada Igrejinha. Provavelmente haveria altares e santos
espalhados por esta casa, pois esta era a tradição na época. Mas a atitude
do Sr. Robert ao construir uma igreja externa e longe da sede da fazenda
era de criar um lugar comum para que escravos, pobres e ricos tivesse um
ponto neutro para se recolher em oração. Sem locais distintos para um ou
para o outro, todos no mesmo local! Assim me explicou o Sr. Lucas.

--- Isto me consola senhor meu marido! Pois as lendas que cercam
esta fazenda não são boas. E o fato de Sr. Lucas nos vender esta
propriedade tão barata me deixou com muitas suspeitas.

--- Tolice mulher! Sr. Lucas tem outras propriedades rentáveis e vive
muito bem instalado na fazenda Sobral, que também foi de seus
antepassados. Desfez deste patrimônio para se aposentar e viver
confortavelmente dos juros da venda. Viúvo e com filhos já estabelecidos
na vida não há motivos para pensar em lucros e aumento de patrimônio a
esta altura de sua existência.

--- Esta é uma região muito deserta, não tem ninguém a léguas. Não
acha isto estranho?

164
--- Não podemos nos dar ao luxo de estranhar nada. Se quisermos
manter o status e ter uma grande propriedade em nossas posses temos de
nos contentar com o Arabizá. As terras produtivas de mais são muito
caras, se arriscássemos comprar alguma fazenda assim ficaríamos
reduzidos a uma fazenda mais modesta.

--- Por quanto tempo sobreviveremos do que sobrou no banco?

--- Pegaremos aquele dinheiro, e mais um gordo empréstimo dando


a fazenda do Arabizá como garantia, e vamos investir tudo nestas terras.
Tenho certeza que o lucro será garantido.

--- Tenho fé em Deus que tudo dará certo meu Marido. Lembra
quando não podíamos ter filhos? Foi à promessa que fiz a Nossa Senhora
Aparecida que nos salvou desta desgraça. Nosso Senhor Jesus Cristo é
maravilhoso, me deu uma chance de ser Mãe. E como meu tempo já
estava passando enviou logo dois. Meus queridos gêmeos Martins e Miro.

--- Estes meninos são a razão da nossa felicidade e de nossos


cabelos brancos.

--- São idênticos, às vezes até eu que sou mãe os confundo quando
os vejo de longe.

--- Pena que a identidade deles se limita apenas a aparência.

--- Deus quer que seja assim, então devemos aceitar. Martins é
caseiro, recluso, e frágil, porém muito concentrado e inteligente, gosta de
estudar. Certamente será advogado, médico ou até padre quem sabe.

--- Deus parece que criou um para mim e outro para você minha
esposa. Miro é tão despachado, adora cavalgar, gosta da lida no campo,
exímio pescador, um caçador de mão cheia, extremamente sociável fácil
de encantar-se por ele e como negociante é extremamente astuto. Já o
Martins lhe acompanha em seus terços e orações, gosta de ir às missas e
cerimônias religiosas.

165
--- Nossos filhos só têm em comum a aparência. Se fossem apenas
personalidades diferentes nossa felicidade há esta hora seria completa.
Porém são duas forças antagônicas. Dois rivais. Vivem em pé de guerra.
Nem todos os seus castigos e nem todas suas orações conseguem fazer
um irmão gostar do outro. Como isto é possível? Qual força ou razão
maior está por traz disto?

------------------------------

Os ventos da prosperidade tocaram as rodas da fortuna e todo o


investimento feito pelo Senhor Rodrigues no inicio logo deu fruto e
impulsionou a fazenda Arabizá a sua velha e boa forma de ascensão. Em
um curto período tudo se revitalizou. Sr. Rodrigues construiu e reformou
outras fazendas na região para abrigar as famílias de seus empregados,
concertou a roda e a pedra do moinho para que ele voltasse a produzir
fubá, criou vários pastos para o gado cercando com longos muros de
pedra, pintou toda a fazenda e com a ajuda de Sara montou um
esplendoroso jardim em redor da casa grande, diversificou plantações
cultivando e produzindo quase tudo em suas poucas terras férteis,
também contou com a formação de um belo pomar composto por frutas
nativas e arvores já a muito domesticadas pelo homem, e Senhor
Rodrigues contava também com um grande rebanho de gado, e por puro
capricho e lazer revitalizou e ampliou ainda mais o lago, formando uma
gigantesca extensão de água, nelas ele cultivou toda espécie de peixe para
promover grandes noites de pescaria e caçadas ao luar com a tropa. O pai
era auxiliado pelo filho Miro que com o passar do tempo se tornava cada
vez mais um empreendedor de sucesso. A família também contava com o
bom gosto e a única visão feminina da casa que era a de Sara. Foi de Sara
a idéia de construir ou reformar para os empregados as casas que hoje
abrigam os atuais moradores do Arabizá. Alias era sempre Sara que dava
as ultimas ordens quando o assunto fosse estilo. Foi dela a idéia de
construir muros de pedra para aproveitar a fartura de material e imitar os
antigos muros de pedras feitos pelos escravos. Também cuidou para que
todas as construções novas fossem ou imitassem os estilos de construções
datados da mesma época que a fazenda.

166
Por este motivo várias casas ganharam grandes alicerces de pedra e
algumas tinham até porões com assoalho.

E foi nesta época que surgiram as casas que atualmente formam a


vila principal no entorno da mata que na época era a Fazenda Arabizá.

Alheio a vivencia rural, apático ao mundo exterior e nem sempre


presente nas atividades familiares vivia Martins. A rotina de Martins
limitava-se a extensão de seu quarto. Concluiu os estudos na capital,
voltou para casa onde decidiu se recolher em oração e meditação por um
período indeterminado até que sua vocação se manifestasse. Assim ele
justificava sua reclusão para saciar a curiosidade familiar e alheia. O pai
não concordava, porém não se opunha ao comportamento do filho. Para
ele Martins era responsabilidade de sua esposa. Por sua vez Dona Sara
entendia esta necessidade de reclusão do filho e até apreciava, pois ele
era muito beato e ela acreditava que fatalmente este filho se decidiria
pelo celibato, o que para ela seria a glória familiar. Ter um filho Padre e o
outro filho um prospero fazendeiro e exemplar pai de família.

Mas o fato era que Martins pairava alheio a toda a realidade e


expectativas a respeito dele. Sua vida era uma grande farsa montada e
seus propósitos eram obscuros, sinistros e de natureza estranha. A paixão
de Martins era o ocultismo. Qualquer lenda, historinha ou causo narrado
sobre este assunto despertava nele um interesse quase que involuntário.
No seminário aprofundou em estudos bíblicos, conversou muito como os
Padres a respeito de exorcismos, demônios. Tudo que era de cunho
religioso ou oculto despertava interesse em Martins. Fez vários passeios as
escondida na capital onde se encontrou com benzedores, curandeiros, e
diversas pessoas ligadas a ocultismo. Viveu uma vida de várias
experiências, místicas, religiosas e espirituais. Mas até o presente
momento Martins se sentia frustrado em relação a tudo que aprendeu e
experimentou.

Sua frustração vinha do fato de Martins ser incapaz de se conectar a


qualquer coisa de natureza espiritual. Dentre outras coisas este também
era um grande motivo que Martins tinha para sentir inveja do irmão. Miro
sim era um homem sensitivo.

167
Ele sempre reclamava de arrepios, vertigens, calafrios, e sensações
diversas que sentia ao passar pelas bandas do Morro do Curió.

Miro por várias vezes deixou de ir a bailes, caçadas e pescarias


noturnas por ter visto vulto ou ouvir vozes na floresta. Miro também vivia
reclamando de um pesadelo recorrente.

Em seu sonho Miro se via acorrentando no interior de uma caverna


escura. A escuridão ia se fechando em torno dele e ele se debatia
tentando escapar. Aos poucos sentia as paredes da caverna pressionar seu
corpo. As sensações de abandono, medo, dor, cólera, fome, frio e cansaço
eram reais e agonizantes. O sufoco sempre ia aumentando até que ele
acordava assustado.

Por estes motivos Miro dormia com a porta do quarto aberta.


Sentia-se mau em lugares fechados e procurava sempre estar ao ar livre e
na companhia de alguém.

Martins morria de inveja do irmão! Do irmão e do resto das pessoas


do Arabizá. Pois todos já presenciaram alguma coisa naquela região.
Menos ele. Justo ele que vivia estudando, pesquisando, procurando,
experimentando e não vira nada. Somente ele não vira nada, nem um
milagre, nem um vulto, nem um arrepio, nem uma sensação nem uma
previsão nem um sonho premonitório ou recorrente, nem uma voz
chamando pelo seu nome de relance ao acaso se quer ouvira.

Ele queria ver ou viver algo puramente sobrenatural que


arrebatassem todas as suas duvidas e questionamentos. Algo tão real que
seria indiferente ao fato de acreditar ou não, ter fé ou não, ele viria ou
vivenciaria e pronto. Sem que alguém lhe contasse. Martins estava
cansado de historias alheias e não agüentava mais ler livros místicos que
propunham esforços sobre humanos para conseguir experiências de
natureza oculta. Martins sentia um imenso vazio e grande incapacidade,
pois mesmo com tantos estudos e vivência religiosa ele não alcançara
nenhuma graça ou milagre.

168
Houve um período que Martins tentou ser cético e se livrar de tudo.
Convenceu a si mesmo que tudo não passava de lendas contadas para por
medo nos ignorantes.

Acreditou por um longo período de tempo que a fé era algo que as


pessoas fingiam ou queriam acreditar para ter um grupo em comum de
amigos, auxílios nos problemas cotidianos, ou um bode expiatório para
não admitir a própria incapacidade, e abrigo filosófico pra encarar a
certeza da morte com mais serenidade.

Em seu pensamento ele chegou a acreditar que todas as pessoas


mais instruídas, principalmente os padres do Seminário eram ateus
enrustidos, que ao invés de pregar a certeza do vazio ajudavam a Igreja a
vender a fé como um produto lucrativo aos seus lideres envolvidos.

Claro que tudo isto ocorria em seu mundo mental. E era guardado a
sete chaves. Passado a fase do ateísmo, Martins voltou os estudos e
interesses pelo oculto. Não era bem um interesse era uma atração
enigmática. Algo mais forte que a sua própria natureza. Parecia um vício
difícil de abandonar. Ele tinha uma certeza incrustada na alma. Mesmo
não querendo acreditar Martins tinha uma forte sensação de que
conseguiria se conectar a algo fora deste plano e com ele extrairia tudo
que lhe fosse necessário ao seu ego.Esta certeza latejava dentro dele feito
um fato. Ele não conseguia entender, pois toda a sua realidade era
contrária a esta certeza. Martins achava que isto vinha no D.N.A, às vezes
por não conversar estes assuntos com ninguém ele acreditava que todos
também carregavam este conflito. E havia momentos em que ele acha que
isto fosse uma espécie de loucura latente, e temendo enlouquecer
procurava se distrair, tocando piano, lendo um livro, estudando ciências e
dando um de seus passeios noturnos às escondidas pelas redondezas da
fazenda.

----------------------------------

Houve uma grande explosão no céu, coincidentemente a


champanha estourou junto com os fogos de artifício. A fazenda Arabizá
estava em festa e toda a mesa se levantou alegremente para brindar.
Terminava mais um ano bom de fartura e prosperidade na fazenda.
169
Por este motivo Senhor Rodrigues decidiu festejar com a família e
amigos. Dentre os convidados das redondezas, a família Sousa, também
havia hospedes da capital na casa grande que ficariam para pousar na
fazenda.

Estes hospedem eram a família Pereira. Senhor Arthur Pereira era


um comerciante bem sucedido e amigo de longa data do Sr. Rodrigues. A
convite do anfitrião ele trouxe a família constituída por Marília sua esposa,
Adélia sogra de Arthur, Mauro seu cunhado que ficara viúvo de pouco e os
filhos de Arthur e Marília, que eram Ernani, Ernesto, Diego e sua filha Lara.
A maior parte das atenções foi dispensada a Lara. No vigor dos seus
dezesseis anos Lara era dona de uma beleza tímida, formosa e
encantadora. Sua inteligência articulada e sua vos doce e delicada
dominava a atenção de todos que bebiam suas palavras com profundo
encanto e admiração. Sempre muito solicitada principalmente pelo pai
que não escondia o privilegio pela filha, Lara foi submetida a todas as
provas de dotes que uma Moça daquela idade e tempo pudesse passar.
Lara respondeu a todas as perguntas que lhe eram feitas, após o almoço
na ante-sala, sempre atendendo aos pedidos recitou poesias, executou o
trecho lírico de uma opera e finalizou no piano da sala de música
dedilhando a canção predileta de Dona Sara. Assim Lara foi muito
aplaudida enchendo de orgulho Arthur, Marília e os irmãos que igual ao
pai também admiravam com orgulho e privilégio a irmãzinha querida.

Admiração maior a Lara veio de Miro e Martins. O encanto dos dois


irmãos pela moça era notável. Principalmente da parte de Miro que não
se preocupava em disfarçar e volta e meia criava pretexto para se dirigir a
Lara.

Martins fez esforços para quebrar o gelo da timidez e dirigiu-se


muito pouco a moça, mas sempre olhava diretamente para Lara que por
sua vez retribuía com um olhar tímido e enviando-lhe o esboço de um
quase sorriso.

Após a cesta Miro fez o que lhe era de natureza. Convidou os irmãos
de Lara para um passeio a cavalo.

170
O objetivo de Miro era apresentar as propriedades, mostrar todo o
potencial da fazenda, suas riquezas e benfeitorias. Deixar bem explicita
sua grande capacidade administrativa, falar de seu vigor e disposição para
o serviço pesado, exibir seus dons para finanças. Com isto Miro acreditava
estar se apresentando como cunhado dos sonhos aos irmãos de Lara.

Miro Tinha por objetivo influenciar os rapazes para que eles


intercedessem perante seus futuros sogro de forma espontânea. Ele tinha
este dom, quando queira conseguia manipular sem que a pessoa
percebesse estar sendo manipulada. Miro era astuto e prático, sabia que
todos gostam de vantagens e este era seu principal jogo. Oferecer
vantagens e barganhar o que quer que fosse. Miro estava pela primeira
vez na vida apaixonado. Lara era o foco de sua paixão. Logo admitira isto a
si mesmo e se quer quis questionar. Ele encantou-se por ela antes mesmo
dela se apresentar. Tão logo a viu pela primeira vez Miro já ficou
petrificado de encanto por Lara.

Durante o passeio Miro pincelou uma e outra coisa a respeito de


Martins. Não fez críticas declaradas, tão pouco apontou defeitos, pois não
queria que seus futuros cunhados o vissem como um fofoqueiro
caluniador ou pensassem que ele era um homem brigão que não
conseguia se quer ter uma boa relação familiar com o próprio irmão. O
que Miro fez foi acentuar bem as características de Martins. Mas o fez de
forma caricata e enfática transformando os pontos positivos do irmão em
uma imagem destorcida da realidade. Falsamente ele elogiava o irmão
dizendo que ele passava horas estudando e por isto se esquecia de sair do
quarto deixando o mundo real de lado. Também falou de sua admirável fé
que o levava a viver feito um beato, que o irmão jejuava, acompanhava
todas as novenas da região, não perdia missas de domingo e às vezes
passava a noite rezando. Miro também mentiu a respeito de Martins.
Disse que o irmão era muito caridoso e que não via malícia nas pessoas
por este motivo estava sempre abrindo mão das coisas ou tendo
desvantagens por não ter astúcia nos negócios.

Quem visse Miro falar acreditaria estar diante de dois irmãos que
muito se conhecem e se amam. Finalizando tudo Miro pediu segredo aos
cunhados.
171
Justificou que estes assuntos ofendiam o irmão e que só comentava
com eles porque confiava e sentira-se certa simpatia pelos filhos de
Arthur.

Mas o objetivo de Miro ao pedir segredo era outro.

Ele queria evitar que estes comentários fossem parar em alguma


conversa e chegasse aos ouvidos de Martins causando retaliação da parte
do irmão. Miro previa que os irmãos fossem respeitar seu pedido, porém
sabia que os garotos não iam deixar de comentar estas coisas com o pai, a
mãe e principalmente com Lara.

Miro não percebera que seu irmão também estava apaixonado por
Lara. Ele era alheio aos sentimentos de Martins e seu irmão alheio aos
dele. Este era seu comportamento padrão. Com todo mundo Miro era
brincalhão, generoso e bom de prosa, sabia negociar, mas nunca
prejudicava o outro. Mas quando se tratava Martins o Miro era
completamente diferente. Ele não permitia que seu irmão se destacasse
em nada diante dos seus olhos. Rezava para que o irmão se convertesse a
Padre para que nunca mais o visse e tivesse que dividir algo com ele. Nem
o patrimônio nem a atenção dos pais. Miro engessava o irmão onde,
quando e com quem quer que fosse. Como aconteceu no passeio por
várias vezes Martins se quer tomava conhecimento das articulações
nocivas de Miro em relação a ele. E quando estas coisas chegavam ao
conhecimento de Martins, os dois irmãos travavam confrontos épicos e
extremamente violentos. Miro não entendia a razão deste ódio pelo
irmão. Com a idade os confrontos se tornaram mais esporádicos e os
atritos verbais mais freqüentes, ofensivos e articulados.

Em ocasiões de visitas os irmãos davam uma trégua. Não se dirigia a


palavra, pois nunca houve dialogo entre eles, só confronto, porém
coabitavam os mesmos espaços sem se estranharem quando a casa havia
visitas.

O único temor real de Miro em relação à corte que pretendia fazer a


Lara era a concorrência dos mancebos da capital. A estes inimigos
prováveis ele combatia mostrando todo o seu tino de prospero
fazendeiro.
172
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Martins, no intuito de causar boa impressão e temendo ser taxado


de beato, propôs a seu pai que levasse os convidados para conhecer o
moinho de fubá e a represa da fazenda. Sr. Rodrigues, pai de Martins
ficou admirado com a proposta do filho. Ele imaginava que o rapaz ficaria
em seu quarto, ou acompanharia as mulheres em rezas ou até as
convidaria para visitar a capela. Mas não, pela primeira vez o filho se
interessava em falar de algo que fosse ligado a fazenda.

Para o passeio saíram Dona Sara, Senhor Rodrigues, os pais de Lara,


Senhor Arthur e Dona Marília, Adélia sogra de Arthur, seu cunhado Mauro
e Lara.

Para o espanto de Dona Sara e encanto de Sr. Rodrigues, Martins foi


o centro das atenções. O jovem se revelou um eloqüente anfitrião.
Apresentou a fazenda com grande conhecimento de causa, falou dos tipos
de solo que a fazenda possuía, das arvores e madeiras presentes na flora e
dos pássaros e outros animais da fauna local. Conversou com grande
conhecimento de causa a respeito dos tramites e rotinas da fazenda,
expôs sua opinião sobre logísticas e economia local com profundo
conhecimento de causa. Para não entediar as mulheres presentes, e para
aumentar ainda mais o encanto de Lara por ele o rapaz falou de seu gosto
por poesias, seu dom para flauta e piano, tão logo perguntado sugeriu
grandes obras literárias até então desconhecidas pelas mulheres
presentes.

Martins era um observador nato. Por anos viu o mundo de sua


janela, ou pelos corredores do seminário. Acatava as opiniões femininas
ou masculinas sem o preconceito da época. E ouvia muito, e lia mais
ainda, era um erudito, e aprendia sobre geografia quase que por osmose.
Martins era uma esponja de conhecimento, mas poucas vezes deixou
transparecer este lado.

173
Não por culpa dele, mas por ser vítima de um fanatismo
involuntário pelo obscuro e amante das solidões reflexivas. Martins sofria
de contradição profunda, mas Lara aparecera em sua vida o resgatando
das profundezas de si mesmo e trazendo-o a tona para uma realidade que
ele sentida profunda vontade de viver ao invés de questionar e refletir
como de costume.

Sr. Rodrigues olhou para Dona Sara e a simples troca de olhar entre
os dois já foi o bastante para que um adivinhasse o que o outro estava
pensando. Eles perceberam que Lara poderia vir a ser a mulher ideal para
o filho Martins. E não foram os únicos. Quando todos estavam
descansando a sombra de uma grande paineira, Sr. Arthur teceu um elogio
rasgado a Martins:

--- Se der uma caneta, uma folha de papel e empregados bons e


obedientes nas mãos deste seu filho, ele governa o mundo com um
simples gesto dentro de seu escritório.

O elogio encabulou Martins e ele olhou de relance para Lara que


respondeu com um mesmo olhar e um sorriso tímido, porém notável.
Todos perceberam a troca de olhares dos dois. Isto fez com que Lara e
Martins ficassem corados e ainda mais encabulados.

Sábia pela idade e experiência de vida A avó de Lara jogou em


forma de ordem um fragmento de proposta no ar:

--- Acho que nós mulheres devemos agora visitar a capela, deixar
que os cavalheiros visitem o lago, e mais tarde Arthur e Martins, creio eu,
tem assuntos em comum a se tratar.

Aquilo foi um Xeque mate. A avó de Lara tinha uma percepção


astuta dos interesses alheiros, e gostava muito de ajudar a resolver
questões humanas de forma prática e objetiva. Era uma Senhora ética e
verdadeiramente caridosa.

174
Toda a família a admirava e acatava suas decisões, pois nunca
intervinha sem ser solicitada, jamais advogava com os sentimentos alheio
em causa própria, e só intervinha na vida alheia quando tinha certeza de
estar ajudando.

Lara era quem mais amava a Avó. A caminho da igreja ela sabia e
contava com a ajuda da Avó para tocar no assunto e encaminhar as coisas.
Lara olhou para a Avó com um olhar de aprovação e a avó respondeu com
uma piscadela de olho.

A caminho do lago Martins continuou sendo o centro das atenções.


Divagou sobre a hipótese de haver pequenos veios de ouros na região do
Arabizá e a área leste de cristalina poder hipoteticamente ser propensa a
produzir cimento em larga escala. Tudo baseando em teorias, que embora
leves de embasamento fizesse certo sentido quando explicadas por
Martins.

Chegando ao lago, depois de admirar e elogiar o local, todos


fizeram um grande e constrangedor silêncio. Mauro até então calado fez
um esforço para evitar que tal silêncio se perpetuasse. Mauro deu um
suspiro contemplativo e fez um comentário avulso no intuito de
impulsionar novamente a prosa dos cavalheiros:

--- A beleza deste lago deve ser ainda maior sobre a luz do luar.

Embora os olhos de Mauro tivessem perdidos no horizonte, ao


pronunciar esta frase Martins teve a impressão que ele estava dirigindo o
dialogo diretamente a ele.

O ato de Mauro teve resultado. Sr. Rodrigues começou a narrar às


memoráveis noites em que passou pescando no lago, e um assunto foi
migrando para outro até chegar às lendas do Arabizá.

Novamente as atenções voltaram-se para Martins. O garoto contou


com riqueza de detalhes todas as lendas e causos daquela região.

Sr. Rodrigues deixou bem claro seu ceticismo em relação aquele


assunto. Este era o ponto de divergência ente ele e Arthur.

175
Já Arthur expôs de forma convicta sua opinião a respeito de não
apenas acreditar, mas também temer o que ele chamava de mistérios do
mundo.

--- Existe algum assunto que seu filho não domina Sr. Rodrigues?
Este menino é um gênio!

Arthur lançou esta pergunta com o intuito de desviar a prosa e


incluir novamente Martins na conversa.

Ao contrário de Mauro a intervenção de Arthur gerou um


inesperado e agradável evento.

--- Senhor Arthur! Eu gostaria de solicitar ao Senhor a permissão


para pedir a mão da sua filha em namoro!

Foi assim no impulso, seco e de forma ingênua que Martins expôs


suas intenções para com Lara.

Sr. Rodrigues, embora por dentro estivesse morrendo de orgulho e


felicidade, olhou para Martins de forma repreensiva.

Abreviando um futuro silêncio constrangedor Sr. Arthur novamente


interveio. Cabia a ele dar o veredicto final deste desfecho:

--- Sr. Martins! Seria uma grande honra para eu ter como genro o
filho do meu melhor amigo. Da minha parte e creio eu que da parte de
toda a nossa família você tem o nosso consentimento. Porém para que
isto se torne possível eu acredito que o rapaz terá uma simples condição.

--- Condição? E qual seria esta condição Senhor Arthur?

--- A condição, jovem Martins, é que para namorar a minha filha o


mocinho precisará pedir a ela. Se ela consentir você tem o meu
consentimento também.

Sr. Rodrigues sentiu um grande alívio. Temia que este gesto


repentino, e impulsivo que o filho teve criasse um grande desconforto
entre os dois amigos e as duas famílias.

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--- Não se preocupe Rodrigues! Disse Arthur prevendo os
pensamentos do amigo. --- Assim eu em minha juventude fosse tão
decidido e espontâneo quanto nossos filhos hoje o são. A vida é curta não
há tempo pra muitas voltas.

Dito isto Senhor Arthur abraçou o futuro genro e sorriu para o


amigo com ares de aprovação. Rodrigues, embora não aprovasse o modo
com que o filho fez a abordagem, alegrou-se com as palavras acolhedoras
de Arthur e celebrou por dentro o novo casal que se formava no seio de
sua família.

Após o evento todos se recolheram a fazenda onde mais tarde


haveria um grande jantar para as duas famílias.

-------------------------------

O som dos talheres denunciava o clima alegre em que o jantar


encontrava. Tilintar de pratos, taças e garfos tudo era som. Conversas
paralelas e risos fartos fluíam ao sabor de temperos nativos, carnes
suculentas, vinhos raros, sucos exóticos, pratos típicos e muitos sorrisos e
olhares enigmáticos.

Até os irmãos de Lara já haviam percebido que no ar pairava


alguma coisa que transcendia uma simples confraternização entre duas
famílias.

Os olhares circulavam entre as pessoas mais que os pratos de molho


que circulam de mão em mão. Sorrisos tão expressivos que dispensavam o
ato das palavras e se manifestavam feito flash que após darem seus
recados voltavam a se desmanchar em tímidas feições.

Miro e Martins estavam no garbo de suas vestias. Martins trazia


sempre o cabelo impecavelmente penteado. Aprendera todos os
traquejos de se vestir bem no seminário. Usava as roupas mais novas e
trajava-se de forma a equilibrar-se entre o discreto e o elegante.

As vestias de Miro também eram novas, porém ele trajava sempre


um estilo rural.
177
Exibia com orgulho a bota grande e impecavelmente lustrada.
Sempre trajava calças e camisas compridas e quando no campo usava um
grande chapéu. Muito vaidoso ele também não gostava de se queimar ao
sol.

Os dois irmãos preservavam além da semelhança fisionômica o


mesmo tom de pele. Para quebrar a semelhança Miro passou a raspar
sempre o cabelo deixando-o bem curto. Isto evitava indesejadas
comparações.

Não fosse pelo recente corte de cabelo diferentemente ninguém


além dos pais conseguiriam distinguir os irmãos.

O modo extrovertido de Miro não permitiu que as pessoas


notassem o seu interesse por Lara.

Miro flertava olhares a jovem moça, e esta retribuía com um sorriso


desconcertado e constrangido. Isto no universo mental de Miro era
interpretado erroneamente por correspondido. Em seu intimo Miro
acreditava que tudo estava encaminhado. Planejava ir aos poucos
demonstrando seu interesse pela moça até que todos percebessem e
colaborasse com ele na empreitada de fazer a corte a Lara. Seu plano teve
início no passeio a cavalo com os irmãos de Lara. Ele planejava dar
continuidade ao projeto hoje à noite marcando presença cativa ao lado da
Moça e conquistando o apreço dos futuros sogros exibindo-se como de
costume. Calculava que no prazo de três dias já poderia comunicar ao pai
de Lara sua intenção e no quarto dia faria o convite à moça.

Mergulhado neste pensamento Miro sorriu vitoriosamente em


silêncio e lançou um olhar perdido para o afresco no teto da sala.

Dona Sara levantou-se repentinamente e dirigiu-se para a criada


dizendo:

--- Vou lhe ajudar a recolher os talheres!

Imediatamente a mãe de Lara levantou-se oferecendo para ajudá-


la. Lara quis acompanhar a mãe, mas a avó que estava ao lado segurou
em seus braços puxando-a de volta a cadeira.

178
--- Fique sentada aqui querida!

Adélia havia entendido a intenção dos movimentos planejados de


Sara e Marília.

Só Martins não estava entendendo nada. Sua existência se resumia


em trocar olhares e sorrisos contemplativos com Lara e aguardar o
momento em que todos se dirigissem a sala de musica. Decidira fazer o
convite na sala de musica. Assim ganharia tempo e agiria de forma bem
planejada. Precisava vencer o medo. A primeira vez ele agiu por impulso,
temia por tudo a perder se agisse assim novamente. Não entendera até
agora como conseguira criar coragem e falar diretamente com o futuro
sogro daquela maneira. Martins sabia que era necessário fazer o convite,
mas só desconhecia à hora e o momento de fazê-lo. Tinha escolhido o
local agora só aguardava a coragem escolhe-lo novamente.

As Matriarcas voltaram da cozinha e sentaram-se a mesa já vazia de


talheres ao lado dos outros convidados.

Rapidamente as palavras viraram murmurinhos que foram


abaixando o volume até chegar a um quase silêncio. Arthur lançou um
olhar terno para Martins, Sr. Rodrigues contra atacou enviando para o
filho uma expressão firme de aprovação. As mulheres, seguiram os
homens virando seus olhares também para Martins, no mesmo segundo
os irmão de Lara e Mauro olhavam para o garoto também.

Martins levantou-se rapidamente, de súbito uma tremedeira quis


tomar conta do seu corpo, as mãos suavam, o coração batia tão forte,
Martins chegou a pensar que todos estavam ouvindo as batidas do
coração dele. Ia cair em descontrole, mas uma força maior tomou conta
de sua coluna e ergueu sua cabeça a cima dos olhares curiosos.

Quando viu o irmão de pé bem aprumado em sua frente Miro logo


pensou:

--- Este idiota vai se declarar Padre! Tomara que seja isto,
finalmente o maldito vai voltar para o seminário e me deixar em paz com
minha fazenda! Tomara que se forme e vá ser padre nos quintos dos
infernos!
179
Os pensamentos de Miro foram interrompidos quando Martins
começou a falar:

--- Boa noite a todos! Acredito que as mulheres desta casa já


conversaram entre si a respeito do assunto que vou expor. Digo isto
porque da parte de meu pai, do senhor Mauro e principalmente do
Senhor Arthur já falamos sobre o assunto e já me foi dada a permissão.
Agora só me resta dirigir-me a Senhorita Lara e pedir-lhe.... Senhorita Lara
gostaria de pedir sua mão em namoro. Seria uma grande felicidade se me
concedesse esta honra!

Um sim sussurrado partiu dos lábios da Lara e atravessou a mesa


instalando-se no ouvido e nas lembranças de Martins para sempre. Logo
em seguida palmas, risos, abraços, e outros festejos tomaram conta da
mesa.

Miro ficou estarrecido. Nem em seus piores pesadelos ele


conseguia criar uma cena desta proporção.

A família dirigiu-se as salas da casa, tomaram um farto café e


depois seguiram para a sala de musica. Martins e Lara fizeram um dueto
ao piano, recitaram poesia, e depois uma longa e alegre prosa tomou
conta da noite. O jovem casal namorava seguindo a risca os costumes da
época. Sempre sobre os olhares atentos dos pais e cunhados.

Tão logo foi possível Miro pediu licença aos convidados e se


recolheu em seu quarto alegando forte enxaqueca. Ao chegar no quarto
pulou a janela desceu pelo caramanchão e correu desesperado rumo a
represa.

Diante da margem Miro pulou dentro da água. Voltando do


mergulho ele deixou o sentimento aflorar, chorava compulsivamente, se
debatia, mergulhava e voltava à margem. Precisava extravasar e
principalmente gritar, gritar muito. Como não poderia esbravejar em casa
como de costume ao se submergir ele berrava agonizantemente
blasfêmias contra o irmão e o resto do mundo:

--- Inferno! Maldita seja esta copia barata que Deus enviou para me
castigar! A Lara é minha! Ela é minha mulher! Minha!
180
Este projeto de padre não vai tomar o que é meu! Nunca, nunca,
jamais vou dividir o meu patrimônio com aquele reflexo demoníaco. Tudo
é meu, só meu.

Gritando debaixo da água ele podia dar vazão sem ser ouvido. Miro
estava ferido principalmente no orgulho. Jamais ele perderia alguma coisa
para Martins. E passado o episódio ele retornou ao quarto, começou a
esboçar idéias e estratégias para afanar o irmão.

-------------------------------

O tempo passou. As coisas seguiram o rumo da normalidade. O


namoro começara a ganhar corpo. Hora Lara vinha visitar Martins na
fazenda acompanhada da avó e do tio Mauro e outras vezes Martins
viajava para São Paulo e dormia na casa de Arthur. Ele dividia o quarto
com Mauro. Neste período despontou uma grande amizade entre Mauro
e Martins.

Havia muito gosto em comum entre Mauro e Martins. O prazer pela


leitura, o interesse espontâneo pela ciência, o comportamento intimista
dos dois. Martins finalmente encontrara um companheiro a altura para
lhe acompanha nas partidas de Xadrez. Martins se sentia a vontade para
conversar qualquer assunto com Mauro. Um dia quando estava
hospedado na casa de Arthur, Martins recolheu-se mais cedo no quarto
que dividia com Mauro. Logo em seguida Mauro chegou da rua e também
se dirigiu ao quarto para se recolher.

O sono faltou para os dois, e a solução que eles sempre


encontravam nestas ocasiões era conversar. E neste dia foi uma conversa
que quase varou a noite. Martins aproveitou para se abrir com Mauro e
contar todas as coisas que lhe afligiam a despeito de sua vida espiritual.

--- O que vou lhe contar Mauro certamente mudará o curso de


nossa amizade podendo até rompê-la. Nunca, nem sobre segredo de
confissão, com os padres do Seminário eu me abri com alguém igual o
farei neste momento com você! Preciso porque estou apaixonado por Lara
e em breve também me abrirei com ela. Eu a amo tanto que não quero
segredos ou mentiras escondidos nas frestas do nosso relacionamento.

181
--- Fique sabendo Martins, que o simples fato de querer contar a
verdade já depõe a seu favor seja lá o que quer dizer. Não se preocupe
com o seu passado. Todos nos trazemos no corpo e na alma cicatrizes da
vida. Você é jovem, ainda atribui muito valor a opinião alheia e maximiza
coisas que em sua realidade são bem mais comuns do que se imagina.
Também não se engane com Lara, por trás de toda aquela beleza e
aparente fragilidade está uma coluna de inteligência, força, firmeza de
caráter e maturidade precoce. No mais o que conta no relacionamento é o
tempo dos dois e não o passado dos mesmos.

Foi um alivio para Martins ouvir estas palavras. Mauro ainda


reforçou sua opinião dizendo que ele poderia agir conforme o seu livre
arbítrio escolhendo-o contar ou se calar.

--- Seja qual for a sua decisão Martins ela não interferirá em nossa
amizade e tão pouco atrapalhará seu namoro com Lara. Isto eu lhe
garanto. Este é um juramento que lhe faço.

Martins confiou em Mauro. Contou-lhe tudo. Falou do sentimento


de ódio que nutria pelo irmão. Explicou-lhe que este ódio vinha de
entranhas desconhecidas de sua alma, pois não encontrava em sua razão
explicações para justificar o ódio.

--- A simples idéia da presença dele já desperta em mim uma ira


incontrolável pelo meu irmão. Constantemente desejo sua morte, já
imaginei acidentes com cobras pra ele, e diversas ocasiões que criei, em
minha mente, onde ele perdia a vida. Não sinto nenhum remoço quando
ele adoece ou viaja sem dar satisfação. Não tenho saudades quando está
distante. E sempre que levo vantagens sobre ele isto muito me alegra.
Quando criança sonhava ser filho único. Brigamos muito.

Mas lhe confesso que por muitas vezes tentei entender o porquê de
tanto ódio gratuito que estranhamente temos um pelo outro. Ele me dá
motivos, pois me provoca muito. É mais forte que eu e sempre que
brigamo-lo termina por me agredir fisicamente.
182
Mas este ódio tem um núcleo maior. E este núcleo é um mistério
pra mim. Desculpa mas não sei transpor em palavras tudo que quero
dizer.

--- Mas eu o compreendo Martins. Certamente você já bateu ou


apanhou de algum amiguinho quando era criança, irmãos também se
estranham às vezes, brigamos e temos atritos ao longo da vida, mas
sempre conseguimos resolver as coisas e continuar o relacionamento. Pra
isto que serve o perdão.

--- É exatamente isto que estou tentando lhe dizer Mauro. Com
Miro a coisa transcende o fato de ser apenas um atrito cotidiano e comum
que temos ao longo da vida e que corrigimos em curtos períodos de
tempo. Com Miro eu não consigo perdoar, eu não consigo amar, eu
simplesmente o odeio gratuitamente, espontaneamente, mesmo que ele
tenha boas atitudes e gestos de apreço por mim ou pela família ainda sim
eu o odeio. Não consigo controlar e o que agrava esta situação é o fato
dele também nutrir o mesmo ódio por mim.

Martins procurou explicar o máximo que pode o ódio que um irmão


sentia pelo outro. Quanto mais se abria com Mauro maior era seu
sentimento de alivio e bem estar.

Logo em seguida Martins contou a Mauro suas buscas espirituais e


experiências frustradas. Falou da sua fase ateísta, do período em que
procurou videntes, místicos e benzedores tentando descobrir ou
manipular o futuro. Contou das conversas com os padres a respeito da fé
e do interesse em exorcismos. Também expôs as experiências frustradas
de tentar fazer pacto com demônios, das leituras de extensos tratados de
magia e ocultismo, dos rituais, simpatias e diversos livros que leu desta
natureza.

Ao terminar de contar Martins sentiu um pouco de receio e


arrependimento, pois temia que Mauro o visse como um fanático, maluco
ou coisas desta natureza.

183
Mas toda vês que olhava para Mauro, Martins encontrava em sua
face um olhar de atenção e respeito. Mauro o ouvia sem critica ou se quer
esboçava expressão de julgamento.

Quando Martins terminou de falar, Mauro sentiu que chegara à


hora de começar a ajudar seu amigo. Então ele começou:

--- Mesmo que você não tenha me contando eu sei que procura
nestes caminhos e nestas experiências algo que deveria estar dentro de
você e que você de alguma forma não consegue ir de encontro a este.
Aposto que no início entrou por curiosidade no intuído de ver fenômenos
que provassem a existência de outras vidas. Como não encontrou nos
caminhos ortodoxos de sua religião saiu em busca de outros que se diziam
detentores destes conhecimentos. Caiu nas mãos de vários charlatões e
de poucas pessoas bem intencionadas, creio eu, mas ninguém pode lhe
dar o que você estava procurando. Logo em seguida veio o fascínio pelo
obscuro. Sim, os pactos, as promessas de riqueza a troco de sua alma
imortal. Isto deve ter despertado em você o mesmo fascínio que temos ao
depararmos com um abismo.

Logo em seguida o ateísmo veio do desgaste oriundo da constante


busca sem sucesso. Mas apesar do cansaço e da crescente descrença
ainda sim uma força maior o levava a continuar trilhando estes caminhos.
Inteligente como você é Martins já percebera que todas as pessoas
possuem algo que você acredita não possuir, e que paradoxalmente
também tem a sensação de já ter possuído e se beneficiado disto em
outras situações estranhas a sua compreensão.

--- Meu Deus Mauro! Estou impressionado como me compreende e


a forma pela qual interpreta este meus anseios. Temia que me julgasse
como louco, pois até eu em certos momentos de minha vida achei que iria
enlouquecer por agir da maneira com que agi.

--- Não pense assim Martins. Você é um jovem inteligente. Foi muito
esperto em viver e experimentar os caminhos, pois ninguém chega a lugar
algum deixando as coisas apenas no campo mental. Seu erro foi caminhar
sozinho e não ter encontrado pessoas verdadeiramente esclarecidas a
ponto de orientá-lo melhor.
184
E as pessoas esclarecidas que encontrou certamente você temeu
se expor e ser mal interpretado. Pois qualquer Padre do Seminário
conseguiria lhe ajudar se você se abrisse melhor com eles.

--- Verdade Mauro eu deveria ter me aberto mais com o Padre...

--- Sim teria evitado os pactos, e toda a trajetória desnecessária de


certos caminhos. Porém o que você procura está dentro de você!

--- Está falando da minha fé?

--- Não Martins, estou falando da sua mediunidade.

--- Mediunidade? O que é isto?

--- Isto é aquela coisa que você procura nesta vida.

Martins estava encantado com a precisão que Mauro interpretava


seus sentimentos, pensamentos e anseios. Mauro o definira e o
compreendera como ninguém havia feito antes. O mais importante era
que Mauro não o julgara. Não o criticara e nem o condenava a nada.

Mas o que Martins não sabia era que ele estava fazendo mais bem
a Mauro do que Mauro a ele.

Por anos Mauro e Sua falecida esposa descobriram a Doutrina


Espírita. Mauro teve caxumba na infância e por este motivo não pode ter
filhos. Mas isto não era problema para o casal. Um era a família do outro.
Só nos primeiros anos, induzidos por cobranças sociais da época, o casal
partiu em uma empreitada tentando uma solução para a infertilidade de
Mauro. Começaram a procurar por médicos especialistas, depois vieram
às viagens e tão logo os resultados não foram surgindo à busca migrou
para benzedores, místicos, e outros, que levaram o casal a cartomante
Estela. Estela era uma Cartomante estereotipada como todas as outras
cartomantes da época eram. Tinha uma sala com bola de cristal, incensos,
imagens de santos e aparatos. Porém Estela era diferente em seu
atendimento. Não cobrava as consultas, apenas deixava a amostra uma
vasilha com moedas.

185
Quem quisesse pagar doava espontaneamente o que quisesse e
tudo bem, quem não quisesse era atendido por Estela com o mesmo
carinho e atenção. Outra característica era que Estela não previa o
passado e tão pouco fazia previsões genéricas a respeito de um futuro.

Ela simplesmente abria o baralho, ficava em um profundo silêncio e


depois prescrevia o tratamento espiritual que a pessoa estivesse
necessitando. Estela deixava bem claro antes de suas consultas que não
praticava o mal a ninguém, não interferia no livre arbítrio das pessoas, não
usava seu dom para investigar ou fuxicar a vida alheia a interesse de
terceiros. Também deixava bem claro que tinha um dom para ver a alma e
a vida da pessoa e só poderia ajudar a pessoa se esta se ajudasse e se o
problema fosse de natureza espiritual.

Esta fama afastava curiosos e interesseiros da sala de Estela. Estela


também usava seu dom para diagnosticar doenças que os médicos não
conseguiam detectar. Quando isto acontecia solicitava que a pessoa
procurasse um médico especialista na área que ela previu a doença.
Estela também dava passes, e auxiliava as pessoas com orações e
procedimentos para melhorar as suas freqüências vibratórias e com isto
tornarem-se menos susceptíveis a espíritos de esferas menos evoluídas.
Ela sempre frisava as pessoas que era preciso não apenas detectar a
doença e tratar o corpo, mas compreender as razões por trás das
moléstias que tanto afligiam o corpo e a alma das pessoas.

Quando o casal entrou na sala de Estela ela abriu o baralho. Olhou


para Mauro e falou do seu dom:

--- O moço vê vultos brancos e vultos negros, sonha com lugares e


pessoas, às vezes visita casas que não tem a forma das casas deste
mundo. O Moço tem um dom. Precisa trabalhar ele.

Estela foi direta. Disse que Mauro sabia o motivo pelo qual não
poderia ter filhos. Ela orou pelo casal e indicou um lugar onde as pessoas
poderiam ajudá-lo.

186
Mauro foi a este lugar acompanhado de sua esposa. Era um amigo
de estela, e foi este amigo que falou para o casal visitar um Centro
Espírita. O casal acatou a solicitação e procurou um Centro indicado pelo
amigo do casal. Mauro e sua esposa visitaram o Centro. Gostaram e
passaram a freqüentar. Conheceram tudo que foi preciso a respeito das
leis de causa e efeito, karmas, a importância de orar e vigiar, de praticar a
caridade, e estar sempre estudando e buscando evoluir.

A mediunidade de Mauro se aprimorava à medida que ele


freqüentava as reuniões. Assim ele visitou as vidas passadas onde
compreendeu o motivo pelo qual escolhera não ter filhos para se ressarcir
de dividas antigas. Mas nesta vida Mauro também encontrou sua
companheira de longa data. Os dois puderam evoluir juntos e
experimentar as bênçãos de viver um amor verdadeiro e atemporal.

A perda da companheira de jornada foi menos sofrida devido ao


fato de Mauro compreender que a vida segue em outros planos e que o
corpo físico é a única coisa que morre.

Por anos sua esposa o visitou em sonhos mediúnicos e ele sempre


acordava destes sonhos com uma grande paz e alegria.

Mauro não nutria pela amada saudades mórbidas ou sentimentos


de apego pela historia que viveram. Mauro doou tudo que foi da amada,
guardou só as felicidades e boas lembranças, estas eram suas orações.
Seguiu a vida em frente dedicando-se mais ainda nas coisas salutares da
vida e nos estudos da doutrina. Muito leu, muito viajou, e muito fez pelo
próximo sempre auxiliado pelos seus amigos de luz e usando sua
mediunidade a favor do próximo.

Em um sonho mediúnico Mauro se encontrou com sua esposa. O


local era um belo jardim contornado por uma linda fonte. Sua esposa
vestia-se de forma simples, era um vestido leve que balançava ao sabor do
vendo. Tão simples e tão rodeada por uma aura de luz que Mauro foi
possuído por uma felicidade até então não experimentada por ele. Neste
sonho ela lhe disse que ia fazer uma grande viagem. Que não o visitaria
mais em sonhos nesta vida. Porém pediu para que ele ficasse calmo,
conservasse a paz interior que muito lutou para conquistar.
187
Avisou-lhe que tinha pela frente uma bela missão e muito breve ele
encontraria alguém que necessitaria muito da sua ajuda. Alguém que em
outra vida foi filho de Mauro. Uma criança que Mauro abandonou ainda
no colo da mãe para seguir livre vivendo uma vida de golpes, pequenos
delitos, e muitos prazeres carnais.

No dia que teve este sonho Mauro acordou com uma intensa
sensação de felicidade. Muito refletiu sobre o ocorrido e logo em seguida
fez uma bela oração espontânea agradecendo a Deus pela oportunidade
de ajudar no presente alguém que ele feriu em outra vida.

-----------------------------------

Martins agora tinha dois motivos para visitar a Cidade de São Paulo.
O principal era Lara e sua outra motivação era o Centro Espírita. Sempre
na companhia de seu amigo Mauro, o rapaz encontrou na doutrina um
caminho certo para ter todas as respostas que a muito buscou em outros
caminhos e tão pouco encontrou. Graças a mediunidade de Mauro ele
compreendeu as razões reais do ódio inexplicável que sentia pelo irmão e
que era correspondido pelo irmão na mesma freqüência. Martins
entendeu que em outra vida fora possuidor de um aguçado dom
mediúnico e por não compreender a natureza de seu dom deixou-se
manipular por espíritos obsediadores. Impulsionado por estas razões ele
acorrentou seu irmão Miro, que na época era seu escravo dentro de uma
caverna deixando-o lá para morrer.

Revoltado com o desencarne precoce o escravo manipulou as coisas


para Martins, que atendia pelo nome de Zé na época, morresse afogado.
Quando houve o desabamento da casa de Zé, tão logo tudo ocorreu
rapidamente o escravo moveu os escombros na direção de Zé provocando
o afogamento do mesmo.

Por anos Zé experimentara úmbrias e furnas sofrendo nas mãos de


seus obsediadores. Com muita ajuda de companheiros e constantes
orações de sua mãe ele consegui ir para uma colônia. Porém não
conseguiam ficar em paz com sigo mesmo e tão pouco perdoara
totalmente o escravo culpando-o por sua Morte.

188
Do outro lado o escravo não compreendeu o desencarne e tão
pouco aceitou a própria morte. Jamais perdoara Zé. Ficou perambulando
próximo ao seu corpo pelas bandas do Morro do Curió. Com o passar do
tempo seu ódio o levou a loucura e nem seu pai já desencarnado nem
outros entes conseguiram ajudá-lo.

Um dia uma forte chuva provocou um grande desmoronamento de


terra no córrego, blocos de terra abalaram a estrutura da caverna e ela
desmoronou de vez vinda a sumir debaixo de grandes toneladas de terra.
Seu esqueleto apodreceu ao contato constante com a terra úmida, as
correntes enferrujaram até virar pó e a natureza deu um novo contorno
ao córrego encobrindo para sempre a caverna e mudando toda a
paisagem no entorno do riacho próximo ao Morro do Curió.

Claro que Martins custou a acreditar e aceitar as coisas que Mauro


lhe contou. No início ele questionava muito. Chegava a duvidar e nem
sempre encontrava abrigo nos ensinamentos. Mas aos poucos Martins foi
entendendo as coisas e percebendo que quanto mais ele buscava
conhecimento mais ele encontrava respostas.

Martins finalmente compreendera o porquê sua mediunidade era


tão pouco evoluída. Por mais que a razão e a sua grande facilidade para
compreender as coisas o levassem a acreditar, mesmo assim ele não
conseguia desenvolver sua mediunidade. Ele participou de várias reuniões
mediúnicas acompanhado de Mauro, visitou outros Centros, conheceu
pessoas com dons espetaculares. Tudo isto serviu muito para reforçar a fé
de Martins na Doutrina, porém ele não sentida dentro de si brotar nada
de natureza mediúnica. Mesmo assim Martins continuava na doutrina
porque ela alimentava sempre a sua cede de conhecimento e nutria seu
espírito curioso.

Certa passagem Martins comentou com Mauro:

--- Meu caro amigo, tudo que sei a respeito do meu Karma e da
minha vida passada veio até mim através da sua mediunidade.

189
Foi você quem me contou o Zé do Pacto, do meu passado no
Arabizá, e todas as outras coisas que tanto conversamos antes. Muito vi,
estudei, e constatei na Doutrina. É inegável que a Doutrina tirou minha
agonia interior em relação à vida espiritual. Hoje eu sinto que estou no
caminho certo. Não sei explicar apenas sinto e tenho uma grande paz
interior quando caminho nesta direção. Ainda não tenho forças para
amar, compreender e perdoar meu irmão. É mais forte que eu, quando
nos encontramos inevitavelmente discutimos ou nos estranhamos. Porém
até isto eu tenho notado que mudou. Como não consigo lidar com este
problema eu o evito o máximo que posso. Antes eu iria para o confronto
acreditando ser corajoso, mas hoje sei que afastar não é fugir.

--- Martins meu amigo! Há tempos que conversamos já lhe falei


sobre meu dom. Às vezes vejo vultos sombrios outros vultos claros, quase
luminosos. A primeira vez que vi você e seu irmão senti muitos calafrios.
Sempre via vultos sinistros trançar próximo aos dois.

--- É isto que estou tentando lhe dizer. Muito estudei a doutrina,
tudo que vi e experimentei, não compreendo porque até hoje apesar de
acreditar verdadeiramente na vida após o desencarne, eu não consigo
sentir ou ver nada de natureza mediúnica?

--- Não sente Martins, não por castigo, incapacidade ou descrença.


Você não sente porque você mesmo fez esta escolha ainda na colônia.

Mauro tivera um sonho mediúnico, e nele conversara com seu


mentor espiritual. Seu mentor disse que em breve Martins o procuraria
para saber sobre o Karma que carregava nesta vida. Mauro pouco podia
falar sobre este assunto, pois Martins teria de descobrir sozinho e tomar
decisões movidas pela própria razão sem interferência de ninguém.

Até agora a doutrina e o auxilio de Mauro era no intuito de resgatar


a fé de Martins que sem a ajuda de Mauro poderia migrar para os campos
da loucura ou do fanatismo. Quando fora o Zé do pacto, estava
acostumado a desfrutar de seus dons mediúnicos de forma egoísta e
inconseqüente. Estava tão acostumado a este dom que achava merecedor
do mesmo e que este nunca ia lhe faltar. E poderia ser usado da forma
que bem entendesse.
190
Como Martins ele trazia esta carência. Sentia falta de algo que não
conseguia explicar o que era. Mal sabia ele que este algo, era seu dom
mediúnico que atrofiou devido ao mal uso em outras vidas. Por isto
Martins mesmo sem sucesso migrava para o campo espiritual. Sua alma
estava acostumada a resolver as coisas desta forma.

Agora Martins tinha outra missão nesta vida. Ele teria de provar ser
merecedor deste dom que um dia teve e não soube usufruir
adequadamente. Por isto ele não se manifestava nesta vida. Nesta vida
Martins teria de aprender a lidar apenas com as realidades terrenas. Sua
fé viria da observação e dos estudos, mas nele nada se manifestaria. Se
ele quisesse extrair algo da vida, teria de buscar na própria vida. Teria de
observar tudo ao seu redor e aprender a lidar com a realidade e com o
tempo presente. Este era um de seus Karmas, e este Karma foi escolhido
pelo próprio Martins antes de encarnar.

Foi Mauro que explicou isto a Martins:

--- Olha meu amigo, muito sei a respeito de sua vida e de seu irmão.
Mas pouco posso intervir sobre este assunto. Não conto e não vejo o que
quero. Conto e vejo o que precisa ser visto e o que precisa ser contato. O
que eu posso lhe dizer amigo Martins é que um dia em um plano mais
evoluído que esta terra que aqui estamos você mesmo optou por não
possuir mediunidade aguçada para fenômenos.

--- Mas porque eu escolheria isto Mauro, se justamente o contrário


me faria acreditar rapidamente na doutrina?

--- Lembra do Zé do Pacto? Ele contatava estes fenômenos com


grande facilidade. E o que ele fez? Encontrou a doutrina?

--- Não, ele virou alcoólatra, maluco, e usou indevidamente seu


dom.

--- Você esqueceu-se de dizer que ele deixou de usar a cabeça.


Todos têm mediunidade, principalmente no campo da razão. Em outra
vida você pouco usou a razão, deixou-se guiar por desejos e sentimentos
obscenos.

191
--- “O teu povo comeu maná e morreu”

--- Isto mesmo Martins, um dos principais motivos da sua


encarnação nesta vida foi esta escolha sabia que você fez. Afinal se você
encarnasse do mesmo jeito que o Zé deixou este plano, de que valeria
encarnar? O que você aprenderia?

--- Falando assim Mauro sinto que minha encarnação como Zé do


Pacto servil apenas para retroceder minha evolução.

--- Muito pelo contrário, primeiro que você estava em um lugar


ainda pior quando encarnou como Zé. Segundo que você necessitava viver
as experiências que viveram, para ter hoje o discernimento que tem. Olha
a frase que você falou sobre o maná. Você percebe que não basta ver
fenômenos. Sem razão, sem discernimento, sem coerência de nada vale
os fenômenos. É como dar dinheiro a louco.

--- Então você está tentando me dizer que a minha mediunidade


não se manifesta no campo da intuição, e nem abre mão do meu corpo
pra se manifestar através da audição, visão e outros sentidos?

--- Sim Mauro você compreendeu perfeitamente. Não que você não
possua estas faculdades. Todos nos podemos desenvolver a mediunidade
seja como for. Porém cada pessoa tem um lado mais desenvolvido. Há
pessoas que vêem, outras ouve, outra psicografam, algumas pintam etc...
Um médium que psicografa tem este dom mais aguçado, porém ele pode
não ver nada, ou também vir a ver, ou pode simplesmente começar a
desenvolver outras faculdades mediúnicas a partir do momento que
trabalhar alguma.

--- O que você está tentando-me dizer é que assim como acontece
com a vocação profissional eu tenho de começar por onde a minha
mediunidade melhor se manifesta?

--- Exatamente agindo assim terá mais prazer, servirá melhor ao seu
propósito evolutivo e ao próximo.

--- Novamente você está certo, pois nada me dá mais prazer do que
entender e aprender sobre as coisas.

192
--- E quem disse que a razão não pode ser um forte instrumento
mediúnico? As idéias, as formas diversas de pensamentos, as inspirações,
as conclusões que tira de tudo isto, tem certeza que são todos de sua
autoria?

--- Por diversas vezes me espanto comigo mesmo e com as coisas


que se passam em meu raciocínio. Tem idéias e atitudes que saem da
minha cabeça que não parecem vindas de mim.

Martins finalmente compreendera a natureza e o propósito de sua


mediunidade. Pacientemente Mauro sempre lhe explicava tudo.

Martins entendera de uma vez por todas que precisava evoluir


buscando a razão e a explicação das coisas, e não apenas experimentando
fenômenos. Esta fora a escolha sabia que fizera ao reencarnar. De outra
forma corria sério risco de usar sua mediunidade para servir aos
propósitos do ego.

***************

12 - O noivado
Já se passara um ano e meio de namoro entre Martins e Lara. Neste
tempo Miro sofrera uma verdadeira metamorfose no comportamento.
Tornou-se mais arredio, passou a sair todas as noites com alguns
capatazes da fazenda para bailes, festas, bordeis e todo tipo de atividade
noturna desta natureza. Começou e terminou dois namoros com moças
da região, passou a beber, jogar, e perder animais em apostas.

O pai o destituíra do posto de administrador da fazenda. Isto gerou


muitos conflitos familiares entre pai e filho. Miro também entrava
constantemente em conflito com a mãe. Nunca partiu para agressão física
com ela ou com o pai, porém era ácido, cínico, e implicante com Sara:

Miro sempre abordava Sara na capela e lhe dirigia palavras de


natureza ofensiva e gratuita. Passou a não suportar a vida religiosa da
mãe. De certa forma isto o incomodava e despertava nele sentimentos
ruins.

193
O ódio por Martins também cresceu consideravelmente beirando a
cólera absoluta. Não suportava ver o irmão comprometido com Lara
vivendo um grande amor ao lado da mulher que ele não conseguia
esquecer. Este era seu principal problema. Miro estava cada vez mais
apaixonado por Lara. Não contou para ninguém seus sentimentos em
relação à moça. Sua família não suspeitara, atribuíam a mudança de Miro
a ciúmes, posse e inveja do irmão. Quer-se imaginaram sobre os
sentimentos que Miro nutria em relação a Lara. A cada dia Miro se
tornava pior com Martins. O irmão agora vivia em São Paulo,
praticamente se mudara para a casa do sogro. Martins arranjou emprego
como Administrador de uma das lojas de Arthur. Deu tão certo que tão
logo ele se casasse o sogro aposentaria deixando Martins administrar seus
negócios na capital. Isto perturbava Miro deixando-o ainda mais
atordoado. Ele não suportava ver o irmão prosperar no trabalho, no amor
e ainda receber do pai uma grande soma de dinheiro equivalente a
metade das terras e dos bens da família.

--- Não suporto ver este idiota receber um dote tão alto. Nem a
metade de uma vaca murcha ele merecia. Onde já se viu, desfalcar meu
patrimônio justo agora que perdi meu credito com papai e estou sem
dinheiro.

Miro pronunciou estas palavras em quanto caminhava na velha


estrada do Arabizá na garupa de seu cavalo favorito. Por perambular pelas
noites do Arabizá Miro chegou a ver alguns vultos, sentir alguns calafrios e
ouvir vozes sinistras sussurrarem seu nome. Fosse a outras épocas
morreria de medo e ficaria meses sem sair de casa ou só andaria
acompanhado. Porém grande era sua mudança, tanto que nem ligava para
estes fenômenos. Também já não se importava mais em dormir com a
porta do quarto fechado, e sempre que tinha algum problema sua boca
enchia-se de blasfêmias, palavrões e nomes de demônios.

O Miro amante da natureza, rapaz livre que adorava o dia, a


companhia do pai, as festas e afazeres da fazenda, e vivia sempre
brincando e sorrindo se foi. Também com este Miro se foi o medo e o
receio das coisas que considerava ser sobrenatural.

194
Quando Miro esgotou todos os recursos de seu raciocínio na
fracassada tentativa de conquistar Lara, abriu mão de seu receio e foi ter
com um benzedor próximo a Cristalina. Tratava-se de um homem solitário
e de idade avançada. Tinha uma péssima fama na região e era muito
temido. Os boatos a respeito dele eram os piores e mais variados
possíveis. Diziam que ele já sacrificou crianças para realizar rituais
macabros, que virava lobisomem na quaresma, que fazia poções para
envenenar pessoas, rogava pragas gratuitamente e tinha envolvimento
com forças do mal. Miro o procurou e imediatamente foi explorado por
ele. Grandes somas de dinheiro foram desperdiçadas em rituais que
sempre envolvia muitas velas, dinheiro, bebidas e sacrifícios de animais.
Sem perceber Miro se via cercado de um número cada vez maior de
obsediadores. Passou a roubar e vender mantimentos, e animais da
fazenda para investir nos rituais e intentos prescritos por este benzedor.

As amarrações e magias não conseguiram separar Lara de Martins e


tão pouco fez Lara notar a existência de Miro. O desespero tomara conta
de Miro. Ele visitava freqüentemente o benzedor e sempre levava
dinheiro e oferendas.Cada vez mais Miro se envolvia com o benzedor e
seus obsediadores. Começou a ouvir vozes e ver vultos com muito mais
freqüência que antes. Quanto mais Martins se afastara do irmão e
tentava vier à própria vida evitando conflito mais isto irritava Miro. Aos
poucos os obsediadores induziram Miro a querer se vingar do irmão. Foi
fácil aguçar o ódio do irmão o difícil era convencê-lo a dar cabo do
problema. Foi preciso elevar o ódio de Miro as raias da loucura. E isto o
benzedor e seus guias sinistros conseguiam fazer com grande destreza.
Miro tinha um canal aberto, pois a constante vida desregrada e afastada
de qualquer auxilio superior o fazia vibrar na mesma freqüência que seus
obsediadores.

O dia escolhido foi à véspera do noivado de Martins com Lara. A


família viajaria para São Paulo em um jantar formal na casa de Arthur.
Miro calculou tudo. Aproveitou que seu irmão voltara da capital sem a
companhia de Mauro e Lara.

195
Em um fim de semana que antecedia a véspera do noivado Miro
articulou seu plano.

Por volta de nove e meia da noite seu irmão costumava sair sozinho
para suas caminhadas noturnas no entorno da fazenda. Era uma quente
noite de verão e como de costume Martins saiu da casa para dar um
passeio rumo à represa.

A lua cheia clareava a estrada. Martins chegou até a represa e ficou


olhando o reflexo da lua no espelho d água deixando-se perder em
pensamentos contemplativos.

Martins sentiu uma forte dor na cabeça, logo em seguida vieram à


tontura, as vistas escureceram e Martins perdeu os sentidos entregando-
se ao desmaio.

Martins foi aos poucos retomando os sentidos. Tão logo acordou


percebeu que estava deitado dentro de um barco. Olhou para o irmão,
que também estava no barco sentado em um banco remando. Martins se
viu tomado de pânico. Logo compreendeu tudo ao seu redor. Viu cordas,
panos brancos, velas, um imenso facão e vários apetrechos. Seus estudos
serviram para ambientá-lo a respeito do que seu irmão estava fazendo.

--- É um ritual de magia negra! Meu irmão vai me sacrificar.

Após pensar isto Martins teve de se controlar muito para não deixar
que seu irmão percebesse que ele havia voltado do desmaio. Martins
permanecia imóvel no barco em quanto seu irmão Miro vangloriava em
voz alta seu plano ardiloso:

--- Finalmente esta peleja chegou ao fim. Este é o sacrifício final!


Diga-se de passagem, nem é tão sacrifício assim. Deveria ter feito isto há
anos. Mas as forças sabem o que faz...

Grande era o esforço de Martins para não tremer dentro do barco.


Um calafrio percorreu sua espinha de uma ponta a outra. Martins relutava
para manter a calma. Precisava pensar e agir rapidamente na primeira
oportunidade que tivesse. Em quanto isto Miro persistia em seu
monólogo obsessivo:

196
--- Um pacto com as trevas! Pacto de sangue. Eis aqui o sangue do
meu irmão! Nada agradará mais as trevas do que este sacrifício. Velas, a
folha com as invocações antigas, facão, punhal virgem, pedras para pesar
o corpo, panos brancos, tudo está aqui, agora é só remar esta porcaria de
barco até o sumidouro. Sim o maldito sumidouro debaixo destas águas
vai aceitar esta oferenda. Não há abismo mais perfeito que este, o corpo
vai descer direto para as profundezas do inferno! Esta pedra vai servir
para garantir isto. Agora é só remar o barco até o sumidouro.

Martins se via perdido em uma situação que se agravava cada vez


mais. Reconheceu o ritual que o irmão estava realizando. Era um pacto
que só poderia ser feito em um abismo ou sumidouro. Certamente seu
irmão estava levando-o para o sumidouro escondido debaixo das águas da
represa. Martins entreabriu um de seus olhos rapidamente e viu a luz da
lua. Calculou por alto as horas e sentiu que ainda faltava para meia noite.

Ao chegar sobre o sumidouro Miro começou a ascender velas na


borda do barco, em seguida preparou os panos e as cordas. Tão logo deu
meia noite Miro pegou uma folha com rituais e começou a ler. Foi quando
Miro estava bem concentrado lendo o ritual que Martins agiu.
Rapidamente pegou um remo do barco e deu com ele na cabeça do irmão.
Miro caiu desacordado no barco. Martins imediatamente o amarrou nas
cordas e panos, pois temia que o irmão acordasse. Sabia que Miro era
fisicamente mais forte que ele por isto precisava conte-lo.

--- Este maldito achou que tinha me matado, mas eu voltei para
tomar o que é meu por direito.

Sem perceber Martins nesta hora não estava mais sozinho. O ódio
que a muito cultivava pelo irmão veio à tona. Este ódio submergiu
atraindo para o campo vibratório de Martins todos os espíritos nocivos
que também acompanhavam Miro.

197
O plano de Martins era remar o barco de volta para margem, e sair
dele. Martins tinha a intenção de deixar o irmão amarrado dentro do
barco. Assim logo pela manhã algum capataz o localizaria, e o salvaria.
Certamente ele colocaria a culpa em Martins, mas ninguém acreditaria
nele e estas acusações pesariam ainda mais sobre Miro. Com isto Martins
acreditava em desmoralizar o irmão ganhando mais poder sobre o pai e as
propriedades da fazenda.

--- Tomara que ele sofra muito, vou sair daqui, deixarei seu corpo e
sua boca bem amarrados. Breve ele vai acordar, tomara que agonize
bastante este assassino maldito.

Mal terminou de concluir a frase e Miro recuperou a consciência


acordando com mais força e ira que de costume.

Miro começou a se debater fortemente dentro do barco em um


esforço sobre humano para se livrar das amarras. Deu um rápido
solavanco onde reuniu todas as suas forças. Ele sacudiu o corpo e fez o
barco balançar a ponto de querer virar. Martins agarrou-se firmemente
nas laterais do barco para não cair, pois não sabia nadar. O barco balançou
tanto que Miro teve seu corpo atirado para fora.

Logo o barco se estabilizou um pouco Martins correu para a


margem do barco onde pode ver seu irmão afundando nas águas da
represa. Foi agonizante ver o irmão afundar lentamente tentando sem
sucesso se livrar das cordas e panos.

Miro lançou um olhar de desespero para Martins, um olhar que o


acompanhava enquanto seu corpo submergia para as profundezas do
sumidouro. Martins ficou olhando para irmão até sua imagem sumir no
abismo, tão logo isto aconteceu à luz da lua trouxe a tona o seu próprio
reflexo sobre o espelho d água.

--- O que foi que eu fiz? Eu não queria fazer isto, meu Deus...
Martins sussurrava estas pequenas lamúrias em quanto seus olhos aos
pouco se tornavam rasos d água.

198
Em um repente Martins ergue-se sobre o barco ficando de pé.
Olhou a lua pela última vez. Inspirou e espirou profundamente trazendo
para dentro de si toda coragem que lhe fosse necessária para agir. Logo
em seguida fechou os olhos abandonando o equilíbrio de seu corpo.

--------------------------------

No dia seguinte acharam o barco e todos os apetrechos que nele


estavam. Os corpos foram encontrados boiando nas margens da represa
próxima a estrada.

A família procurou por um culpado, mas todos suspeitos tinham


álibis. Tão logo isto ocorreu tiveram que lidar com a triste realidade dos
fatos. Fora homicídio de um seguido de suicídio de outro. Esta foi à
dedução menos aceita pela família, porém os fatos pesavam sobre isto.

Dona Sara não aceitava este fato. Remoia tudo em sua mente a
procura de uma verdade menos dolorida de acreditar.

O Luto de Sara perdurou por toda sua vida. Ela se recolhera no


interior da fazenda Arabizá e nunca mais saiu. As portas e janelas viviam
fechadas. Sara passava a maior parte do tempo rezando ou recolhida em
seu quarto. Recebia poucas visitas, a mais freqüente era do Padre amigo
da família. Os anos foram seguindo e Sara fora aos poucos
enlouquecendo. Passou a acreditar que o ocorrido era obra do benzedor
de Cristalina. Acreditava que ele desaparecera magicamente depois de
matar seus filhos no barco em um ritual sinistro.

O Marido de Sara seguiu a vida em um constante estado de apatia.


Existia apenas por razões de acreditar que viver era única forma que
encontrará para se punir. Ele não aceitava o fato de ter perdido os dois
filhos de uma única vez. Mil motivos o torturavam, pois sua cabeça vivia
atordoada de culpas. Assim tocou a fazenda com estrema incompetência.
Foi aos poucos desfazendo de suas terras e benfeitorias, hora doando para
saldar dividas trabalhista, horas vendendo lotes de terra a preços bem
inferiores para comprar mantimentos e artigos fundamentais à existência.

199
Quando chegou o tardar dos anos. Os pais de Miro e Martins
concluíram seus dias em uma fazenda quase que abandonada. O
patrimônio do casal ficou reduzido à velha sede da fazenda. Tudo se
desfez ao longo dos anos. O gado, as plantações, o vigor da fazenda, às
horas alegres, nada mais restou. Perderam-se cada coisa uma por uma
feito grãos de areia a escorrer para o fundo de uma ampulheta.

O segundo andar da casa estava inabitável. A madeira do telhado


apodreceu e grandes eram as goteiras que assolava aquele pavimento em
dias de chuva. Aos poucos o casal também fora se desfazendo do
mobiliário. Vendia tudo o que não era essencial. Por fim nada sobrou do
luxo e do esplendor daquela que um dia fora a mais bonita fazenda da
região.

Sara foi a primeira a vir a falecer tomada por uma forte moléstia.
Logo em seguida seu marido perdera de vez toda a sua lucidez.

Um mal de Alzheimer veio libertá-lo de seu constante estado de


culpa. Terminou seus últimos dias perambulando pelo pátio de um Asilo
em São Paulo. Só lembrava-se da infância, adolescência e alguns
fragmentos de sua juventude. Por fim não reconhecia nada e ninguém.
Sua mente foi se diluindo cada vez mais e um dia de semana qualquer a
morte também veio buscá-lo.

A região do Arabizá seguiu seu percurso. Os novos donos das terras


começaram a plantar e construir outras casas para abrigar filhos e netos
nascidos por lá. Cristalina entrava em uma nova era. Surgia assim a fabrica
de cimento e a empresa empregava toda a mão de obra da cidade e da
região. O proprietário das terras em torno da represa estourou-a para
com isto possuir mais terras. Muitas terras foram vendidas dando origem
a novas fazendas. Das águas só restaram o poço sem fundo do Bambu, a
atual pequena represa do Sr. Tati, e o emaranhado de minas que compõe
hoje aquele lugar.

200
Enquanto o Arabizá se transformava a antiga cede da fazenda era
mantida intacta. O velho casarão foi aos poucos sendo derrotado pela
forças implacáveis e constantes do tempo e da natureza. O pouco
mobiliário que restou simplesmente desapareceu um a um sendo
afanado. O casarão ficou vazio. O telhado desabou e a madeira foi
aproveitada para lenha. Em seguida foi-se o adobe das paredes. Os
moradores o aproveitaram em novas construções. Por fim restou o
alicerce. Este ficou intacto por alguns poucos anos. Depois sobre o alicerce
veio o mato e logo após o mato vieram as arvores e estas trouxeram raízes
que deram ao local a forma atual que hoje o tem aquele lugar.

Dona Sara por anos não entendia o processo de desencarne.


Permaneceu nas ruínas da fazenda por décadas perambulando. Sua
imaginação ganhara proporções plásticas por causa da loucura e ela
vagava pelos escombros agora imaginários da mansão clamando pelos
filhos. Via os vultos dos filhos fugindo por entres os escombros, Sara viveu
por muito tempo neste constante desespero. Por vezes também Sara,
dentro da sua loucura lembras-se do acidente dos filhos. Quando isto
acontecia seu espírito se dirigia a região da represa. Sara ainda via a velha
represa em suas visões insanas. Pairava sobre a região, principalmente
próximo ao Poço do Bambu e da Curva da Divisa. Vagava por toda a noite
tentando achar os filhos.

Alguns médiuns encarnados chegaram a ver o vulto de Dona Sara,


pelas bandas da represa. Ela às vezes adquiria a forma de um dos gêmeos,
ou por vezes se tornava apenas uma forma indefinita. Um vulto branco
esvoaçante de panos. Grande era a loucura de Sara. E por anos ela ficou
ali na região até que com muita dificuldade Rodrigues consegui resgatá-la.
Mas quando isto veio acontecer já era tarde de mais. Sara implantara no
mundo dos vivos mais uma das muitas lendas que assolavam o Arabizá.

201
13 Ainda nos anos 90.
Um ano qualquer da década de noventa. Finalmente chegaram as
férias escolares. Alexandre agora comemorava seus 17 anos. Herbert
estava na casa dos 16. Outra noite de verão sem vento, sem lua e sem
sono para os dois primos no Arabizá. Estavam antes com a turma
reunidos atrás da igreja como de costume. Mas a cama foi chamando um
a um deles até restarem apenas Alexandre e Herbert:

--- Xandi todo mundo foi embora.

--- Pois é Bibinho, mas o meu sono não vem e o seu?

--- Este calor não dá. Fico suado só de pensar no meu colchão. E
Bibinho é a sua vovó. Aquela que não é a minha, mas é mãe da sua mãe.

--- Para mim este foi o melhor ano da minha vida. Passou tão rápido,
amanhã já é domingo. Já começa a segunda semana de janeiro.

--- O dia de ano caiu na segunda. Esta pedra tem formigas, vou
sentar em outra. Nossa quanto tempo a gente não conversa assim só nos
dois. Atualmente você só fica pra baixo e pra cima com a Naiara. Não tem
mais tempo pros amigos.

--- Você também anda meio sumido Herbert e não ponha a culpa
em mim não. Você está meio estranho. Teve muitas barraquinhas e
eventos aqui no Arabizá que você não compareceu. E tem mais, minha tia
disse que você está saindo quase todas as tarde a cavalo para Cristalina.

--- Estou galopando para os braços da minha amada. Depois que


voltei às aulas eu o vi pouco aqui no Arabizá. O pouco que o vejo você está
na companhia da Naiara não dá pra lhe contar nada direito. Mas a
verdade é que eu estou amando primo. Amando muito. Finalmente o
amor sorriu para mim. Estou muito feliz!

--- Hebinho, Hebinho, Hebinho! Pelo amor de Deus, não me diga


que você está indo a cavalo quase todas as tardes para Cristalina
importunar a família da Keira? Cuidado pelo amor de Deus! O João Pedro
te mata.

202
--- É verdade. No início tive de ter muito cuidado com o João Pedro,
e com o irmão dele, mas quem ama não tem medo. No amor e na guerra
valem tudo e a gente se encontrou este semestre inteiro as escondidas.
Ela dava um jeito de sair com as amigas para a pracinha da cidade de
noite. La eu deixava meu cavalo e a gente se encontrava para namorar.
Ficamos no banquinho da praça perto do tanque de água. Aquele que tem
um enorme arbusto e uma linda quaresmeira que vive florida. As amigas
dela distraiam o irmão e ela vinha de encontro a mim.

--- “Sangue de Jesus tem poder” Herbert você pirou de vês. Está
namorando um fruto de sua imaginação? Maluquinho você meu primo.
Um doido a cavalo. A Keira está de férias com o João Pedro no Rio de
Janeiro.

--- Nem me fale primo, o João Pezão está se preparando para jogar
no Barcelona. As contratações correm a toque de caixa. Em quanto isto
ele curte férias no Rio ao lado da Keira.

--- Sim! E antes ele e ela passaram quase todo o semestre em BH.

--- E isto foi bom para mim. A marcação ficou menos serrada.

--- Meu pai esterno!

--- Eu mandei uma música para ela. Kid Abelha “em noventa e dois”
Ela adora esta musica. Pedi o radialista que falasse meu nome e em
seguida ele leu um poema que fiz para ela.

--- Herbert isto vai dar morte!

--- Eu fiz isto em setembro. O radialista falou o nome dela também.


A esta altura nosso namoro já estava engatado.

--- Estou tonto não sei o que lhe aconselhar.

--- Você não está tonto Xandoco. Você é tonto. Tontura tem sido
seu estado de espírito ultimamente. Por isto não viu as coisas
acontecerem bem debaixo do seu nariz. Você só pensava em Naiara. Nem
percebeu o que eu e agora todo o Arabizá já sabe.

203
--- Sabe o que? Que está insano mesmo? Ta travando um
namoro imaginário com a Keira?Ela está bem comprometida, quase noiva
do João Pedro! É isto? Seu boboca como você teve coragem de contar
estas insanidades para alguém? Certamente estão todos rindo pelas suas
costas.

--- Eles riem é de você! Pedi a todos do Arabizá para não lhe contar
nada. Foi fácil porque pouca gente sabia e você sumiu e conversa quase
que só com a Naiara quando vem aqui.

--- Primo, o namoro, as aulas e os projetos novos do Centro me


tomam muito tempo. Mas as férias vieram pra isto pra gente se ver mais.
Mas já disse você também sumiu, até nos treinos você tem faltado
ultimamente.

--- Love my friend. Love, Love, Love!

--- Crazy! Esta é a verdadeira verdade! A Naiara sabe disto?

--- Não só sabe como apóia e me ajudou muito com conselhos e


dicas.

--- A vovó sabe?

--- Sim ela sabe! O papai, a mamãe, minhas irmãs... Só você e sua
família que não.

--- Mas...

--- Mas nada Senhor Alexandre. Não há nada de mais que seu primo
namore a Danumbia.

--- A Danumbia? Nossa que susto você me deu primo! Achei que
estava ficando mais doido que de costume! Mas como isto tudo
começou?

--- Agora que só tem a gente aqui eu posso lhe contar com mais
calma.

--- Por favor! Faça isto!

204
--- Então. Depois do incidente do João Peladão, e eu fiquei de
castigo, e o tempo passou. Todo mundo esqueceu, e o irmão dela foi
deixando isto pra lá. O João estava ocupado então nem ligou para isto. Daí
o tempo seguiu.

--- Primo é pra contar sobre o começo do namoro e não sobre o


começo do mundo. Vá direto ao assunto, por favor.

--- Se você não me interromper Xandoco, eu consigo ir mais de


pressa. Como estava lhe dizendo. A Danumbia vinha todas as manhãs de
carro para estudar aqui no ginásio. Ela está a um ano abaixo de mim, pois
tem quinze agora. Não sei como a gente conseguiu no começo, porque
ela era quase minha inimiga. Defendia o irmão com unhas e dentes e me
condenava mais que um bandido pelo o que eu fiz com o João Pedro.

--- Ela e o resto do mundo primo.

--- O resumo é que um dia a gente estava discutindo e percebemos


que isto não nos levava a nada. Caímos na risada em pleno o recreio.
Desde então começamos a conversar e trocar afinidades tal quais dois
amiguinhos.

--- Quem diria em Herbert. Logo você o Don Ruan das abordagens
apoteóticas conversando com uma garota. Apenas conversando.

--- E era isto mesmo, sem segundas intenções no inicio. Surgiu uma
forte amizade. Tão forte que eu gamei na Danumbia depois. Mas não
sabia como partir pra cima. Pensava em tudo, cartinhas, oferecer musica
nas rádios, entregar flores com cartão, pedir às amigas que me ajudassem
mandar mensagem de celular, contratar serviço de tele-mensagem, mas
nada disto eu tinha coragem de fazer. Afinal tudo isto me levou ao
fracasso com outras meninas.

--- E o que você fez então?

--- Nada, simplesmente nada! Um dia atrás da cantina na hora do


recreio ela me beijou e eu a beijei de volta.

--- Isto deve ser de família primo!

205
--- É verdade, fazer o que se nos somos beijáveis. E assim ela me
beijou e a gente começou a se ver em Cristalina às escondidas no começo.
Aos poucos as pessoas foram descobrindo a gente. E um a um eles iam
virando nossos cúmplices. Até que toda a família já sabia e fizeram preção
para que os irmãos permitissem e nos deixassem namorar em paz. Agora
nos estamos livres para sair sem ter alguém para nos acompanhar. Mas no
inicio foi complicado.

--- Te falei que mais cedo do que você imaginava sua vida amorosa
ia engajar?

--- Foi mesmo uma previsão acertada primo. Mas tenho de lhe
contar algo muito sério entre eu e a Danumbia.

--- Já lhe falei Herbert não foi previsão. Foi só um conselho baseado
em um ponto de vista. Eu estava fora dos seus sentimentos e vivencia e
percebi algo que você não percebeu no momento.

--- Foi só uma forma de dizer Alexandre. Eu sei disto. E é por isto
que preciso de um conselho seu, pois é meu primo e melhor amigo.

--- Então, por favor, fale!

--- Preciso criar coragem. Mas antes também tenho de lhe


perguntar outras coisas. Coisas que ficam martelando na minha cabeça.
Diz respeito aquele manuscrito que você deixou para eu ler. Eu li, e reli-o.

--- Então vai pergunte?

--- Na verdade eu quero a conclusão de tudo. Você saiu em busca de


um mistério, seguiu um caminho e agora? O que vai acontecer?

--- Primo eu tive alta da terapia. Não havia traumas ou problemas


que necessitassem de tratamento prolongado. O que aconteceu foi mais
de natureza espiritual. Então fiz as regressões, mais uns aconselhamentos
e pronto. Paralelo a isto eu descobri meu caminho no Espiritismo, e
compreendi melhor meu lugar no mundo. Agora sigo meu destino, a
terapia me deu ferramentas para caminhar sozinho e o Espiritismo me deu
estruturas para descobrir minha vocação.

206
--- Não é isto que eu quero saber.

--- O que você quer saber?

--- Quero saber sobre o seu ultimo manuscrito. O castigo na época


proibiu a gente de se ver naquelas férias. Não entendo como você me
matou na encarnação passada quando foi o Zé do pacto. E depois pela
lógica era a minha vez de lhe matar naquela encarnação em que fomos
gêmeos.

--- Hebinho já lhe expliquei tanto sobre isto. Não é assim que a
evolução se dá. As leis do Karma não funcionam olho por olho e dente por
dente não. Isto é código de Talião. Tudo é muito mais. Antes destas vidas
que vivemos vieram outras e outras anteriores. E tem o fato de estarmos
evoluindo constantemente. Quando você foi o Miro sua missão era ser
livre. Miro amava a liberdade, as praticas e trabalhos ao ar livre. Fora
escravo e agora nascera patrão. Tinha como missão ajudar o pai e cuidar
da fazenda Arabizá. Ser um generoso patrão. Viveria feliz, afastaria do
irmão que mudaria para São Paulo e a distância proporcionaria reflexões
que futuramente culminaria em perdão. Miro sofreu muito como
escravo, tinha o direito de ser livre, ter posses e aprender a lidar com a
liberdade e com as pessoas. Mas ele preferiu nutrir constantemente o
ódio por seu irmão. Com o tempo usou a mediunidade que possuía se
afinado com seres de esferas inferiores. Era bom e justo com todos, mas
não conseguiu se libertar do ódio que sentia por Martins. Seu ódio o
levava a interpretar qualquer gesto de Martins como se fosse uma
provocação. O silencio, a expressão a ausência, a presença... Em tudo
Miro via provocações. Sua alma queria vingança. Queria fazer justiça com
as próprias mãos. Quando foi escravo, mesmo confabulando a morte de
Zé em outro plano ele não se contentava. Queria-o mesmo ter matado-o.
Encarnado tentou literalmente realizar esta empreitada.

As praticas do campo e a vida dura na lida rural o tornara


fisicamente mais forte que o irmão. Isto ajudou em seu constante plano
de vingança. Miro agredia muito a Martins. Usava sua força naquela vida
tal qual o Zé em outra usou a força física nele.

207
Se o plano sinistro de Miro desse resultado o seu grande final seria
jogar o irmão nas águas. Ele morreria afogado, e mergulharia de vez na
escuridão do abismo, tal qual o Zé fez com ele um dia. Martins se daria
por desaparecido, ninguém saberia seu paradeiro. A ambição de Miro ia
além da ambição material.

--- Mas porque os desencarnados de luz não ajudaram Miro e


Martins?

--- Eles muito tentaram. Graças as constantes orações de dona Sara


muito mal foi evitado na infância dos dois. Diante do livre arbítrio os seres
superiores nada podem fazer. Miro no inicio não ligava para vida espiritual
fugia de tudo e tinha grande preconceito a respeito do próprio dom
mediúnico, e por fim mergulhou no caminho da escuridão. Usou seu
talento e todas as propriedades de seu espírito no propósito de realizar
seu plano sinistro.

--- Então se Martins não tivesse se matado ele teria sido o grande
vencedor.

--- Ai é que você se engana. A missão de Martins era espiar os erros


do passado nas mãos do irmão. Como lhe disse ele era fisicamente mais
fraco que Miro.

--- Mas isto não é vingança da parte de Miro, que foi o escravo?

--- Não isto fora uma escolha da parte de Martins. Encararam


gêmeos. Isto para que um não tivesse ódio da fisionomia do outro. Antes
era negro e branco. Agora dois gêmeos. Imagine o grande exercício de
redenção que teria sido para o antigo Zé do pacto. Ter em seu rosto a
semelhança do inimigo? Pensa bem. Acha que isto é por acaso?
Certamente que não.

--- E qual era a missão de Miro?

208
--- Com a ajuda de Mauro ele estava evoluindo e aos poucos se
desprendendo do ódio que sentia do irmão. Certamente voltaria a ser
merecedor de outras faculdades mediúnicas e teria mais ajuda do outro
plano. Ele se casaria com Lara, ganharia ainda mais a confiança de Artur e
seria um grande empreendedor. Seu irmão aos poucos se daria por
vencido. Esta derrota o faria refletir sobre o ódio e o tempo moldaria os
dois para o perdão. Martins ficaria muito bem de situação e voltaria a
estudar ainda mais como sempre gostou de fazer.Isto o levaria direto a
Cristalina onde investiria em pesquisas de solo e pronto.

--- Então era pra Martins ser o dono da fabrica de cimento?

--- Provavelmente sim. Com o perdão do irmão a família se reuniria


novamente. E certamente Cristalina seria mais desenvolvida do que hoje.

--- Entendo Alexandre, Martins teria adiantando o progresso e feito


um grande bem a cidade de Cristalina.

--- Lembra da missão do Zé que era ajudar Cristalina? Então,


encarnado como Martins ele poderia ter feito isto.

--- Mas os dois puseram tudo a perder.

--- Você entendeu o sentido das coisas Herbert. O grande mal que
Miro e Martins fizeram ao tentar se vingarem foram a eles mesmos.

--- Mas como eles chegaram às vias de fato se Martins estava


buscando o caminho certo?

--- A idéia inicial de Martins era pregar uma peça no irmão. Se vingar
da forma que lhe falei. Martins estava em processo de mudança, mas
ainda sim tinha muito do antigo Martins escondido pelas frestas de sua
alma. Quando Miro se debateu e caiu nas águas Martins achou que ele
tentou se matar. Os espíritos que atormentavam Miro implantaram esta
idéia na cabeça dele. Martins e ele acreditaram que seu irmão suicidara.
Acreditou que ele havia se matado para deixá-lo vivo e culpado. Uma
vingança ousada e definitiva. Então Martins se viu tentado a dar o troco
no irmão. Seu ódio brotou com grande força.

209
Chame de surto ou obsessão, mas o fato é que Martins se entregou
aos pensamentos e desejos sinistros. Deixou-se não apenas se influenciar
como também ser manipulado por eles. Abandonou seu corpo a própria
sorte. E se entregou as águas mergulhando no fundo sombrio do abismo.

--- Ainda tem muita coisa que eu não entendo. Parece um filme
interrompido antes do final.

--- Foram interrompidos mesmo, eles abreviaram a própria


existência terrena achando que com isto a vida terminaria ali. Mas o fato
é que Martins foi parar no vale dos suicidas. Miro muito sofreu também,
mas pagou pelos seus erros. Tão logo estava pronto Miro foi resgatado.
Foi neste resgate que ele finalmente pode perceber que sua vingança não
o levava a nada. “Ter sede de vingança é procurar água em um deserto de
miragens”. Miro finalmente pode perceber que quanto mais resultados
ele obtinha executando seus planos de vingança menos feliz e realizado
ele se sentia. Ele judiou fisicamente de Martins quando encarnado,
discutiu, conseguiu por anos a atenção e o apreço do pai, acompanhou o
sofrimento de Martins no vale dos suicidas. Viu tudo de perto, viu a
loucura e a insanidade tomar contar de Martins. E nada disto lhe trouxe
acalanto. Nada disto saciou sua sede de vingança. Finalmente ele
compreendeu que a única água que mata a sede da alma é a água viva do
amor. Martins pagou um preço mais alto pelos erros que cometeu
naquela vida. Suicidou-se e isto custou lhe anos de retrocesso espiritual.
Porém Deus escreve certo por linhas tortas já dizia o ditado. Martins pode
se livrar de todos os males causados a Miro e demais pessoas do seu
passado. Não apenas isto, mas ele resgatou a si próprio entendendo de
vês que gerar sofrimento só resulta em sofrimento. Nenhuma encanação
por mais torta que seja a vida pode ser considerada em vão. Estas vidas
serviram aos espíritos de Miro e Martins para vivenciar experiências
fundamentais a evolução dos mesmos. Miro entendeu tanto que não vale
à pena vingar-se que passou anos tentando resgatar Martins do vale. Para
se redimir consigo mesmo ele finalmente entendeu que a pratica do bem
resulta em muito mais benefícios ao espírito do que a ambição e a
vingança. Já Martins aprofundou ainda mais nas esferas do sofrimento.
Sua situação era mais complexa.

210
Ele acreditava que torturar a si mesmo era a melhor forma de se
vingar e punir o irmão. Negou, relutou, e se afundou muito no vale. Foi ao
extremo da dor e do sofrimento. Tornou-se carrasco de si mesmo. Mas
Miro estava disposto a ajudar o irmão. Tanto fizeram, oraram e pediram
por Martins que ele muito lentamente foi submergindo de suas angustias
e tormentas espirituais.

Tempos depois ambos se reuniram novamente em um plano


superior. Almas redimidas no amor e na caridade divina. Novamente
muita luz, muitas orações e muitas batalhas travadas interna e
externamente trouxeram a razão aos espíritos de Miro e Martins. Pense
na legião de desencarnados que zelou constantemente para que isto se
sucedesse como foi possível. Imagine quantos médiuns encarnados
ajudaram os irmãos neste processo. E principalmente não se esqueça que
Mauro e os amigos do Centro trabalharam intensamente por anos. Isto fez
toda a diferença na vida de Miro, Martins, Dona Sara e Senhor Rodrigues.
Tamanha foi à diferença que hoje estamos aqui tendo uma segunda
chance. Encarnados novamente, prontos para seguir nossa missão.

--- Da sua missão eu já sei Alexandre. Trazer prosperidade a gente


do Arabizá e se redimir com este passado seu.

--- E terminando o assunto. Assim também surgiram os fenômenos


que deram origem as lendas do Arabizá.

--- Nem me fale, até hoje eu tenho medo de passar novamente na


curva da divisa. Nem respiro direito quando vou lá.

--- Mas você pode ficar tranqüilo primo. Aqueles sinais eram pra
mim. E as coisas aconteceram para que eu chegasse aonde cheguei. Não
tem mais nada lá não.

--- E agora o que vai acontecer? E a tal luz azul?

--- Não sei. O futuro a Deus pertence. Vivi um grande desfecho, mas
sinto que ainda estou no começo da minha missão. Estou na estrada, mas
ainda há muita curva ocultando o horizonte.

--- E vai ser sempre assim?

211
--- Sim. Por isto que existe a fé. E eu tenho fé que na hora certa as
coisas começam a fluir. Hoje acredito verdadeiramente nisto. E tem mais
meu amigo, vocação é um chamado diário. Por isto a reafirmação da
mesma deve ser constante através das nossas orações e ações cotidiana.

--- Isto é o fim primo?

--- Não Herbert agora é que vem o começo.

--- Só quero ver onde esta empreitada vai terminar.

--- E o que mais você tinha para me falar sobre você e a Danumbia
Herbert?

--- Então... Sabe o que é... É que ela está... Grávida...

***************

14 - Um vidro de palmito
Naquele mesmo ano no mês de Janeiro véspera de final de férias
de Alexandre tudo começou a acontecer. O rapaz voltou para Cristalina e
continuou sua caminhada espiritual no Centro. Constantemente ele se
encontrava com Luciana, Matilde, Sr. Ariel e os novos amigos que fizera no
Centro. Seus pais também passaram a freqüentar o centro com mais
freqüência.

Alexandre um dia sonhou com a Luz Azul. Em seu sonho ele se viu
novamente no terreiro de sua avó em uma noite qualquer do Arabizá
atual. A luz fez o mesmo percurso de antes quando ele a viu. Mas o que
impressionou Alexandre foi que em seus sonhos a luz se dirigiu até o paiol
de sua avó e estourou em cima do paiol abrindo um grande clarão de luz.

Alexandre acordou impressionado em seu quarto em Cristalina.


Porém desta vez ele foi tomado por uma grande paz.

Os espíritos de esferas mais superiores induziram Alexandre a ter


este sonho com um único intuito. Previam que seus rompantes juvenis o
levariam a tomar certas atitudes que seriam positivas e necessárias a
todos do Arabizá.

212
De inicio até Alexandre julgava ser uma loucura, mas tão logo
amadureceu a idéia ele não tinha mais duvida. O menino acreditou que o
sonho era um sinal. Meses depois ele começava a concretizar este sinal.
Alexandre conversou com a avó, com seus pais, e pediu ajuda de Luciana.
Então finalmente ele realizou o que acreditava ser um pedido mediúnico.
Alexandre reformou e esvaziou o paiol da avó e nele fundou o primeiro
Centro Espírita do Arabizá.

No começo era tudo pequeno e tinha poucos gatos pingados que


freqüentavam o Centro. Era Alexandre, Luciana, às vezes seus pais e mais
ninguém. Todo o Arabizá não acatou bem a idéia do centro.

Aos poucos foram vindos novos membros. Naiara passou a


freqüentar e apoiar seu namorado. Danumbia também começou a ir
mesmo sabendo que seu namorado Herbert, respeitava, mas não
aprovava a idéia. Assim um a um as pessoas foram deixando o receio, ou
passando a freqüentar o pequeno e modesto Centro.

Quando finalmente o Arabizá percebeu que não era um fogo de


palha juvenil e que o trabalho do centro era serio a coisa mudou de figura.

As reuniões sempre constantes, sérias, em horários e dias fixos e


programados, seguindo uma boa orientação de Ariel, e aos cuidados
pessoal de Luciana e Alexandre, foram obtendo o resultado esperado
pelos freqüentastes. Passaram a contar com mais dezoito membros fixos
fora os freqüentadores esporádicos que às vezes ultrapassavam o numero
de fixo. Com isto o modesto paiol tornou-se apertado para os membros. A
esta altura do campeonato os pais de Alexandre intercederam em favor
do garoto. A proposta foi comprar os fundos do terreiro da avó de
Alexandre. Assim foi feito. Muitas feiras, bazares, festas e eventos
angariaram fundos para a construção. Construiu-se um grande muro de
pedra mantendo a avó de Alexandre confortavelmente distante, segura e
separada do lote onde seria construído o centro.

213
A construção seguiu rápida, pois contava com várias mãos de obras
e diversas frentes de investimento. Pouco menos de um ano a obra já
estava terminada. Era lindo. Um prédio que tinha o estilo que datava da
mesma época das casas do Arabizá. A construção também não entrou em
conflito com a natureza local. O pequeno riacho atravessava a base do
prédio. Entrava por uma extremidade e saia em outra. Suas águas
límpidas foram preservadas. Uma paisagista aproveitou para construir um
belíssimo lago em estilo japonês com cascatas, cursos de água calçados
com pedrinhas, e muitas carpas coloridas. Também foi feito um belíssimo
gramado acompanhado de um lindo jardim que ia discretamente se
entrelaçando com a floresta mais ao fundo. Terminado o projeto a obra
ficou lindíssima e se tornou a nova praçinha do Arabizá. O prédio ficou
grande e confortável. Havia um salão principal na altura de dois
pavimentos. No fundo mais três salas grandes, quatro banheiros e uma
cozinha industrial. No segundo pavimento havia outro salão em
proporções mais modestas e dois cômodos usados como escritórios. Todo
o prédio foi coberto com telha curva. Elas foram garimpadas em ruínas da
região. O pai de Alexandre conseguiu que votassem na câmara dois
projetos. Um para tombar as casas existentes no Arabizá e outro para que
todas as novas construções fossem feitas no mesmo estilo que as antigas.

Então se aprovou e a construção foi doada a comunidade espírita de


Cristalina. Todos participaram da compra e da construção, nada mais
justo que o Centro ficasse em posse de todos. O primeiro grande evento
que houve no Centro Espírita do Arabizá, foi à noite de autógrafos de
Matilde. Ela finalmente terminara suas pesquisas e lançou seu livro
intitulado “Arabizá, lendas, verdades e mentiras.” As sessões que regeu
com Alexandre fizeram Matilde mudar o rumo de seu projeto. Suas
pesquisas se focaram no Arabizá e em suas lendas. E por gratidão Matilde
decidiu não apenas lançar seu primeiro livro no Arabizá como também
doar parte dos direitos aos projetos do Centro Espírita do Arabizá. E a
vida seguiu novamente no Arabizá. O centro prosseguiu com sua rotina
intensa de trabalhos. Cada vez mais as pessoas vinham de lugares mais
distantes para visitar. Tornou-se a jóia do Arabizá.

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214
Em certa noite Alexandre dormia em seu quarto, um sono profundo
e tranqüilo. Havia acabado de prestar vestibular na faculdade de
Cristalina. Fora bem nos teste e estava confiante na aprovação. Fez
provas para Agronomia. Esta decisão foi à única que ele quis. Queria
trabalhar a terra e lidar com as pessoas do Arabizá. Não conseguia nem
imaginar quando, onde e de que jeito ele arranjaria emprego no Arabizá.
Mas havia dentro de si uma vontade tão grande que ele decidiu
novamente seguir pela estrada da fé.

Mas agora neste momento a mente de Alexandre vagava na


imensidão do sono. E foi neste clima que pela terceira vez ele sonhou com
a luz Azul novamente.

Em seu sonho Alexandre se encontrava em uma grande sala escura


e vazia. Ele estava de pé diante de uma mesa de madeira antiga. Encima
da mesa havia apenas um vidro vazio. Em um segundo instante o vidro
ficou cheio de uma luz intensa e azul. A luz clareou a sala e trouxe mais
intensidade e contorno no vidro. Logo em seguida uma pequena bolinha
de luz semelhante a uma azeitona se desprendeu do bloco de luz azul
dentro do vidro. Aquela luz subiu lentamente saindo de dentro do vidro.
Alexandre acompanhava aquela pequena bolotinha de luz azul, que subia,
subia, subia interminavelmente em um infinito vazio. Logo em seguida a
atenção de Alexandre voltou-se ao vidro. Outras duas bolotinhas de luz
foram se desprendendo e seguindo a primeira. E vieram mais três, quatro,
cinco, até que do vidro se desprendiam centenas de bolinhas luminosas
formando uma imensa coluna. Por mais que se desprendessem o vidro
nunca ficava vazio e por mais que olhasse para cima Alexandre não
conseguia ver o fim desta coluna.

Quando acordou pela manhã Alexandre sentia uma paz intensa e


um calor agradável no peito tendo a sensação de que seu corpo ia se
expandir. A alegria era inexplicável. O garoto só se lembrava do inicio do
sonho e do meio quando as luzes subiam cada vez mais, em grandes
quantidades e pareciam que nunca iam acabar, pois o vidro nunca
esvaziava.

215
Não se lembrava do fim do sonho e tão pouco quanto tempo ficou
contemplando estas luzes. Também não sabia explicar qual era o sentido
daquele sonho e porque o sonhara. Ele acordou em seu quarto em
Cristalina, tomou café, contou o sonho para seus pais e ligou para o celular
de Naiara contando dentre outras coisas este sonho.

-------------------------------------

Então veio o tempo e trouxe mais um feriado prolongado.


Alexandre voou para o Arabizá para ficar perto da namorada Naiara, seu
amigo e primo Herbert e a namorada dele Danumbia. Os quatro
formaram um bloco que andava quase sempre juntos pelas bandas do
Arabizá.

Nesta manhã de feriado Alexandre ainda dormia na casa de sua avó.


Como de costume Alexandre aproveitava as primeira horas do dia para
ficar na beira do fogão a lenha, brincar com o gato de estimação da sua
avó, tomar um delicioso café saborear uma boa prosa com sua vovozinha
acompanhada de um belo pedaço de bolo de fubá.

Neste clima de mimos e dengos entre avó e neto Alexandre


perguntou:

--- Vovó posso lhe pedir um favor?

--- Claro meu querido se estiver ao meu alcance.

--- A senhora ainda tem aquela goiabada cremosa que só a Senhora


sabe fazer?

--- Meu querido! Tenho sim, mas não sou apenas eu que sei fazer.
Acho que todo o Arabizá e Cristalina devem fazer esta goiabada.

--- Não seja modesta vovó. A da senhora é a melhor goiabada


cremosa do mundo.

--- Está bem! Mas eu mandei uma grande caixa para sua casa já
acabou?

--- Não é para mim, tão pouco para Naiara ou pra minha família. É
um presente que vou enviar a uma pessoa muito especial na minha vida.
216
--- Eu conheço esta pessoa meu querido?

--- Sim quero enviar este doce via sedex para Matilde em São Paulo.
Junto vai uma carta agradecendo toda a ajuda que ela me deu nesta vida.
Aconteceram tantas coisas ao mesmo tempo estes dias com isto não a vi
mais e não pode retribuir o bem que ela me fez.

--- Nossa meu bem! Será que ela vai gostar de doce de goiaba? Uma
mulher que é estudada mora na cidade grande e agora é autora de livros.

--- Vovó, não há nada mais elegante que a pureza e a simplicidade.


Certamente ela vai gostar.

--- Não sei não meu querido. Ela gosta de escrever nada melhor que
dar um bom livro para ela.

--- Livro se compra em livraria, mas goiabada cremosa da vovó do


Alexandre feita no Arabizá, só tem aqui. É exclusivo, raro e muito, muito
saboroso. Duvido que ela não vá gostar muito.

--- Ok cabeça dura. Então vou lavar bem um vidro de palmito,


higienizar, por o doce e tampar bem para que você entregue a sua amiga
de São Paulo.

---------------------------------------

Matilde preencheu o formulário do carteiro, agradeceu e fechou a


porta de seu apartamento. Abriu a caixa e nela estava uma carta e um
vidro contendo goiabada cremosa. Matilde torceu o nariz para goiabada.
Ela detestava este doce. Imediatamente levou para geladeira e lá deixou.
Certamente ela o doaria para a faxineira e agradeceria o garoto. Apesar de
não gostar do doce, ela gostou muito do gesto e da gentileza. Matilde
sabia que o menino fez com a melhor das intenções e ele não poderia
imaginar um fato desta natureza.

217
Logo em seguida ela leu a carta de agradecimento. Ficou
profundamente emocionada. Lembrou que tivera muitos pacientes na
vida, gente muito rica, gente pobre, gente importante e esclarecida. Gente
que ela ajudou por anos e que quando tiveram alta se quer lhe dizia
obrigado. No entanto lá estava a carta de agradecimento daquele menino,
que ela apenas auxiliou por um curto período de tempo. Isto fez Matilde
suspirar profundamente e murmurar baixinho.

--- São pessoas assim que me fazem crer constantemente que estou
no caminho certo e me certificam que todo meu esforço valeu à pena.

Em seguida Matilde guardou a carta na gaveta de um móvel em seu


escritório. Logo voltou a se ocupar de preparar seu jantar especial.
Matilde receberia naquela noite em sua casa o seu novo editor. Novo
porque uma grande editora se interessara em conhecer o segundo
manuscrito do que seria seu segundo livro. O primeiro tivera uma boa
aceitação no mercado. O publico entendeu que o livro “Arabizá, lendas,
verdades e Mentiras” era apenas um gostoso emaranhado de Historias e
causos. Um trabalho despretensioso onde Matilde pode divagar entre
psicologia, filosofia, espiritismo sem ter de defender ou criticar pontos de
vista. Ela deixou à escrita correr livre e abriu precedentes para que o
leitor interpretasse como bem entender. Não queria provar nada a
ninguém, então quem quiser que acreditasse no que quiser a maneira que
bem entender.

Mas o jantar de Matilde com o novo editor foi um verdadeiro


desastre. Matilde colocou seu melhor talher a mesa. Taças de vinho, água,
champanha, pratos de sopa. Fez um verdadeiro banquete servido a
francesa. O editor chegou acompanhado de sua esposa. Uma figura pouco
expressiva que em nada amenizava o encontro entre Matilde e o escritor.

Matilde serviu camarão flambado, vinho branco de alta qualidade,


uma boa champanha, e outros frutos do mar. Encomendou tudo no
melhor restaurante da cidade. Mas nada parecia impressionar o editor.
Muito pelo contrário, ele mantinha o foco da conversa voltado para o
manuscrito e o livro que Matilde escreveu.

218
O editor só enviava bombas a respeito do trabalho de Matilde.
Falou que sua primeira obra soava como ousadia juvenil e despretensiosa.
Disse que se a editora aprovar o seu manuscrito ela teria de eliminar boa
parte do estilo, e traçar um enredo objetivo e visceral ao livro.

Isto era exatamente o que Matilde detestava em certos livros.


Desde muito jovem ela sempre odiou livros diretos, com enredos
previsíveis e altamente comerciais. Tudo parecia tão igual. Matilde queria
escrever um livro onde as pessoas gostassem de estar com o livro, e não
de terminá-lo apenas para saber o final de uma historia qualquer. Ela
queria escrever livros simples de enredos saborosos. Prezava muito a
contra cultura, e a riqueza de idéias, interpretações e detalhes que só a
subjetividade é capas de trazer. Neste intuito Matilde tentava defender
sua idéia diante do editor:

--- Eu sou capaz de compreender. Seu trabalho é avaliar, escolher e


direcionar o foco das obras no intuito de vendê-las melhor. Não há nada
de errado em ser comercial. E eu aceito que faça correções ortográficas,
mude parágrafos e até capítulos inteiros. Mas isto apenas no intuito de
tornar a obra mais fluídica. Porém não abro mão de defender meu estilo.
Não é só um estilo, é uma maneira de pensar e agir.

--- Sra. Matilde, por favor, não pense que não gosto de sua obra. Eu
não emito opinião pessoal a respeito dos trabalhos que avalio. Apenas
sigo um protocolo a mando da editora. E nossa editora atinge um grande
público. Temos de ter uma abordagem mais simples e objetiva. E
tememos que muitas divagações e idéias possam se tornar polemicas de
mais ou até desgastante. Leitores comuns gostam de obras comuns.

--- Eu não acredito em leitores comuns. Desculpe-me. As pessoas


são bem mais inteligentes e complexas do que certas editoras pensam.
Alias este é exatamente o erro de vocês. Nivelar todo mundo por baixo.

Quando deu por si Matilde já estava dizendo estas coisas na cara do


editor. Estava cansada e logo percebeu que nem ele e nem a editora que
ele representava compreenderam sua proposta. E como já havia
começado Matilde continuou:

219
--- Tive boas vendagens, conquistei de inicio um bom público
em uma modesta editora. Não fechei portas por lá. Eles compreenderam
que meu trabalho é como a vida. Precisamos ter foco na vida. Mas a
maneira com que chegamos aos objetivos passa pelos contratempos do
dia-a-dia. Nada sai como planejamos, às vezes mudamos no meio do
caminho e assim por diante. Eu simplesmente escrevo como se estivesse
vivendo aquilo. Já tenho meu trabalho. Lá sou imparcial, mas nos livros
sou toda coração. Escrevo para dar vazão ao meu desejo de escrever e
dividir minhas idéias com o mundo.

Percebendo que havia excedido em sua própria defesa Matilde


recuou e tentou contornar a situação mudando o foco:

--- Vejo que todos terminaram, deixa-me recolher estes pratos e


servir a sobremesa.

Matilde fez o que disse e logo em seguida serviu sua sobremesa. Ela
serviu Petit Gateau. E mais uma vez Matilde deu uma bola fora.

--- Sra. Matilde não tome para o lado pessoal minhas criticas.
Reafirmo que sou apenas um representante das opiniões da editora na
qual eu trabalho. Neste caso se não quer abrir mão quer acatar a opinião
da editora sobre seu trabalho creio que já sabe a minha resposta.

--- Sim eu sei! Mas por favor, me desculpe ter exaltado um


pouco. Eu compreendo sim. E como lhe disse antes minha antiga editora
não fechou as portas para mim. Somos adultos, embora não concorde eu
respeito muito seu ponto de vista. E sua visita é de grande estima para
mim, pois sei que é um homem muito ocupado. Não perderia tempo com
qualquer coisa, se veio até mim é porque lhe sou importante. Agradeço
esta gentileza. E por favor, espero que aprecie a sobremesa.

--- Sra. Matilde. Admiro a maneira com que defende seu ponto de
vista. Fico feliz por me compreender. Quanto ao jantar estava tudo muito
maravilhoso. Porem vou declinar da sobremesa, pois sou alérgico a
chocolate.

220
Matilde queria morrer, mas antes queria matar o editor. Sua criança
interior tinha vontade de tacar a comida na cara dele. Que criatura no
mundo tem alergia a chocolate? Ela imaginou que isto só poderia ser coisa
de editores rebuscados como ele.

Mas como de costume Matilde sempre tinha reações contrarias aos


seus pensamentos emotivos. Então ela terminou a noite oferecendo ao
casal toda gentileza e elegância de que fora capas de aprender ao longo
destes anos. Esta era sua vingança particular. Deixá-los encabulados com
tamanho arauto de elegância que Matilde construiu naquele final de
jantar. Deu resultado. O editor saiu do apartamento de Matilde pedindo
desculpas até por ter nascido.

A noite fatídica finalmente terminou. Assim que se despediu do


casal e fechou a porta de seu apartamento Matilde se jogou no sofá da
sala e lá deixou seu corpo abandonado. Matilde deu um forte suspiro,
olhou para o teto, assoprou a franja do cabelo e murmurou:

--- Meu Deus finalmente esta noite terminou! O único proveito de


tudo isto foi poder dar um tempo na dieta, e sobrou Petit Gateau. Vou
aproveitar. Este jantar me serviu apenas para me certificar do que eu
realmente queria e pra me livrar daquele vidro de goiabada.

Matilde presenteou o editor com a goiabada. No fundo ela queria


deixar ele com mais remoço ainda e aproveitar para se livrar do
indesejado vidro. Então ela assim o fez.

--------------------------------

Desde então tudo começou a mudar a partir daquele vidro. Feito


todos os bichos urbanos o editor adorou a goiabada cremosa. Era
diferente das que estava acostumado a comprar. Não tinha tanto açúcar e
era feita apenas de goiaba sem complementos e conservantes.

Sua casa era muito bem freqüentada. Dentre os freqüentadores


havia um chefe de cozinha. O visitante provou a goiabada oferecida pelo
amigo. Gostou muito. Tanto que questionou sobre o doce.

221
O chefe de cozinha soube de Matilde. Receoso de entrar em
contato com uma desconhecida apenas para pedir um doce ele foi
pesquisar sobre a vida da moça. A pesquisa o levou ao livro que Matilde
havia escrito. No livro havia uma resumida biografia de Matilde. Nela ele
soube que a moça nasceu em Cristalina. Ligou a cidade, ao título do livro e
então deduziu que Arabizá só poderia ser o nome de alguma comunidade
rural próximo a Cristalina.

Com o pretexto de garimpar novos sabores o chefe convenceu sua


esposa e filhos a passarem férias em uma pousada próxima a Cristalina.

Em uma tarde de verão seu taxi chegou ao Arabizá. O chefe foi à


vendinha, bebericou, e conversou com o vendedor. Poucas horas depois
ele conseguiu o que queria. Com a ajuda do vendedor ele quebrou o gelo
e convenceu algumas senhoras do Arabizá a lhe venderem alguns poucos
vidros de goiabada cremosa. Comprou tudo que pode a peso de ouro.
Estabeleceu um contato e deixou seu cartão a uma das senhoras.

Voltando a São Paulo o chefe começou a elaborar um cardápio de


sobremesa sofisticado, inspirando na culinária Mineira. Criou uma versão
gourmet de Romeu e Julieta. Foi um sucesso.

Desde então o chefe passou a ligar para seu contato no Arabizá e a


encomendar mais goiabada. Não questionava preço, só pressa,
quantidade e qualidade. Os vidros viajavam via sedex. Todo custo era por
conta do chefe. Ele repassava o custo aos clientes e os clientes pagavam
sorrindo e ainda pediam bis. Estimulado pelo sucesso de sua sobremesa o
chefe ousou encomendar outros tipos de doces as moradoras do Arabizá.
Mais sucesso, atrás de sucesso. Quanto mais ele diversificava e incluía
novos pratos elaborados a partir dos doces de lá mais as vendas
aumentavam.

222
Tamanho foi o sucesso que o restaurante passou a vender os doces
no balcão. E não parou por ai,a concorrência também entrou nos
negócios. Pouco menos de seis meses outros restaurantes da região
passaram a procurar o Arabizá em busca de seus doces.

Uma constante e crescente procura. Tão constante que provocou


mudanças significativas na vida das pessoas do Arabizá.

As Senhoras do Arabizá precisaram fazer um curso no SEBRAE, para


se especializarem e tornar a produção mais organizada. Formaram uma
associação. “ Associação das quituteiras do Arabizá.” Padronizaram tudo,
desde o plantio, cuidado, compra e coleta dos frutos, manuseio e escolha
do leite, preparo e embalagem.”

Foi de Alexandre a idéia de criar uma marca. Todos gostaram da


sugestão. Então Alexandre criou a marca “Fazenda Arabizá”. Esperto e
bem orientado pelo pai o garoto registrou a marca para evitar futuros
transtornos. As quituteiras cadastradas na associação poderiam usar a
marca sem pagar nada a Alexandre, mas outros não poderiam fazê-lo.

As senhoras começaram a ganhar um salário fixo e compatível aos


valores dos salários de seus maridos. Com este capital muita modificações
foram acontecendo no Arabizá. Compras de carros, motos e reformas.
Mas o que mais mudou foi à família do Senhor Tati. Constituída por sua
esposa, duas irmãs solteiras, uma sogra, duas filhas e só um filho de
criação. As mulheres da casa começaram a ter rendas superiores a do
velho Tati. Então a família formou uma parceria, construiu um sítio
amplo na parte mais alta de suas terras. Jogaram a velha casa no chão.
Contrataram uma firma de engenharia e reconstruíram a velha represa.
Ficou linda toda restaurada, o dique de pedra estava de volta tal qual
antigamente. Em pouco tempo o antigo espelho d água emergiu das
profundezas da história e do esquecimento. Ele submergiu trazendo a
tona todo o vigor de sua beleza e todo o esplendor de sua glória e
suntuosidade. Sim, parte da memória e da beleza do Arabizá renascia das
cinzas do esquecimento e ganhava corpo na realidade atual.

223
Com o intuito de gerar lucro a família e ter uma renda semelhante
a das mulheres da casa, Senhor Tati fez em seu novo sítio uma enorme
varanda. Espalhou por ela muitas cadeiras e montou um barzinho onde
ele e a família fazia às vezes de anfitriã dos visitantes do lago nos finais de
tarde. Esta varanda atrelada a sua casa tinha a melhor vista do lago.
Senhor Tati passou a trabalhar no bar que rapidamente começou a ganhar
fama no Arabizá e em Cristalina. Não contente com isto o senhor Tati
começou a soltar na represa varias espécies de peixes. Comprou alguns
barcos, legalizou tudo na prefeitura e inaugurou um pesque e pague. Foi
outro sucesso. Comprou mais barcos, e também trouxe pedalinhos para
passeio. Comprou bicicletas, e calçou as trilhas da velha estrada da divisa.

Empolgado com a prosperidade de seus investimentos Senhor Tati fez


várias trilhas calçadas de pedra. A trilha principal cortava o Arabizá de
uma ponta a outra e terminava no campo de futebol. Os fins de semana
eram movimentados na fazenda do senhor Tati. Aluguel de pedalinhos, de
bicicletas de passeio, de barcos para pesque e pague, e futuramente já
havia projetos para aluguel de Jet esqui. Senhor Tati, empregou o filho, e
mais cinco ajudantes permanentes. O bar, o pesqueiro, e o pomar
orgânico para a produção das mulheres. Tudo isto necessitava
constantemente de mão de obra. Sendo assim havia temporadas que ele
precisava até contratar mais funcionários. Como se não bastasse tudo
isto um frigorífico de uma cidade próxima a Cristalina o procurou para
formar uma parceria. Em pouco tempo Senhor Tati começou a construir
tanques onde passou a praticar piscicultura em escala industrial. Esta
produção lhe fez contratar mais funcionários ainda.

O Poço do Fubá no verão, as atrações e o bar do Senhor Tati


começaram a atrair muitas visitas tanto dos Cristalinenses e
principalmente dos estudantes e turistas que se hospedavam em
Cristalina. Isto logo despertou a cobiça de um grande empresário e
deputado daquela cidade. Este em questão comprou todo o Morro do
Curió.

224
Lá ele construiu um belíssimo hotel fazenda. Tinha toda infra-
estrutura, um aras, pomar, jardins, um lago artificial com cascatas,
piscinas olímpicas, campo de futebol, quadra coberta, tirolesas, trilhas
para passeio, e reforçou a mata ciliar onde criou uma trilha especial. Este
hotel gerou muitos empregos a Cristalina e Principalmente aos jovens do
Arabizá. O prédio e todas as dependências do hotel fora construídos no
estilo das grandes fazendas mineiras de café do século XVII. Quando
pronto tronou-se uma replica perfeita daquele período. Usando de sua
influencia política o Deputado conseguiu asfaltar todo o Arabizá e sua
estrada principal até Cristalina. Com isto o Arabizá passou a contar com
ônibus circular de hora em hora. O Asfalto facilitou também para que a
fábrica de cimento de Cristalina pudesse contratar pessoas do Arabizá.
Assim a van da fabrica poderia levar e trazer funcionários diariamente.

Para Alexandre foi uma maravilha, pois ele comprou uma moto, e
passou a morar de vez na casa de sua avó. O agora o jovem rapaz ia para
Cristalina todas as manhãs, estudava, almoçava na casa dos pais, e corria
para passar o resto do dia e da noite no Arabizá.

Novamente com a intervenção do deputado e interesse do prefeito


o Arabizá ganhou iluminação em suas ruas. Outra vez preocupados em
preservar as características históricas da região. O prefeito comprou
postes que imitavam antigos lampiões e investiu para que toda a rede de
fios elétricos ficasse embutida. Os postes iluminavam as ruazinhas do
Arabizá, a rua que ia ao Poço do Fubá, e o entorno da represa do senhor
Tati, e seguiam subindo o Morro do Curió passava pela estrada do campo
e iam terminar em Cristalina.

Os oito quilômetros do Arabizá até a entrada de Cristalina passou a


fazer parte do vilarejo. Os donos da empresa de cimento compraram
muitas extensões de terra ao longo da estrada. Fez para lazer uma grande
e bonita fazenda de cavalos. E o restante das terras eles construíram e
montaram diversas fazendas. Fazendas de leite, de café, ou bangalôs de
fim de semana. Venderam tudo de porteira fechada por milhões, os novos
vizinhos ricos valorizaram ainda mais os imóveis no Arabizá.

225
O campo de futebol do Arabizá passou a ser muito mais
freqüentado. Estava sempre lotado principalmente aos domingos. Todas
as disputas dos times regionais passaram a ser realizadas no campo. O
prefeito que queria se reeleger tratou logo de aproveitar esta boa faze do
Arabizá pra angariar votos. Construíram ao lado do campo uma escola
ampla com creche, aulas de ensino fundamental e médio. A antiga escola
se tornou uma escola técnica com cursos profissionalizantes para alunos
do ensino médio. Construiu também um ginásio coberto, usou o
maquinário e fez mais dois campos de futebol gramado. Como cereja do
bolo o prefeito construiu um estádio.

O estádio havia capacidade para comportar sete mil pessoas. Tinha


camarote, torre de comunicação, e dois confortáveis vestiários com sauna,
banheiros, e uma sala com armários e bancos para os jogadores.

A prefeitura teve de comprar parte da fazenda do Senhor Quincas.


Nela construiu outro campo de futebol, fez um vestiário modesto, mas
confortável. Este campo foi doado ao “Arabizá Várzea Futebol Clube”
Agora o time do Arabizá tinha um campo próprio para treinar seu time. E
não era só isto, o time contava com um professor de educação física, um
treinador, um fisioterapeuta tudo patrocinado pelo departamento
municipal de esporte de Cristalina. A prefeitura também emprestava
ônibus para os jogadores viajarem em disputas ou para buscar os
esportistas em cristalina. Agora o Arabizá contava com cinco times de
futebol. O infantil, o juvenil, adulto, feminino e o time dos veteranos.

A fábrica de Cimento patrocinou o time e providenciou uniformes


para todas as categorias. Senhor Quincas aproveitou o constante
movimento em sua fazenda para ampliar suas instalações. Construiu uma
grande arena, conseguiu vários patrocinadores e todo o ano realizava uma
festa de peão que ficou famosa na Região. Nas vésperas ele chegava a
contratar narrador, equipe de som, montava barraquinhas para venda de
bebida, comidas. Cobrava entrada para as arquibancadas que ficavam
lotadas. Fora do período das festas de peão ele trabalha na fazenda.
Alugava baias, dava aulas de montaria, amansava cavalos na região e
também se tornou um grande comprador e vendedor de animais.

226
Suas festas ganharam fama nacional. Então senhor Quincas teve de
tornar o evento mais prolongado e os investimentos mais maciços. Sr
Quincas criou na sede de sua fazenda uma empresa de eventos. Alugou a
peso de ouro o estádio de Cristalina. Contratou três duplas sertanejas de
grande projeção no mercado da musica. O primeiro evento foi um
sucesso. O povo compareceu em peso a Cristalina para prestigiar as
duplas, esgotaram-se os ingressos tanto no estádio de Cristalina quanto na
arena do Sr. Quincas no Arabizá. Com isto a famosa festa de peão do
Senhor Quincas precisou se estender por três dias. Os peões se
apresentavam mais cedo no Arabizá e depois o povo ia pra Cristalina ver
os shows.

Com os turistas, festas e os freqüentadores do campo de futebol


aos domingos Senhor Flávio e sua esposas passaram a vender marmitas no
campo de futebol. Quando não havia jogo as pessoas passaram a procurá-
los em seu sítio. Logo o Sítio cascata virou a “Cantina do Arabizá.”
Começou com uma varanda modesta e poucas cadeiras sob ela. Vivia
lotado de quarta até o domingo. Então foi preciso levar o negocio a sério.
Senhor Flávio fez empréstimos, ampliou as instalações de sua fazenda.
Construiu um grande restaurante com amplo estacionamento, pomar,
jardim e um parquinho para as crianças. Fez uma cozinha industrial e
contratou garçons, mais cozinheiras, uma nutricionista e outros
empregados. A inauguração foi um sucesso, Senhor Flávio Manteve a
tradição. Em dias de jogos ele não cobrava dos jogadores e para os
cidadãos do Arabizá ele fazia sempre descontos.

Mas nem tudo são flores, havia épocas de certos jogos e períodos
sem festas que sua cantina não conseguia fechar no azul. O movimento
era pouco apesar de constante, e as prestações do empréstimo tinham de
ser pagas. Se não fossem Senhor Flávio perderia a fazenda para o Banco. A
esposa do Senhor Flávio, que freqüentava o Centro Espírita do Arabizá
pedia constantemente em suas preces. Ela temia perder a terra que fora
de seus pais. O que mais a angustiava na verdade era ter de demitir
funcionários. Ela e o marido tinham um generoso coração. Ofereciam de
graça em sua cantina todas as terça a noite uma sopa.

227
Era deliciosa, muito nutritiva e gratuita. Foi à forma que
encontraram de agradecer a benção que tiveram. Mas ultimamente o
Restaurante ficava no vermelho, principalmente no inverno. Ela e o
Marido abriam mão de certos confortos só para manter o constante
numero de empregados.

Este progresso todo que alavancara o Arabizá não era por acaso.
Dividas antiga estavam sendo saudadas por espíritos desencarnados.

Estes espíritos que hoje conspiravam para que o Arabizá


progredisse. Foram os mesmos que obsediaram o Zé do pacto no passado.
Eles o ajudaram achar o ouro e auxiliaram Zé em seu plano de vingança a
Cristalina. Agora evoluídos e em esferas superiores, tinham a missão de
devolver ao Arabizá e a seus atuais moradores todo o progresso e
prosperidade que lhes foi afanado nos tempos em que estes moradores
estavam encarnados em Cristalina.

Estes seres de luz, com o auxilio dos médiuns do Centro do Arabizá,


conseguiram campo propicio para trabalharem em prol da região. Foram
eles que deram a idéia de Alexandre presentear Matilde com um vidro de
goiabada cremosa.

Criaram situações para que Matilde presenteasse o editor e para


que o editor servisse o Chefe de cozinha. Em São Paulo eles correram
atrás de pessoas que gostava de comida mineira e as fizeram ter contato
com a propaganda do restaurante. Auxiliaram políticos, empresários e
todo tipo de pessoa para que tudo chegasse ao ponto que chegou.

Desta forma eles conspiraram para que uns dos donos da fábrica de
cimento fossem almoçar na Cantina do Arabizá. Ele levou toda a família.
Foi uma tarde muito agradável. O proprietário da fabrica gostou muito da
comida. Agradeceu o Senhor Flávio e o procurou novamente durante a
semana. O proprietário da fábrica fez ao Senhor Flavio uma proposta que
salvou a “Cantina do Arabizá” para sempre.

228
Desde então a cantina passou a fornecer os marmitex para os
trabalhadores da fábrica de cimento. O antigo fornecedor era uma
modesta pensão em uma zona rural próximo a Cristalina. Recentemente
os filhos herdaram e assumiram o negócio desta pensão, mas eles só
tinham interesse no dinheiro. Não davam a pensão o devido valor e o
devido cuidado e carinho que os seus pais tinham por ela. O almoço
atrasava, perdera o sabor, as marmitas vinham danificadas às vezes e
outros transtornos. Tudo isto ajudou os donos da fábrica de Cimento a
fechar contrato com Sr. Flávio.

Na cantina do Senhor Flávio não havia este problema. Eles


compraram uma vã só para fazer as entregas, o Arabizá já estava asfaltado
e a comida já vinha com a aprovação do dono da fábrica. Com isto os
problemas financeiros da Cantina do Arabizá foram solucionados para
sempre. O contrato de fornecimento com a fábrica se mantém até os dias
atuais.

Com o tempo Dona Quitéria, aquela que expulsou Herbert e


Alexandre de sua casa em outros tempos, tornou-se muito anciã e
debilitada. Os poucos parentes que lhe restaram a levaram para viver em
Cristalina. Sua casa que era muito antiga e havia um grande terreiro foi
posta a venda. O pai de Alexandre aproveitou a oportunidade e comprou
a casa que foi de dona Quitéria. Ele a reformou toda preservando sua
fachada, construiu um belo quintal, uma piscina, instalaram nos quartos
da casa duas suítes, e fez um belo muro de pedra para combinar com o
perfil histórico do local. A idéia inicial era ter um recanto para a família
Lemos passar os fins de semana. Porém Alexandre tomou posse da casa.
Passava a maior parte do tempo nela ausentando-se cada vez mais de
Cristalina.

Uma grande surpresa acometeu a família Lemos neste mesmo


período. Quando o pai de Alexandre levantou a papelada do imóvel que
pertencia à dona Quitéria ele descobriu um fato muito intrigante. Ao
comprar a escritura da casa de Dona Quitéria, a família Lemos comprava
todas as terras e propriedades pertencentes à Dona Quitéria. Este foi o
combinado durante a compra.

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Os parentes nem fizeram questão de estudar a fundo as escrituras
e propriedades que Dona Quitéria possuía. Venderam a casa de porteira
fechada e entregou nas mãos do Pai de Alexandre um baú contendo
diversos documentos. O pai de Alexandre legalizou tudo. E em meio à
grande quantidade de papeis antigos e amarelados foi encontrado um
antigo documento quase todo carcomido por traças.

Ninguém poderia prever tal fato. Dona Quitéria era proprietária


legitima das terras que constituíam a sede da antiga fazenda Arabizá.
Alexandre vibrou ao saber disto. Aquela floresta no meio do Arabizá
pertencia agora a sua família. Outra vez o destino estava lhe enviando
sinais e reforçando sua missão em relação ao Arabizá.

Como o Arabizá estava se tornando a Zona nobre de Cristalina a


família Lemos decidiu se mudar de vez para lá. Venderam sua residência
em Cristalina. Conseguiram um bom preço vendendo a casa para um
grupo de Advogados que pretendiam formar um escritório nela. Com o
dinheiro da venda compraram o Sítio Pedrinha. Os pais de Alexandre
reformaram todo o sítio e fizeram diversas benfeitorias no local tornando-
o agradavelmente habitável. A mãe de Alexandre se mudou para o
Arabizá sem pestanejar. Agora tudo estava caminhando para um novo
contexto. Havia luz, água encanada, esgoto tratado, asfalto, ônibus
circular, escolas, cursos técnicos, áreas de lazer, e todo o casario foram
reformados por uma fundação. Também reformaram o velho moinho e o
mesmo passou a produzir fubá. O velho e abandonado Arabizá
transformou-se em um lindo vilarejo prospero, extremamente agradável e
preservado. Por este motivo e por ficar mais perto de seu filho a Mãe de
Alexandre rendeu-se aos encantos rurais do novo Arabizá.

A beleza singela, a preservação e o estilo histórico do novo Arabizá


chamaram a atenção da região e de parte do país. Constantemente
políticos, empresários, estudantes, turistas, jogadores de futebol amigos
de João Pedro davam o ar de sua graça hora a passeio, hora hospedando-
se no Arabizá.

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Foi uma questão de tempo até que em um repente o Arabizá
começou a servir de cenários para trechos de filmes nacionais, novelas de
época e alguns clipes musicais.

A carreira internacional de João Pedro não aconteceu como


esperado. Porém ele foi contratado em um grande time Paulista. Este fato
ajudou o rapaz a se manter próximo da família e de Cristalina. Com isto
Keira, viu no Arabizá uma oportunidade de crescer e se tornar mais
produtiva. Pediu de presente ao marido a casa que a família dele tinha
vendido há tempos atrás no Arabizá. João comprou de volta a velha casa,
pagou uma fortuna por ela, mas se quer reclamou. Após a compra Keira
transformou a casa em um mine armazém. O estabelecimento se chamava
“Armazém Arabizá”. Vendia tudo que era produzido pelas quituteiras do
Arabizá, e também Keira ajudou a fundar uma associação de artesãs e
artistas do vilarejo. Novamente as mulheres, crianças e jovens se
beneficiaram com a estimulante permuta. Tão logo foi inaugurado o
armazém começou a ter problemas que todos os comerciantes do mundo
gostariam de ter. Os produtos não descansavam nas prateleiras. Quase
tudo que era exposto era rapidamente vendido.

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“Há um tempo para cada coisa”


Vendo que a procura de tudo o que era produzido no Arabizá
superava a oferta o Pai de Alexandre decidiu ousar e seguir em frente
rumo a uma empreitada que há muito tempo lhe sondava o campo do
pensar. O tiro de misericórdia lhe foi dado quando ouviu no centro
espírita do Arabizá o trecho Bíblico falando sobre a semeadura.

231
O Senhor Lemos tomou fôlego, reuniu coragem, e fez um grande
empréstimo. Deu como garantia a casa no Arabizá que seu filho agora
vivia em companhia de sua noiva Naiara. Também penhorou o sítio
Pedrinha onde vivia com sua esposa. Tudo isto foi o suficiente para ele
começar seu novo e ousado projeto de vida. Sr. Lemos construiu no
coração do Arabizá, encima das antigas ruínas da velha e extinta fazenda.
Lá neste lugar ele construiu o “Lemos laticínio”. Tudo isto se deu com
muito esforço, dias e noites de dedicação, curso e um minucioso estudo
sobre o potencial econômico da região atualmente.

Depois de pronto a fachada do laticínio por fora era uma réplica


perfeita da antiga fazenda. Por dentro o prédio abrigava escritórios, e
instalações de um laticínio qualquer. Muito estudo, experimentos,
contratação de técnicos, advogados e cursos atrás de curso. Toda a
família Lemos tiveram que se ausentar dos antigos empregos e se
dedicarem dia e noite ao novo projeto. Depois de muito suor e muito
trabalho o laticínio começou a produzir. Sendo Alexandre o detentor da
marca “Fazenda Arabizá” tudo que levava este rotulo devia ao garoto uma
quantia em direito. Tão logo começou a primeira linha de produção, tão
logo vieram às primeiras encomendas. Assim em um ritmo intenso e cada
vez mais acelerado os produtos do laticínio caiu no gosto do país.

O laticínio começou a produzir uma grande variedade de queijos e


doces. Criaram-se duas frentes de vendas. Uma era constituída pelos
produtos industrializados que traziam um alto padrão de qualidade. A
outra frente era formada pela associação. O laticínio passou a comprar
vistoriar, e influenciar no processo de toda a produção artesanal de doces
produzidos pelas mulheres do Arabizá.

Isto melhorou ainda mais a vida das moradoras, pois elas já


produziam contando com a venda garantida de seus doces. Assim o
laticínio oferecia produtos industrializados e artesanais. Os artesanais
eram revendidos mais caros no mercado desta forma ninguém sairia
prejudicado com a permuta.

232
A linha de produção do laticínio aumentava na proporção das
encomendas. Com isto o pai Alexandre deixou de se candidatar a vereador
dedicando-se apenas ao laticínio. Sua esposa assumiu a presidência e a
parte de vendas. O marido dedicou-se a linha de produção e logística.
Alexandre também arregaçou as mangas e entrou na empreitada familiar
ajudando no marketing. Então surgiram as exportações e isto exigiu
novas instalações e investimento em infra-estrutura. Fizeram galpões no
Sitio Pedrinha e assim o “Laticínio Lemos” passou a ser o segundo maior
empregador de Cristalina. Perdendo apenas para fabrica de cimento.

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O Armazém da Keira proliferou diversas franquias espalhando-se


pelos circuitos das águas, Serra Gaucha e litoral do Brasil a fora.

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Afobado para se casar, Herbert construiu nos fundos da casa de


seus pais uma bela casa. Tanto a família quanto os pais admiraram
tamanha destreza do garoto para construção civil. Sua mãe e seu pai
estavam bem empregados e com boas rendas então muito ajudaram o
garoto. Assim Herbert se empolgou muito. Fez para ele e sua futura
esposa Danumbia uma casa confortável. Claro que Herbert fez questão de
colocar suíte e banheira de hidromassagem em seu novo lar. Este era seu
sonho. Terminado a obra da casa Herbert seguiu empolgado para
construir. Então começou a furar no quintal e daquele buraco surgiu uma
bela piscina.

Em seguida Herbert se casou. Virou um esforçado pai de família.


Nunca teve vocação para estudos e profissões acadêmicas. Então ele
começou a usar seus conhecimentos rurais. Deu aulas de equitação,
trabalhava como guia, criou, negociou e vendeu animais, e conseguiu
emprego fixo como motorista na fabrica da Família Lemos.

O pai de Alexandre chegou a oferecer um emprego melhor com um


cargo melhor para Herbert. Mas ele recusou.

233
Como motorista Herbert trabalhava pouco e tinha um bom tempo
disponível. Com este tempo ele passou a fazer outros bicos e ganhar mais
extras. Logo o garoto comprou um lote em Cristalina, pois lote no Arabizá
andava muito caro ultimamente. Neste lote ele construiu sua segunda
casa. Vendeu e fez mais duas, vendeu uma fez mais duas e alugou. E
assim Herbert foi crescendo e adquirindo imóveis. Abandonou o emprego
na fabrica e se tornou construtor. Mas nunca abriu mão de por a mão na
massa mesmo quando contava com um bom time de pedreiros.

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A missão de Alexandre estava cumprida. Ele fora o pivô de todo o


progresso que ascendeu o Arabizá. Da adolescência a juventude ele
tornou-se apto para entender os sinais, disponível para aprender e ousado
para experimentar novos caminhos rumo ao conhecimento maior.

Com estas ferramentas em uso Alexandre trouxe consigo a tona


todo o seu passado, mobilizou pessoas deste plano e de esferas
superiores. O alto conhecimento o levou a se posicionar na vida, a assumir
seu destino, e aceitar seus Karmas e dividas. Esta aceitação lhe trouxe de
inicio algum penar, mas a constância no caminho da luz e do amor o levou
a novas perspectivas e descobertas. Ele teve a benção de se perdoar, de
perdoar os que ele feriu no passado e teve uma nova chance na vida. A
chance de combater o mal com o bem. Ele pode contar com um exercito
de amigos deste e de outros planos. Pode ajudar muita gente a saldar
dividas antiga e todo este fluxo de amor trouxe a tona a beleza e o
esplendor da fagulha divina. Esta fagulha refletia nas pessoas que foram
tocadas por ela e se materializava na paisagem daquela região.

Sim, graças ao pontapé inicial de Alexandre o Arabizá se tornou


uma pequena síntese do amor divino. Todos os seus moradores estavam
empregados, todos os artistas, artesões, cozinheiras, pedreiros,
trabalhadores rurais e outros, tinham a oportunidade de contribuir com
seu trabalho.

234
Todos eram bem remunerados pelo fruto de seu suor. Podia
realizar sonhos, ter perspectivas, ter direitos a moradia, comida,
vestuários e demais benefícios garantidos. Podiam especializar-se, e
dormirem tranqüilos, pois a região estava prospera o suficiente para
acolher as famílias e fornecer futuro a todas as próximas gerações.

Não se tratava apenas de uma simples ascensão financeira. A


missão de Alexandre era despertar e servir de canal para que ele e os
espíritos agora evoluídos pudessem reparar os erros do passado. Toda
liberdade, todos os bens afanados, todas as oportunidades retiradas,
todos os sonhos roubados, amores distanciados, vínculos quebrados.
Tudo, tudo, uma teia de vidas. Agora a cada sinal, cada pequeno milagre,
cada corrente de oração, cada passe, cada dia, cada momento estas
pendências estavam sendo resolvidas.

O futuro guardava para Alexandre o posto de presidente da “Lemos


Laticínio”. E esta não era a sua principal missão. Caberia a Alexandre
cuidar do futuro de um grande contingente de almas. Gerar empregos,
ser justo, assegurar a integridade dos negócios e das famílias que
dependem do trabalho gerado pelo laticínio. Ele teria de fornecer
oportunidades, lazer, educação e ser justo bom e honesto principalmente
com os menos favorecidos do Arabizá.

Mas desta vez Alexandre estava preparado. Ele usaria sua


mediunidade para cercar-se de boas companhias que estão dispostas a
ajudá-lo deste e de outros planos superiores. E certamente Alexandre
daria continuidade ao seu trabalho no Centro Espírita do Arabizá cercando
o local de boas vibrações de luz e paz.

235
15 - O fim do mistério.
Fogo fátuo.
Era uma tarde morna de verão. O sol agonizava seus últimos raios
atrás da maior montanha do Arabizá. Um bando de pássaros fura o céu e
atravessa a paisagem. Segundos de distração apenas e o astro some por
completo. Sua luz e o dia parecem não querer deixar o lugar. Um vento
sopra morno e ligeiro sacudindo a copa das árvores.

Absorto em profunda contemplação da paisagem externa Alexandre


nem percebeu a chegada de Naiara ao local.

--- Sua avó me disse para procurar por você aqui no Centro! Ela
estava certa. Desde que horas você está aqui? Ainda não chegou ninguém
Alexandre porque você veio tão cedo para cá?

--- Por nada meu amor. Às vezes gosto de vir pra cá e ficar refletindo
um pouco. Este local me transmite muita paz.

--- Realmente este Centro é muito bonito e tranqüilo, toda esta


natureza e luz também me passam boas sensações. Pena que o Herbert
não quis vir.

--- Pois é! Ele cresceu, tornou-se um homem responsável, admirável


nos negocio e no trabalho. Mas no fundo, bem lá no fundo, ele continua o
mesmo moleque cabeça dura de antes. Não quis vir por pura superstição.
Por mais que ele tenha visto, participado e ouvido de mim ele continua
insistindo na mesma tecla.

--- Entendo e temos de respeitar a opinião dele. Mas é só uma


palestra. E quem vai ministrar é a tia dele.

--- Naiara, o Hebinho no fundo tem medo. Ele não compreendeu a


diferença das coisas ainda. Acha que se vier ao Centro vai misturar tudo
como ele mesmo gosta de me dizer.

236
--- A Danumbia queria vir, mas ele conspirou para que ela
faltasse também.

--- Verdade, porque se dependesse apenas dela ela viria, arrastaria a


filha e ele a acompanharia.

--- Sim! Tanto tempo se passou e os dois vivem como se fossem dois
namorados até hoje. Namoraram cedo, engravidaram cedo, casaram cedo
e estão dando certo!

--- E se Deus quiser vão dar certo por muitos e muitos anos.

---É uma previsão? Você viu alguma coisa?

--- Não Senhora Dona Naiara! Eu sou médium, não sou vidente.

--- Eu sei! Disse isto apenas para lhe provocar mesmo meu anjo!

--- Entendo! Olha lá quem está chegando...

E assim uma a uma foram chegando às pessoas. Em pouco tempo o


salão principal do Centro estava lotado. Havia gente em pé, nos
corredores e algumas pessoas assistiam a tudo do lado de fora.

Ventiladores a todo vapor, gente se abanando, pigarros,


murmurinhos e muitos olhares atentos. Então logo após uma breve
microfonia, dois ou três testes ao microfone Senhor Ariel iniciou os
trabalhos daquela noite. Após sua apresentação veio Luciana. Ela deu
seqüência ao evento convidando a todos os presentes a se envolverem em
uma comovente corrente de oração. Em seguida foi a vês de Luciana
ceder o microfone a mãe de Alexandre. As pessoas aguardavam ansiosas
por suas palavras.

Seguiu uma noite perfeita. A mãe de Alexandre ministrou uma


palestra comovente. De inicio ela preparou tudo de forma bem técnica,
didática e sintetizada. Mas logo nas primeiras palavras ela abandonou o
bloquinho de anotações e a pequena planilha de tópico.

A mãe de Alexandre prosseguiu livre e fluidicamente um


cronograma traçado pela inspiração do momento.

237
Freqüentadora do Centro por um bom período, por este motivo,
logo ela pode perceber que as esferas superiores estavam presentes
naquele instante e a ajudaria em sua empreitada.

Entendeu que aquele não era apenas um campo acadêmico


humano e ali naquele lugar seria necessário a ajuda de amigos
desencarnados que certamente tinham muito a acrescentar e enriquecer
ainda mais aquela experiência. Agindo desta forma ela superou as
expectativas e deixou a noite ainda mais agradável aos ouvintes daquela
sala. Um silêncio e uma paz incrível tomaram conta do lugar. Enquanto
falava a mãe de Alexandre pode perceber nos olhares presentes que todas
as atenções se voltavam para ela. Havia um senso comum naquele
ambiente. As pessoas que ali estavam não apenas aprendiam algo, mas
tinha e sentiam grande prazer em estar aprendendo. Desta forma e
envolvidos neste espírito a alegria e a serenidade tomou conta do lugar.

Todas as palavras, cada ênfase, cada vírgula e cada exemplo que ela
pronunciava eram rapidamente absorvidos pelos ouvintes. Não havia
preguiça, não havia cansaço, nem olhares perdidos e desatentos. Parecia
que todos tinham sede de beber cada frase que saia de sua boca.

Muitos anos como professora de geografia, ela falou por diversas


classes, faculdades, e varias situações onde teve de se expressar para o
grande público. Mas nunca em sua vida obteve uma platéia
completamente atenta e interessada. Era um senso comum. Por diversas
vezes ela teve a sensação de que sua palestra estava falava diretamente a
cada um e não ao todo apenas.

Embora tenha se libertado do bloco de papel e da planilha ela não


abriu mão do foco e do tema da palestra. Tão pouco deixou de seguir o
desfecho natural das coisas, pois tudo tinha de ter um começo, um meio,
um fim, e o propósito principal que era expor um determinado conteúdo.
Ela não tinha como fugir desta regra.

Sendo assim a mãe de Alexandre, abordou com maestria o tema da


palestra que era.

“Fé e vocação”

238
Durante a palestra ela lembrou um grande exemplo para explicar
como Deus age em nossas vidas cotidianas de forma simples e direta.

Claro que ele age quando estamos dispostos a sermos ajudados e


nos tornamos merecedores desta ajuda. Assim a mãe de Alexandre falou:

--- Quando eu cursava o segundo ano da faculdade conheci um


rapaz que era ex-seminarista. Ele vinha de família muito pobre e seus pais
se esforçavam muito para que ele estudasse no seminário. Durante os
dias de visita seus pais acompanhados de seu irmão caçula sempre vinham
ao seminário. Contou-me que seu irmão adorava visitá-lo, pois no
seminário havia piscina e o maninho passava a maior parte do tempo na
água. Os anos foram indo e por mais que ele e os pais explicassem a o
irmão que seminário não é clube e que a família não tinha recursos para
manter dois rapazes estudando lá, menos o irmão compreendia. Ele
queria porque queria estudar também no seminário.

Em resumo este ex-colega meu contou que desistiu de querer ser


padre. Logo que viu o caminho livre o irmão entrou para o seminário em
seu lugar. Ninguém punha fé no irmão dele. Era um rapaz muito novo,
muito extrovertido e se dedicava pouco aos estudos.

Daí o irmão que havia entrado no seminário por causa da piscina, e


para praticar esportes com os amigos seminaristas, ficou, estudou e se
formou para padre. Já o outro irmão desistiu da carreira de seminarista,
abandonou a faculdade de filosofia e passou a cursar geografia.

O mais interessante era que ele não gostava nem de geografia, nem
de filosofia, e tão pouco tinha vocação para vida acadêmica. Na época ele
disse que gostava muito de aprender, de ler, e que até pensara em
estudar português. Disse não ter feito isto por causa do seu interesse na
língua está mais voltado ao sentimento e as manifestações literárias do
que a gramática em si. Temendo ter dificuldades de aprender as regras do
português, e buscando uma faculdade que lhe desse retorno mais rápido e
fácil ele optou por cursar geografia.

Ele chegou a se formar em geografia, lecionou por dois meses


apenas, não agüentou lidar com alunos e ambiente escolar.

239
Prestou concurso em uma prefeitura como auxiliar administrativo e
se tornou um profissional mediano. Seguiu como todo jovem de sua
época, mas sentia que lhe faltava algo.

Então um belo dia ele e a namorada foram assistir a missa de


domingo. Nos comunicados finais da missa havia um que era sobre o
festival de musica cristã. O festival aconteceria no anfiteatro de um
colégio católico de sua cidade. Era um evento simples envolvendo alunos,
estudantes locais e alguns membros da cidade e região. Algo de pouca
repercussão e com prêmios irrelevantes seguidos de troféus simbólicos.
Em fim era mais um pretexto da garotada do colégio para se divertir e se
expressar. Ele conta que foi para casa com o festival na cabeça.
Amanheceu o dia e ele foi para o trabalho. No trabalho começou a pensar
no festival na hora do almoço. Imediatamente veio uma musica conhecida
a sua mente. Ele me falou que esta musica ficou repetindo várias vezes na
sua cabeça. Passaram se alguns dias e a musica não saia da sua mente. E
quando ele finalmente se livrava dela ela tocava na radio e tudo
recomeçava outra vez. Daí ele começou a fazer paródias com a música.
Fez varia versões satíricas, e outras pouco ortodoxas. Porem quase que
espontaneamente ele viu surgir de sua cabeça uma versão religiosa desta
música que falava de Maria. Deixou o trabalho de lado e transferiu a idéia
para um papel de rascunho.

Foi tudo se encaixando perfeitamente. Ele passou a letra a um


primo que era professor de violão, o primo criou um ritmo que não fosse
plagiado para musica, e logo em seguia ele foi apresentado a uma aluna
deste primo que gostava de tocar e cantar na igreja. Gravaram a musica
em uma fita cassete, se inscreveram para o festival, participaram, e a sua
musica ficou em sexto lugar. Ele não ganhou o premio extra de melhor
compositor. Mas obteve algo muito mais lucrativo que os prêmios e os
títulos do festival. Sua música caiu na graça do povo. Tornou-se a
preferida dos grupos de jovens. Durante dez anos ela foi executada nas
igrejas da cidade. Sempre que havia uma coroação ou evento religioso
envolvendo o nome de Maria a mãe de Cristo, a musica era executada.

Foi deste fato que este meu amigo descobriu qual era sua vocação.
Ele queria ser compositor.
240
Muito mais que um ramo de vida ou uma forma de dar vazão aos
seus sentimentos ele queria ajudar o próximo através de seus trabalhos.

Desejava levar alegria, descontração, fazer as pessoas refletirem


sobre certos assuntos, criticar sistemas falidos e viciados, provocar
reflexões, expor as pessoas à poesia cantada, encantar e se realizar
profissionalmente através deste oficio que requer muita dedicação e
pouco reconhecimento pelo grande publico. Afinal todos se lembram da
musica, do cantor, mas quase ninguém atina para saber quem a compôs.

Assim ele pegou toda a bagagem que adquiriu ao longo da vida e


começou sua carreira introspectiva de compositor. Não abandonou o
emprego na prefeitura, porém passou a dedicar parte de sua vida
preenchendo cadernos e cadernos de composições. Por um bom tempo
ele ficou no ostracismo sem conseguir criar outra musica tão boa quanto a
aquela do festival. Mas no anonimato, e para os mais íntimos ele sempre
apresentava seus trabalhos. E assim eles foram se tornando cada vez
melhor, porém nada saia do papel. Na época a internet e computadores
não eram tão difundidos como hoje em dia. Sendo assim ele passou a
enviar suas letras pelo correio. Garimpavam endereços de cantores,
produtores, gravadora, compositores e músicos. Vasculhava encartes de
cd´s nas lojas, comprava revistas especializadas nas bancas, lia jornais, TV,
rádio e tudo que pudesse lhe oferecer uma forma de contato. Por anos ele
enviou material. Quase nunca obtinha retorno de suas cartas e quando
tinha a resposta era sempre negativa. Por várias vezes com a ajuda do
primo ele também chegou a enviar o material gravado e com reforço do
violão. Mas o interesse das gravadoras não se voltava para ele.

Uma coisa não o deixou desistir de ser compositor. A fé. Ele


lembrava sempre da poetisa Cora Coralina que começou a escrever seus
poemas no tardar de seus tempos. Também havia o prazer em compor
que transcendia qualquer coisa. Mais os dias se passaram e com isto ele
começou a compor com mais qualidade e menos quantidade.

Um belo dia então ele estava refletindo sobre a vida e sobre a sua
vocação. Começou a reparar o quanto Deus vai moldando o destino de
seus filhos através dos desafios e das oportunidades.

241
Olhou para o seu passado e pode perceber o quanto lhe foi
importante as decisões que tomou.

Sim, ao entrar para o seminário ele aprendeu a ser mais reflexivo,


disciplinado, pode experimentar analisar o mundo por um ângulo
diferente e quase que exterior. Logo em seguida veio a faculdade e toda a
sua bagagem acadêmica. Depois o gosto pela musica clássica e pela leitura
lhe forneciam constantemente material para suas obras. Munido destes
pensamentos ele teve uma leve inspiração. Não era muito seu estilo,
mesmo assim decidiu arriscar compor uma moda caipira. Assim surgiu
uma musica singela que mostrava em metáfora um belo exemplo de vida.
Como de costume apresentou a musica a seu primo, depois gravou e
enviou o material para uma editora em Goiânia. Deste material
despretensioso e simples veio à publicação do seu primeiro trabalho como
compositor. Daí em diante ele não parou mais. Hoje ele compõe para
diversas duplas caipiras do Brasil.

Esta historia quem me contou foi o próprio compositor. Eu pude


revelo no encontro de ex-alunos da faculdade. Perguntei sobre o irmão e
ele me deu de presente este belo testemunho de fé e vocação. E não
pense que ele está satisfeito não, pois a vocação é uma constante, é uma
manifestação de Deus em nossas vidas. Não é um pódio que a gente sobe
e fica estagnado em cima dele. Este meu amigo contou que agora seu
maior desafio como compositor é convencer as gravadoras de que ele
também é capas de escrever letras que servem a outros estilos além do
sertanejo. Acredito que ele vá conseguir, apesar de todas as dificuldades
que ele disse que vem enfrentando, uma hora ele chega lá.

Eu pude viver a vocação em minha vida. Cedo, cedo eu já sabia o


que queria para meu destino. Queria ser professora, constituir família e
ser dona de casa. Consegui tudo o que desejava. E quando eu pensei que
minha vocação estava realizada e bastava eu seguir em frente me vieram
novos desafios. Tive de usar meus conhecimentos em geografia e minha
habilidade de falar em público dentro das salas de aulas em outro
contexto. Tive de aprender muitas coisas novas a respeito de vendas e
administração.

242
Foi preciso deslocar atrás de fornecedores, compradores e eventos
para empresa. Aprendi a lidar com folhas de pagamento, Rh, fluxo de
caixa etc...

Quando eu me formei na faculdade e comecei a lecionar, sempre


ouvia meus professores dizer que os alunos mais têm a nos ensinar do que
a nos a eles. Achava este discurso bonitinho e ensaiado. Pensava que isto
era um clichê que os profissionais do ensino usavam apenas para
enaltecer o ego de suas classes. Sempre usei esta frase na minha vida e na
minha classe. Mas só fui perceber o sentido real desta frase quando meu
filho, que era meu aluno me convidou a experimentar o novo. A sair da
minha zona de conforto, dar um voto de confiança nele e em mim mesma.
Quando realmente decidi aprender com meu filho e meus alunos foi que
pude perceber a importância real e pratica desta frase. Somente desta
maneira pude conhecer a Doutrina, ter coragem para mudar de casa, de
emprego e de vida no geral. Com meu filho e meus alunos aprendi que a
juventude está nas mudanças e não idade cronológica. E assim concluo
que vocação é um chamado constante de Deus em nossas vidas. Um
chamado que nos renova, nos revigora e nos faz servir ao próximo com
nosso trabalho e servindo nos beneficiamos mais do que aqueles a quem
servimos.

Não falo de lucro ou de bens materiais, mas me refiro aos


benefícios rejuvenescedores que a fé e a vocação nos trazem. Quem
possui este dom é constantemente convidado a renovar suas idéias, arejar
seu espírito, entregar-se a novas experiências e mergulhar em novos
desafios. Com vocação tudo isto é um estimulo ao cérebro e ao corpo,
sem ela o caminho rumo a nossa realização pessoal se torna árduo e até
sem sentido. Por isto peço a todos que tenham muita fé, e muita
esperança, pois só assim conseguimos descobrir nosso lugar e nossos dons
nesta terra. Somente desta maneira seremos capazes de chegar a nossa
verdadeira vocação. E jamais subestimem seus sentimentos e os pequenos
sinais que Deus coloca em seu caminho, pois a vocação é nossa, mas a
estrada na qual vamos passar para chegar a ela pertence ao nosso querido
Pai Celestial.

243
É de uma pequena semente que nasce uma grande árvore, sendo
assim, muitos milagres e grandes acontecimentos em nossas vidas podem
ter início a partir de um singelo sinal.

------------------------------------

A mãe de Alexandre foi extremamente aplaudida. Sua palestra


comoveu a todos. Era quase possível tocar o clima de leveza e
descontração presente nas pessoas que lentamente iam deixando o local
Para Senhor Ariel, Luciana, a Família Lemos, e outros convidados foi
oferecido um gostoso lanche na cozinha do Centro. Reuniram em torno de
trinta pessoas que conversavam alegremente como se fossem amigos de
longa data. O encantamento de todos em torno da mãe de Alexandre
ficara impregnado no ar. Ela continuou sendo o centro das atenções.
Assim ela respondia a várias perguntas. Dentre elas surgiu uma que partiu
de Luciana:

--- Novamente lhe dou os parabéns pela palestra de hoje. Com um


simples exemplo e narrando parte de suas experiências de vida você
conseguiu sintetizar bem um tema tão amplo e complexo.

--- Muito obrigado Luciana! Mas estou ansiosa para lhe ver
palestrando também. Quando pretende nos presentear com seus
conhecimentos e experiências?

--- Acho que no meio do ano eu já consiga preparar algo que mereça
ser apresentado. Até lá quero aprender muito ainda.

--- Não seja modesta Luciana. A última vez que vi você se apresentar
falou lindamente e comoveu a todos nos. A maneira coerente e racional
que você interpreta suas manifestações mediúnicas muito tem a nos
acrescentar. Você não mistifica as coisas e trás tudo as claras, sabe
usufruir do seu dom e direcioná-lo em prol do próximo.

--- Mas que coincidência! Por varias vezes eu mesma já quis


apresentar uma palestra com este titulo. “Desmistificando a
mediunidade” Mas preciso muito amadurecer esta idéia sabe. Não quero
divagar ou entrar em um terreno amplo de discussão.

244
Por isto sempre venho adiando tocar neste tema. Falta-me um
conteúdo consistente ainda entende?

--- Compreendo perfeitamente Luciana. Mas não fique só no campo


da busca não. Peço-lhe encarecidamente que nos presente com esta
palestra. Nos, e principalmente os moradores do Arabizá precisaram
muito que seja posto o dedo nesta ferida. Aqui muito se mistificou e
distorceu os fatos, agora é necessário por luz sobre este tema. Do
contrário as pessoas vão continuar misturando as estações. Cada lenda do
Arabizá pode lhe fornecer material para suas pesquisas. Tome como
exemplo a do fogo fátuo. Um fenômeno da natureza desconhecido por
muitos e por este motivo é tido como uma aparição de coisa sobrenatural.

Neste momento Alexandre que ouvida tudo caldo em seu canto


entrou na conversa de súbito. Antes que Luciana pensasse em falar
Alexandre se adiantou e lançou a pergunta que não poderia mais esperar:

--- Mãe o que é fogo fátuo?

--- Alexandre, que modos são estes? Onde já se viu! Entrar de


supetão assim na conversa?

--- Por favor, não brigue com o rapaz! Ele adivinhou meus
pensamentos e perguntou exatamente o que eu gostaria de saber
também.

--- Neste caso eu vou tentar explicar. Digo tentar porque não
estudei a fundo este assunto. Pra ser sincera apesar de cientifico este
fenômeno é muito cercado de duvidas que geram diversos mistérios. Mas
fogo fátuo é um fogo de cor geralmente azulada. Tem uma baixa
intensidade de luz e podem assumir diversas formas, ovais, retas,
cilíndricas. É um fenômeno muito raro.

--- Mas como e porque isto acontece?

--- Olha pra ser sincera eu pouco li sobre isto na faculdade. Mas
tudo que sei é que este fogo surge de um gás.

Gás este que não se mistura na atmosfera. É mais ou menos o que


acontece com o óleo ao entrar em contato com a água.
245
--- Mas de onde vem este gás mamãe?

--- Veja bem Alexandre é por isto que eu gostaria muito que a
Luciana desse uma palestra aqui no Arabizá, pois com a reconstrução da
represa estes fenômenos podem ressurgir.

--- Entendo o que a Senhora quer dizer.

--- Ainda bem que você me compreendeu Luciana. Pois se estes


fenômenos voltarem a ocorrer uma vez que seja os moradores vão achar
que se trata da tal Mãe de Ouro. Quando na verdade tudo não passa
apenas de um simples fenômeno da natureza como já lhe foi dito antes.

--- Mas mãe que gás é este? De onde ele surge? Porque aqui no
Arabizá?

--- Geralmente é encontrado em cemitérios ou locais úmidos de


mata fechada onde tem grande concentração de matéria orgânica em
decomposição. As represas ao serem construídas levam para o fundo de
seus lençóis grandes quantidades de arvores e demais matérias
anorgânicas também. Por isto pode ser que este fenômeno ocorra na nova
represa do Sr. Tati. Resumindo tudo, o gás não se mistura ao oxigênio por
tanto fica concentrado no ar. Quando vem alguma fagulha o gás que é
altamente inflamável pega fogo e gera aquela chama azulada.

Alexandre ouvia atentamente a explicação de sua mãe. Novamente


ele ficou decepcionado, pois percorreu um longo caminho de busca e
descoberta e a resposta para sua duvida estava bem ali próximo a sua cara
o tempo todo. Em sua cabeça Alexandre se punia com pensamentos
frustrantes:

--- Gente do céu! Ao invés de ter contado para o Hebinho e para


Matilde sobre o que vi deveria ter falado com o papai e com a mamãe
primeiro. Quantos anos de busca. Maldita adolescência! Se não fosse ela
eu teria coragem para me abrir com meus pais sobre a luz azul que eu vi!

Alexandre estava estarrecido. Não conseguia digerir esta peça que o


destino lhe pregara. Ele não aceitava o fato de ter feito uma verdadeira
peregrinação a procura de respostas sobre o fenômeno da luz azul. Agora

246
justamente agora quando ele já havia desistido de desvendar o mistério
ele lhe caia de pára-quedas.

--- Que ironia do destino!

--- Disse alguma coisa Alexandre?

--- Não, Luciana, não é nada não, apenas um pensamento tolo que
me veio à boca. Pensei alto sem querer me desculpe.

Alexandre ficou corado de vergonha. Logo em seguida bebericou,


beliscou alguns salgados e saiu do Centro a francesa acompanhado por
Naiara.

-------------------------------

As onze e quarenta e cinco daquela mesma noite Alexandre deixou


Naira na casa de seus pais e caminhou até a sua casa. Durante o percurso
não resistiu e jogou para cima todos os protocolos e receios e ligou para
seu primo:

--- Hebinho, por favor, você pode vir aqui em casa? Não é caso de
doença nem nada de grave, pois estão todos bem. Mas mesmo assim é
uma emergência caso de vida ou morte. Por favor, venha rápido.

Depois de algumas ligações não atendidas Alexandre deixou este


recado meio confuso na caixa postal do celular de seu primo.

Em menos de dez minutos Herbert toca a campainha da casa de


Alexandre. Assim que a porta se abre o primo entra esbaforido e
metralhando reclamações:

--- Xandoco você está biruta? Nossa quase morri do coração por
causa desta sua mensagem. Estava dormindo tranqüilo no centésimo
sono. Foi a Danumbia quem viu primeiro a mensagem no meu celular. Fui
acordado praticamente no tapa.

Tenho o sono pesado, ela me sacudiu tanto pra tentar me acordar


que quando eu dei por mim estava confuso no meio de sacolejos e gritos
de acorda que ela emitia constantemente. Deu o que fazer para eu
despertar! A Danumbia praticamente me obrigou a vir aqui saber o que
247
está acontecendo. Apesar de que, eu, a Danumbia, e meio Arabizá
fazemos uma idéia do que você tem pra me contar.

--- Em primeiro lugar Senhor Bibinho, Xandoco é a sua outra


vovozinha aquela que não é a minha. Em segundo que coisa é esta ai que
todo mundo já sabe ao meu respeito?

--- Vai me falar que você não me chamou aqui pra isto?

--- Pra isto o que Hebinho seu doido!

--- Elementar meu caro Xandi. Você finalmente está pensando em


pedir a mão da Naiara em casamento. Pra isto veio pedir ajuda a um cara
mais experiente que você. Que no caso sou eu mesmo aqui.

--- Nossa, fala sério Bibinho! Não tenho nem pensamentos para
retrucar estes disparates de insanidade.

--- E por falar em falar difícil primo como foi à palestra?

Ao se depararem os dois a sós na casa e com toda a noite pela


frente. Os primos logo perceberam que aquele era um momento único.
Um momento que os anos, e os dias atribulados da vida no novo Arabizá
poucos lhes permitiam ter. Este tempo onde dois amigos de longas datas
têm para se perder em assuntos em comum. Falar de tudo, de todos, das
coisas mais intimas e superficiais. Este tempo que os anos vão se tornando
escassos e raros estes momentos. Tempo em que tudo se distância, afasta
e até algumas coisas se perdem. Evoluir requer renuncias, mas em contra
ponto também nos presenteia com novas relações, novas formas de
experiências e novos recursos para reformular as antigas amizades que
nos são tão vitais nesta existência.

E foi seguindo um velho rompante, coisa que a muito não


fazia, que Alexandre teve a iniciativa de ligar para o primo. No fundo
Herbert havia gostado da iniciativa do primo.

Ele aguardava por este momento. Sentia muita falta das conversas
a beira do fogão de sua avó, de ficar de bobeira no Poço do Bambu
jogando conversa fora, e outras facetas da vida que o tempo estava
subtraindo da amizade dos dois.
248
Herbert e Alexandre só tinham tempo para suas novas famílias, e
se encontravam apenas na condição de primos e por razões geográficas.
Agora naquela sala estavam reunidos apenas dois melhores amigos. E isto
foi mais uma lição que Alexandre aprendeu. Nunca deixar a criança
interior calar-se. Mesmo feliz em seu novo emprego, mesmo tendo as
responsabilidades e posturas que sua nova profissão lhe cobrava, apesar
de tudo isto, ele viu que às vezes tinha o direito de se deixar guiar por um
Alexandre espontâneo e voluntarioso.

Assim este menino interior lhe puxou a orelha pedindo que ele não
deixasse apagar a chama de uma grande amizade. Este moleque
praticamente ordenou que Alexandre entrasse em contato com o velho
amigo. Qualquer assunto pode esperar, mas uma amizade não. Fosse qual
for o assunto o momento era aquele. Então este repente de ligar para o
primo àquela hora resolveria o problema e daria inicio ao segundo tempo
desta grande amizade.

Foi a pedido do próprio Herbert que Alexandre contou tudo sobre a


palestra realizada no Centro aquela noite. Herbert ouviu com muito
interesse, fez várias colocações e diversas perguntas. Logo em seguida foi
à vez de Alexandre dizer a que veio:

--- Herbert você não vai acreditar! Finalmente eu consegui


desvendar o mistério da Luz Azul!

Alexandre explicou a seu modo o fenômeno do fogo fátuo. À


medida que Alexandre falava, Herbert ia notando um ar de decepção na
face do primo. Assim Herbert perguntou:

--- Nossa, primo, você queria tanto chegar ao fim deste mistério,
agora que conseguiu está frustrado? Por quê?

--- É que no fim tudo não passava apenas de um fenômeno


cientifico.

249
--- E você acha mesmo que faria diferença em sua vida se o
fenômeno viesse de outras formas de manifestação, um anjo ou um
espírito, por exemplo? Agora pouco você me contou a experiência de dois
irmãos. Um que se tornou Padre e outro que se tornou Compositor. Deus
usou a piscina para atrair o caçula. E deu certo. Ele entrou no seminário
por causa da piscina e teve contato com a vida celibatária. Deus o ajudou
a encontrar sua vocação. Deus abriu mão de recursos concretos e
presentes no contexto para auxiliar o irmão caçula. Imagina quantos
seminários tem no Brasil? Porque o irmão mais velho escolheu um que
justamente tinha piscina? E olha para o irmão mais velho. Ele achava que
tinha encontrado sua vocação logo de inicio.

Mas Deus provavelmente deve ter lhe enviado sinais para mostrar
que aquele não era o caminho certo. Porém, mesmo assim ele deveria
viver a experiência do seminário, pois quanto mais rica de experiência for
à vida de um compositor mais isto tem a acrescentar em sua obra.

Provavelmente ele viveu muitas e muitas experiências até encontrar


a verdadeira vocação. Tem muitas peças que não se encaixam neste
quebra cabeça. Não dá pra aceitar de cara apenas a justificativa de fogo
fátuo não. Mas digamos que este fenômeno não tenha sido de natureza
mediúnica. Assim como aconteceu com os irmãos também ocorreu em
seu caminho. O importante não foi o fato em si, foi à maneira com que
você reagiu e agiu depois do ocorrido. Isto sim fez a diferença.

--- Eu compreendo sua tentativa de me ajudar. Mas este fenômeno


era o mais concreto, mais impressionante, o mais próximo do real que eu
já havia experimentado na vida. Achei que ele seria como uma espécie de
dom mediúnico que estava ali esperando apenas que eu o compreendesse
para que ele se manifestasse novamente.

--- Alexandre, eu sou capaz de apostar que tanto o Padre como o


Compositor da história que sua mãe contou também tinham outro
conceito a respeito dos sinais divinos que guiam a nossa vocação. Aposto
que eles esperariam por anjos anunciando as coisas, ciganas vindas do
nada e fazendo previsões. Em fim qualquer coisa, menos uma simples
piscina. Pois foi através deste objeto inanimado que Deus pode agir.

250
Assim também ele fez com você. E olha que com você Ele usou uma
luz azul e bonitinha, rara que poucos no mundo puderam ver. Não seja
ingrato meu querido primo. Olha tudo a sua volta. Sua fé que trouxe a
tona todas estas coisas. Sua fé movida de boas ações. A luz veio no
momento oportuno, apenas como cereja do bolo. E se não fosse ela Deus
abriria mão de outros recursos para lhe ajudar. Lembra quando eu perdi a
Keira pro João Pedro e você me disse aquelas coisas?

--- Você nunca namorou a Keira, isto só aconteceu na sua cabeça.


Mas que coisas eu lhe disse na época que já esqueci? Por favor, me
esclareça Bibinho!

--- Então que fique bem claro que Bibinho é a sua vovozinha a que
não é a nossa e nem a minha. Mas falando sério eu estava descrente da
vida na época e jamais acreditaria naquele momento que o Arabizá
chegaria aonde chegou hoje. Foi você que me fez acreditar em um futuro
diferente. Você usou como exemplo a trajetória do João Pedro. Explicou
que até então ninguém tinha visto sair um grande jogador do Arabizá
Várzea Futebol Clube. Mas todos tinham fé e trabalhavam pra isto.

Quando os discípulos estavam prontos eis que surge o mestre. No


caso do time foi o olheiro, e os discípulos eram discípulos da bola mesmo.
Mas você entendeu o que eu estou tentando lhe dizer?

--- Claro que sim meu primo e você está andando em ciclo.

--- Não Xandi quem está andando em ciclo é você. Eu lembro


perfeitamente da época em que você me mandava manuscritos para ler.
Tenho guardado em minha mente quase tudo que você me falou. E antes
quando o Centro Espírita do Arabizá era o quintal da nossa avó, foi você
mesmo quem disse que o Espiritismo trabalhava com a investigação de
fenômenos.Então. A luz azul foi um fenômeno que seus mestres
encontraram, não fosse ela seria a eletricidade, a água quem sabe. Mas
mesmo que fosse a materialização de um espírito, ainda que o fenômeno
fosse desconhecido pelo homem, ainda sim seria apenas um fenômeno.
Você não está descrente coisa nenhuma Alexandre, você no fundo está é
decepcionado, pois a verdade estava debaixo de seu queixo o tempo todo
e você foi tão longe pra descobrir isto.
251
--- Você tem razão Herbert! Mas então me responde uma coisa? Por
que tem de ser assim?

---- Olha Alexandre eu tive uma professora na sexta série que dizia o
seguinte. “Trama boa é aquela em que o mordomo é sempre o culpado.”
Com isto ela queria nos dizer que tudo aquilo que nos precisamos para
nossa vida está a nossa disposição. Porém só vamos conseguir usufruir
estas coisas se tivermos conhecimento.

É mais ou menos como um índio de uma tribo isolada. Ele foge, vai
viver em outras tribos, descobre outras raças, convive e aprende com a
cultura deles. Retorna a sua tribo e apenas ele sabe que as pedras
amarelas que estão na caverna próxima à tribo não são apenas pedras,
são pepitas de ouro. Estavam sempre ali, mas ele teve de ir longe para
aprender o valor daquelas pedras.

Você achou que por estar no caminho certo à vida lhe traria tudo de
mão beijada? Achou que a luz azul ia ser sua amiguinha lhe dando todos
os sinais que precisasse? Não é assim que funciona primo. Será que a
Luciana tem certezas sempre que vê um fenômeno? Acredito-me que não.
Ela tem duvidas, questiona, talvez já tenha questionado até a própria
sanidade. E quando ela afirma alguma coisa é porque fez um longo
processo, e mesmo assim já deve ter errado muito na vida também. Xandi
nós temos pernas pra andar, bocas pra falar, olhos pra ver, nariz pra
cheira e cabeça pra pensar. Pensar muito, pensar o tempo todo. A fé entra
em nossas vidas como complemento, é através da fé que acreditamos que
a estrada continua depois da curva.

Foi à fé que fez você seguir e querer desvendar mistérios


desconhecidos. Se lhe faltasse fé você se contentaria com a primeira
justificativa que aparecesse. O que lhe decepciona é o fato de você achar
que em determinado momento as coisas lhe seriam gratuitamente
reveladas para sempre sem esforço. Bastasse desvendar os mistérios e
pronto você teria tudo explicado para sempre.

252
--- Verdade primo. Eu achava que se visse algo “sobrenatural” isto
iria reforçar minha certeza a respeito de tudo.

--- Não há nada de errado em pensar assim, e tão pouco você deva
deixar de querer buscar certezas, pois estas são fundamentais. Mas se
você já tivesse ouvido falar de fogo fátuo na noite que viu o fenômeno
onde estaria o Arabizá hoje?

--- Certamente entraria em processo acirrado de decadência


Hebinho.

--- Assim é a vida. Você gostaria de ver um filme já sabendo o final?

--- Certamente que não. Você tem razão, saber na hora certa é uma
ferramenta, mas certos conhecimentos na hora errada podem se tornar
uma muleta nociva. Zé do pacto quem o diga.

E tem mais, muitas aves domesticadas hoje não voam porque suas
azas atrofiaram. E atrofiaram devido ao fato delas aos poucos irem
deixando de voar e vivendo de forma mais terrena.

--- Pois é isto que estou espremendo para tentar lhe explicar primo.
A dúvida e a Fe vão sempre vir à frente na estrada da vida. A cada
bifurcação, a cada curva, a cada descida e subida, a todo instante. Por
mais que você tenha caminhado em um determinado destino o dia que
lhe faltar duvida e fé é porque ou você chegou ao final ou você chegou à
loucura. Mire no exemplo de Cristo. Ele dormia tranqüilo no barco quando
foi acordado pelos seus discípulos. Da pra imaginar quantos milagres estes
mesmos discípulos presenciaram estando próximo de Cristo? E apesar de
terem visto Nosso Senhor operar milagres pessoalmente eles estavam
com medo de uma simples tempestade. Nem por um instante nenhum
deles dimensionou o fato de que quem estava dormindo ali, era o filho de
Deus! Portanto o próprio Deus. Mas eles tiveram medo, eles o acordaram,
eles procuraram por ele. Se até quem viu e viveu ao lado de Cristo teve
medo, teve duvidas, quem nos somos para não ter? Primo posso lhe
garantir uma coisa. Não importa o que tenha sido aquela aparição. Mesmo
que fosse a mais extraordinária e elevada manifestação mediúnica,
mesmo assim sua condição humana o deixaria com rusgas de dúvidas.

253
É da natureza humana. Sempre implantamos sentimentos, anseios
e expectativas pessoais e às vezes errôneas a respeito da realidade dos
fatos. Por isto lhe peço encarecidamente Xandoco deixa de ser cabeça
dura. Foi você mesmo que me ensinou que a vida todos os dias explode de
milagres. Desde o nascer do sol, o desabrochar de uma pétala ate o vôo de
uma simples abelha que desafia todas as regras da navegação áreas
humana.

Entenda de uma vez por todas que o único milagre ocorrido foi o
fato de você ter dito sim ao seu destino, ter aceitado a ajuda de Deus, e
dos espíritos de esferas superiores que você acredita, da família, dos
amigos e outros membros da corrente do bem. O único milagre foi você
ter acreditado de verdade, ter buscado, ter se entregado sem medo,
errado e reparado seus erros, daí sim primo é que está a essência de tudo.
É desta fórmula que se pode extrair qualquer coisa em qualquer plano,
Doutrina ou Religião.

Neste momento Alexandre se levanta do sofá da sala onde estava


sentando e abraça seu primo que parte em sua direção. Alexandre
apertou seu primo, lhe deu três tapinhas nas costa e agradeceu Herbert
por tudo e pelas palavras de apoio e sabedoria. E enquanto estava
abraçado ao Herbert ele sussurrou em seu ouvido:

--- Primo, que Deus lhe pague por tudo nesta vida. Muito obrigado
por fortalecer minha fé e dissipar minhas dúvidas. E também quero lhe
dizer uma coisa, só mais uma coisa, Xandoco é a sua vovozinha.

--- Ao ouvir estas palavras e ainda abraçado a Alexandre, o primo


aproveitou para revidar a provocação do amigo e agradecer dizendo:

--- Alexandre eu lhe devo muito, muito, muito mesmo. Somos de


doutrinas diferentes, mas filho do mesmo Deus. Você com sua fé e
testemunho muito me ajudou. Graças a você tenho tudo o que tenho, e
sei tudo o que sei. Cada pessoa que luta e faz o bem nos dá lições que
devem ser aprendidas. E eu também tenho uma coisa a lhe falar. Bibinho
é a sua vovozinha a que é a sua e não a minha.

254
Seria preciso muitas noites para que os dois amigos
colocassem a conversa em dia. Por sorte ambos acreditavam na
eternidade.

Fim.

255
Contatos.
omisteriodaluzazul@gmail.com

256
Considerações finais.

Amigo leitor, ao percorrer estas linhas certamente significa


que você chegou ao final deste livro. Diante este fato agradeço
profundamente a atenção dispensada a esta obra que concebi
com grande esforço e dedicação. Jamais conseguiria dimensionar
em palavras a felicidade que sinto em conceber meu primeiro
trabalho e o mesmo ser prontamente apreciado por pessoas
especiais como você. Sempre que possível conto com a sua ajuda
na divulgação deste projeto repassando este PDF para amigos,
colegas e demais pessoas de sua estima. Espero profundamente
que a leitura deste livro tenha lhe proporcionado momentos de
conhecimento, prazer e alegria.

Aproveitando a oportunidade quero explicar que a obra


“ O Mistério da Luz Azul” inicialmente tinha por objetivo tornar-
se um livro físico por assim dizer. Houve aprovação de uma
editora, sem contar os inúmeros sites e lugares onde o mesmo
poderia ser disponibilizado para leitura. Porém durante o
percurso de publicação optei por dar corpo a um procedimento
que ainda é pouco divulgado no Brasil, mas que vem dando bons
resultados na Europa, principalmente na Alemanha. A proposta
é não depender de editoras, editor, empresários etc... Assim
estabeleço um vínculo direto com o leitor deixando a critério do
mesmo determinar o valor da obra e decidir se a mesma é digna
de contribuição.

257
A inspiração para o procedimento me veio a partir de
uma reportagem noticiada na TV local de Minas Gerais. Nela a
reportagem apresentava uma Moça que na ocasião estudava na
Universidade Federal de Lavras. A moça precisava vender
bombons para ajudar em seu orçamento. Porém ela necessitava
estudar e trabalhar. Então a solução que a moça fez foi
estacionar sua motocicleta no pátio da universidade, abrir o
compartimento cheio de bombons e deixar uma caixinha e uma
plaquinha com o preço das guloseimas. Ela deixou a motocicleta
nestas condições e seguiu para sala onde permaneceu até o
termino das aulas. Quando ela retornou a motocicleta qual foi a
sua surpresa? Isto mesmo, as pessoas retiraram os bombons e
efetuaram corretamente o pagamento na caixinha e nenhum
bombo foi afanado ou estragado. Até o troco estava correto, e
assim a moça seguiu vendendo até que o caso ganhou os
noticiários locais.

Ela comprovou o que eu já vinha suspeitando há muito


tempo e creio que você também comunga do mesmo
pensamento que. A maioria das pessoas destes Pais é honesta e
civilizada. O que acontece é que o mal vira notícia e o bem não é
estimulado e apresentado.

E foi movido por esta inspiração que resolvi deixar este


projeto a mercê do leitor para que o mesmo determine o
momento, estipule o valor e contribua da forma que entender
que valha este Livro.

258
Para tornar este processo possível em apenso na
outra página está o número da conta do autor para que você
possa efetuar seu depósito voluntário. Sua colaboração será de
grande valia para estimular projetos futuros, e trazer mais
qualidades ortográficas e estruturais aos próximos projetos.

O sucesso desta empreitada depende exclusivamente de


você leitor. Reforço aqui meus sinceros agradecimentos e minha
eterna gratidão pela atenção dispensada a este sonho.

Atenciosamente – João IV

O Autor.

259
Banco do Brasil
Cliente – João Batista da Silva IV
Agência – 0364-6 Conta – 49.407-0
Variação – 51.

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